quarta-feira, 8 de setembro de 2021

7 de setembro: atos mostram Bolsonaro isolado e dificultam ainda mais agenda do governo, dizem cientistas políticos

As manifestações deste 7 de setembro mostraram um Jair Bolsonaro capaz de mobilizar as ruas, mas não de ampliar sua base de apoio, avaliam cientistas políticos.

Jair Bolsonaro acena a apoiadores durante protesto de 7 de setembro em Brasília (AFP)

Segundo eles, os discursos do presidente nos atos devem esgarçar ainda mais a relação entre o Executivo e os demais Poderes da República, dificultando o avanço da agenda do governo e a probabilidade de reeleição.

Neste cenário, os analistas avaliam que todos os olhos estarão voltados para as reações do Congresso e do Supremo a partir desta quarta-feira (8/9). E acreditam que um processo de impeachment, até então improvável, não pode agora ser descartado.

Grupos bolsonaristas se dividem entre euforia e frustração com manifestações

"O fato de que Bolsonaro, com esse discurso golpista e criminoso seja bem sucedido em levar as pessoas para a rua é muito preocupante", considera a cientista política Carolina Botelho, pesquisadora do Mackenzie e da UERJ.

"Por outro lado, não se vê uma ampliação da base — são os mesmos 20% a 25% [da população] que vemos consolidado desde dezembro. É um grupo coeso, firme e que deve seguir com ele até 2022, mas não vejo probabilidade dessa base aumentar."

Essa é também a avaliação de Creomar de Souza, consultor de risco político e fundador da Dharma Politics. "Se o presidente queria uma foto para dizer que conta com apoio popular, ele conseguiu. A relação dele com seu próprio eleitorado parece bastante solidificada", diz o analista.

Souza destaca, no entanto, que esse núcleo duro é insuficiente para garantir a reeleição de Bolsonaro, considerando um cenário de normalidade, em que as eleições ocorram no próximo ano dentro das regras estabelecidas pelo jogo democrático.

"O presidente hoje tem uma dificuldade de tracionar, de falar para além da bolha. E eu creio que os atos desta terça-feira colocam ele mais dentro dessa bolha. Mas ele dá sinais de não se incomodar com isso e de não ter nenhum problema em constranger os outros entes institucionais para que o jogo seja jogado a partir das regras dele."

Num cartaz em inglês, manifestante pede a destituição dos ministros do STF no protesto em São Paulo (AFP)

Agenda do governo ameaçada

Para o consultor de risco político, os protestos do Dia da Independência tendem a dificultar ainda mais um diálogo entre o presidente e as demais forças políticas.

"O governo tem uma série de dilemas muito importantes para serem encaminhados nos próximos dias e não se sabe se ele vai contar com a boa vontade de outros entes institucionais para levar essas pautas à frente", diz Souza.

Ele cita como exemplo a questão dos precatórios — um montante de R$ 90 bilhões em dívidas do governo com indivíduos e empresas, com decisão judicial definitiva —, cujo pagamento integral ou parcelado está no centro da discussão para viabilizar o Orçamento federal para 2022.

"Havia uma costura com o STF, que estava disposto a ajudar o governo a equacionar o problema", lembra Souza. "Isso agora não deve prosperar."

O governo tinha a expectativa de obter um aval para parcelar os precatórios para conseguir espaço fiscal para turbinar o Bolsa Família, de olho na reeleição. O parcelamento é visto por muitos analistas, no entanto, como uma forma de calote, já que as dívidas têm decisão definitiva da Justiça.

"Sem a reformulação do Bolsa Família, o presidente corre o risco de ter mais erosão de popularidade", considera Souza. "Para além disso, o governo tem outras agendas a serem encaminhadas, desde o combate à pandemia até a contenção da inflação, e tudo isso passa pelo diálogo com os outros entes."

Público na Avenida Paulista foi estimado em 125 mil pessoas pela Secretaria de Segurança Pública (AFP)

Escalada da crise e reação dos poderes

Para Claudio Couto, professor de ciência política da FGV (Fundação Getulio Vargas), os protestos deste 7 de setembro foram dentro do esperado — grandes, particularmente na Avenida Paulista, mas sem surpresa, diante de tanto tempo de preparação e investimento de recursos.

"Agora, se em termos de tamanho os atos foram dentro do esperado, Bolsonaro conseguiu escalar a crise política em muitos patamares", avalia Couto, citando a sinalização do presidente de que não vai mais acatar decisões de Alexandre de Moraes e a ameaça embutida no discurso de que o ministro do STF deve "se enquadrar ou pedir para sair".

"Esse tipo de afirmação é de uma gravidade imensa: ele está dizendo que o Executivo não acatará decisões do Judiciário e de sua Suprema Corte. Isso é muito sério", considera o analista.

