segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A lei penal muito mal aplicada

Severidade desmedida e impunidade são expressões de um mesmo fenômeno

É frequente e generalizada a crítica à impunidade. Haveria no País uma baixíssima aplicação da lei penal, o que diminuiria – ou mesmo eliminaria – seu efeito dissuasivo. A quase certeza da impunidade seria um dos fatores para os altos índices de criminalidade. Não há dúvida de que, por diversas razões, muitos crimes ficam impunes, o que reduz a finalidade preventiva da lei penal.

No entanto, há também muitos casos de uma aplicação exagerada da lei, em que o braço penal do Estado recai, sem nenhuma proporcionalidade, contra determinados cidadãos – quase sempre, pobres e pretos. Essa desmedida severidade é resultado de uma específica interpretação da legislação penal e processual penal, que, a rigor, não tem nada de técnica ou mesmo jurídica, pois trata os fatos – e, não raro, a própria lei – com incrível superficialidade.

Recentemente, a prisão de uma mãe de cinco crianças chocou o País. Vivendo em situação de rua em São Paulo há mais de dez anos, a mulher foi presa em flagrante pelo furto de dois pacotes de macarrão instantâneo, dois refrigerantes e um refresco em pó – produtos avaliados em R$ 21,69. No momento da prisão, ela disse aos policiais que pegou os alimentos porque estava com fome.

A juíza responsável pelo caso converteu a prisão da mulher em preventiva, para “garantia da ordem pública”. Segundo a magistrada, a conduta expressava “acentuada reprovabilidade, eis que estava a praticar crime patrimonial”.

A possibilidade de prisão domiciliar foi negada. “Não há indicação precisa de endereço residencial fixo que garanta a vinculação ao distrito da culpa, salientando-se que a autuada declarou estar em situação de rua, denotando que a cautela é necessária para a conveniência da instrução criminal e de eventual aplicação da lei penal, nem de atividade laboral remunerada, de modo que as atividades ilícitas porventura sejam fonte ao menos alternativa de renda (modelo de vida), pelo que a recolocação em liberdade neste momento (de maneira precoce) geraria presumível retorno às vias delitivas, meio de sustento”, disse a juíza na decisão.

Submetida ao exame do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a decisão de primeira instância foi mantida. O órgão de controle entendeu que a lei foi corretamente aplicada no caso. “Embora triste a situação, impossível se negar a periculosidade avaliada em face da real e intensa culpabilidade da agente”, disse o relator, desembargador Farto Salles.

Ao indeferir por unanimidade o habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública, a 6.ª Câmara de Direito Criminal do TJSP entendeu que o princípio da insignificância não poderia ser aplicado ao furto de R$ 21,69, em razão da reincidência. Em outro processo, a mulher tinha sido condenada pelo furto de desodorantes.

Duas semanas depois da prisão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o trancamento do inquérito policial e revogou a medida restritiva de liberdade. Segundo o ministro Joel Ilan Paciornik, a “lesão ínfima ao bem jurídico e o estado de necessidade da mulher não justificam o prosseguimento do inquérito policial”. Além disso, um furto de alimentos, naquele valor, não preenchia os requisitos mínimos para ser enquadrado como crime.

Oxalá essa história absurda – duas instâncias da Justiça consideram que o furto de alimentos no valor de R$ 21,69 é motivo suficiente para levar uma mãe à prisão – fosse exceção. Infelizmente não o é, especialmente no Estado de São Paulo. Com contumaz reincidência, o TJSP aplica a lei penal e processual penal à revelia da jurisprudência das Cortes Superiores, com um entendimento desarticulado do Direito e uma apreciação muito peculiar dos fatos.

O mesmo tribunal que manteve a prisão da mãe que furtou comida foi o que extinguiu a condenação pelo júri popular dos 74 policiais envolvidos no massacre do Carandiru. Depois, o STJ restaurou a condenação. Pode parecer paradoxal, mas severidade desmedida e impunidade são expressões de um mesmo fenômeno: o da lei que se curva à vontade, em vez de a vontade se submeter à lei.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de outubro de 2021 

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