quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A estratégica rede de portos que a China controla no mundo e avança até no Brasil

O porto de Pireus, na Grécia, considerado a grande porta de entrada dos produtos asiáticos na Europa, é um dos exemplos da expansão das empresas chinesas na rede portuária global.

Depois da Grande Crise de 2008-2009, a Grécia teve de implementar reformas e privatizações para pagar suas dívidas depois de receber um resgate financeiro, promovido pela União Europeia. (Getty Images)

Foi assim que uma gigante estatal chinesa viu uma oportunidade de entrar na indústria portuária de um país em crise.

A empresa Cosco adquiriu 51% de Pireus, num acordo que a autorizava a aumentar sua participação para 67% cinco anos depois. E foi exatamente isso que aconteceu, no início de outubro.

Com essa operação, Pequim agora administra um dos portos mais importantes do mundo, localizado na junção de Europa, Ásia e África.

A mesma empresa está em negociações para adquirir uma participação no porto de Hamburgo (Alemanha). Se for concretizada, será o oitavo grande investimento portuário da Cosco na Europa.

Outro gigante chinês do setor, o Shanghai International Port Group, acaba de assumir o controle do porto israelense de Haifa.

Esses são alguns dos capítulos mais recentes de uma longa história de expansão portuária, que nos últimos anos tem ocorrido no contexto da chamada Rota Marítima da Seda, iniciativa que faz parte de um plano mais amplo de investimento de capital chinês em obras de infraestrutura ao redor do mundo.

Para conseguir esse objetivo, controlar as concessões portuárias em pontos geoestratégicos é fundamental, apontam analistas consultados pela BBC Mundo.

Diferentes estimativas mostram que empresas do gigante asiático controlam atualmente cerca de cem portos em mais de 60 países.

"Os portos de contêineres com investimento chinês tiveram um aumento em sua conexão de transporte marítimo acima da média", diz Jan Hoffmann, chefe da Unidade de Logística Comercial da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad, na sigla em inglês).

Isso representa uma vantagem sobre seus concorrentes que lhes permite avançar passo a passo na indústria portuária

Esse aumento de conexão, explicou Hoffmann à BBC Mundo, ocorreu porque tratam-se geralmente de investimentos de grandes proporções ou porque as empresas chinesas levam seus próprios serviços a esse terminais.

Exibição de força

A partir de um ponto de vista histórico, Sam Beatson, professor do Departamento de Finanças, Risco e Bancos e em programas de mestrado em Administração de Empresas da Escola de Negócios da Universidade de Nottingham (NUBS), no Reino Unido, diz que as elites políticas e empresariais chinesas compreenderam que no passado perderam uma oportunidade de explorar e se desenvolver em outras partes do mundo.

Até que reagiram, alguns anos atrás.

"Por um lado, a China quer se expandir, influenciar e compensar esse tempo perdido. Por outro, claro, existe um desejo de exibir força, mas na minha opinião não existe nenhum desejo de fazer isso de uma maneira ameaçadora", afirmou à BBC Mundo.

O presidente chinês, Xi Jinping, e o primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, no porto de Pireu (Getty Images)

"O elemento chave que impulsiona a estratégia portuária das empresas chinesas é um maior controle e eficiência em seus negócios marítimos globais e a busca de oportunidades para participar de projetos de desenvolvimento perto da China."

Outros estudiosos, como James R. Holmes, professor de Estratégia Marítima na Escola de Guerra Naval dos Estados Unidos, têm uma perspectiva mais cuidadosa sobre o avanço chinês na rede portuária.

"O objetivo é criar um ciclo autossustentável entre o comércio, o poder militar e a influência diplomática", disse ele.

O acesso a portos no exterior permite que a China desenvolva mais suas redes comerciais e aumente sua riqueza. Com isso, explica Holmes, o país reinveste parte desses fundos em suas forças navais, terrestres, aéreas e de mísseis de apoio.

Ao ter um maior poder econômico, Pequim consegue "uma alavanca diplomática para influenciar nas nações anfitriãs", onde funcionam os portos com capitais chineses, diz o especialista.

A base naval chinesa em Djibouti, na entrada do Mar Vermelho e do Canal de Suez, causou polêmica (Getty Images)

Esse é, por exemplo, o caso de Djibouti, país do leste africano localizado estrategicamente na entrada do Mar Vermelho, que leva ao Canal do Suez. Nessa pequena nação, que recebeu grandes investimentos de Pequim, um porto marítimo foi transformado na primeira base militar da China no exterior.

A militarização desse porto havia sido vista por alguns analistas como uma advertência diante dos interesses portuárias que a China possa ter em outros países, como Tanzânia, Emirados Árabes Unidos, Paquistão ou Mianmar.

Pedras no caminho

Décadas de crescimento económico e um forte impulso governamental permitiram à China posicionar-se no centro do comércio marítimo mundial, segundo uma análise do China Power Project, pertencente ao Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês), com sede em Washington D.C. (EUA), intitulado Como a China influi na conectividade marítima global?.

Sob o governo de Xi Jinping, as empresas estatais chinesas têm participado de projetos de investimento e construção de dezenas de portos em todo o mundo. Entretanto, muitos projetos apoiados pela China não têm decolado como se esperava, diz o estudo.

CK Hutchison, Cosco e China Merchants são algumas das maiores empresas chinesas com portos no exterior (Getty Images)

É o que acontece no porto de Gwadar, um componente chave do Corredor Econômico China-Paquistão, que tem sido subutilizado.

"O governo paquistanês teve de tomar medidas desesperadas no início de 2021 para reativar o porto", afirma a análise do CSIS.

O documento também afirma que alguns projetos importantes ainda não se materializaram por completo, como o porto de Bagamoyo, na Tanzânia.

Outro aspecto das operações chinesas na indústria portuária, acrescenta a análise, está relacionado com os termos das negociações feitas com países endividados com Pequim.

O Sri Lanka estava tão endividado com a China que em 2017 arrendou o porto de Hambantota por 99 anos em troca de uma redução da dívida (Getty Images)

Nesse contexto está o porto de Hambantota, no Sri Lanka. O país asiático estava tão endividado com a China que em 2017 arrendou o porto aos chineses por 99 anos, em troca de uma redução da dívida.

A medida gerou preocupações sobre a influência econômica chinesa, diz o CSIS, e os potenciais riscos para países menores de firmar acordos custosos de desenvolvimento de infraestrutura com o gigante asiático.

América Latina e Brasil

Eleanor Hadland, analista sênior de terminais portuários da consultora internacional Drewry diz que, apesar de as operações chinesas na América Latina terem aumentado, elas ainda estão muito abaixo do que tem sido um fenômeno em outras partes do mundo.

"Os terminais de contêineres estiveram na primeira onda de privatizações de portos nos finais da década de 1990 e no início da de 2000", disse a especialista à BBC Mundo.

Nesses anos, entrou com força na região a Hutchilson Ports (subsidiária da CK Hutchison Ports), empresa chinesa que atualmente tem a maior presença na América Latina. É a gigante chinesa nos portos latino-americanos.

Anos depois entraram no mercado a Cosco e a China Merchants, mas o ritmo de expansão das empresas chinesas foi muito menor que no passado se deu em outros lugares.

A América Latina tornou-se um mercado secundário para os chineses, já que a Rota Marítima da Seda está mais concentrada em conectar a Europa e a Ásia e em projetos de desenvolvimento portuários na África.

Além disso, diz a analista, "a oportunidade de os chineses ingressarem no mercado latino-americano vê-se limitada pelas taxas de crescimento mais baixas" na região, algo que vem ocorrendo desde antes da pandemia de Covid-19.

Porto de Balboa, no Panamá, operado por capital chinês (Getty Images)

O Brasil, entretanto, pode acabar sendo um caso diferente na região. "Há uma nova série de privatizações de portos programadas no Brasil", das quais eventualmente os chineses podem participar.

Entretanto, outros interessados podem acabar assumindo esses projetos. "Nós imaginamos que as considerações geopolíticas serão fundamentais para o governo brasileiro", afirma Hadland.

"Com mais concorrência, ganhamos todos"

"O melhor que pode acontecer à indústria e aos usuários é que haja operadores portuários de porte mundial competindo nos portos da região", diz José Antonio Pejovés, professor de Direito Marítimo na Faculdade de Direito da Universidade de Lima e fundador do Estudio Pejovés Marítimo, empresa de assessoria jurídica.

"Se existe mais concorrência, ganhamos todos." A partir dessa perspectiva, o especialista afirmou, em conversa com a BBC Mundo, que a iniciativa da Rota da Seda "é um projeto fabuloso".

Pejovés explica que os capitais chineses operam sob um esquema de concessões por um período de tempo determinado. São concessões de uso público, ou seja, eles estão obrigados a prestar serviços a todos os navios de carga que queiram utilizar sua infraestrutura.

"Não são terminais portuários dedicados somente aos interesses chineses."

Estratégia "comercial e política"

Evan Ellis, professor pesquisador de estudos latino-americanos do Instituto de Estudos Estratégicos da Escola de Guerra do Exército dos Estados Unidos, diz que para a China é fundamental ter um papel importante na conectividade global.

Sua estratégia mais ampla, disse Ellis à BBC Mundo, é tratar de assegurar seu acesso a mercados estratégicos para conseguir matérias-primas e vender seus produtos.

"As empresas chinesas querem os portos com a ideia de dominar toda a cadeia de suprimentos" e assim não depender logisticamente de outras empresas.

Na América Latina, as empresas chinesas controlam mais de 10 megaportos em 7 países (Getty Images)

Mas, mesmo com objetivos principalmente econômicos, eles não deixam de ser estratégicos, diz o pesquisador.

"A influência econômica lhe dá poder para ter mais influência política e depois você usa essa influência política para conseguir mais vantagens econômicas. É um ciclo."

A partir dessa perspectiva, acrescenta Ellis, "o controle dos portos é parte de uma guerra econômica e estratégica em que a China usa seu poder para conseguir mais mercados e impor pressão sobre a concorrência.

Grande projetos na região

Um dos grandes portos cuja construção avança a passo firme é e Chancay, no Peru.

Operado pela chinesa Cosco, espera-se que o investimento total chegue aos US$ 3 bilhões quando as obras forem concluídas, em 2024.

