quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Fim do STF e “democracy, yes”. As contradições do ato pró-Bolsonaro na Paulista

Em clima de festa e desagravo ao presidente, ato do 7 de Setembro na capital toma a avenida Paulista, mas deixa de fora a vida real da maioria dos brasileiros: desemprego, crise econômica e alta de preços

“Nós estamos aqui defendendo a liberdade!”, gritava do alto do carro de som um apoiador do presidente Jair Bolsonaro na tarde desta terça-feira, na avenida Paulista, em São Paulo. Na lateral do caminhão, uma grande faixa dizia “We the people authorize, Bolsonaro” (Nós o povo autorizamos, Bolsonaro), uma referência ao apoio de parte da população para que o presidente lance mão da medidas autoritárias para governar. Esta contradição entre pedidos de liberdade de um lado e intervenção militar do outro deu o tom do protesto massivo realizado neste 7 de Setembro na capital paulista, que teve como principal alvo o Supremo Tribunal Federal (STF) —em especial o ministro Alexandre de Moraes.

A multidão predominantemente branca vestida de verde e amarelo ocupou ao menos 11 quarteirões do principal cartão postal de São Paulo para demonstrar apoio ao mandatário. Não era um espaço para debate de ideias. A mínima contestação de alguma informação gerava um forte rechaço. “Contra quais comunistas vocês estão lutando?”, perguntou a repórter do EL PAÍS a um manifestante. “Se você não sabe, tem que voltar para a escola de jornalismo”, respondeu Vitor de Souza, 52 anos, animado com o número de participantes, maior até do que a época em que frequentava as passeatas dos caras pintadas, contra o Governo Collor.

O hino nacional, repetido à exaustão, vez ou outra dava lugar a alguma música do cantor sertanejo Sérgio Reis, alvo de uma ação da Polícia Federal após defender atos antidemocráticos. Ele é um dos apoiadores radicais do presidente que tiveram sua “liberdade” cerceada, segundo simpatizantes: “Estamos com você, Serjão!”, gritavam os manifestantes ao ouvir a versão do cantor de Menino da Porteira. O clima era de festa. Patriota vestido de xerife norte-americano, monarquistas pela República. Anticomunistas em apoio à causa LGBTI+. Liberais contra a ditadura do STF. Religiosos pela criação da grande nação cristã do Brasil para todo mundo. Nacionalista defendendo que “our flag will never be red” (nossa bandeira jamais será vermelha). Não faltaram também os armamentistas em prol de sua própria paz.

Em comum, a fé incondicional no “mito” criado por Bolsonaro, por quem estavam dispostos a abrir mão dos valores que balizaram a construção do Brasil democrático nos últimos 30 anos. Vibraram até quando ele gritou: “Digo aos canalhas, eu nunca serei preso!”, expondo um temor diante das suspeitas de corrupção que estão chegando a ele pela CPI da Pandemia, e pelas investigações sobre o esquema de rachadinha de membros da sua família. “Está na primeira linha da Constituição: todo o poder emana do povo. E se o povo pedir uma intervenção militar, isso não será um problema”, explica Marco Júnior, 32 anos, que defende “intervenção militar com Bolsonaro no poder”. O motivo de sua insatisfação com a democracia: os comunistas, a sexualização das crianças e a falta de liberdade religiosa.

Nas faixas, cartazes e palavras de ordem gritados na Paulista não havia espaço para a crise econômica, desemprego ou o aumento no preço dos alimentos e do gás de cozinha, que tanto incomodam a população brasileira. “Nada disso é culpa do Bolsonaro, é culpa dos governadores”, afirmou o soldador Adriano Prestes, 36, que veio para a capital em uma caravana de cinco ônibus que partiu de Sorocaba, no interior paulista, na manhã desta terça-feira. “Se os governadores não tivessem fechado o comércio e as fábricas, as coisas não estariam assim”, diz, emulando um discurso já clássico do presidente, ao se eximir de responsabilidade. Sua esposa, Juliane Monteiro Vieira, 34, é motorista de aplicativo. Eles dizem ter pago 35 reais cada por um lugar no fretado que lhes trouxe para o ato, e fazem questão de frisar: “Aqui não tem sanduíche de mortadela não”. A afirmação é uma referência pejorativa ao suposto lanche pago pelos movimentos sociais de esquerda aos seus militantes para comparecer a protestos.

Nas ruas do entorno da avenida Paulista, dezenas de ônibus fretados estacionados davam a dimensão da logística envolvida no ato desta terça-feira. Caravanas vindas do interior do Estado e também de unidades federativas vizinhas, como Paraná e Mato Grosso do Sul, trouxeram milhares de pessoas para a capital, e ajudaram a fazer do protesto um dos maiores em apoio ao presidente desde que ele tomou posse, em 2019. Chamou a atenção na Paulista uma série de cartazes e banners repetidos e padronizados, impressos em vinil ou plástico duro, sinal de que, para além das cartolinas escritas à mão, com caneta, alguém investiu boa soma de dinheiro em material gráfico que foi distribuído aos manifestantes. Vários deles falavam em “intervenção constitucional no STF”, uma frase que remete ao discurso feito por Bolsonaro durante a manhã desta terça, em Brasília, quando o mandatário disse que poderia acionar o Conselho da República, órgão que em tese teria autonomia para declarar “intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio”, de acordo com o texto da lei.

In english

Se não fosse a multidão vestida de verde e amarelo, um desavisado poderia ter a impressão de estar em outro país. “Democracy yes, communism no” (Democracia sim, comunismo não) , “Alexandre de Moraes, you are fired!” (Alexandre de Moraes, você está demitido!) e “Printed and auditable vote now!” (voto impresso e auditável agora!) eram algumas das dezenas de frases escritas em inglês que se multiplicavam em cartazes e banners no ato desta terça. Uma ou outra trazia ainda os dizeres “Wir Brasilianer wollen Freiheit [Nós brasileiros queremos liberdade]”, escritos em alemão.

As mensagens em outras línguas mostram a preocupação que os organizadores do protesto têm com relação à imagem do país —e do presidente— lá fora, em meio à crescente apreensão global com a deterioração da democracia brasileira. “Um gringo que se informa pela mídia brasileira não tem acesso à verdade dos fatos”, afirmou Henrique Ferreira Deltoni, 38, que levava um pequeno cartaz onde se lia “STF Yes, Luiz Fux No” (STF sim, Luiz Fux [presidente do Supremo] não). Havia até um alerta: “the international midia lies” (a imprensa internacional mente).

Claudinei Aparecido Raimundo, 47, da reserva do Exército: "Eu apoio o fim do STF"

Vestido com boina e coturno pretos e farda verde oliva com a palavra “Veterano” escrita em um patch colado na altura do peito, Claudinei Aparecido Raimundo, 47, observava a multidão verde e amarela que lotava a avenida Paulista. Cabo da reserva do Exército, ele liderava um grupo de homens com roupas camufladas que posava para fotos com os manifestantes. “Todos os poderes têm seu limite. Inclusive o Supremo. Eu sou favorável ao fim do STF, sim”, afirmou. Raimundo também defendeu o direito de policiais e militares da ativa participarem de atos políticos como este, do dia 7 de Setembro. “O direito à manifestação é um direito garantido e sagrado”, disse.

Havia o temor de que policiais da ativa fossem ao ato para manifestar apoio ao presidente, o que não ocorreu: de fato, havia um enorme efetivo da PM no local, todos trabalhando. De acordo com o Governo de São Paulo, 4.000 policiais atuaram na segurança na Paulista e no vale do Anhangabaú, onde ocorreu um protesto contra o presidente.

Nem mesmo a sensação térmica superior aos 30 graus e o sol a pino foram capazes de aplacar os ânimos dos participantes, muitos dos quais vieram do interior de São Paulo e de outros Estados, como Mato Grosso e Paraná. Crianças e suas famílias, dividiam o espaço com grupos de amigos e muitos idosos. As máscaras não eram traje obrigatório, mesmo com o avanço da variante delta do coronavírus, mas elas estavam presentes.

Por vezes, ouvia-se a defesa da democracia de um dos seis carros de som que ocupavam a Paulista. Mas sempre uma defesa condicional: “Vocês estão aqui para prender jornalista?”, perguntou um bolsonarista no carro de som. O público respondeu em coro: “Não”. Ele retrucou: “Mas alguns merecem”. Os manifestantes pareciam encantados com o número de participantes. “Não esperava tanta gente”, um bolsonarista afirmou ao puxar conversa. “Você é da imprensa, seja bem-vinda”. Outros, porém, alertavam: “cuidado aí, comunista”. Os alertas foram mais frequentes que os problemas. Um rapaz que decidiu atravessar a manifestação com uma camiseta do ex-bolsonarista Mamãe Falei ouviu provocações. “É um suicida”, disse uma mulher, que estava acompanhada de sua família. “Queria ver se um bolsonarista fosse com sua camiseta numa manifestação petista”, afirmou.

LELA BELTRÃO, GIL ALESSI e REGIANE OLIVEIRA, de São Paulo para o EL PAÍS, em 07.09.21, às 19:48

O dia seguinte

Se Bolsonaro ameaça o Supremo em plena Paulista e o impeachment não sair da gaveta, ele ganhou o 7 de Setembro e a democracia acabou no Brasil

Apoiadores do presidente Bolsonaro participam de atos com pauta antidemocrática em São Paulo, no dia 7 de Setembro de 2021. (DPA VÍA EUROPA PRESS / EUROPA PRESS)

O sentido da manifestação golpista de Jair Bolsonaro neste 7 de Setembro será dado nos próximos dias. Se Bolsonaro usou a máquina de Estado para ameaçar e declarou, em plena Avenida Paulista, que não cumprirá decisão do Supremo Tribunal Federal e depois de tudo isso nada acontecer com ele, o golpe avança. Se Bolsonaro não for responsabilizado criminalmente e o impeachment não sair da gaveta de Arthur Lira (PP), ele ganha. Esse é o único jogo que Bolsonaro sabe jogar. Essa é a história de Bolsonaro, sempre testando limites e pagando pra ver. Começou planejando ataque terrorista quando ainda era militar e seguiu afrontando a lei e contando com a impunidade. Deu certo até hoje. Tão certo que chegou a presidente da República. Bolsonaro é criatura produzida pela omissão e/ou conivência das instituições: as jurídicas e o Parlamento.