"Chegamos num nível de enfrentamento com os outros poderes em que não há mais condições de retorno. Passamos do ponto de não retorno e, se não houver uma reação muito forte do Congresso Nacional em relação a isso, pautando o impeachment, vamos ficar numa situação muito perigosa."

Para Couto, os protestos desta terça podem mudar a correlação de forças com relação ao impedimento presidencial. "Até ontem, certamente não tinha clima [para o impeachment], mas não sei se amanhã não haverá, depois do que aconteceu nesta terça", diz o analista.

"O que aconteceu nesta terça é de uma gravidade absurda. É o momento mais grave que já vivemos no país desde a volta da democracia — talvez desde o atentado do Riocentro", acrescenta, citando episódio ocorrido em 1981, quando setores do Exército Brasileiro descontentes com a abertura democrática tentaram realizar um atentado a bomba num evento comemorativo do Dia do Trabalhador.

"Uma situação desse tipo tem a capacidade de talvez produzir uma mudança no humor do Congresso", considera o analista, acrescentando que a postura adotada pelos governadores depois do dia de hoje também deve ser determinante para o reposicionamento do Legislativo.

Carolina Botelho, do Mackenzie e da UERJ, também avalia que a hipótese de impeachment não pode ser descartada.

"Nesta semana, Gilberto Kassab falou em entrevista que, se Bolsonaro aumentasse a disposição golpista, ele — que é um cara muito importante e que precisa ser mantido perto num presidencialismo de coalizão — apoiara o impeachment. Outros protagonistas da política estão falando o mesmo. Então é óbvio que esta carta não está descartada", diz a cientista política.

Ainda na terça-feira, o PSDB informou que o presidente do partido, Bruno Araújo, convocou reunião extraordinária da executiva para discutir a posição da legenda sobre abertura de impeachment.

O tucano João Doria, governador de São Paulo, manifestou-se pela primeira vez pelo impeachment de Bolsonaro. "Minha posição é pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro — depois do que ouvi hoje ele claramente afronta a Constituição", afirmou.

Também o presidente do Solidariedade, Paulinho da Força, se manifestou na terça à noite a favor do impeachment. "Na próxima semana, vou reunir a executiva do Solidariedade para debatermos o posicionamento do partido sobre abertura do processo de impeachment de Bolsonaro", escreveu o político em sua conta no Twitter. "Mais uma vez, o presidente afrontou a democracia e deu provas de que não vai parar com os ataques às instituições."

A consultoria de risco político Eurasia, por sua vez, continua vendo a hipótese de impeachment como pouco provável.

"As chances de que isso ocorra são muito baixas. Com 30% de apoio e 14 meses até as eleições do próximo ano, não há condições políticas para um impeachment", escreveram os analistas Christopher Garman e Daniela Teles, em relatório distribuído na terça-feira à noite.

"O mesmo vale para um colapso democrático, dada a robusta estrutura institucional do Brasil. Mas o risco de violência em protestos futuros persistirá em meio ao que será uma eleição muito tensa."

Thais Carrança, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 08.09.2021

terça-feira, 7 de setembro de 2021

A força do bolsonarismo revela sua maior fragilidade

“Eu quase de nada sei, mas desconfio de muita coisa.” (Guimarães Rosa)

Como se esperava, o 7 de setembro é a maior expressão do bolsonarismo nas ruas. Especular números e fotos aéreas é, porém, aceitar a cilada com o que o presidente pretenderá manipular a opinião pública. Mais expressivo é explicitar métodos e estilos: a mobilização patrocinada por recursos obscuros, a disposição de botar tudo abaixo, a antipolítica e a opção preferencial pelo caos são marcas de sua política.

A estética é bruta, a trilha sonora é a fúria; os alvos: o STF e os fantasmas forjados pela ultradireita internacional. A truculência como gramática foi o meio e a mensagem dos manifestantes e do presidente. E, com isso, a insegurança e a impressão de um possível cheiro de pólvora no ar cobrem o país de temores. Despertar o medo é a estratégia para acuar os adversários.

Porém, foi mostrando sua força que o bolsonarismo revelou sua fragilidade. Ao lado do presidente há uma massa disforme, sem organicidade, agenda, visão de longo prazo. Personagens revoltosos que expressam todo o tipo de intolerância: negacionismo, fundamentalismo religioso, medievalismo, o tradicional farisaísmo nacional. A triste expressão da “nova política” num momento em que nos horizontes do Planalto Central não há futuro.

Antecipando-se a constrangimentos desse tipo, setores modernos da economia e da sociedade afastaram-se, ainda mais, do presidente; sabe-se também do pouco prestígio internacional de que goza Jair Bolsonaro. Os números enganam viciados na objetividade, os fatos, porém, demostram que as manifestações gritaram o isolamento de uma pequena multidão. Uma ilha, uma bolha, onde mais significativo que os presentes foram as ausências.