Entre os grandes portos com investimentos chineses na América Latina e no Caribe estão ainda os de Enseada, Manzanillo, Lázaro Cárdennas e Veracruz, no México.

Lázaro Cárdenas é um dos quatro portos administrados por empresas chinesas no México (Getty Images)

Nas Bahamas, o de Freeport; na Jamaica, o de Kingston; no Panamá, Balboa e Colón; na Argentina, o de Buenos Aires. E, no Brasil, o porto de Paranaguá, no Paraná - em que a China Merchants Port Holding Company (CMPort) adquiriu 90% dos Terminal de Contêineres de Paranaguá, em 2018. Paranaguá é o principal porto de exportação da soja brasileira, cuja maioria segue rumo à China.

Além deles, existe capital chinês em portos menores, alguns privados, ou em diferentes tipos de infraestrutura portuária.

Nem todas as iniciativas chinesas na região, porém, prosperaram. É o caso do megaprojeto impulsionado pela empresa Asia Pacific Xuanhao, que busca a criação de uma zona de livre comércio no sudeste de El Salvador, com acesso a Honduras e Nicarágua.

O desenvolvimento inclui a reconstrução do porto de La Unión, a criação de um parque industrial, um aeroporto e zonas de desenvolvimento turístico, entre outros.

"É basicamente converter El Salvador em uma zona para a expansão comercial da China na América Central", afirma Ellis.

Xi Jinping promoveu a construção de infraestrutura chinesa no exterior, no âmbito de sua iniciativa da nova Rota da Seda (Getty Images)

Embora a América Latina não esteja no centro da estratégia chinesa de investir em portos a nível global, de toda maneira trata-se de um mercado atraente, dizem os especialistas.

Mesmo estando a região mais na zona de influência dos Estados Unidos, por sua proximidade geográfica, não é um dado de pouca importância que o principal parceiro comercial da América do Sul seja a China.

Por enquanto, existem vários projetos portuários com capital chinês que estão sendo planejados pela região, mas as negociações costumam levar anos, considerando os gigantescos montantes envolvidos e as considerações políticas que cada governo faz quando deve firmar um acordo.

Ainda que se tratem de acordos comerciais, a questão estratégica dificilmente fica fora da balança.

Cecilia Barría para a BBC News Mundo, em 20.10.21

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Bolsonaro fica entre o crime contra a humanidade e o charlatanismo no relatório da CPI da Pandemia

Vazamento do parecer do relator Renan Calheiros antecipa discussão que os senadores travarão até o dia 26 para definir o grau de gravidade da conduta do presidente durante a crise de saúde da covid-19

Painel eletrônico exibe vídeo do presidente Jair Bolsonaro diante do relator da CPI da Pandemia, Renan Calheiros, durante sessão em 8 de junho. (Edilson Rodrigues, Ag. Senado).

O presidente Jair Bolsonaro cometeu crime contra a humanidade durante a pandemia da covid-19. Essa é a leitura do relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, que vai chegando ao fim após uma maratona de quase 70 reuniões percorridas para descobrir os responsáveis pelas 600.000 mortes provocadas pelo coronavírus no Brasil. O relatório produzido pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) e vazado antes de sua leitura oficial, que será feita nesta quarta-feira, desvela uma rede de falsas informações capitaneada pelo presidente com a conivência da classe médica, que levou o país ao sétimo lugar do mundo na relação de morte por habitantes —o Brasil é responsável por 12,4% dos óbitos do planeta na pandemia, apesar de ter apenas 2,7% da população mundial.

O relator pede 72 indiciamentos —de 70 pessoas e duas empresas— por 24 crimes, e seu principal alvo é Bolsonaro. O presidente teria cometido 11 crimes, que vão desde charlatanismo —”inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”— até homicídio qualificado por omissão no combate ao coronavírus e genocídio de indígenas, pela “intenção de submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio”. Essas duas acusações mais graves não são consenso entre os parlamentares que participaram da investigação, e o caminho para que os crimes venham a ser de fato investigados pela justiça brasileira é incerto: o procurador-geral, Augusto Aras, responsável por acusar formalmente o presidente da República, já demonstrou mais de uma vez que não pretende incomodar Bolsonaro.

Para tentar diminuir a resistência de colegas em relação à acusação de genocídio, Calheiros ressaltou a prudência ao tratar do tema. “Nem todo massacre, morticínio ou assassinato em massa pode ser descrito como genocídio. Devemos preservar o discernimento para não desqualificar a gravidade dos fatos e chamar cada um à devida responsabilidade”, escreveu. No documento, o relator diz que Bolsonaro atuou para “favorecer a contaminação e consequentemente a morte dos brasileiros que ele tinha a obrigação de proteger”. “As manifestações do Presidente da República fizeram parte de uma estratégia que, embora equivocada, foi cuidadosamente organizada de forma a alcançar o objetivo de acelerar a disseminação do vírus, para atingir a imunidade de rebanho ao menor custo possível”, descreve o relator.

Os senadores se reúnem nesta quarta-feira para ouvir a leitura do relatório e terão mais seis dias até decidir se endossam tudo o que Calheiros escreveu. Além dos pedidos de investigação do presidente por homicídio e genocídio, os parlamentares também se questionam sobre o indiciamento dos três filhos políticos de Bolsonaro —um senador, um deputado e um vereador— por terem participado da rede de desinformação liderada pelo presidente durante a pandemia. “Temos de fazer um relatório devastador, mas não podemos nos perder nas questões jurídicas pra não darmos brechas para questionamentos”, explica o senador Humberto Costa (PT-PE), membro da CPI e opositor do Governo.

Outro ponto de discórdia é o indiciamento do ministro da Defesa, Walter Braga Netto. General do Exército, ele foi o chefe da Casa Civil e responsável pela coordenação das primeiras ações no enfrentamento da doença. Calheiros entende que o general seja indiciado pelo crime de epidemia, mas parte dos parlamentares teme que o Exército veja a acusação como uma provocação. O não indiciamento do governador do Amazonas, o bolsonarista Wilson Lima (PSC), também resultou em queixas entre os parlamentares. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), reclamou que Lima teria responsabilidade sobre as mortes de dezenas de amazonenses durante a crise da falta de cilindros de oxigênio em Manaus. Dos membros da CPI, Aziz é o que mais se irritou com o vazamento do relatório.

1178 páginas

Afora os pontos de divergência, não parece restar dúvidas quanto ao papel de liderança do presidente na costura de uma cortina de fake news para esconder as falhas gritantes de seu Governo no enfrentamento da pandemia. Falhas como a incapacidade do Executivo federal de se articular com Estados e municípios no “planejamento das ações para aquisição de insumos estratégicos e para a elaboração dos planos tático-operacionais”. O relatório de 1178 páginas disseca em 16 capítulos como Bolsonaro se cercou informalmente de um gabinete paralelo composto por médicos, políticos e empresários para defender tratamentos sem comprovação científica quase que como uma política de Governo, “ao arrepio das orientações técnicas do Ministério da Saúde, sem ter investidura formal nos cargos públicos responsáveis por essa função”.

A política negacionista de Bolsonaro teve o suporte de um órgão considerado técnico, o Conselho Federal de Medicina (CFM), que não se opôs ao uso da cloroquina mesmo depois de ficar mais claro que ela não serve para tratar a covid-19. O presidente do órgão, Mauro Luiz de Brito Ribeiro, teve seu indiciamento sugerido pelo delito de epidemia culposa com resultado morte. Foi escorado no gabinete informal composto por órgãos como esse que Bolsonaro advogou pela imunidade de rebanho —a ideia de que o melhor caminho para encerrar a pandemia seria permitir que a maior parte de brasileiros possível se contaminasse— e que, até hoje, semeia dúvidas sobre as vacinas que seu próprio Governo comprou, e com as quais mais de 100 milhões de brasileiros já foram imunizados com o ciclo completo.

Ao longo de todo o relatório, Renan Calheiros ressalta que o Governo demorou para contratar vacinas contra o coronavírus —um assunto que tomou diversas sessões televisionadas da investigação, primeiro por causa da demora de meses do Governo para se entender com a Pfizer e, depois, pelas suspeitas de corrupção na negociação para a compra de vacinas como Covaxin e Sputnik V, que não chegaram a ser adquiridas pelo Governo brasileiro. “O atraso na aquisição de vacinas impôs escassez à população e redução do ritmo de vacinação, o que aumentou a mortalidade pelo vírus”, destaca o texto, que guarda uma sessão para a crise de falta de oxigênio no Amazonas, o ápice da tragédia pandêmica no Brasil.

Entre senadores que lideraram a investigação, há uma preocupação de que o relatório seja rejeitado no próximo dia 26, como consequência do desentendimento quanto aos crimes mais graves atribuídos ao presidente e a alguns de seus ministros —entre os pedidos de indiciamento estão Marcelo Queiroga (Saúde), por epidemia e prevaricação; Onyx Lorenzoni (Trabalho), por incitação ao crime e genocídio de indígenas, e Wagner Rosário (Controladoria), por prevaricação. Mesmo divergências políticas regionais entre os membros da comissão ameaçam retirar votos que garantiriam a aprovação do texto final. O histórico de Calheiros, um político desgastado há décadas por inúmeras acusações de corrupção, também não advoga a favor de seu parecer sobre quem e por que deveria ser punido pelo desempenho do Governo no combate à pandemia.

Os parlamentares também discutem se considerarão ou não as informações referentes à disseminação de fake news. Calheiros usou em seu relatório trechos da investigação sobre desinformação conduzida por militantes bolsonaristas que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Os demais senadores não tiveram acesso a esse documento e se queixam da falta de embasamento para acusar os bolsonaristas, entre eles o primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), de incitação ao crime, ao espalhar informações sobre a efetividade do kit covid ou dúvidas sobre as vacinas.

Ainda que o relatório seja aprovado como proposto, caberá a outros órgãos uma punição formal a Bolsonaro e a seus aliados. O texto ainda será analisado pelo Ministério Público Federal, que tem à sua frente um procurador apontado como apoiador de Bolsonaro. No comando da Câmara, por onde se inicia a tramitação de qualquer processo de destituição, está outro bolsonarista, o deputado Arthur Lira (PP-AL). De qualquer forma, o fim da CPI da Pandemia marca mais um capítulo de intenso desgaste para um presidente que vive seu pior nível de aprovação popular e que se encaminha para o ano eleitoral extremamente enfraquecido.