Entre o golpe e o fiasco, o processo contínuo de governar pelo medo e a ameaça

O momento mais perigoso de nossa curta vida democrática

A Paulista estava cheia. É minoria? É. É bolha? É. Quem pagou? Precisamos saber. Mas daí a dizer que é um fiasco, como há gente dizendo, devagar. Se Bolsonaro fez tudo isso e ficar impune, o golpe avançou. O futuro próximo do Brasil não será dado pelo dia 7 de Setembro, como Bolsonaro havia ameaçado, mas pelos dias seguintes. Este é o momento de colocar um limite em Bolsonaro. De finalmente, tardiamente, quase 600.000 mortos por covid-19 depois, mais de 14 milhões de desempregados depois, um número crescente de crianças e adultos passando fome depois, e a inflação subindo. Ou será agora ou teremos dias muito, mas muito piores.

Os dias serão muito piores porque Bolsonaro não é capaz de realmente governar para enfrentar os problemas do país. E ele sabe disso. Ele não tem competência nem tem vocação para o trabalho. Tampouco deixa ninguém governar e trabalhar, porque mantém o país a serviço de seu ódio. Em vez de falar sobre como enfrentar a fome, a miséria, a inflação que tira a comida da mesa, a ampliação da vacinação, a crise hídrica e a destruição da Amazônia, estamos discutindo se Bolsonaro vai conseguir ou não invadir o STF. O país precisa deixar de ser refém.

O que ele sabe e faz muito bem e fez muito bem mais uma vez neste 7 de Setembro é ameaçar, dividir e corromper. E ele sabe que manipular ódios e ressentimentos é seu talento e seu trunfo. Se não for impedido pela Constituição que, mais uma vez, rasgou no palanque hoje, o Brasil vai chegar a 2022 destruído e com uma parte da população descrente do processo eleitoral. E, vamos combinar: como defender a democracia se a democracia não é capaz de impedir um presidente de usar seu poder para dizer que não cumprirá as decisões da justiça? Democracia então pra quê, se numa hora crucial como esta não há como enfrentar um presidente que anuncia um golpe na principal avenida do país?

Os dias serão muito piores porque se Bolsonaro constatar que pode desrespeitar o Supremo Tribunal Federal, e no dia seguinte subir tranquilamente a rampa para brincar de ódio nas redes sociais, então o que mais ele fará? Há instrumentos na Constituição para barrar presidentes golpistas e para barrar presidentes que ameaçam a parcela da população que se opõem a ele. Se o direito de brasileiras e brasileiros de ser protegidos pelas instituições que têm o dever de fazer a Constituição valer for desrespeitado, então democracia já não há.

No dia 12, próximo domingo, a direita e partidos e grupos que se apresentam como centro, partidos e grupos que têm muita responsabilidade pela atual situação do país e pela ascensão de Bolsonaro ao poder, chamam para uma manifestação contra Bolsonaro. Aliás, depois de tudo o que fizeram desde que surgiram no horizonte político do país, especialmente o MBL, o mínimo que podem fazer é o máximo pelo impeachment de Bolsonaro. Devem isso à população. Penso que o campo da esquerda deveria ocupar esse espaço, se integrar à manifestação, mesmo que ela tenha sido chamada pela direita, e botar suas bandeiras. Este é o momento de se juntar com um único objetivo, o de fazer o impeachment de Bolsonaro e responsabilizá-lo criminalmente pelo golpismo. Mete a sua bandeira ou o seu cartaz ― e vai. Não é mais possível acordar e descobrir que Bolsonaro continua lá. Temos um genocida no poder usando a máquina do Estado para destruir a Constituição. É preciso tirá-lo de lá usando a democracia. Bolsonaro esticou a corda mais uma vez. Se não for barrado, a democracia acabou.

ELIANE BRUM para o EL PAÍS, em 07.09.21, às 21h:52

Bolsonaro tem respiro nas ruas, mas fica ainda mais isolado sob pressão de impeachment

Presidente reúne as maiores manifestações em seu favor, só que às custas de atritos com Judiciário e Legislativo. Partidos como PSDB, MDB, Solidariedade e PSD analisam possibilidade de destituição

Apoiadores de Bolsonaro em frente ao Masp em ato do dia 7 de Setembro (LELA BELTRÃO)

O presidente Jair Bolsonaro se refestelou neste 7 de setembro e tomou um banho de povo em Brasília e em São Paulo, onde encontrou seus apoiadores mais leais, que, aproveitando o feriado da Independência, rumaram às duas capitais para demonstrar seu apoio irrestrito ao mandatário. Centenas de milhares que ecoaram suas críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e carregaram cartazes padronizados para incentivar uma intervenção para “enquadrar” o Judiciário. Mas, fora das fotos e vídeos que vão irrigar os canais de seus seguidores, a realidade é outra. O sucesso de seu discurso junto a sua plateia foi inversamente proporcional ao impacto no mundo político. Partidos começam a se mobilizar pelo impeachment. Assim disse o PSDB, e o MDB, o Podemos e o PSD. Juntos, somam mais de 100 votos na Câmara de Deputados, e ampliam o espectro que a esquerda monopolizava na atuação pelo afastamento do presidente.

Já não era sem tempo, dizem observadores diante da normalização de ataques do presidente às instituições democráticas desde que assumiu o poder. Nesta terça, Bolsonaro atacou o ministro do STF Alexandre de Moraes, renovou as desconfianças sobre voto eletrônico e até sugeriu que haveria uma reunião do Conselho da República, um colegiado que poderia lhe dar poderes para intervir na corte. “Ou o chefe desse Poder [Luiz Fux] enquadra o seu [ministro] ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”, discursou em Brasília. Em São Paulo, repetiu. “Ou Alexandre de Moraes se enquadra ou ele pede para sair!”.

Mais grave foi mencionar o tal Conselho. “Amanhã estarei no Conselho da República, juntamente com ministros, com o presidente da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, com essa fotografia de vocês, para mostrar para onde nós todos devemos ir”. Plantou uma expectativa aos seguidores de garantir mais poderes, mas colheu ainda mais isolamento. A reunião não existia, e sua sugestão foi vista como gravíssima. “Temos avaliações de alguns importantes juristas apontando que apenas as falas, as manifestações, seriam razões suficientes para justificar o processo. Vamos acompanhar a conduta do Governo para determinar, ou não, a defesa e o apoio a um eventual processo de impeachment do presidente da República”, afirmou em nota o presidente do PSD, Gilberto Kassab. O governador tucano João Doria foi na mesma linha.

O calor das ruas entrou no cálculo político dos partidos que agora marcam distância do presidente. Embora as imagens de 11 quarteirões lotados da avenida Paulista e de uma Esplanada do Ministérios com milhares de pessoas em Brasília tenham impactado muita gente, o presidente falava em 2 milhões de pessoas em São Paulo, por exemplo. O número parece não ter chegado a 10% dessa marca. “É lamentável o presidente da República usar o Dia da Independência para afrontar os outros Poderes. Parece tentar se desviar dos problemas reais: inflação de alimentos, combustíveis, crise fiscal, hídrica, desemprego e baixo crescimento”, criticou em nota o MDB. “Essas ameaças de tom golpista tentam demonstrar força, mas, ao contrário, só revelam a fraqueza e o desequilíbrio de quem as faz. Mostram desprezo às leis e à Constituição. Tentam provocar o caos para tirar o foco dos reais problemas do país e da total incapacidade de resolvê-los”, afirmou o governador petista do Ceará, Camilo Santana, pelo Twitter.

No discurso de São Paulo, Bolsonaro pisou em um calo do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), justamente aquele responsável por acolher os pedidos de impeachment contra o presidente. “Não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança por ocasião das eleições”, discursou Bolsonaro, para o delírio da plateia, retomando suas críticas à urna eletrônica, que Lira imaginava ter sepultado quando o plenário da Câmara rejeitou a adoção do voto impresso, em agosto. “Bolsonaro me garantiu que respeitaria o resultado do plenário. Eu confio na palavra do presidente da República ao presidente da Câmara”, disse Lira à época. A conferir o que dirá agora.

Policiais

Outro fator pesou nas análises políticas nesta terça. Não houve uma réplica da invasão do Capitólio, como temido por autoridades políticas de outros países em manifesto publicado nesta segunda, 6. Nem o derramamento de sangue diante do acampamento indígena e dos protestos de opositores marcados para este dia 7. A participação de policiais, que poderia abrir espaço para atos violentos, também não se confirmou. Governadores se prepararam. A Bahia, por exemplo, que vivenciou, em março deste ano, o risco de um motim de PMs, após o soldado Wesley Soares ser morto por colegas da PM em Salvador, teve uma operação especial comandada pela Secretaria de Segurança Pública. O mesmo em São Paulo, governado pelo arquirrival do presidente, João Doria.

O mais próximo que se viu de uma adesão dos policiais aos atos foi a frouxidão do efetivo no Distrito Federal na noite de segunda-feira, quando os manifestantes forçaram a entrada na Esplanada dos Ministérios. A Secretaria de Segurança do Distrito Federal se defendeu, dizendo que os bolsonaristas descumpriram um acordo prévio e “romperam barreiras de contenção colocadas para bloquear o trânsito de veículos”. De qualquer forma, os apoiadores do presidente foram mantidos a quilômetros de distância dos prédios do Congresso Nacional e do STF, que muitos deles insistiam em dizer que pretendiam invadir. E não houve registro de tumultos consideráveis, muito menos da presença de armas de fogo.

É fato, porém, que as imagens desta terça-feira, principalmente as registradas em Brasília e São Paulo, sustentarão a moral das hostes bolsonaristas por meses, provavelmente até sua tentativa de reeleição, em 2022. Na versão dos defensores do presidente, nenhum de seus antecessores no Palácio do Planalto colheu nas ruas uma manifestação tão significativa quanto a desta terça-feira. “A oposição e parte da imprensa estão bancando o Groucho Marx mais uma vez e mandando um ‘Afinal, vocês vão acreditar em mim ou nos seus próprios olhos?’ para os brasileiros que viram as imagens de multidões gigantescas e sem precedentes em Brasília, em SP, no RJ e em todo o país”, escreveu em seu perfil no Twitter o assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência, Filipe Martins. A questão que se impõe, contudo, é se, grande ou pequeno, esse apoio demonstrado nas ruas será o bastante para sustentar o isolamento que Bolsonaro cava progressivamente em Brasília. Por ora, o saldo dos atos da terça-feira foi muito menor do que o presidente esperava.

CARLA JIMÉNEZ e RODOLFO BORGES, de São Paulo e Brasília para o EL PAÍS, em 07.09.21

Bolsonaro só quer tumultuar. Será que vai conseguir?

Os atos pró-Bolsonaro em Brasília, Rio e São Paulo foram maiores que o normal. Mas as ameaças emitidas pelo presidente foram a mesma baixaria de sempre. O povo não se cansa desse teatro?, questiona Thomas Milz.

Bolsonaro é nada mais que um 'provocateur'. (Agente provocador). Seu repertório é bem limitado, se restringe a xingar e ameaçar, a bravatas e palavrões. 

Então foi assim o 7 de Setembro, dia em que o Brasil celebra sua independência. Desta vez, com atos grandes pró-governo e muito barulho. E então? Para começar: que bom que tudo ocorreu de forma pacífica. Tenho amigas e amigos que temiam um golpe violento, a tomada do poder à força por Bolsonaro. Respondi a eles, tirando sarro, claro, que ele já está no poder, mas mesmo assim não sabe o que fazer com todo esse poder. Para que, então, um golpe?

Jair Messias Bolsonaro é nada mais que um provocateur. Seu repertório é bem limitado, se restringe a xingar e ameaçar, a bravatas e palavrões. Foi isso que ele fez durante os trinta anos como deputado, nada mais. Nenhuma lei de alguma utilidade ele propôs, e não temos notícias de algum projeto social de sua autoria. Não conseguiu formar um partido, e muito menos permanecer por muito tempo em alguma sigla. Ele não é político, e não sabe fazer política. E nem sabe o que quer politicamente.

O que ele quer – e sabe fazer com maestria – é irritar os outros. Eis a origem do "mito": o cara que responde na lata, sem medo. Ele é bom na hora do deboche e de ofender, de responder sem papas na língua. Já tinha chamado o ministro do STF Luís Roberto Barroso de "imbecil" e "idiota". Agora foi a vez de Alexandre de Moraes ser chamado de "canalha". Que perda de tempo e falta de educação.

Para que tudo isso? Às vezes penso que Bolsonaro quer provocar consequências severas para si, para poder se fazer de vítima. Isso, sim, é outra coisa que ele domina com maestria. Aliás, faz parte do repertório do populista: denunciar forças inimigas que o inibiam de realizar suas políticas fantásticas. Então, ser barrado pelo STF de ser candidato em 2022 seria um presente para ele. Poder posar de vítima sem apanhar nas urnas.

Mas não acredito que o STF caia nessa armadilha. Não vão dar a Bolsonaro o presente de poder posar de vítima. Vão apenas emitir notas de repúdio às falas golpistas do presidente. Como sempre fazem. Depois, vão fingir uma normalidade nas relações entre os Poderes. E esperar o mandato de Bolsonaro acabar.

A pergunta mais interessante é: como o Congresso vai reagir a tudo isso? Pois apesar de todo esse barulho, a aprovação do presidente está em baixa. E deve afundar ainda mais, com a economia "andando de lado", a inflação acelerando e a seca se agravando. O Brasil real tem outros problemas além de Sérgio Reis ou do voto impresso. Será que o Centrão quer afundar abraçado a Bolsonaro?

Tudo indica que Bolsonaro continua sendo um "pato manco" nestes últimos 15 meses de seu governo. Não tem ambição de nada além de liberar armas e obstruir a fiscalização na Amazônia, para agradar o núcleo mais duro dos seus seguidores. Mas não tem e nunca teve uma verdadeira ambição de fazer política de verdade. Apenas tumultuar e irritar os outros. Muito pouco para um país com 210 milhões de pessoas e muitos problemas urgentes.

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Thomas Milz, o autor deste artigo, saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 08.09.21

Falas golpistas de Bolsonaro fazem impeachment voltar à pauta em Brasília

Políticos de partidos de centro, incluindo o PSDB, já discutem apoio a um possível pedido de afastamento, após ameaças ao STF e tom agressivo adotado pelo presidente nos atos pró-governo no feriado de 7 de setembro.

    

Bolsonaro é recordista em número de pedidos de impeachment, com 136 denúncias até o momento.

As falas do presidente Jair Bolsonaro durante os atos pró-governo no feriado de 7 de setembro, que incluiram ameaças a instituições democráticas do país, fizeram que a discussão sobre o impeachment do mandatário voltasse à ordem do dia em Brasília.

Parlamentares de diversos partidos, incluindo alguns do chamado centrão, que constitui a base de Bolsonaro no Congresso, já discutem a possibilidade de apoio ao impeachment do presidente, sendo que mais de uma centena de pedidos de afastamento já foram apresentados à Câmara dos Deputados.

As ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF), em especial, ao ministro Alexandre de Moraes, assim como as críticas ao sistema eleitoral e, de modo geral, o tom agressivo utilizado por Bolsonaro, parecem ter exacerbado os limites de alguns grupos políticos que se dividiam entre a neutralidade e o apoio ao presidente.

O PSDB anunciou para esta quarta-feira uma reunião extraordinária de sua executiva para discutir a possibilidade do afastamento de Bolsonaro. Uma nota do partido afirma que Bruno Araújo, presidente da legenda, convocou a reunião após as "gravíssimas declarações" de Bolsonaro nos atos pró-governo em Brasília e São Paulo.

O governador de São Paulo, João Doria, que também foi alvo de ataques de Bolsonaro nas manifestações, se manifestou pela primeira vez a favor do impeachment. "Eu até hoje nunca havia feito nenhuma manifestação pró-impeachment, me mantive na neutralidade, entendendo que até aqui os fatos deveriam ser avaliados e julgados pelo Congresso Nacional", afirmou.

"Mas, depois do que assisti e ouvi hoje, em Brasília, sem sequer estar ouvindo, ele, Bolsonaro, claramente afronta a Constituição, desafia a democracia e empareda a Suprema Corte brasileira", completou o governador, também do PSDB.

Presidente cada vez mais acuado

O presidente do MDB, Baleia Rossi, disse que vai consultar os principais líderes de sua bancada no Congresso sobre a possibilidade de a legenda apoiar ou não o impeachment. O partido deve discutir também as posições de alguns de seus membros nas lideranças do governo no Congresso Nacional.

Partidos como o Solidariedade, PSD e PL também sinalizaram que vão discutir internamente sobre um possível apoio ao afastamento do presidente.

Os congressistas de oposição que lideram as minorias na Câmara e no Senado saíram em defesa do impeachment e condenaram a atitude agressiva do presidente. O deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ) disse que Bolsonaro não só ataca as instituições democráticas como estimula a violência contra autoridades públicas.

"A agressividade do discurso na Paulista é a confissão do desespero de um presidente cada vez mais acuado. Ele mais uma vez deixou claro que não aceitará o resultado das eleições de 2022 e tenta preparar um motim como Donald Trump fez nos Estados Unidos", disse o deputado.

O líder da minoria no Senado, Jean Paul Prates (PT-RN) disse que Bolsonaro "perdeu as condições de governar, de recuperar a economia e o país. Só restam duas alternativas para Bolsonaro depois do dia de hoje: renúncia ou impeachment. Como ele não é capaz deste gesto pela nação, cabe ao Congresso conduzir o processo de impeachment".

Recordista em pedidos de impeachment

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a quem cabe instaurar um processo de impeachment, ainda não se manifestou sobre a questão. Ele se mantém atrelado ao presidente, embora as desavenças entre ambos tenham aumentado nos últimos meses.

Até o momento, 130 pedidos de impeachment de Bolsonaro aguardam análise e outros seis foram arquivados, o que faz dele o recordista em número de denúncias desse tipo. Michel Temer sofreu 31 pedidos de impeachment, Dilma Roussef, 68, Luiz Inácio Lula da Silva, 37, e Fernando Henrique Cardoso, 24, segundo levantamento feito pela Agência Pública.

A maioria dos pedidos se baseia na atuação do governo Bolsonaro frente à pandemia de covid-19, citada em pelo menos 75 denúncias.

Deutsche Welle Brasil, em 08.09.21

As ameaças de Bolsonaro em discursos no 7 de Setembro

O presidente Jair Bolsonaro fez uma série de ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF) e à democracia nesta terça-feira (7/9) em discursos na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e na avenida Paulista, em São Paulo. 

Chamou as eleições de "farsa", disse que só sai da presidência "preso ou morto" e exaltou a desobediência à Justiça.

Mas a maior parte dos manifestantes concentraram em São Paulo, que reuniu caravanas vindas de diversos locais do país. Segundo a estimativa oficial da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, passaram cerca de 125 mil manifestantes pela avenida Paulista neste domingo.

Foi em São Paulo que Bolsonaro elevou o tom de golpismo, que já estava presente em seu discurso em Brasília. Ele questionou a urna eletrônica e as eleições, citou novamente o voto impresso (que já foi rejeitado pelo Congresso) e disse que não pode "participar de uma farsa como essa patrocinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE)".

"Quero dizer àqueles que querem me tornar inelegível em Brasília: só Deus me tira de lá", afirmou.

"Só saio preso, morto ou com vitória. Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso."

Bolsonaro criticou o presidente do TSE, o ministro Luís Roberto Barroso, sem citá-lo nominalmente.

"Não é uma pessoa no Tribunal Superior Eleitoral que vai dizer que esse processo é seguro, usando a sua caneta desmonetizar páginas que criticam esse sistema de votação", disse ele, em referência a decisões da Justiça contrárias a bolsonaristas que espalharam notícias falsas sobre as eleições.

"A paciência do nosso povo já se esgotou! Nós acreditamos e queremos a democracia! A alma da democracia é o voto! E não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece segurança", afirmou Bolsonaro.

Militantes de direita pedem intervenção militar na av. Paulista (EPA)

Ataques ao STF

Bolsonaro concentrou suas críticas ao STF na figura do ministro Alexandre de Moraes, que determinou nesta segunda (5/9) a prisão de apoiadores do presidente que publicaram ameaças ao tribunal e a seus membros.

"Não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população. Não podemos aceitar mais prisões políticas no nosso Brasil", disse o presidente.

"Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos, porque nós valorizamos, reconhecemos e sabemos o valor de cada Poder da República", completou Bolsonaro, conclamando o presidente do STF, Luiz Fux, a interferir nas decisões de Moraes - algo que seria inconstitucional.

Em São Paulo, Bolsonaro citou Moraes nominalmente e o chamou de "canalha", dizendo que "não pode mais admitir" que ele "continue açoitando o povo brasileiro."