AFONSO BENITES, de Brasília para o EL PAÍS, em 19 OCT 2021.

Relatório final da CPI acusa Bolsonaro de homicídio; leia trechos inéditos

Documento obtido com exclusividade pelo 'Estadão' conclui que o governo federal agiu de forma dolosa, ou seja, intencional, na condução da pandemia, tornando-se responsável pelas milhares de vidas perdidas.

       Integrantes da CPI da Covid. Foto: Pedro França/Agência Senado

O relatório final da CPI da Covid, ao qual o Estadão teve acesso, afirma que o governo do presidente Jair Bolsonaro agiu de forma dolosa, ou seja, intencional, na condução da pandemia, tornando-se responsável pelas milhares de vidas perdidas ao longo dos últimos meses. Composto por 1.052 páginas, o documento analisa os possíveis crimes cometidos pelo presidente e por aliados, além de sugerir a continuidade das investigações.

O parecer seria apresentado nesta terça-feira, 19, mas a leitura foi adiada na tarde de ontem. Um dos pontos que levaram ao adiamento, de acordo com fontes ouvidas pela reportagem, é a decisão do relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), de indiciar Bolsonaro por homicídio qualificado.

Também há divergências entre integrantes do grupo majoritário sobre a acusação de "genocídio indígena" na pandemia, crime que pode levar o governo a ser julgado em tribunais internacionais. O relatório final acusa, além do presidente, o secretário especial de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-BA), disse ao Estadão que indígenas foram vacinados e não vê motivo para indiciar o secretário, que nem sequer foi ouvido pela comissão.

Em função das divergências, a leitura do relatório está prevista para ocorrer na quarta-feira, 20, e a votação na terça-feira, 26.

Leia abaixo os principais trechos:

Supostos crimes de Bolsonaro

O relatório deve listar uma série de crimes supostamente cometidos pelo presidente Bolsonaro na pandemia, como homicídio qualificado, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, genocídio de indígenas e prevaricação.  

Imputação de dolo

Também segundo o documento obtido pelo Estadão, o texto afirma que o governo federal criou uma situação de risco e deixou de tomar medidas para minimizar o resultado da pandemia, caracterizando dolo. O texto diz que pretende encaminhar o relatório ao Conselho Federal de Medicina (CFM) para que se analise a responsabilidade do presidente e do conselheiro Mauro Luiz de Brito Ribeiro na publicação do parecer que avaliza o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes com covid.

Crime de epidemia

Em outro trecho, o documento avalia que Bolsonaro, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o ex-secretário executivo do Ministério da Saúde Élcio Franco cometeram o crime de epidemia. O relatório ainda indica o “nítido nexo causal” entre o anti-indigenismo do presidente e os danos sofridos pelos povos originários, indicando o crime de genocídio. Este ponto, espeficicamente, pode levar o governo a ser julgado em tribunais internacionais.


Gabinete paralelo

Há também menções às descobertas de irregularidades dentro do Ministério da Saúde e a atuação de um grupo de conselheiros que ficou conhecido como “gabinete paralelo”

Crime de responsabilidade

O documento final elaborado pelo relator sugere que o presidente Jair Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade ao longo da pandemia e que, por isso, deve ser punido de forma político-administrativa.

Irregularidades na aquisição de vacinas

Ao longo da CPI foram colhidos vários depoimentos relacionados à aquisição de vacinas que comprovam, segundo o relatório, que houve irregularidades. crimes e corrupção.


Tese da imunidade de rebanho

O documento também menciona e trata como irregular a suposta tentativa do governo de impor a chamada tese da imunidade de rebanho à população em vez de investir na oferta de vacinas contra a covid-19. Pela imunidade de rebanho, as pessoas ficariam protegidas depois de contraírem a doença, já que passariam a produzir anticorpos contra ela.

Caso Prevent Senior

Na reta final da CPI, os senadores ainda ouviram denúncias sobre a conduta da operadora de saúde Prevent Senior, que teria agido em comum acordo com o governo federal para ocultar mortes por covid e incentivar o uso de medicamentos comprovadamente sem eficácia, o chamado kit-covid. O caso é relatado no documento final. 

André Shalders, Julia Affonso e Vinicius Valfré, O Estado de S.Paulo, em 18 de outubro de 2021. /COLABOROU BRENDA ZACHARIAS

Na reta final, CPI expõe histórias dramáticas de vítimas na pandemia

Bate-boca político da comissão deu lugar a depoimentos emocionados de quem perdeu parentes para a covid-19

A estudante Giovanna Gomes Mendes da Silva conta sua história à CPI da Covid. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado.

 No dia em que o bate-boca político deu lugar à vida real na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, depoimentos de quem perdeu parentes pela doença provocaram emoção na sala de sessões do Senado onde durante seis meses opositores do governo e aliados do presidente Jair Bolsonaro se engalfinharam. Por quase quatro horas e meia, nesta segunda-feira, 18, senadores ouviram relatos dramáticos de homens e mulheres que viveram uma guerra, mas foram derrotados pelo coronavírus.

Os depoimentos demonstraram a dor da impotência diante da doença que já tirou mais de 600 mil vidas no País. Em comum, todos apontaram a responsabilidade do governo Bolsonaro pela falta de vacinas, que levou o Brasil a uma situação de descontrole no combate à pandemia.

“Foi uma diferença de 14 dias do meu pai e da minha mãe - disse Giovana Gomes da Silva, estudante, 19 anos. Quando meus pais faleceram, a gente não perdeu só os pais, a gente perdeu uma vida. Uma vida de alegria. Eu, meus pais e minha irmã, nós éramos muito unidos, quem conhece sabe. Onde a gente estava, nós estávamos juntos. Então, quando meus pais faleceram, a gente perdeu as coisas que a gente mais amava. Eu precisava da minha irmã e ela precisava de mim. Eu me apoiei nela, e ela se apoiou em mim".

  Giovana perdeu o pai e a mãe em apenas duas semanas e teve de virar chefe de família, cuidando da irmã oito anos mais nova que ela. “Eu, meus pais e minha irmã éramos muito unidos. Quando meus pais faleceram, a gente perdeu as pessoas que a gente mais amava. A gente não perdeu só os pais, a gente perdeu uma vida. Uma vida de alegria”, disse ela, com a voz embargada.

Ao ouvir Giovanna contar que pediu a guarda da irmã, após a morte dos pais, o intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais), que fazia a tradução daquele depoimento, chorou e foi substituído por um colega.

O taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, que perdeu um filho para o coronavírus, afirmou ter sentido “no coração" ao ouvir o presidente Jair Bolsonaro perguntar “E daí? Quer que eu faça o quê?”, em abril do ano passado, quando as mortes por covid haviam ultrapassado a marca de 5 mil.

“Eu escutei lá no meu coração: 'E daí que seu filho morreu?'. Isso me gerou muita raiva, muito ódio. Isso me fez muito mal", desabafou Márcio Antônio. “Eu daria a minha vida para o meu filho ter chance de ter se vacinado. Não tinha perspectiva de vacina ainda. Sabe, não tinha ainda máscara”, completou o taxista, que também viu a irmã morrer de covid.

A exemplo de Márcio Antônio, a enfermeira Mayra Pires Lima, do Amazonas, perdeu a irmã para a doença. À CPI, Mayra lembrou o drama vivido com a escassez de equipamentos durante a crise de oxigênio em Manaus, em janeiro deste ano. "Eu tinha um grande sonho de ajudar as grandes calamidades, conhecer outros países que precisam de ajuda e talvez atender pacientes em situações de guerra", afirmou. “Hoje eu falo que eu vivi uma guerra, porque atendi pacientes muitas vezes sem proteção nenhuma, assim como os meus colegas da maternidade".

Leia os principais trechos dos depoimentos:

Márcio Antônio do Nascimento Silva: “O que que eu daria, meu Deus, na minha vida? O que eu daria na minha vida? Eu daria a minha vida para o meu filho ter chance de ter se vacinado. Não tinha perspectiva de vacina ainda. Sabe, não tinha ainda máscara. Aí é outra reclamação que eu faço, porque, até hoje, eu não recebi do Ministério da Saúde uma informação correta. Sabe? Eu tive que ter minhas informações através da imprensa, através de pessoas. Meu Deus, o que é isso? O Ministério da Saúde... Eu não sei... Sabe, não me deram informação. Eles tinham que me dizer: "Você tem que usar máscara, você tem que se vacinar". Não é esse o protocolo? Não é isso que a ciência manda? Por que eles não falam? Entendeu?

Agora, outro caso também muito assim... É que dói muito, dói muito! Sabe, eu tenho que falar. Não dá para ver um Ministro da Saúde... Desculpe, Excelência! Mas não dá para vê-lo dando risinho de deboche. Não dá para ver deboche, porque nós perdemos! Eu perdi um filho, não só o filho. Minha irmã morreu no mesmo dia em que sua mãe... Minha irmã morreu no mesmo dia da mãe dela, no dia 26 de abril de 2021. Um ano depois do meu filho, ela não tinha se vacinado ainda, tendo vacina. E aí a gente descobre que as vacinas não chegaram”

O taxista Marcio Antônio relata sua história à CPI da Covid. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Mayra Pires Lima: “A minha irmã deixou quatro crianças, entre elas um casal de gêmeos, que fizeram, no dia 8 de outubro, um ano. Só em Manaus nós temos mais de 80 órfãos da covid. Só na minha família são quatro. O que está se fazendo pelos órfãos das vítimas?”

A enfermeira Mayra Pires Lima conta sua história à CPI da Covid. Foto: Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Katia Shirlene Castilho dos Santos: “Não são só números. São pessoas, são vidas, são sonhos, são histórias que foram encerradas por negligências, por tantas negligências e nós queremos justiça. O sangue dessas mais de 600 mil vítimas escorre nas mãos de cada um que subestimou esse vírus. A vacina é a única solução para vencermos”. (Ela perdeu pai e mãe. Acompanhou a mãe em sua internação na Prevent Senior, em São Paulo, e o tratamento recebido pelo kit covid).

Kátia Shirlene Castilho dos Santos conta a sua história da CPI da Covid.  Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Rosane Maria dos Santos Brandão: “Eu costumo dizer que ele (marido) foi assassinado. Os primeiros sintomas, o Bola teve no dia 11 de abril; foi hospitalizado no dia 16, e esse foi o último dia em que eu vi o meu companheiro de 21 anos de vida juntos. Ele morreu no dia 26 de abril (de 2021)”.