Antes das manifestações, Bolsonaro chegou a enviar um pedidos de impeachment de Moraes ao Senado, onde o pedido foi rejeitado.

Apesar da derrota, o presidente continuou insistindo no ataque, e disse em Brasília que Moraes "perdeu as condições mínimas de continuar dentro daquele tribunal".

E ameaçou: "Não queremos ruptura, não queremos brigar com Poder algum, mas não podemos admitir que uma pessoa coloque em risco a nossa liberdade."

Contradições

Ambos os discursos de Bolsonaro tiveram contradições como dizer que "defende a democracia" e ao mesmo tempo criticar as eleições e dizer que só sai de Brasília "preso, mortos ou com vitória".

Bolsonaro usou repetidas vezes o argumento de que a Constituição Federal estaria sendo ferida por outro Poder. Mas ele próprio fez ameaças que, se concretizadas, significariam violações graves da Constituição.

"Nós todos na Praça dos Três Poderes juramos respeitar a nossa Constituição. Quem age fora dela se enquadra ou pede para sair", disse, acrescentando que as manifestações do 7 de Setembro são um "ultimato" aos Poderes da República.

"Peço a Deus coragem para decidir. Não são fáceis as decisões. Não escolham o lado do conforto. Sempre estarei ao lado do povo brasileiro. Esse retrato que estamos tendo nesse dia é de vocês. É um ultimato para todos que estão na praça dos Três Poderes, inclusive eu, presidente da República, para onde devemos ir", declarou.

"A partir de hoje uma nova história começa a ser escrita aqui no Brasil. Peço a Deus mais que sabedoria, força e coragem para bem presidir", completou, sendo aplaudido por Braga Netto e demais ministros.

Conselho da República

Ao final do discurso em Brasília, Bolsonaro disse que se reuniria na quarta com o Conselho da República, para apresentar a "fotografia" de "onde todos devemos ir". O Conselho da República é um órgão consultivo previsto na lei para ser usado pelo presidente em momentos de crise, para deliberar sobre "intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio", além de decidir sobre "questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas".

Apesar do que disse Bolsonaro no discurso, não há reunião do Conselho da República marcada para quarta-feira por enquanto, segundo o vice-presidente Hamilton Mourão. "Julgo que o presidente se equivocou, pois ninguém sabe disso", afirmou o vice, cuja presença é necessária no conselho.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), líder da minoria na Câmara dos Deputados e membro do conselho, afirmou que a reunião não foi marcada e que "não será sob chantagem de um presidente que participa de uma ato que ameaça ministros, que ameaça intervenção militar e que ameaça o fechamento do Congresso, que o Conselho da República vai se reunir."

Fim do ato

Em Brasília, no carro de som, bem ao lado de Bolsonaro, presenciando as ameaças do presidente, estava o ministro da Defesa, general Braga Netto.

Já o ato em São Paulo teve a presença do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que foi abordado por dezenas de bolsonaristas para fotos, e do ex-secretário de comunicações Fabio Wajngarten.

O número de pessoas com máscaras era bem reduzido em ambos os atos que tiveram a presença do presidente. Em São Paulo, havia muitos idosos e crianças sem máscara. Policiais também eram parados com pedidos de fotos e o hino nacional era cantado reiteradamente.

Ao final, Bolsonaro deixou a Paulista em cima de um carro, com um policial levando um colete à prova de balas na frente, e se dirigiu ao comando militar em São Paulo, onde pegou o avião presidencial de volta à Brasília.

BBC News Brasil, em 08.09.21

Presidência 'saindo dos trilhos' e possível 'prelúdio para golpe': o que diz a imprensa internacional sobre atos de 7 de setembro

Jair Bolsonaro, "o combalido líder brasileiro", está "em uma aparente tentativa de projetar força no pior momento de sua Presidência" ao convocar a população para ir às ruas no feriado de 7 de setembro. A avaliação é do jornal britânico The Guardian, um dos órgãos de imprensa que destacam as manifestações pró-Bolsonaro ocorridas nesta terça-feira (7/9), convocadas pelo próprio presidente.

"Muitos cidadãos temem a violência enquanto os apoiadores linha-dura de Bolsonaro vão às ruas para defender um líder cujos índices de popularidade despencaram como resultado de escândalos de corrupção envolvendo seus aliados e parentes e pela forma como ele lidou com a pandemia de covid, que matou mais de 580 mil pessoas", disse o "The Guardian", em artigo com manchete na sua capa.

Sobre os desdobramentos dos protestos ao longo do dia, o jornal destacou que "milhares marcharam em apoio ao presidente populista de extrema direita, mas pesquisas sugerem que sua Presidência pode estar saindo dos trilhos ante as eleições do ano que vem".

'Nunca serei preso': Bolsonaro ataca Judiciário e questiona eleições em discurso na Paulista

O americano The New York Times, por sua vez, destacou que Bolsonaro busca dar uma "mostra de forças que seus críticos temem ser um prelúdio a um golpe" (power grab, no original em inglês). O jornal destacou a queda de popularidade do presidente brasileiro diante de problemas como "uma das respostas mais caóticas (do mundo) à pandemia" e aumento do desemprego, da inflação e da desigualdade e risco de racionamento energético.

O jornal argentino La Nación sugeriu que a motivação de Bolsonaro seria atingir Luiz Inácio Lula da Silva, seu potencial rival nas eleições de 2022.

Em reportagem, o jornal argentino escreveu: "Faltando mais de um ano para as eleições presidenciais, e com seu odiado rival Lula na frente nas preferências dos eleitores, Jair Bolsonaro decidiu queimar os navios e reverter sua sorte com as manifestações que convocou amanhã [terça-feira] na maioria das cidades do país."

"O presidente brasileiro convocou suas bases para manifestação nas ruas do dia da independência do país, com a qual espera retomar a iniciativa num momento em que está mais longe do que nunca da opinião pública e em um confronte de morte com o Judiciário, cenário que não poderia ter sido imaginado na seu primeira campanha presidencial, quando quem estava na defensiva, e de fato preso, era Lula."

O jornal afirmou que a aposta de Bolsonaro "é arriscada" porque sua investida contra as instituições estaria sendo "mal digerida por alguns de seus aliados mais próximos", como o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira.

Ao final da cobertura dos atos, o La Nación afirmou que Bolsonaro "reuniu uma multidão e dobrou sua ofensiva contra a Suprema Corte".

O jornal argentino El Clarin afirmou que Bolsonaro esperava juntar dois milhões de manifestantes no ato em São Paulo (segundo a PM paulista, porém, houve 125 mil pessoas no protesto), mas ponderou: "É difícil imaginar tamanha multidão na emblemática Avenida Paulista, pois nas últimas manifestações o presidente reuniu apenas algumas dezenas de milhares na cidade mais populosa do país."

O jornal concluiu o dia com a informação de uma "manifestação multitudinária em que se destacaram os tons antidemocráticos".

O El Clarin também destacou mais cedo uma entrevista com o cientista político Geraldo Monteiro, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que diz que este dia de mobilização pode "marcar um ponto de virada" no Brasil.

"Se for bem-sucedido, Bolsonaro oferecerá uma 'demonstração de força que pode lhe dar mais margem de manobra' e um novo impulso para as eleições presidenciais de 2022, nas quais, segundo as pesquisas, seria amplamente derrotado pelo ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva", disse o jornal argentino.

"Mas, em caso de fiasco, o presidente ficará "ainda mais acuado", sob o risco de ser abandonado por seus aliados políticos e pelo mundo empresarial."

O francês Le Monde destacou a frase de Bolsonaro de que "uma nova história começa a ser escrita no Brasil a partir de hoje (7 de setembro)", dizendo que o presidente buscava dar mostra de forças em momento de uma grave crise institucional.

Esplanada dos Ministérios

Ainda no britânico Guardian, foi noticiado o episódio na noite de segunda-feira (6/9), em Brasília, em que manifestantes pró-Bolsonaro romperam um bloqueio da PM de Brasília e invadiram a Esplanada dos Ministérios, em área próxima ao Supremo Tribunal Federal.

A reportagem do The Guardian destacou a fala de uma manifestante contra os policiais que trabalhavam na segurança da Esplanada: "Deus vai fazer você pagar por isso. Vocês, comunistas", diz a manifestante, em um vídeo citado pelo jornal.

O episódio da invasão da Esplanada dos Ministérios também foi tema de reportagem da revista alemã Der Spiegel, que levantou comparações com a invasão do Capitólio dos Estados Unidos em 6 de janeiro deste ano por apoiadores do ex-presidente americano Donald Trump.

"Apoiadores do presidente extremista de direita Jair Bolsonaro romperam uma linha policial na capital brasileira. Centenas deles superaram um cerco com caminhões e carros na véspera do Dia da Independência do Brasil, segundo a polícia de Brasília. Eles chegaram à avenida que dá acesso ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal do país e que estava fechada por motivos de segurança", diz o Der Spiegel.

"O governo da capital enviou 5 mil policiais para proteger os prédios públicos por causa das manifestações anunciadas para o Dia da Independência. As autoridades querem evitar cenas semelhantes à tomada do Capitólio dos EUA por partidários do então presidente Donald Trump em janeiro."

A revista alemã também noticiou o decreto de Bolsonaro dificultando a exclusão de conteúdo por plataformas da Internet.

"Bolsonaro está sob pressão um ano antes da eleição presidencial, devido aos números extremamente baixos das pesquisas e à economia em declínio", disse a revista.

BBC News Brasil, em 08.09.21

Bolsonaro faz Brasil parecer república das bananas, diz analista dos EUA

A democracia brasileira saiu mais fraca do seu 199º aniversário da independência do Brasil, analisa a cientista política Amy Erica Smith, especialista em democracia e regimes autoritários na América Latina, particularmente no Brasil.

Policiais militares isolam área próxima ao Congresso Nacional para evitar aproximação de manifestantes pró-Bolsonaro. (AFP)

Em protestos que atraíram centenas de milhares de pessoas neste 7 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não cumprirá decisões judiciais, ameaçou fechar o Supremo Tribunal Federal, disse que um dos ministros, Alexandre de Moraes, "açoita a democracia", chamou o processo eleitoral sem voto impresso de "farsa" e disse que apenas Deus pode tirá-lo da Presidência.

"É possível que as coisas agora tenham chegado a um ponto tão ruim que forcem a ação de outros poderes", opina ela.