Rosane Maria dos Santos Brandão viu o marido falecer por causa da covid-19. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado.

Arquivaldo Leão Leite: “Nós fomos, em vários momentos, hostilizados por setores da sociedade que eram levados pela liderança presidencial”. (Ele perdeu dois primos, um tio e um irmão para o coronavírus. Afirmou ter sido hostilizado por seguir medidas de isolamento social).

Lauriberto Pompeu, O Estado de S.Paulo, em 18 de outubro de 2021

A crise nacional é ‘made in Brazil’

No desarranjo dos preços e nos entraves ao crescimento econômico, o Brasil não precisa da ajuda da crise externa, pois é autossuficiente na criação de problemas

Sem governo e sem roteiro, a economia brasileira pouco deve crescer no próximo ano, com ou sem desaceleração global. Inflação elevada, problemas de suprimento e desarranjos na cadeia produtiva afetam a China, os Estados Unidos e outros parceiros comerciais do Brasil. O quadro poderá piorar se os juros forem elevados para conter os preços no mundo rico. Isso dará ao presidente Jair Bolsonaro e ao ministro da Economia, Paulo Guedes, uma desculpa a mais para o péssimo desempenho nacional. Mas só os desinformados ou os cidadãos de extraordinária boa vontade levarão a sério essa conversa. Alguns problemas podem ser mundiais, mas o País já se destaca pela inflação fora dos padrões, pelo desemprego muito maior que o de outros emergentes e pela atividade emperrada.

A indústria brasileira e também a agricultura têm sido prejudicadas, de fato, pela escassez de matérias-primas e bens intermediários. Fertilizantes estão mais caros e alguns segmentos industriais, como o automobilístico, têm reduzido a produção por falta de componentes importados. Mas, apesar dos problemas externos, o superávit comercial continua robusto. A economia chinesa perdeu impulso e cresceu no terceiro trimestre à taxa anualizada de 4,9%, depois de ter avançado 18,3% no primeiro e 7,9% no segundo. Mas o agronegócio faturou em setembro US$ 10,10 bilhões com as vendas externas, um valor recorde, graças aos preços 27,6% mais altos que os de um ano antes, porque o volume foi 5,1% menor.

No mês passado, a China se manteve como principal importadora de produtos do agronegócio brasileiro. Suas compras, de US$ 3,27 bilhões, corresponderam a cerca de um terço das exportações do setor e o valor foi 42,8% maior que o de um ano antes. Houve aumento de receita nas vendas para os 20 principais países compradores, em setembro, e o resultado mensal do setor foi um superávit de US$ 8,85 bilhões.

Por enquanto, o comércio exterior brasileiro continua proporcionando boa receita e garantindo perspectivas satisfatórias para o balanço de pagamentos. Apesar de prenúncios de alguma acomodação da economia internacional, os mercados de fora seguem atraindo capitais brasileiros.

Esse movimento é atribuível a mais de um fator. A perspectiva de ganhos e a diversificação, frequentemente recomendadas pelos profissionais do mercado financeiro, são os mais evidentes, em condições normais. Mas, no caso brasileiro, o envio de recursos ao exterior tem sido motivado também pelas incertezas internas, associadas às tensões políticas e à insegurança quanto ao futuro das contas públicas. Na base dessas incertezas e temores são facilmente identificáveis o comportamento do presidente da República e as perspectivas de um ano eleitoral cheio de riscos.

A desaceleração prevista para a atividade mundial poderá trazer algumas dificuldades, mas as perspectivas da economia brasileira são determinadas basicamente por fatores internos. No mercado, as projeções de crescimento do Produto Interno Bruto continuam em queda, segundo as informações sintetizadas no boletim Focus. As últimas estimativas apontam expansão de 5,01% neste ano, 1,5% no próximo e 2,1% em 2023. Em contrapartida, continuaram subindo as taxas de inflação esperadas para o biênio – 8,69% em 2021 e 4,18% em 2022.

Inflação elevada continuará erodindo a renda familiar já escassa, num quadro de desemprego ainda elevado. Não há como prever uma firme recuperação do consumo, até porque o Banco Central continuará usando a alta dos juros básicos para tentar conter o aumento de preços. Segundo o boletim, esses juros, agora fixados em 6,25%, chegarão a 8,25% até dezembro e estarão em 8,75% no fim de 2022.

Mantida a insegurança, o dólar seguirá supervalorizado no País e continuará alimentando a inflação. A diferença entre o quadro inflacionário brasileiro e aquele observado no resto do mundo é em boa parte explicável, portanto, por um câmbio influenciado pela insegurança gerada em Brasília. No desarranjo dos preços, assim como nos entraves ao crescimento, o Brasil é autossuficiente. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 19 de outubro de 2021 

A ciência explica como tomamos decisões

Um olhar científico sobre as complexas capacidades envolvidas em optar por alguma coisa —ou mudar de rumo. E as mais importantes não são as que imaginamos.

Ilustração para o tema ‘O que o corpo pede?’. (Juarez Casanova).

Embora o mundo pareça estar voltando à normalidade, ainda assim temos dúvidas. Nossos sentimentos se contradizem, desconfiamos de tudo; é como se estivéssemos em uma incessante montanha-russa na qual as emoções nos sacodem para cima e para baixo. “A pandemia teve um impacto nas nossas vidas em geral, e em especialmente na nossa vida mental —o coronavírus gosta do sistema nervoso, tanto psicologicamente como em termos neurológicos”, observa de Los Angeles o português António Damásio, professor de psicologia, filosofia e neurologia da Universidade do Sul da Califórnia e diretor do Instituto do Cérebro e da Criatividade. “A falta de preparação para lutar contra as consequências do vírus de maneira efetiva provoca um sentimento de humilhação”, observa. “Nossos itinerários e rotinas foram rompidos, os marcos que haviam sido criados se dissolveram. O medo aflige o processo de tomada de decisão”, acrescenta. O neurologista argumenta que os sentimentos são a pedra angular da nossa sobrevivência, e acontecem quando o cérebro interpreta as emoções, que são sinais do corpo reagindo a estímulos externos —o que nos ajuda a tomar decisões.

“O tema traz à luz a oposição, em grande medida a escolha, se não a guerra, entre o sentimento e a razão”, diz Damásio. Em seu livro mais recente, Sentir & saber [edição portuguesa, Temas e Debates], que publicou logo antes da pandemia, retorna a uma pergunta que tinha proposto em 1994 em O erro de Descartes: seríamos nós criaturas que pensam e também sentem, ou criaturas que, sentindo, podem pensar? “Há uma profunda distinção, mas não oposição, entre o sentimento e a razão. Os sentimentos não são percepções convencionais do corpo, e sim híbridos; estão arraigados tanto no corpo como no cérebro. Passamos pela vida sentindo ou raciocinando, ou ambos, conforme as circunstâncias exijam”, particulariza enfaticamente, e aprofunda: “Somos governados por dois tipos de inteligência, que dependem de dois sistemas cognitivos: a primeira, que foi amplamente estudada e apreciada durante muito tempo, baseia-se no raciocínio e na criatividade, depende da manipulação de padrões informativos explícitos. A segunda, a das emoções, é a da competência não explícita; é a variedade de inteligência da qual a maioria dos organismos vivos na terra dependeram —inclusive as bactérias— e continuam dependendo para sua sobrevivência, e que escapa ao escrutínio mental”.

Em seus emblemáticos estudos, Damásio se interessou pelo papel crucial das emoções na tomada de decisões. “Na linguagem cotidiana, usamos os termos indistintamente, o que mostra como estas emoções estão estreitamente ligadas aos sentimentos”, diz ele. Para o português, “as emoções são reações complexas no corpo perante determinados estímulos. Quando temos medo de algo, nosso coração se acelera, a boca seca, a pele fica pálida e os músculos se contraem; esta reação emocional se produz de forma automática e inconsciente —uma emoção é um conjunto de mudanças fisiológicas produzidas por um programa de ação, em grande parte inato. Já os sentimentos ocorrem depois que nos damos conta em nosso cérebro dessas mudanças físicas, e só então experimentamos o sentimento de medo”. A região do cérebro onde emoção e razão se juntam é o córtex pré-frontal.

Um conjunto de componentes cerebrais se encarrega de mapear as mudanças que ocorrem continuamente dentro do organismo; é conhecido como sistema nervoso interoceptivo (INS, na sigla em inglês). Estas características únicas do INS contribuem para a produção de sentimentos, que ocorrem quando o cérebro lê os mapas e se torna evidente que foram registradas mudanças emocionais em todo o organismo. Mas esse mapeamento nunca é exato: o estresse, o medo ou a dor alteram a maneira como interpretamos a informação que chega ao cérebro vinda de outras partes do organismo. Segundo Damásio, tendemos a priorizar nosso eu racional quando se trata de tomar decisões; entretanto, as boas decisões são as que respondem às emoções geradas pelo nosso sistema interoceptivo. Em um mundo ambíguo, ele nos ajuda a compreender sentimentos complexos e cheios de nuances, que frequentemente estão em conflito com situações que a sociedade pinta como binárias. O afeto ambivalente é um fenômeno complexo que exige múltiplos níveis de processamento, onde se produzem e finalmente se integram diferentes tipos de informação.

Damásio acrescenta: “Continuo fascinado pelo fato de que nossos processos regulatórios emocionais internos não só preservam nossas vidas como também, de fato, dão forma à criatividade. O sentimento é uma modalidade de conhecimento que vem com um aspecto musical, por assim dizer, com variação no tempo, daí a importância de ouvir nossos sentimentos e de prestar atenção a como se conectam com o corpo”. E vaticina: “Embora estejamos presos a algo que tem aspectos de tragédia, apesar da humilhação, vamos superando os problemas”. Não obstante, perdemos muito o bom senso quando nossos sistemas emocionais são danificados; para superar as lutas emocionais, nos valemos das emoções.

David Dorenbaum, o autor deste artigo, é psiquiatra e psicanalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 12.1021

"É preciso afastar Bolsonaro já para parar a matança"

Após 70 anos de ação política, Chico Whitaker diz não poder ignorar o que ocorre no Brasil sob Bolsonaro, cuja "missão é destruir". A esperança do ativista é que o presidente seja afastado por crimes na pandemia.

"A cabeça de Bolsonaro é doentia, não tem limites", diz Chico Whitaker

A um mês de completar 90 anos, o ativista político Francisco Whitaker, precursor da luta que permitiu a apresentação de projetos de lei por meio de iniciativa popular – como a Lei da Ficha Limpa, que teve 1,6 milhão de assinaturas –, procura desesperadamente por uma porta aberta para que se possa retirar Jair Bolsonaro da presidência do Brasil.

Descrente do impeachment, apontando ser difícil que este passe na Câmara, e de uma cassação da chapa de Bolsonaro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Chico Whitaker vê como único caminho possível a responsabilização criminal do presidente por crimes comuns e omissões da administração federal no combate à pandemia de covid-19.

Já foram enviadas ao menos quatro representações de entidades da sociedade civil à Procuradoria-Geral da República (PGR), pedindo que Bolsonaro seja julgado por crimes diversos que cometeu. Se a PGR acatar os pedidos e denunciar Bolsonaro, o presidente só poderia ser processado com aval da Câmara dos Deputados, sendo afastado do cargo imediatamente por 180 dias. O ativismo político por mais de sete décadas, porém, faz com que Whitaker mantenha os pés no chão.

"O impeachment é sonho de uma noite de verão. O afastamento [de Bolsonaro] passa pela mesma maioria na Câmara, mas se por um acaso o procurador-geral denunciá-lo ao STF vai ser já um diferencial muito grande. É difícil, mas é mais uma porta. No fundo, agora, precisamos procurar essas portas, porque estamos bloqueados", afirmou à DW Brasil.

Chico Whitaker: "É triste nesta idade ver o que está acontecendo [no Brasil], e não me sobra muito tempo para ver a virada"

Afastado de qualquer atividade político-partidária desde o início dos anos 2000, Whitaker diz que vai continuar militando na sociedade civil "até morrer". O exílio que viveu por 15 anos, no período da ditadura, após pertencer ao governo de João Goulart, a experiência da Constituinte e tantas outras lutas o alimentaram, sustenta.

"Desde que Bolsonaro foi empossado, que sua missão é destruir", diz. "É um pouco triste nesta idade ver o que está acontecendo [no Brasil], e não me sobra muito tempo para ver a virada. Mas a gente continua trabalhando. Estou nessa porque não dá para parar e dizer: olha, não dá mais."

DW Brasil: Após décadas de ativismo contra a corrupção eleitoral e por transparência na política, qual sua avaliação sobre os movimentos do Congresso para se alterar o sistema político brasileiro e retroceder em várias legislações?

Francisco Whitaker: Esse Congresso foi composto na mesma onda de eleição do Bolsonaro. Ele conseguiu uma quantidade expressiva de aliados no Congresso e construiu uma maioria que, objetivamente, bloqueia tudo o que seja contrário a ele, como é o caso do impeachment, diante da impossibilidade de haver 342 votos para aprovação. De outro lado, está na estratégia de Bolsonaro, desde que empossado, que sua missão é destruir.

Tudo o que foi avanço civilizatório no Brasil após a ditadura, com introdução de mecanismos de controle da sociedade sobre a vida política e econômica em geral, está sendo progressivamente destruído por iniciativa de Bolsonaro, através de medidas provisórias e leis. E todas passaram pelo crivo do Congresso, que é o que é. Tudo o que foi feito de positivo e construído após a ditadura, o objetivo é destruir.

A palavra boiada foi muito expressiva – houve uma reunião do governo gravada e divulgada em que um dos ministros [Ricardo Salles] falou que precisava aproveitar a sociedade preocupada com a pandemia para passar a boiada. A boiada, no caso, é a desregulamentação de tudo quanto é controle social.

Há quatro meses é que começou a haver maior resistência. Mas Bolsonaro adotou uma estratégia de multiplicar frentes. A cada dia, a cada semana, ele lança uma nova. O que os seus asseclas vão inventando, o Bolsonaro vai assinando. E deixa a oposição totalmente zonza. E a sociedade, em si – e esse é um outro enorme problema – tem uma tendência de naturalizar as coisas. E está se acostumando, agora, até ao morticínio. Bolsonaro age para criar o caos. Desde o começo negou a virulência da covid-19, depois a necessidade de vacina, agora nega a importância de máscara. Tudo o que seja para estancar o vírus ele tenta interromper.

Grande parte dos deputados não é constituída por gente que foi para lá trabalhar pelo bem comum, mas sim de oportunistas que estão lá para ganhar dinheiro. Estão tirando tudo o que podem. Reforma eleitoral, fundo eleitoral, tudo isso é aprovado por essa maioria destruidora. O quadro é bastante preocupante. Até onde irá isso? Até onde ele poderá chegar? A cabeça de Bolsonaro é doentia, não tem limites. Sobra para a militância da sociedade civil tentar fazer alguma coisa.

Mas o poder de reação social não está muito limitado?

Muito limitado. Porque ultimamente é: a Câmara decidiu, está decidido. O que a gente pode fazer objetivamente? Encher as ruas não dá para encher. Com a pandemia, pior ainda. Estamos vivendo uma situação em que é difícil a ação. E qual ação possível se não protestar? Seria resistir às mudanças. O Senado tem tido um pouco esse papel. Como a sua composição é um pouco diferente da da Câmara, tem mais gente com capacidade de resistência – e a própria CPI da Covid tem demonstrado isso. O Senado tem segurado alguma coisa. Agora a gente tem que torcer para que, quando aprovem na Câmara, não aprovem no Senado.

O novo Código Eleitoral com quase mil artigos, por exemplo, aprovado na Câmara sem muita transparência, não foi votado pelo Senado, ou seja, não poderá vigorar em 2022.

São os pequenos respiros que estão nos sobrando. O Senado é um deles. Veja, a Procuradoria-Geral da República (PGR) é uma instituição importantíssima na defesa da sociedade, porque é independente, não é Executivo, nem Legislativo, nem Judiciário. O procurador-geral é o fiscal dos interesses difusos da sociedade. Tradicionalmente, em outros tempos, o procurador sempre foi muito ativo e enfrentava. Inclusive, pode agir de ofício. Nisso nós estamos totalmente bloqueados. Agora estamos tentando abrir essa porta na estratégia da sociedade civil, que ainda não foi cassada. Existem representações importantes na PGR em torno dos crimes de Bolsonaro cometidos na pandemia. A CPI [da Covid] está mostrando a quantidade de crimes. O que tentamos agora é esperar inclusive que a CPI venha com mais denúncias de crimes. É um modo diferente de afastar Bolsonaro, que não pelo impeachment: afastá-lo pela quantidade inominável de crimes.

Sua expectativa então é que haja um afastamento de Bolsonaro da Presidência não pelo impeachment, mas pela responsabilização de crimes, entre eles crimes contra a humanidade e de responsabilidade?

Mais do que isso: se a Câmara autorizar o Supremo Tribunal Federal a julgar Bolsonaro por esses crimes ele é imediatamente afastado. Nossa esperança, agora, é usar esse instrumento. A dificuldade qual é: fazer com que as lideranças políticas esqueçam 2022 e tratem de tirar Bolsonaro já. Temos que parar a matança. Com ele lá, continua a agir. Foi para a ONU e, nessa altura dos acontecimentos, voltou a falar do chamado tratamento precoce contra a covid-19. O que é isso, meu Deus? Ele é totalmente fora do tempo e das coisas. Nossa esperança é acordar setores da sociedade civil, que não têm preocupação eleitoral, e acordar as lideranças políticas pela necessidade de usar o processo criminal para afastar Bolsonaro imediatamente. Já temos 600 mil mortos.

Se o impeachment não passa, pelo cenário de hoje, e há os interesses eleitorais das lideranças políticas, por que acreditar que seria possível um afastamento para investigar Bolsonaro, a partir de pedido do STF?

O impeachment é sonho de uma noite de verão. O afastamento [de Bolsonaro] passa pela mesma maioria na Câmara, mas se por um acaso o procurador-geral denunciá-lo ao STF vai ser já um diferencial muito grande. E isso vai criar brechas dentro da maioria. E aí a sociedade vai ter pelo que pressionar, pressionar a Câmara a afastar o Bolsonaro por 180 dias. E difícil, mas é mais uma porta. No fundo, agora, precisamos procurar essas portas, porque estamos bloqueados.

Durante toda a sua vida você atuou politicamente, sobretudo como representante da sociedade civil. Qual é sua sensação, aos 90 anos, vendo boa parte dessas lutas sendo desconstruídas no Brasil atual?

É de muita tristeza, mas ao mesmo tempo é uma alfinetada para a gente não parar. Eu tenho, literalmente, 70 anos de ação política. Vou chegar aos 90 mês que vem e comecei tudo isso aos 18 anos, quando entrei na universidade e comecei a acordar para a questão política. Tive até que pagar o preço do exílio: estive por 15 anos fora do Brasil, exilado. Era diretor de planejamento de reforma agrária no governo João Goulart, então estava num setor muito "quente". Acabei me tornando uma persona non grata na ditadura. Fiquei 15 anos fora, parte na França e parte no Chile. No Chile, vivi toda a experiência de [Salvador] Allende, estava lá na hora do golpe. Ou seja, para mim foi tudo muito duro e difícil.

Ao longo desse processo, sempre se abrem portas e possibilidades, a gente se junta a outras pessoas, ganha coragem e vai dando as contribuições que podemos dar. Minha vida foi marcada por uma militância permanente. Sou arquiteto, minha mulher é psicóloga. Até o Chile, exercíamos as nossas profissões. Na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), eu trabalhava com desenvolvimento regional. Quando houve o golpe do Chile, foi tão violento e sangrento que tomamos a decisão de deixar a profissão e trabalhar na ação política. Não dava para continuar vivendo como se tudo fosse normal.

A ação política apareceu para nós como primordial e prioritária, e por causa da desigualdade social abissal no Brasil. Tive a oportunidade, desde então, de participar de muitas atividades, nas quais aprendi muito. Na França trabalhei em um projeto da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), "Por uma sociedade superando as dominações”. Esse projeto me abriu perspectivas muito grandes. Quando voltei ao Brasil fui trabalhar diretamente com Dom Paulo Evaristo Arns. A participação popular na Constituinte foi um trabalho muito bonito. Virei vereador e aprendi pra burro na Câmara Municipal [de SP] o que é efetivamente o Legislativo, que é composto fundamentalmente por oportunistas e não por pessoas voltadas ao bem comum.