Ameaças ao STF elevam pressão por impeachment, mas Bolsonaro mantém base para proteger mandato, dizem deputados

Após Bolsonaro intensificar os ataques ao Supremo e ameaçar não cumprir decisões do ministro Alexandre de Moraes, aumentaram as cobranças pela abertura de um processo de impeachment no Congresso.

Para a estudiosa, a demonstração de força de Bolsonaro não foi um "fracasso total", dado o número de pessoas que ele atraiu e a disseminação de suas palavras, mas deixou claro que Bolsonaro não reúne condições de dar um golpe. "Se tivesse, ele já teria dado".

Smith observa que Bolsonaro e seus apoiadores tentam projetar uma imagem de lideranças da direita global, com placas em inglês contra o STF e apoio de ex-assessores de Trump em suas empreitadas, mas, para a maioria da audiência internacional, "Bolsonaro pinta o Brasil como uma república das bananas".

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Amy Erica Smith à BBC News Brasil, editadas por clareza e concisão.

BBC News Brasil - Como qualifica os acontecimentos desse 7 de setembro?

Amy Erica Smith - A multidão tinha um tamanho razoável e o discurso de Bolsonaro está mais radical, talvez o mais radical que se possa ser sem provocar um confronto direto e imediato. O tipo de ataque que ele fez ao ministro Alexandre de Moraes hoje cruza a linha da democracia. As coisas que Bolsonaro disse não satisfazem os mínimos requisitos da democracia e, se for permitido que ele continue a fazer esse tipo de declaração, as coisas ficarão muito ruins no Brasil.

Ele até poderia recuar, mas não acredito que irá. A essa altura, nós já vimos o suficiente pra identificar um padrão de alguém que vai gradualmente ficando mais e mais radical. Declarações como "só saio da presidência morto" são extremamente anti-democráticas, assim como tudo o que ele disse hoje. Desse ponto em diante, as coisas só pioram.

BBC News Brasil - Alguns analistas, como o filósofo Marcos Nobre, veem nos movimentos de Bolsonaro em 7 de setembro uma espécie de ensaio do golpe, um teste de quão longe se pode ir. A senhora concorda?

Smith - Se Bolsonaro tivesse apoio para um golpe, provavelmente ele já teria dado um golpe. Muito do que ele faz é projetado para tentar atrair mais pessoas para o seu lado e viabilizar um golpe. Está claro que, se pudesse ter fechado o Supremo Tribunal Federal há um ano, ele já teria feito isso.

Bolsonaro fez desfile em carro aberto em Brasília, pouco antes de discursar com ameaças ao Supremo Tribunal Federal e à realização de eleições (Reuters)

Mas ele não tem apoio institucional para fazer isso, nem dos militares nem de outros políticos. E se tentasse, não conseguiria se segurar no poder. Então acho que o termo ensaio não cabe, porque a verdade é que se ele tivesse tido condições de dar um golpe ontem, ele teria dado. E seus apoiadores também teriam apoiado o golpe se ele tivesse tentado.

O que eu acho que Bolsonaro está fazendo é deliberadamente mostrando que seu interesse é golpista e tentando arregimentar pessoas pra sua causa. Isso é mais um alerta do que ele gostaria de fazer se conseguisse obter mais poder. E eu acho que foi uma tentativa também de satisfazer alguns de seus apoiadores mais radicais, que pediam por esse tipo de comportamento. Então ele manda uma mensagem para esses apoiadores ao mesmo tempo em que tenta intimidar o Supremo e Congresso. E, honestamente, não vejo como isso possa ter funcionado, nem para intimidar, nem para ganhar novos apoiadores.

BBC News Brasil - Bolsonaro terminou o sete de setembro mais forte ou mais fraco do que começou o dia?

Smith - Não acho que foi um fracasso completo. Ele conseguiu reunir uma massa moderadamente grande. Não foi uma massa esmagadora, mas atraiu público e conseguiu levar seus discursos à TV. Mas em termos eleitorais práticos, a popularidade dele ainda está na casa de 20% e não houve ali nenhum sinal de que ele tem poder suficiente para mobilizar eleitores a ponto de alterar o cálculo eleitoral dos partidos em favor dele.

Já em relação à crise institucional, ao conflito com outros poderes, Bolsonaro termina o dia bem mais radical e aparentemente tendo dito coisas que podem levar a ações legais contra ele no Supremo e ao seu impeachment no Congresso. Esses são cenários possíveis. Então, ele sai do sete de setembro mais vulnerável em relação aos demais poderes. E podemos esperar resposta ao menos da Suprema Corte, com certeza.

BBC News Brasil - O Brasil vive uma crise institucional grave. Hoje o presidente disse que só Deus o tira do cargo, que não cumprirá decisões judiciais de um dos ministros do Supremo e que não participará do que chamou de "farsa" das eleições sem votos impresso. Com isso, afrontou o Congresso e a Suprema Corte. Como fica a democracia depois disso?

Smith - O que está claro é que a democracia brasileira saiu do sete de setembro mais fraca, em uma crise maior. Mas é possível que agora as coisas tenham chegado a um ponto tão ruim que forcem a ação de outros poderes. A democracia brasileira está em grande risco, especialmente com as ameaças ao Supremo.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, de Washington para a BBC News Brasil, em 0809.2021

7 de setembro: atos mostram Bolsonaro isolado e dificultam ainda mais agenda do governo, dizem cientistas políticos

As manifestações deste 7 de setembro mostraram um Jair Bolsonaro capaz de mobilizar as ruas, mas não de ampliar sua base de apoio, avaliam cientistas políticos.

Jair Bolsonaro acena a apoiadores durante protesto de 7 de setembro em Brasília (AFP)

Segundo eles, os discursos do presidente nos atos devem esgarçar ainda mais a relação entre o Executivo e os demais Poderes da República, dificultando o avanço da agenda do governo e a probabilidade de reeleição.

Neste cenário, os analistas avaliam que todos os olhos estarão voltados para as reações do Congresso e do Supremo a partir desta quarta-feira (8/9). E acreditam que um processo de impeachment, até então improvável, não pode agora ser descartado.

Grupos bolsonaristas se dividem entre euforia e frustração com manifestações

"O fato de que Bolsonaro, com esse discurso golpista e criminoso seja bem sucedido em levar as pessoas para a rua é muito preocupante", considera a cientista política Carolina Botelho, pesquisadora do Mackenzie e da UERJ.

"Por outro lado, não se vê uma ampliação da base — são os mesmos 20% a 25% [da população] que vemos consolidado desde dezembro. É um grupo coeso, firme e que deve seguir com ele até 2022, mas não vejo probabilidade dessa base aumentar."

Essa é também a avaliação de Creomar de Souza, consultor de risco político e fundador da Dharma Politics. "Se o presidente queria uma foto para dizer que conta com apoio popular, ele conseguiu. A relação dele com seu próprio eleitorado parece bastante solidificada", diz o analista.

Souza destaca, no entanto, que esse núcleo duro é insuficiente para garantir a reeleição de Bolsonaro, considerando um cenário de normalidade, em que as eleições ocorram no próximo ano dentro das regras estabelecidas pelo jogo democrático.

"O presidente hoje tem uma dificuldade de tracionar, de falar para além da bolha. E eu creio que os atos desta terça-feira colocam ele mais dentro dessa bolha. Mas ele dá sinais de não se incomodar com isso e de não ter nenhum problema em constranger os outros entes institucionais para que o jogo seja jogado a partir das regras dele."

Num cartaz em inglês, manifestante pede a destituição dos ministros do STF no protesto em São Paulo (AFP)

Agenda do governo ameaçada

Para o consultor de risco político, os protestos do Dia da Independência tendem a dificultar ainda mais um diálogo entre o presidente e as demais forças políticas.

"O governo tem uma série de dilemas muito importantes para serem encaminhados nos próximos dias e não se sabe se ele vai contar com a boa vontade de outros entes institucionais para levar essas pautas à frente", diz Souza.

Ele cita como exemplo a questão dos precatórios — um montante de R$ 90 bilhões em dívidas do governo com indivíduos e empresas, com decisão judicial definitiva —, cujo pagamento integral ou parcelado está no centro da discussão para viabilizar o Orçamento federal para 2022.

"Havia uma costura com o STF, que estava disposto a ajudar o governo a equacionar o problema", lembra Souza. "Isso agora não deve prosperar."

O governo tinha a expectativa de obter um aval para parcelar os precatórios para conseguir espaço fiscal para turbinar o Bolsa Família, de olho na reeleição. O parcelamento é visto por muitos analistas, no entanto, como uma forma de calote, já que as dívidas têm decisão definitiva da Justiça.

"Sem a reformulação do Bolsa Família, o presidente corre o risco de ter mais erosão de popularidade", considera Souza. "Para além disso, o governo tem outras agendas a serem encaminhadas, desde o combate à pandemia até a contenção da inflação, e tudo isso passa pelo diálogo com os outros entes."

Público na Avenida Paulista foi estimado em 125 mil pessoas pela Secretaria de Segurança Pública (AFP)

Escalada da crise e reação dos poderes

Para Claudio Couto, professor de ciência política da FGV (Fundação Getulio Vargas), os protestos deste 7 de setembro foram dentro do esperado — grandes, particularmente na Avenida Paulista, mas sem surpresa, diante de tanto tempo de preparação e investimento de recursos.

"Agora, se em termos de tamanho os atos foram dentro do esperado, Bolsonaro conseguiu escalar a crise política em muitos patamares", avalia Couto, citando a sinalização do presidente de que não vai mais acatar decisões de Alexandre de Moraes e a ameaça embutida no discurso de que o ministro do STF deve "se enquadrar ou pedir para sair".

"Esse tipo de afirmação é de uma gravidade imensa: ele está dizendo que o Executivo não acatará decisões do Judiciário e de sua Suprema Corte. Isso é muito sério", considera o analista.

"Chegamos num nível de enfrentamento com os outros poderes em que não há mais condições de retorno. Passamos do ponto de não retorno e, se não houver uma reação muito forte do Congresso Nacional em relação a isso, pautando o impeachment, vamos ficar numa situação muito perigosa."

Para Couto, os protestos desta terça podem mudar a correlação de forças com relação ao impedimento presidencial. "Até ontem, certamente não tinha clima [para o impeachment], mas não sei se amanhã não haverá, depois do que aconteceu nesta terça", diz o analista.