Cada etapa da minha vida foi um aprendizado e até certo ponto uma vitória. A primeira delas foi contra a compra de votos, outra doença brasileira. Depois a outra, mais conhecida, a lei de iniciativa popular. Ou seja, tudo isso foi me alimentando. Agora, estamos numa etapa negativa. Nos dois últimos anos, depois da vitória de Bolsonaro, enfrentamos um desafio cavalar. É um pouco triste nesta idade ver o que está acontecendo, e não me sobra muito tempo para ver a virada. Mas a gente continua trabalhando. Eu estou nessa porque não dá para parar e dizer: olha, não dá mais.

Você acompanhou a Lei da Ficha Limpa florescer no Brasil. Vê riscos de retrocessos também nessa legislação?

Eles estão tentando, se não derrubar, pelo menos amenizar tudo quanto é lei que aumenta o controle social. Para nós foi muito impressionante na Constituinte, mas era outro momento. Houve o plenário pró-participação popular, que tinha frase muito significativa: Constituinte sem povo, não cria nada de novo. Foi uma fase de grande entusiasmo construtivo no Brasil. Uma das ideias que surgiu nessa luta foi permitir que o povo apresentasse emendas ao texto da Constituição. Foram apresentadas 120 emendas populares. A primeira iniciativa popular foi contra a compra de votos, dez anos depois da Constituinte, e exigiam a assinatura de 1% do eleitorado. Vinte anos depois, fazíamos a segunda iniciativa popular, a Lei da Ficha Limpa, com 1,5 milhão de assinaturas. São coisas que passaram na Câmara com um enorme trabalho junto aos parlamentares. É um aprendizado lento, com perdas e ganhos. Agora o momento é de retrocesso muito grande. É mais do que um retrocesso, porque a cabeça do Bolsonaro é doentia.

Em 2006 você se desfiliou do PT. Atualmente você está ligado a algum partido ou o seu ativismo político não tem cor partidária?

Saí do PT em 2005, no auge de todas as complicações que surgiram com o mensalão. Antes eu já tinha deixado a vida partidária. Cumpri dois mandatos na Câmara Municipal de São Paulo [como vereador, pelo PT]. Cheguei à conclusão de que nenhum parlamentar deveria ficar por mais de dois mandatos no Legislativo. No primeiro ele aprende, no segundo ele faz as coisas sem se preocupar com a reeleição. Depois de 2005 me afastei também do partido. A vida partidária está muito distorcida por causa da burocratização geral da militância. Não pretendo entrar em partido nenhum. Vou continuar, até morrer, na sociedade civil.

Deutsche Welle Brasil, em 19.10.21

Avanço do mar saliniza rio Amazonas e deixa comunidades em estado de emergência

Há algumas semanas, comunidades que ficam à beira do maior rio do mundo estão sem água para beber.

O avanço do mar pela foz do rio Amazonas, por onde escoa um quinto da água doce do planeta, salinizou as águas que banham as comunidades do arquipélago do Bailique, no Amapá.

Prefeitura de Macapá decretou emergência por conta da salinização no arquipélago do Bailique (Gov. do Amapá)

O fenômeno sempre ocorreu nesta época do ano, mas vem se intensificando nos últimos anos e passou a atingir comunidades que antes não eram impactadas, segundo os moradores.

Como consequência, a prefeitura de Macapá, que responde pelo arquipélago, decretou estado de emergência na última quinta-feira (14/10) e passou a entregar água potável e cestas básicas às comunidades.

Marcador mostra o arquipélago do Bailique, na foz do rio Amazonas (Google)

Para um pesquisador que estuda o tema, o avanço da salinização pode estar ligado ao aumento global do nível do mar, um resultado das mudanças climáticas.

Ele diz que a região da foz do Amazonas tem passado por grandes transformações nos últimos anos. Um exemplo foi a drástica mudança no curso do caudaloso rio Araguari, um vizinho do Amazonas.

Desde 2013, o rio deixou de desaguar no Atlântico e virou um afluente do Amazonas, alteração que pode ter ampliado a salinização no arquipélago do Bailique e é associada à criação de búfalos e à construção de hidrelétricas (leia mais abaixo).

Casas de ribeirinhos no arquipélago do Bailique, na foz do rio Amazonas (Gov. do Amapá)

Mais peixes de água salgada

O arquipélago do Bailique tem cerca de 8 mil habitantes, espalhados por oito ilhas, e fica a cerca de 200 quilômetros da sede de Macapá. Só é possível acessar a região por barco.

As principais atividades econômicas do arquipélago são a pesca, a agricultura familiar e o cultivo de açaí.

Geová Alves, presidente da Associação das Comunidades Tradicionais do Bailique e vice-presidente de uma cooperativa local de produtores de açaí, diz à BBC News Brasil que sempre houve salinização na região entre os meses de setembro e novembro. Nessa época, em que chove menos, as águas do Amazonas costumam baixar, facilitando o avanço da maré.

Com o retorno das chuvas, a partir de novembro, o fenômeno perde força, e a água volta a ficar doce.

Alves diz que, no passado, essa salinização sazonal costumava afetar só cerca de 20 das 51 comunidades do Bailique, aquelas que ficavam ao norte do arquipélago. De alguns anos para cá, porém, todas as comunidades passaram a ser impactadas, segundo ele.

A principal consequência, diz o morador, é a falta de água potável para beber e cozinhar, já que o rio é a principal fonte hídrica das famílias. "São comunidades carentes, que não conseguem comprar água mineral", afirma. Segundo Alves, um galão de 20 litros de água hoje custa até R$ 25 no arquipélago. As comunidades não têm acesso a água encanada.

Outro efeito da salinização tem sido sentido por pescadores. "Percebemos uma presença grande de peixes de água salgada, e o afastamento de peixes de água doce e camarão", afirma Alves.

Essa mudança, porém, não tem causado prejuízos aos pescadores, já que peixes de água salgada são valorizados e têm sido capturados em abundância. "Acabou sendo uma vantagem (para os pescadores)", afirma.

Já no cultivo do açaí ainda não foram notadas mudanças, diz ele, pois os frutos são colhidos no período chuvoso, quando a água já voltou a ser doce.

"Mas ainda não sabemos se o solo vai ter algum prejuízo daqui a alguns anos que possa interferir na qualidade ou quantidade da produção", afirma.

Criação de búfalos pode ter contribuído com a morte da foz do Araguari e favorecido a salinização do Amazonas (Batalhão Ambiental do Amapá)

A morte da foz do rio Araguari

Ele diz que muitos moradores do arquipélago atribuem a crescente salinização no Amazonas ao assoreamento no vizinho rio Araguari, tema de grande controvérsia na região e uma das maiores transformações na paisagem do Brasil nas últimas décadas.

Com cerca de 500 quilômetros de extensão, o Araguari é o maior rio a correr exclusivamente no Amapá. Ele nasce no Parque Nacional do Tumucumaque e, até 2013, desaguava no Atlântico ao norte do arquipélago do Bailique, a poucos quilômetros da foz do Amazonas, ao sul.

Desde 2011, porém, formou-se - espontaneamente, mas provavelmente em consequência da ação humana - um canal que passou a conectar os dois rios, fazendo com que o Araguari direcionasse parte do seu fluxo para o Amazonas. Esse canal, chamado de Urucurituba, foi engrossando até que, em 2014, passou a absorver praticamente todo o fluxo do Araguari.

Com isso, o Araguari passou a desembocar inteiramente no Amazonas, e não mais no Atlântico. A antiga foz do Araguari secou, tendo sido tomada pela vegetação desde então.

Em 2006, o canal Urucurituba era pequeno, e o rio Araguari desaguava no mar. Isso começa a mudar... (Google)

...em 2011, quando a expansão do Urucurituba passa a conectar o Araguari ao Amazonas. Com o tempo... (Google)

...praticamente todo o fluxo do Araguari passa a desaguar no Amazonas, e não mais no oceano. Em 2020, a vegetação já havia ocupado a antiga foz do Araguari. (Google).

Por causa dessa mudança, o fenômeno da pororoca, pelo qual o Araguari era famoso internacionalmente, deixou de ocorrer. Isso porque a pororoca se forma a partir do choque entre o fluxo do rio e a maré, gerando uma onda que avança continente adentro.

Como não há mais contato entre o rio e o mar, as ondas da pororoca deixaram de ocorrer.

Outra consequência da mudança no curso do Araguari foi a acelerada erosão nas áreas impactadas pelo fluxo do canal Urucurituba. O fenômeno é conhecido localmente como "terras caídas" e já provocou a destruição de centenas de casas no Bailique.

Menor resistência frente ao mar

Geová Alves diz que a salinização no arquipélago se tornou mais intensa a partir da mudança no curso do Araguari. Segundo ele, quando desembocava no mar, o Araguari "ajudava o Amazonas a empurrar a água salgada para longe" da costa.

"Com o assoreamento do Araguari, as correntes que se combinavam perderam um pouco da força, e o mar invadiu onde não havia resistência", ele afirma.

Para Alan Cavalcanti da Cunha, professor de Engenharia Civil da Universidade Federal do Amapá (Unifap), a tese faz sentido.

Pós-doutor em fluxos hidrológicos entre ecossistemas terrestres e aquáticos pela Universidade de Miami (EUA), Cunha estuda o comportamento de rios da região desde 2004.

Em artigo em 2018 para o periódico científico Science of the Total Environment, Cunha e outros pesquisadores analisaram a mudança no curso do Araguari.

Pororoca em rio no Amapá; fenômeno deixou de ocorrer no rio Araguari (Gov. do Amapá)

Para os autores, o surgimento do canal de Urucurituba - que desviou o fluxo do Araguari para o rio Amazonas - pode estar relacionado a três fatores:

1 - Dinâmicas naturais no estuário do Amazonas, que incluem o deslocamento de grande quantidade de sedimentos e o forte fluxo das águas tanto em direção ao oceano quanto no sentido contrário, alterando o curso do rios;

2 - A implantação de usinas hidrelétricas no alto curso do Araguari.