"O que aconteceu nesta terça é de uma gravidade absurda. É o momento mais grave que já vivemos no país desde a volta da democracia — talvez desde o atentado do Riocentro", acrescenta, citando episódio ocorrido em 1981, quando setores do Exército Brasileiro descontentes com a abertura democrática tentaram realizar um atentado a bomba num evento comemorativo do Dia do Trabalhador.

"Uma situação desse tipo tem a capacidade de talvez produzir uma mudança no humor do Congresso", considera o analista, acrescentando que a postura adotada pelos governadores depois do dia de hoje também deve ser determinante para o reposicionamento do Legislativo.

Carolina Botelho, do Mackenzie e da UERJ, também avalia que a hipótese de impeachment não pode ser descartada.

"Nesta semana, Gilberto Kassab falou em entrevista que, se Bolsonaro aumentasse a disposição golpista, ele — que é um cara muito importante e que precisa ser mantido perto num presidencialismo de coalizão — apoiara o impeachment. Outros protagonistas da política estão falando o mesmo. Então é óbvio que esta carta não está descartada", diz a cientista política.

Ainda na terça-feira, o PSDB informou que o presidente do partido, Bruno Araújo, convocou reunião extraordinária da executiva para discutir a posição da legenda sobre abertura de impeachment.

O tucano João Doria, governador de São Paulo, manifestou-se pela primeira vez pelo impeachment de Bolsonaro. "Minha posição é pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro — depois do que ouvi hoje ele claramente afronta a Constituição", afirmou.

Também o presidente do Solidariedade, Paulinho da Força, se manifestou na terça à noite a favor do impeachment. "Na próxima semana, vou reunir a executiva do Solidariedade para debatermos o posicionamento do partido sobre abertura do processo de impeachment de Bolsonaro", escreveu o político em sua conta no Twitter. "Mais uma vez, o presidente afrontou a democracia e deu provas de que não vai parar com os ataques às instituições."

A consultoria de risco político Eurasia, por sua vez, continua vendo a hipótese de impeachment como pouco provável.

"As chances de que isso ocorra são muito baixas. Com 30% de apoio e 14 meses até as eleições do próximo ano, não há condições políticas para um impeachment", escreveram os analistas Christopher Garman e Daniela Teles, em relatório distribuído na terça-feira à noite.

"O mesmo vale para um colapso democrático, dada a robusta estrutura institucional do Brasil. Mas o risco de violência em protestos futuros persistirá em meio ao que será uma eleição muito tensa."

Thais Carrança, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 08.09.2021

terça-feira, 7 de setembro de 2021

A força do bolsonarismo revela sua maior fragilidade

“Eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa.” (Guimarães Rosa)

Como se esperava, o 7 de setembro é a maior expressão do bolsonarismo nas ruas. Especular números e fotos aéreas é, porém, aceitar a cilada com o que o presidente pretenderá manipular a opinião pública. Mais expressivo é explicitar métodos e estilos: a mobilização patrocinada por recursos obscuros, a disposição de botar tudo abaixo, a antipolítica e a opção preferencial pelo caos são marcas de sua política.

A estética é bruta, a trilha sonora é a fúria; os alvos: o STF e os fantasmas forjados pela ultradireita internacional. A truculência como gramática foi o meio e a mensagem dos manifestantes e do presidente. E, com isso, a insegurança e a impressão de um possível cheiro de pólvora no ar cobrem o país de temores. Despertar o medo é a estratégia para acuar os adversários.

Porém, foi mostrando sua força que o bolsonarismo revelou sua fragilidade. Ao lado do presidente há uma massa disforme, sem organicidade, agenda, visão de longo prazo. Personagens revoltosos que expressam todo o tipo de intolerância: negacionismo, fundamentalismo religioso, medievalismo, o tradicional farisaísmo nacional. A triste expressão da “nova política” num momento em que nos horizontes do Planalto Central não há futuro.

Antecipando-se a constrangimentos desse tipo, setores modernos da economia e da sociedade afastaram-se, ainda mais, do presidente; sabe-se também do pouco prestígio internacional de que goza Jair Bolsonaro. Os números enganam viciados na objetividade, os fatos, porém, demostram que as manifestações gritaram o isolamento de uma pequena multidão. Uma ilha, uma bolha, onde mais significativo que os presentes foram as ausências.

Bolsonaro, porém, preferirá ignorar a tudo e posar numa foto que não existiu. É seu jogo: radicalizar sua massa e utilizar o poder e o cargo de que dispõe e, então, expor o País a ameaças e bravatas, como, por exemplo, convocar o Conselho da República para mostrar-lhes “o caminho”, sem que saiba ao certo qual o caminho.

O quadro se apresenta ainda sensível e perigoso: afinal, Bolsonaro e seus radicais cruzaram (ou não) o tal Rubicão da democracia? Não cabe tergiversar, como reagirão as instituições? E como reagirá o fragmentado e disperso antibolsonarismo, principal força política do País, dividida em interesses eleitorais diversos. Perceberá que a polarização de fato existente é de Bolsonaro com a Nação? O 7 de setembro trouxe o desafio do dia seguinte: é preciso união para pôr freio, a tempo, a um ônibus em carreira e desgovernado.

Carlos Melo, o autor deste artigo, é cientista político e Professor do Insper. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, online, em 07.09.21, às 13h06

Ministros do STF se reúnem após declarações de Bolsonaro e Fux fará pronunciamento em sessão

Ao longo do Dia da Independência, os ministros acompanharam as manifestações que, nos bastidores, avaliaram como eleitoreiras, mas, ainda assim, bastante graves

Após o presidente Jair Bolsonaro ameaçar descumprir decisões judiciais e pedir a renúncia do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), neste 7 de Setembro, o presidente da Corte, Luiz Fux, fará um pronunciamento em nome dos integrantes da corte na próxima sessão, marcada para esta quarta-feira, 8. O teor da manifestação do presidente do Supremo foi debatido entre todos os integrantes da Corte, no início da noite desta terça-feira.

Ao longo do Dia da Independência, os ministros acompanharam as manifestações que, nos bastidores, avaliaram como eleitoreiras, mas, ainda assim, bastante graves. Um integrante, reservadamente, disse acreditar que as falas são "bravatas".

A interpretação dos magistrados ouvidos pelo Estadão foi de que Bolsonaro aprofunda as ameaças que já vinha fazendo nos últimos dias - o que, em si, não é uma novidade. Para esses ministros, os atos de 7 de Setembro serviram de palanque eleitoral do presidente, em que a sua equipe coletou imagens e discursos para exibição nas eleições de 2022.

Fux

O Supremo Tribunal Federal (STF), presidido pelo ministro Luiz Fux, zela pelo cumprimento da Constituição

A um interlocutor, um ministro da Corte falou que a única forma de destituir um ministro do Supremo é a aprovação de um pedido de impeachment no Senado Federal. O pedido encaminhado por Bolsonaro para o impeachment de Alexandre de Moraes já foi arquivado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco

O presidente Jair Bolsonaro durante discurso em Brasília neste 7 de setembro Foto: Sergio Lima / AFP

Ameaças contra Moraes

Diante de apoiadores em São Paulo, Bolsonaro disse que não vai cumprir mais decisões de Moraes - responsável, como relator de inquéritos no Supremo, por ordens de prisão de bolsonaristas que tramavam contra o Poder Judiciário. 

"Temos um ministro dentro do Supremo... ou esse ministro se enquadra, ou ele pede para sair. Não se pode admitir que uma pessoa apenas... um homem apenas turve a nossa liberdade. Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir. Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos... Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha. Deixe de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo. Mais do que isso, nós devemos, sim, porque eu falo em nome de vocês, determinar que todos os presos políticos sejam postos em liberdade", disse Bolsonaro.

O presidente disse também que ele e seus apoiadores não vão mais "admitir que pessoas como Alexandre de Moraes continuem a açoitar a nossa democracia e desrespeitar a nossa Constituição". 

Além disso, Bolsonaro ameaçou não aceitar o resultado das eleições presidenciais em 2022, que chamou de farsa, diante da rejeição à proposta de instituição de comprovantes impressos de votos. "Não podemos ter eleição em que pairem dúvidas sobre os eleitores. Nós queremos eleições limpas, auditáveis e com contagem pública dos mesmos. Não posso participar de uma farsa como essa patrocinada ainda pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral", afirmou.

Alvo preferencial dos ataques de Bolsonaro, Moraes se manifestou no Twitter mais cedo, quando Bolsonaro já havia feito ameaças à Corte no discurso de Brasília. "Nesse Sete de Setembro, comemoramos nossa Independência, que garantiu nossa Liberdade e que somente se fortalece com absoluto respeito a Democracia", escreveu Alexandre de Moraes.

Críticas de Celso de Mello

Procurados, ministros da Corte não quiseram fazer comentários públicos, pois preferem aguardar o pronunciamento de Fux. Quem se manifestou, porém, foi o ex-ministro Celso de Mello, que deixou a corte no ano passado. Para o ex-decano, os discursos de Bolsonaro foram "ofensivos e transgressores da autonomia institucional do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, incompatíveis  com os padrões mais elevados da Constituição democrática que nos rege".

"Bolsonaro degradou-se, ainda mais, em sua condição política de Presidente da República e despojou-se de toda respeitabilidade que imaginava possuir! Essa conduta de Bolsonaro revela a figura sombria de um governante que não se envergonha de desrespeitar e vilipendiar o sentido essencial das instituições da República! 

É preciso repelir, por isso mesmo, os ensaios autocráticos e os gestos e impulsos de subversão da institucionalidade praticados por aqueles que exercem o poder!", disse Celso de Mello, em manifestação nesta terça-feira.

Celso de Mello citou também uma frase do ex-ministro Aliomar Baleeiro, do Supremo Tribunal Federal, segundo quem, enquanto houver cidadãos dispostos a submeter-se e a curvar-se ao arbítrio e à prepotência do poder, sempre haverá vocação de ditadores.

A resposta do povo brasileiro, segundo Celso de Mello, só pode ser uma: "as tentações autoritárias e as práticas governamentais abusivas que degradam e deslegitimam o sentido democrático das instituições e a sacralidade da Constituição traduzem justa razão para a cidadania, valendo-se dos meios legítimos proporcionados pela Constituição da República, insurgir-se, por intermédio dos Poderes Legislativo e Judiciário,  contra os excessos governamentais e o arbítrio dos governantes indignos".