A primeira usina passou a operar em 1976, e as outras duas, em 2014 e 2017. Segundo os autores, as usinas alteraram a dinâmica do transporte de sedimentos pelo rio, o que pode ter favorecido a abertura do canal de Urucurituba;

3 - A criação de búfalos nas margens do rio.

Introduzidos na região no século 19, esses pesados animais criam valas ao pisotear frequentemente os mesmos locais. Uma dessas valas pode ter dado origem ao canal Urucurituba - que, com a força das águas, foi se expandindo até alcançar o Amazonas.

Estima-se que haja 202 mil búfalos na bacia do Araguari, número três vezes maior que a população humana local.

Em entrevista à BBC News Brasil, Cunha diz que, quando o Araguari deixou de desaguar no mar, o Amazonas perdeu um aliado que o ajudava a manter a água salgada longe da costa.

Ele aponta ainda outras duas causas para os relatos de crescente salinização no Bailique, ambas associadas às mudanças climáticas.

A primeira é o aumento global no nível do mar, provocado pelo degelo das calotas polares. Segundo a Nasa (agência espacial americana), o nível médio do mar subiu cerca de 20 centímetros entre 1901 e 2018.

Cunha explica que, em todos os estuários (pontos onde o rio se encontra com o mar), há um jogo de forças entre o fluxo dos rios e as marés. Quando a maré sobe e o fluxo do rio diminui, a água salgada consegue avançar mais facilmente rio adentro, movimento que se inverte quando a maré baixa e o fluxo do rio aumenta.

Por isso, diz Cunha, o aumento do nível dos oceanos tende a alterar esse equilíbrio em favor do mar, fazendo com que a água salgada avance mais facilmente pelos rios.

É o que já pode estar ocorrendo na foz do Amazonas, segundo o pesquisador.


Fenômeno das "terras caídas" no arquipélago do Bailique (Gov. do Amapá)

Outra possível explicação para o aumento da salinização no arquipélago do Bailique, segundo ele, é a elevação das temperaturas na região, outro efeito das mudanças climáticas.

O calor mais forte amplia a evaporação, o que por sua vez acelera a circulação de ar e permite que ventos transportem mais sal que estava nos oceanos para o continente.

Cunha afirma que as mudanças em curso na foz do Amazonas precisam ser mais estudadas, especialmente os impactos do avanço no nível do mar. Segundo ele, a região é extremamente sensível a alterações - e como seus rios e lagos estão conectados, uma mudança num ponto qualquer pode provocar consequências a vários quilômetros dali.

Até o fim deste século, prevê-se que o nível médio dos oceanos possa subir entre 0,6 m e 1,1 m em relação aos padrões pré-industriais a depender do ritmo das emissões de gases causadores do efeito estufa.

As transformações no arquipélago do Bailique jogam luz sobre uma das possíveis consequências das mudanças climáticas para populações costeiras. Sabe-se que a elevação do nível do mar tende a inundar muitas regiões litorâneas, forçando suas populações a migrar.

Para muitas comunidades em estuários, porém, escapar das inundações talvez não seja suficiente, pois pode faltar água doce para abastecê-las.

João Fellet - @joaofellet, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 18 outubro 2021

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

João Doria e Eduardo Leite travam disputa acirrada nas prévias do PSDB

Esta que é a primeira vez em que o PSDB escolhe candidato a presidente com prévias. Tudo indicava que o pleito seria um rito protocolar para a nomeação de Doria como presidenciável, mas a disputa se acirrou. Nas últimas semanas, Eduardo Leite tem colecionado apoios.

Lá vem ele, lá vem ele! O pai da vacina, o governador de São Paulo, o próximo presidente do Brasil. Vem, João!"

João Doria aparece nos fundos de um clube de São José dos Campos (SP). Cerca de 500 apoiadores levantam-se da cadeira, balançando bandeirinhas do Brasil. O governador de São Paulo atravessa o salão. Enquanto o mestre de cerimônia grita ao microfone, a caixa de som toca "Love Generation", música de Bob Sinclar que abria o "Caldeirão do Huck".

Como o apresentador abriu mão de ser a terceira via para dominar as tardes de domingo da Globo, o governador paulista tenta ser o nome do PSDB para preencher esse posto. Mas, para virar candidato, Doria precisa vencer o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, nas prévias do partido. O governador gaúcho esteve em São Paulo neste domingo (16).

Assim que Leite entrou na sala de reuniões do hotel Holiday Inn, no Parque Anhembi, todos se levantaram. Quando passou pelas cerca de 300 pessoas, parecia que haveria um abraço coletivo. Chegou ao palco depois de muitos cumprimentos e falou o que os tucanos paulistas queriam ouvir. Elogiou Mário Covas, Geraldo Alckmin e alfinetou Doria. "O PSDB não é business, é sentimento." Discurso de candidato, comportamento de candidato.

Oficialmente, o período de campanha começa nesta segunda-feira (18). Na terça (19), um debate entre os pré-candidatos do partido será realizado no Rio.

Ambos estão viajando o Brasil há semanas. Suas redes sociais têm vídeos típicos de campanha presidencial: imagens da bacia do rio Amazonas, máquinas industriais e campos verdejantes são exibidas enquanto um político fala com voz de estadista.

Desde o início do processo, Leite arrebanha mais diretórios estaduais, e nesta semana ampliou vantagem com a adesão do Rio, além de ter avançado em Goiás.

O ex-ministro e ex-senador Arthur Virgílio também disputa as prévias, mas suas chances são consideradas remotas.

As cores do Brasil projetadas no teto equanto Doria fala à militância em São José dos Campos

Armas e fraquezas de Doria

O governador de São Paulo começou sua busca pela indicação em 10 de julho, já posicionado sobre algo relevante. Qualquer pretensão política nacional passa por como se encara o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Doria é crítico ferrenho do governo federal. O homem que se elegeu governador pregando "BolsoDoria" rompeu com o Planalto no primeiro semestre de 2020, no início da pandemia, e passou a desferir ataques frequentes e contundentes.

Também sobra munição para atacar Lula. Nos eventos de Doria nas prévias tucanas, cada assento abriga folhetos com fotos suas em poses amistosas. Estes santinhos vitaminados contêm três menções negativas ao PT. Em São José dos Campos, Doria ressaltou que venceu Fernando Haddad no primeiro turno na eleição para a prefeitura de São Paulo, em 2016

Para apresentar sucesso na agenda econômica, usa a projeção de crescimento de 7,5% no PIB estadual — significativamente maior que a nacional.

Doria também aposta no peso do tucanato paulista. O estado conta 26% dos filiados ao partido, 41% dos prefeitos, 28% dos vice-prefeitos e 27% dos vereadores.

Os defensores de Leite fazem ressalvas ao seu estilo. Enumeram atritos com o deputado federal Aécio Neves (MG), com o presidente do partido, Bruno Araújo, e a briga com o ex-governador Geraldo Alckmin. Tentam colar nele a imagem de político que desagrega.

Eduardo Leite em São Paulo durante evento de campanha das prévias do PSDB  (Felipe Pereira)

Armas e fraquezas de Leite

O governador do Rio Grande do Sul declarou voto em Bolsonaro, mas não subiu em palanque com ele. Por isso, pode se dar ao luxo de ser menos enfático nas críticas.

Ainda que tenha comparecido ao protesto em Porto Alegre contra Bolsonaro, em 12 de outubro, Leite preserva a imagem de conciliador.

Na cúpula do PSDB, fala-se que uma vitória de Leite atrairia o União Brasil (partido resultante da fusão de DEM e PSL). Caso Doria vença as prévias, o MDB é que estaria mais perto de fechar aliança.

Mas o entorno de Leite pondera que ele pode construir uma aliança maior. Seus apoiadores citam a sustentação de diferentes partidos na Assembleia Legislativa. Também são ressaltados os projetos do governo aprovados com votos da oposição.

Leite pegou o Rio Grande do Sul atolado em dívidas — servidores como policiais e professores ficaram 57 meses sem receber em dia. O governador usa o episódio da arrumação das contas para pregar o discurso de ter sanado as dívidas com reformas administrativas.

Tucanos que apoiam Doria apontam o dedo para o perfil conciliador de Leite. Na avaliação deles, é preciso marcar posição para romper com a polarização Bolsonaro x Lula. A postura menos combativa do gaúcho não serviria para o atual momento político.

Além disso, Leite declarou-se gay em 1º de julho. Apesar de acenar para pautas progressistas, o gesto também tem implicações negativas no universo político.

A deputada federal Geovania de Sá (PSDB-SC) manifestou apoio ao governador gaúcho. Um pastor da Assembleia de Deus, igreja que sempre esteve ao lado da deputada, reagiu na mesma hora, pedindo para os evangélicos não votarem nem nela, nem em Leite.

Em busca da identidade

As prévias do PSDB não pretendem resolver apenas essa questão. Coordenador do pleito, o ex-deputado federal Marcus Pestana não esconde as dificuldades enfrentadas, desde que Alckmin terminou o pleito de2018 com 4,76% dos votos. "Vivenciamos uma crise existencial, a dificuldade de posicionamento com o governo Bolsonaro."

Prova da falta de rumo é que o partido é oposição ao presidente, mas 14 deputados federais votaram a favor do voto impresso, uma das bandeiras de Bolsonaro. Bruno Araújo disse que, terminadas as prévias, vai negociar a saída dos filiados com cargo eletivo que não querem trabalhar pelo candidato escolhido.

O perfil do vencedor da prévia vai ter papel determinante no que o PSDB deseja se tornar. Durante participação no UOL Entrevista na quinta-feira (14), Araújo classificou Doria como "pai da vacina" e competente em organização e trabalho. Ele avaliou Leite como um político associado a novos ares de esperança, o que estimula parte relevante do partido.

O PSDB construiu uma reputação de tomar decisões reunindo caciques em restaurantes de São Paulo para jantares regados a vinho. Pestana afirma que essa fórmula não daria certo dessa vez por falta de um nome natural. Chamar vereadores e deputados estaduais a participar gera engajamento e evita traições, como os apoios a Fernando Collor, Jair Bolsonaro e até Lula.

Traições em curso

O que vai acontecer quando o PSDB enfrentar outros partidos será conhecido em 2022. Por enquanto, é troca-troca interno. Leite tem ganhado apoio entre grupos que haviam se comprometido com Doria. O governador de São Paulo tem recuperado espaço no Nordeste. Os dois casos apontam para um partido fragmentado.

Na semana passada, o PSDB do Paraná declarou apoio "total e irrestrito" a Leite. Próximo do ex-governador Beto Richa, Doria contava com o diretório paranaense, mesmo que alguns deputados se juntassem ao gaúcho.

Doria também sofreu invertidas em São Paulo. Alguns diretórios municipais, como o de Ribeirão Pires, têm liberado filiados para apoiar quem quiserem.

Há, ainda, a oposição interna de Alckmin, que não esconde o descontentamento por Doria ter lançado o vice-governador, Rodrigo Garcia (PSDB), como seu sucessor. A consequência é trabalhar por Leite nos bastidores. Ontem, no evento de Leite, aliados de Alckmin contavam que ficarão no partido até as prévias e depois seguirão com o ex-governador para o partido que ele escolher.

Por causa de situações como esta, Leite tem visitado São Paulo cada vez mais, puxado pelo prefeito Paulinho Serra, de Santo André. Em Minas, Aécio tem trabalhado contra Doria. Presidente do PSDB em São Paulo, Marco Vinholi disse que Aécio faz pressão para que tucanos mineiros não declarem apoio ao governador de São Paulo. "Essa pressão absurda é para inibir que as pessoas se manifestem."

Segundo interlocutores, o ex-governador mineiro é um dos que não vê com maus olhos que o PSDB retire uma candidatura a presidente para apoiar um candidato único da terceira via.

No contra-ataque, Doria conseguiu apoio da ex-governadora Yeda Crusius (RS). Em Minas, conquistou o deputado Domingos Savio (PSDB-MG).

Apesar da disputa apertada, Pestana refuta o discurso que o PSDB vai rachar, mas espera que a guerra fraterna não se torne fratricida. Por enquanto, Leite e Doria se elogiam.

Felipe Pereira e Lucas Borges Teixeira, do TAB / Repórteres na Rua em busca da realidade. Publicado originalmente por UOL em 18.10.21

A lei penal muito mal aplicada

Severidade desmedida e impunidade são expressões de um mesmo fenômeno

É frequente e generalizada a crítica à impunidade. Haveria no País uma baixíssima aplicação da lei penal, o que diminuiria – ou mesmo eliminaria – seu efeito dissuasivo. A quase certeza da impunidade seria um dos fatores para os altos índices de criminalidade. Não há dúvida de que, por diversas razões, muitos crimes ficam impunes, o que reduz a finalidade preventiva da lei penal.

No entanto, há também muitos casos de uma aplicação exagerada da lei, em que o braço penal do Estado recai, sem nenhuma proporcionalidade, contra determinados cidadãos – quase sempre, pobres e pretos. Essa desmedida severidade é resultado de uma específica interpretação da legislação penal e processual penal, que, a rigor, não tem nada de técnica ou mesmo jurídica, pois trata os fatos – e, não raro, a própria lei – com incrível superficialidade.

Recentemente, a prisão de uma mãe de cinco crianças chocou o País. Vivendo em situação de rua em São Paulo há mais de dez anos, a mulher foi presa em flagrante pelo furto de dois pacotes de macarrão instantâneo, dois refrigerantes e um refresco em pó – produtos avaliados em R$ 21,69. No momento da prisão, ela disse aos policiais que pegou os alimentos porque estava com fome.

A juíza responsável pelo caso converteu a prisão da mulher em preventiva, para “garantia da ordem pública”. Segundo a magistrada, a conduta expressava “acentuada reprovabilidade, eis que estava a praticar crime patrimonial”.

A possibilidade de prisão domiciliar foi negada. “Não há indicação precisa de endereço residencial fixo que garanta a vinculação ao distrito da culpa, salientando-se que a autuada declarou estar em situação de rua, denotando que a cautela é necessária para a conveniência da instrução criminal e de eventual aplicação da lei penal, nem de atividade laboral remunerada, de modo que as atividades ilícitas porventura sejam fonte ao menos alternativa de renda (modelo de vida), pelo que a recolocação em liberdade neste momento (de maneira precoce) geraria presumível retorno às vias delitivas, meio de sustento”, disse a juíza na decisão.

Submetida ao exame do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a decisão de primeira instância foi mantida. O órgão de controle entendeu que a lei foi corretamente aplicada no caso. “Embora triste a situação, impossível se negar a periculosidade avaliada em face da real e intensa culpabilidade da agente”, disse o relator, desembargador Farto Salles.

Ao indeferir por unanimidade o habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública, a 6.ª Câmara de Direito Criminal do TJSP entendeu que o princípio da insignificância não poderia ser aplicado ao furto de R$ 21,69, em razão da reincidência. Em outro processo, a mulher tinha sido condenada pelo furto de desodorantes.

Duas semanas depois da prisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o trancamento do inquérito policial e revogou a medida restritiva de liberdade. Segundo o ministro Joel Ilan Paciornik, a “lesão ínfima ao bem jurídico e o estado de necessidade da mulher não justificam o prosseguimento do inquérito policial”. Além disso, um furto de alimentos, naquele valor, não preenchia os requisitos mínimos para ser enquadrado como crime.

Oxalá essa história absurda – duas instâncias da Justiça consideram que o furto de alimentos no valor de R$ 21,69 é motivo suficiente para levar uma mãe à prisão – fosse exceção. Infelizmente não o é, especialmente no Estado de São Paulo. Com contumaz reincidência, o TJSP aplica a lei penal e processual penal à revelia da jurisprudência das Cortes Superiores, com um entendimento desarticulado do Direito e uma apreciação muito peculiar dos fatos.

O mesmo tribunal que manteve a prisão da mãe que furtou comida foi o que extinguiu a condenação pelo júri popular dos 74 policiais envolvidos no massacre do Carandiru. Depois, o STJ restaurou a condenação. Pode parecer paradoxal, mas severidade desmedida e impunidade são expressões de um mesmo fenômeno: o da lei que se curva à vontade, em vez de a vontade se submeter à lei.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de outubro de 2021 

Desesperança

Cresce o número de brasileiros desesperançados que buscam uma vida digna em outros países

A imigração é uma faceta indissociável da identidade nacional. No século 19, à matriz de indígenas e descendentes de africanos e portugueses juntaram-se outras comunidades europeias, como alemães e italianos, acrescidas, no século 20, de imigrantes de partes mais distantes do mundo, como Síria, Líbano ou Japão. A partir da década de 60, o País deixou de ser um vasto celeiro de imigrantes e passou a exportar trabalhadores. Mas, então, a população ainda era jovem e as taxas de natalidade eram altas. As projeções para o século 21 são de que ela envelhecerá e encolherá. Mais do que nunca, seria o momento de implementar políticas para reter os brasileiros e estimular a imigração. Mas o que se vê é o contrário: o Brasil não só é cada vez menos atraente aos estrangeiros, como a fuga de brasileiros está se acentuando a níveis dramáticos.

Segundo o Ministério das Relações Exteriores, o número de brasileiros morando no exterior cresceu 35% na última década. Em 2010, eram 3,1 milhões. Em 2020, 4,2 milhões. O levantamento revela que o crescimento se concentrou nos últimos anos da década. Entre 2018 e 2020, a população de brasileiros morando fora do País teve acréscimo de 625 mil pessoas.

Em junho, o estudo Atlas das Juventudes, coordenado por várias entidades em parceria com a FGV Social, diagnosticou que, entre os jovens de 15 a 29 anos, 47% desejavam sair do Brasil, caso tivessem oportunidade. Segundo a pesquisa Broken-System Sentiment in 2021, realizada pela consultoria Ipsos em 25 países, a sociedade brasileira está no topo do ranking mundial de desalento. Para 69% dos brasileiros entrevistados, o Brasil é um país “em declínio”.

A desesperança parece se espraiar por todas as faixas etárias e sociais. É cada vez mais comum brasileiros de classe média e alta fugindo da violência para países como Portugal. A “fuga de cérebros” também se acentuou em meados da década. Só em 2020, os vistos de permanência nos EUA aos chamados “profissionais excepcionais” brasileiros cresceram 36% – enquanto os demais vistos caíram 48%.

A pandemia agravou o mal-estar. Entre outubro de 2020 e agosto de 2021, 47 mil migrantes brasileiros foram detidos na fronteira dos Estados Unidos com o México. É mais do que a soma dos 14 anos anteriores, quando 41 mil tentaram cruzar a fronteira. Isso mesmo com todas as dificuldades impostas pela pandemia. Historicamente, 90% dos brasileiros sem documentação ingressavam nos EUA com visto de turista e ficavam no país. Sem o recurso do visto de turista, os brasileiros passaram a enfrentar os riscos mortais das rotas ilegais, combinando vias terrestres, aéreas e marítimas. E isso a um custo muito mais alto.

Como mostrou reportagem do Estado, na rede mineira de “coiotes” – os criminosos que vendem a possibilidade de entrada ilegal nos EUA –, por exemplo, cobra-se R$ 40 mil por pessoa na modalidade “sem seguro” e R$ 80 mil “com seguro”. Com seguro, o migrante dá um valor de entrada e, se não conseguir ficar nos EUA, não paga mais nada. Sem seguro, seja qual for o resultado, fica-se com a dívida.

Por outro lado, as recentes ondas de imigrantes recebidas pelo Brasil decorrem muito menos da esperança de criar uma família e desenvolver uma carreira no Brasil do que do desespero em relação aos seus países. É ele que motiva as dezenas de milhares de bolivianos, venezuelanos e haitianos que vêm buscando refúgio no Brasil.

Esses dados mostram uma triste reversão. O Brasil – em que pese as cicatrizes de seu passado escravocrata – é uma das maiores democracias multiétnicas do mundo, só comparável aos EUA em diversidade. Mas o seu grau de miscigenação é incomparável. Na era da globalização, esse deveria ser um ativo para atrair cada vez mais estrangeiros, ampliando continuamente a riqueza da pluralidade. Mas, longe de ser um País acolhedor aos estrangeiros, o Brasil gera cada vez mais desesperança em seus próprios cidadãos. Às vésperas de novas eleições nacionais, esse mal-estar deveria motivar um profundo exame de consciência por parte de todos os brasileiros, em especial daqueles que se propõem a liderar o País. 

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de outubro de 2021