Breno Pires, de Brasília, para O Estado de S.Paulo, em 07 de setembro de 2021 | 19h29

7 de Setembro

O que fazer quando um presidente se comporta como terrorista e impõe terror de Estado sobre seus opositores na data cívica mais simbólica do país?

Bolsonaro conversa com o ministro da Defesa, general Braga Netto em evento no Rio de Janeiro EFE/ André Coelho (ANDRE COELHO / EFE)

Não sabemos o que será o Brasil depois deste 7 de Setembro. É como se vivêssemos uma contagem regressiva para algo muito pior do que o muito pior que já vivemos. O “nós”, aqui, é o nós que não compactua com genocídio nem com destruição da Amazônia nem de outros ecossistemas nem com o crime de quadrilhas chamado “rachadinhas” nem com corrupção na compra de vacinas nem com disseminação do coronavírus para produzir “imunidade de rebanho” nem com o extermínio da democracia nem com rasgar a Constituição. Nós que não somos bolsonaristas nem antes de Bolsonaro, nem com Bolsonaro nem depois dele. Estabelecido o “nós”, o que temos para hoje?

Bolsonaro é preguiçoso. Como ele já tinha provado em quase 30 anos como parlamentar, sugando dinheiro público sem aprovar um único projeto relevante para o país, e continuou provando após se tornar presidente, Bolsonaro tem alergia a trabalho. Bolsonaro gosta de ficar berrando e fazendo arminha com os dedos, nas ruas e nas redes sociais. Semeando o ódio, em campanha permanente para se manter primeiro no Congresso, agora no governo. Ninguém nunca ganhou tão bem apenas berrando e promovendo violência, destruição e morte.

Bolsonaro possivelmente é corrupto. Há evidências robustas para suspeitar que Bolsonaro colocou seus filhos na política para fazer dinheiro para o clã. É para onde todas as investigações sobre o esquema criminoso das “rachadinhas” nos gabinetes dos filhos apontam, com vários coletores ligados à família atuando, como uma quadrilha.

Bolsonaro é, senão miliciano, intimamente ligado às milícias. Há declarações públicas dele e de seus filhos enaltecendo milicianos notórios. Assassinos, bem entendido, o principal deles possivelmente executado em operação policial. Há medalhas dada a milicianos assassinos. Há falas, há atos e há fatos. Sua eleição acelerou a conversão de parte das polícias em milícias, como ficou evidente em vários episódios nos últimos mais de dois anos e na recente adesão às manifestações golpistas deste 7 de Setembro.

Bolsonaro é apoiado pelos maiores destruidores da Amazônia e de outros ecossistemas, assim como de seus povos: grileiros (ladrões de terras públicas recentemente beneficiados na aprovação da “lei da grilagem” pela Câmara de Deputados), garimpeiros, madeireiros e agentes de empresas transnacionais. Ao “passar a boiada”, fragilizando e militarizando a fiscalização, incitando a invasão de terras públicas protegidas, destruindo a legislação ambiental, avançando com projetos de lei que permitem o avanço sobre as áreas de conservação, tudo isso apoiado pela vasta banda podre do Congresso ligada ao ruralismo, Bolsonaro acelerou escalada da maior floresta tropical do mundo rumo ao ponto de não retorno. As pesquisas mais recentes já mostram que a floresta emite mais carbono do que absorve, o que significa que a Amazônia começa a virar problema em vez de solução para o colapso climático provocado por ação humana.


Bolsonaro liderou a execução de um plano de disseminação do coronavírus para supostamente obter “imunidade de rebanho”. A ação genocida foi comprovada pelo estudo de mais de 3 mil normas federais realizado pela Universidade de São Paulo e Conectas Direitos Humanos. Nisso resultaram até hoje quase 600 mil vidas a menos, quase 600 mil pessoas que faltam para todos que as amavam, quase 600 mil pessoas que faltam para o país. Quando o Brasil atingiu meio milhão, pesquisas do epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, apontaram que 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o governo federal tivesse tomado medidas de prevenção. Destas, 95 mil poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse comprado vacinas quando estas foram oferecidas. Isso significa o equivalente à população inteira de uma cidade grande. Mais do que uma cidade como Pelotas, por exemplo. Quase uma Santos. Várias comunicações por crimes de genocídio e de extermínio contra Bolsonaro já chegaram ao Tribunal Penal Internacional, pelo menos uma delas vinda do campo da direita.

Bolsonaro deveria ter sido condenado pela Justiça Militar quando planejou um ataque terrorista em que explodiria bombas em quartéis. Não foi. 

Bolsonaro deveria ter sido responsabilizado criminalmente e/ou pelo parlamento em várias manifestações racistas, homofóbicas, misóginas e de incitação à violência que fez durante os vários mandatos como deputado. Não foi. 

Bolsonaro deveria ter sido criminalmente responsabilizado e também pelo parlamento quando fez apologia à tortura e ao torturador durante a abertura do impeachment de Dilma Rousseff. Não foi. 

Bolsonaro já deveria estar respondendo por crime de genocídio nos tribunais brasileiros, mas, protegido por Augusto Aras, o procurador-geral de Bolsonaro que envergonha a República, (ainda) não está. 

Bolsonaro deveria já estar respondendo a processo de impeachment, demandado por mais de uma centena de pedidos engavetados por Arthur Lira (PP) —e, antes dele, por Rodrigo Maia (sem partido). Não está.

Bolsonaro foi gestado por deformações históricas do Brasil, com destaque para o racismo estrutural e para a impunidade aos crimes da ditadura civil-militar (1964-85). 

Assim, desde 2019, por todas as ações e omissões das elites do país, o Brasil é governado não apenas pelo pior presidente da história de nossa democracia de soluços, mas como um dos piores seres humanos de todos os tempos, e isso disputando com grande concorrência. 

Bolsonaro tem se comportado na vida pública como um criminoso compulsivo. E Bolsonaro é perigoso. O Brasil hoje é governado por um homem muito perigoso. E, neste 7 de Setembro, está determinado a mostrar todo o potencial de seu ódio a tudo o que não é ele mesmo.

Neste 7 de Setembro, Bolsonaro decidiu convocar suas hostes de fiéis para aterrorizar o país. Fez isso porque essa é a única estratégia em que é competente e porque está acuado. Muito acuado. Se ele não aterrorizasse o país na data “cívica” mais simbólica do Brasil, ele estaria exposto muito provavelmente a grandes manifestações de massa pelo seu impeachment, aos gritos de “Fora genocida” e de “Bolsonaro na cadeia”. Bolsonaro então se antecipou, convocando apoiadores que se comportam como crentes políticos para literalmente se armarem e ocuparem as ruas.

Isso porque Bolsonaro chega ao 7 de Setembro com popularidade em queda, parte dos tribunais superiores (finalmente) fazendo seu trabalho de proteger a Constituição, as investigações do esquema de corrupção das rachadinhas cercando cada vez mais seus filhos, o número de mortos se aproximando dos 600 mil, com a variante delta se infiltrando rapidamente pelo país, o desemprego corroendo a vida de mais de 14 milhões de pessoas, a inflação aumentando junto com o número de famintos e nenhum milagre no horizonte da reeleição em 2022. Para barrar seu impeachment no Congresso, Bolsonaro tem alimentado os deputados do Centrão com vários dígitos de dinheiro público. Mas Bolsonaro conhece os feitos de sua mesma matéria —e portanto sabe que não dá para confiar nos aliados de hoje.

Bolsonaro sabe também que, mesmo que consiga produzir imagens de grandes manifestações a seu favor no 7 de Setembro, o que possivelmente conseguirá, hoje seus apoiadores são minoria no Brasil. A maioria da população brasileira, como diferentes pesquisas mostraram, não quer Bolsonaro. O que Bolsonaro controla hoje é uma minoria de iguais, que já era bolsonarista antes de Bolsonaro aparecer para lhes dar nome. Parte dela por várias razões que podem ser encontradas nas deformações da democracia brasileira e na desigualdade abissal do país, parte delas, como sua base na Amazônia, porque se beneficia amplamente de Bolsonaro no poder, aumentando seu patrimônio com terra e recursos públicos do qual se apropria com o apoio do governo federal miliciarizado.

Bolsonaro também pode contar com a maior parte da elite econômica do país, a mesma parcela que o gestou e o apoiou na presidência. A vergonhosa novela das cartas e manifestos do tal do “pib” mostra que estão do lado que sempre estiveram, os dele mesmos. O país é seu quintal de extração e o povo, carne barata. A única diferença entre os que se recusaram a dizer qualquer coisa e os que disseram quase nada é que uns já acham que Bolsonaro deu os lucros que tinha que dar, destruiu os direitos e as leis que precisam ser destruídas para que possam lucrar mais, abriu a cerca para iniquidades até então impensáveis e, a partir de agora, o tiro pode sair pela culatra e, em vez de matar indígenas e pretos, pode atingir de raspão suas contas bancárias. Outros acham que ainda dá para massacrar o país mais um pouco, ainda tem linha no anzol bolsonarista para mais umas maldades da qual o país vai precisar de décadas para se recuperar mas que vai fazer mais alguns bilionários e supermilionários. Esperar que emerja algo minimamente decente da parcela das elites econômicas que controlam o país desde as capitanias hereditárias motivadas apenas pela extração e pelo lucro é ser mais “ingênuo” do que aqueles que afirmam ter votado em Bolsonaro porque achavam que ele era honesto e levaria gente honesta para o governo. Ou que seria possível controlá-lo.

Bolsonaro tem apoio, mas hoje é minoritário. Assim, o que ele tem para o momento é impor o terror, lição que aprendeu com o Exército ainda menino, quando as tropas da ditadura caçavam opositores para torturar e executar na região em que vivia, e pós graduou-se já como membro oficial do Exército, ao planejar um ataque terrorista e se safar para iniciar uma carreira de deputado. Na preparação para este 7 de Setembro, para Bolsonaro, mais importante do que demonstrar força era anular a resistência a ele que se organizava para ocupar as ruas pelo impeachment. Mais importante do que encher as ruas com seus iguais, é impedir que a oposição o faça. Bolsonaro quase certamente conseguiu.

Tudo indica que parte significativa de opositores não irá às ruas neste 7 de Setembro por uma razão bastante legítima: o medo de morrer por balas disparadas por seguidores convocados por Bolsonaro, sejam eles civis ou policiais militares. Chegamos a esse ponto. É esse o tamanho do abismo. E se alargando. O golpe já foi dado, como já escrevo há muito tempo, e vai se ampliando dia a dia. O que ainda não está dando é até onde pode chegar. E é com isso que Bolsonaro está jogando para se manter no poder. Ameaça chegar mais longe, ameaça terminar de arrebentar as instituições —e talvez consiga. Num país em que cidadãos que se opõem ao presidente não podem ir às ruas se manifestar na data mais importante do calendário oficial porque podem ser mortos por apoiadores instigados pelo presidente já não há mais democracia. É preciso reconhecer isso para ser capaz de barrar a ampliação do projeto autoritário.

O que Bolsonaro está dizendo é que o pouco que restou de democracia no Brasil não será capaz de impedi-lo de dar sequência ao golpe em curso. É este o impasse deste 7 de Setembro. Ele está testando. Como fez Donald Trump antes dele, com as consequências que sabemos, num país com instituições muito mais sólidas. Bolsonaro está pagando para ver.

O que fazer diante desse ultimato em que aquele que perde apoio nas urnas tenta se manter no poder pela força?

Cada um se posicionar e fazer a parte que lhe cabe. E, principalmente, as instituições que ainda resistem usar o poder constitucional que ainda tem. E a imprensa cumprir o seu dever com a responsabilidade que lhe cabe num projeto democrático, mas que com frequência é esquecida em nome de interesses estranhos ao jornalismo. Este é um momento crucial. E não há manual para enfrentá-lo. Nem quem viveu a ditadura civil-militar está preparado para responder ao horror que é ter um homem que se comporta como terrorista na presidência. Mas é isso o que vivemos hoje no Brasil. A forma como Bolsonaro preparou o 7 de Setembro pode ser enquadrada como terrorismo de Estado.

É importante reconhecer que Bolsonaro já conseguiu parte do seu objetivo, o de impedir grandes manifestações de oposição contra ele. A esquerda está dividida sobre ir às ruas ou não neste 7 de Setembro. Não é impossível, mas é improvável haver um número maior de opositores do que de bolsonaristas. Pela ameaça explícita, Bolsonaro já conseguiu garantir que a realidade evidenciada pelas pesquisas, a de que hoje ele só é apoiado por uma minoria, seja distorcida nas ruas. Como a manipulação é central em seu modo de operar, ele está preparando mais uma, ao buscar simular que tem a adesão da maioria da população pela imagem de uma rua cheia e que a oposição a ele é minoritária ou covarde porque grande parte está preferindo ficar em casa porque tem medo de morrer pelas balas de seus apoiadores ou da parte miliciarizada de policiais que o apoiam. É provável que ele obtenha imagens assim manipuladas para cantar vitória em São Paulo e também em Brasília.

É importante compreender que Bolsonaro conseguiu reprimir parte das manifestações contra ele no grito não porque é esperto, mas porque é armado. Bolsonaro impôs e segue impondo o terror contra o conjunto da população que por dever constitucional deveria garantir a proteção. As instituições deveriam saber o que fazer com um presidente que se comporta como terrorista contra seu próprio povo. Espero que saibam.

Não é fácil, como cidadão, decidir ir ou não ir às ruas neste 7 de Setembro contra Bolsonaro. Como colunista de opinião, penso que, apesar de ser muito difícil analisar uma história em movimento acelerado por um presidente que se comporta como terrorista, tenho o dever ético de me posicionar claramente. Não como dona de nenhuma verdade, mas tentando fazer o melhor que posso com os fatos disponíveis. Prefiro errar por ação do que por omissão. E sei que, no dia seguinte ou até mesmo na noite do mesmo dia, aparecerão vários analistas de retrovisor para fazer a análise perfeita dos fatos, a análise de quem sabe e de quem entendeu e anteviu e previu e concluiu e acertou. Não como se estivessem analisando o que passou, o que é totalmente legítimo, mas afirmando que já previam tudo o que iria acontecer só preferiram não contar para ninguém para não estragar a surpresa.

Respeito muito profundamente os movimentos e as pessoas que defendem ir às ruas no 7 de Setembro em nome da resistência a Bolsonaro e a seu governo autoritário. E respeito muito profundamente o argumento de que os mais pobres, e no Brasil a maioria dos mais pobres é preta, já estão sendo mortos nas periferias há muito. Ainda assim, penso que neste momento seria melhor que Bolsonaro encontre as ruas vazias. Que seus opositores, hoje majoritários, fiquem em casa ou reunidos em espaços onde tenham chances de se proteger. Desta vez, não estamos enfrentando adversários políticos, mas um presidente que se comporta como terrorista, com a máquina do Estado a seu favor e parte das polícias agindo como milícias. É de outra ordem. Penso que não dá para botar o corpo diante de fanáticos armados. Pode não acontecer nada. Pode acontecer tudo. Uso o princípio da precaução. Basta um dos seguidores de Bolsonaro disposto a mostrar serviço, determinado a se tornar herói, para acontecer uma tragédia.

Há evidências mais do que suficientes de que as forças de segurança, que deveriam manter a integridade dos cidadãos e assegurar o direito constitucional à manifestação, em parte se miliciarizaram. Há fatos mais do que suficientes para mostrar que parte das PMs não obedece aos governadores. Há escassas garantias de que as polícias estejam dispostas a proteger aqueles que se opõem a Bolsonaro neste 7 de Setembro. E, assim, as manifestações de oposição correm o risco de — sob qualquer pretexto, e sempre há um— enfrentar também policiais disparando contra cidadãos.

A democracia existe para que as leis —e não as armas— regulem as relações. Bolsonaro conclamou seus apoiadores a engatilhar as armas para destruir a Constituição. Pelo terror, o presidente tomou conta do campo e determinou as regras do 7 de Setembro. Penso que pode ser mais potente neste momento mostrar —e declarar— ao mundo que o direito constitucional de manifestação foi sequestrado no Brasil para aqueles que se opõem a Bolsonaro. E foi sequestrado pela ameaça e pela coerção. É necessário que isso seja estabelecido e reconhecido dentro e fora do país. Bolsonaro pode não escolher (ainda) quando fazemos manifestações contra ele, mas está escolhendo quando não podemos fazer, ao apropriar-se do 7 de Setembro pela imposição do terror.

Respeito quem se arrisca a morrer para que Bolsonaro e sua turma não reinem sozinhos nas ruas no 7 de Setembro, mas acredito que esse país já têm mártires demais. Esse país produz mártires todos os dias. Para enfrentar Bolsonaro e tudo o que ele representa precisamos de gente viva. Para refundar o país precisamos de gente viva. A luta é hoje e terá que seguir no dia 8 e adiante. A luta, que para muitos é sempre, desta vez será longa para quase todos.

O que chamamos de povo brasileiro não é composto por covardes. Ao contrário. É resultado de uma monumental resistência cotidiana contra todas as formas de morte. O maior exemplo dessa monumental resistência é, neste momento, o acampamento dos povos originários em Brasília. Os indígenas, que resistem ao extermínio literalmente há 500 anos, chegaram ao centro do poder nas últimas semanas para o julgamento do “marco temporal”, uma das teses mais perversas de uma história marcada pela perversão. Pelo “marco temporal”, apenas povos que estavam em seus territórios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, teriam direito a suas terras ancestrais. Acontece que, se os povos não estavam em suas terras naquela data é porque tiveram de deixá-las para não ser mortos por grileiros (ladrões de terras públicas), garimpeiros, madeireiros ou empresas transnacionais. Foram obrigados a deixar suas terras para não ter sua comunidade inteira assassinada e, agora, legisladores alegam que perderam o direito sobre sua casa porque não estavam lá.

Como o julgamento no Supremo Tribunal Federal se prolongou, parte das lideranças segue acampada. Mais chegaram para a marcha das mulheres indígenas, que se inicia em 8 de setembro. É essencial que as instituições que ainda param em pé assegurem a proteção do acampamento de ataques bolsonaristas —e que a imprensa se mantenha vigilante, pronta para relatar ao mundo qualquer tentativa de massacre dos povos originários.

Há resistência cotidiana a Bolsonaro e aos bolsonaristas por todos os lados. Mas é preciso de mais apoio para aqueles que estão na linha de frente da luta não somente em 7 de Setembro, mas há muito. Nas últimas semanas, algumas das pessoas mais corajosas atuando hoje no Brasil foram colocadas em segurança para não serem mortas, já que as recentes manifestações presidenciais para o 7 de Setembro intensificaram ainda mais a violência, especialmente na Amazônia. Se ampliam no Brasil as redes de proteção tecidas pela sociedade para aqueles que estão no topo da lista de marcados para morrer. Não foi fácil para nenhuma destas pessoas decidir deixar temporariamente seu território de pertencimento, onde sofrem atentados e se arriscam dia após dia. Mas entenderam que para lutar é preciso estar vivo. Retiradas estratégicas são provas de coragem e de inteligência, só os brutos ganham na força bruta. A luta está longe de acabar e precisamos de todas as pessoas. Se há algo de que o Brasil não precisa é de mais cadáveres. Não podemos permitir que nos usem para justificar a violência que Bolsonaro e os seus escolheram como forma de vida e de reprodução do poder.

O 7 de Setembro sempre foi enaltecido pelos opressores. Durante a ditadura, as escolas eram obrigadas a desfilar pela pátria, numa pátria aviltada pelos generais golpistas, enquanto opositores eram torturados e executados por agentes do Estado nas dependências de órgãos de Estado obedecendo a uma política de Estado. Deixemos a data de nossa tragicômica independência para os violentos. Este 7 de Setembro em que a independência foi anunciada pelo descendente daqueles que iniciaram uma nação fundada sobre o extermínio primeiro dos indígenas, depois dos negros escravizados. Este 7 de Setembro em que Dom Pedro I declarou o Brasil independente de Portugal quando viajava montado sobre uma mula e prostrado por diarreia. Nossos símbolos são outros e ecoam uma resistência de 500 anos.

Ocupar as ruas é vital para qualquer movimento de resistência. É momento de encontro, é momento de declaração de princípios, é momento de fazer laços. É momento de fazer comunidade para lutar pelo comum. Neste 7 de Setembro, porém, há um presidente que se comporta como terrorista determinando as regras. E ele controla a máquina de Estado. Nós, que nos opomos a Bolsonaro, não lutamos um dia só. Mas todos os dias. Estaremos em pé em 7 de Setembro. E estaremos em pé nos dias seguintes. O principal ato de resistência no Brasil é ficar vivo para seguir lutando.

Eliane Brum, a autora deste artigo, é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

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