Bolsonaro, porém, preferirá ignorar a tudo e posar numa foto que não existiu. É seu jogo: radicalizar sua massa e utilizar o poder e o cargo de que dispõe e, então, expor o País a ameaças e bravatas, como, por exemplo, convocar o Conselho da República para mostrar-lhes “o caminho”, sem que saiba ao certo qual o caminho.

O quadro se apresenta ainda sensível e perigoso: afinal, Bolsonaro e seus radicais cruzaram (ou não) o tal Rubicão da democracia? Não cabe tergiversar, como reagirão as instituições? E como reagirá o fragmentado e disperso antibolsonarismo, principal força política do País, dividida em interesses eleitorais diversos. Perceberá que a polarização de fato existente é de Bolsonaro com a Nação? O 7 de setembro trouxe o desafio do dia seguinte: é preciso união para pôr freio, a tempo, a um ônibus em carreira e desgovernado.

Carlos Melo, o autor deste artigo, é cientista político e Professor do Insper. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, online, em 07.09.21, às 13h06

Ministros do STF se reúnem após declarações de Bolsonaro e Fux fará pronunciamento em sessão

Ao longo do Dia da Independência, os ministros acompanharam as manifestações que, nos bastidores, avaliaram como eleitoreiras, mas, ainda assim, bastante graves

Após o presidente Jair Bolsonaro ameaçar descumprir decisões judiciais e pedir a renúncia do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), neste 7 de Setembro, o presidente da Corte, Luiz Fux, fará um pronunciamento em nome dos integrantes da corte na próxima sessão, marcada para esta quarta-feira, 8. O teor da manifestação do presidente do Supremo foi debatido entre todos os integrantes da Corte, no início da noite desta terça-feira.

Ao longo do Dia da Independência, os ministros acompanharam as manifestações que, nos bastidores, avaliaram como eleitoreiras, mas, ainda assim, bastante graves. Um integrante, reservadamente, disse acreditar que as falas são "bravatas".

A interpretação dos magistrados ouvidos pelo Estadão foi de que Bolsonaro aprofunda as ameaças que já vinha fazendo nos últimos dias - o que, em si, não é uma novidade. Para esses ministros, os atos de 7 de Setembro serviram de palanque eleitoral do presidente, em que a sua equipe coletou imagens e discursos para exibição nas eleições de 2022.

Fux

O Supremo Tribunal Federal (STF), presidido pelo ministro Luiz Fux, zela pelo cumprimento da Constituição

A um interlocutor, um ministro da Corte falou que a única forma de destituir um ministro do Supremo é a aprovação de um pedido de impeachment no Senado Federal. O pedido encaminhado por Bolsonaro para o impeachment de Alexandre de Moraes já foi arquivado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco

O presidente Jair Bolsonaro durante discurso em Brasília neste 7 de setembro Foto: Sergio Lima / AFP

Ameaças contra Moraes

Diante de apoiadores em São Paulo, Bolsonaro disse que não vai cumprir mais decisões de Moraes - responsável, como relator de inquéritos no Supremo, por ordens de prisão de bolsonaristas que tramavam contra o Poder Judiciário. 

"Temos um ministro dentro do Supremo... ou esse ministro se enquadra, ou ele pede para sair. Não se pode admitir que uma pessoa apenas... um homem apenas turve a nossa liberdade. Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir. Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos... Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha. Deixe de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo. Mais do que isso, nós devemos, sim, porque eu falo em nome de vocês, determinar que todos os presos políticos sejam postos em liberdade", disse Bolsonaro.

O presidente disse também que ele e seus apoiadores não vão mais "admitir que pessoas como Alexandre de Moraes continuem a açoitar a nossa democracia e desrespeitar a nossa Constituição". 

Além disso, Bolsonaro ameaçou não aceitar o resultado das eleições presidenciais em 2022, que chamou de farsa, diante da rejeição à proposta de instituição de comprovantes impressos de votos. "Não podemos ter eleição em que pairem dúvidas sobre os eleitores. Nós queremos eleições limpas, auditáveis e com contagem pública dos mesmos. Não posso participar de uma farsa como essa patrocinada ainda pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral", afirmou.

Alvo preferencial dos ataques de Bolsonaro, Moraes se manifestou no Twitter mais cedo, quando Bolsonaro já havia feito ameaças à Corte no discurso de Brasília. "Nesse Sete de Setembro, comemoramos nossa Independência, que garantiu nossa Liberdade e que somente se fortalece com absoluto respeito a Democracia", escreveu Alexandre de Moraes.

Críticas de Celso de Mello

Procurados, ministros da Corte não quiseram fazer comentários públicos, pois preferem aguardar o pronunciamento de Fux. Quem se manifestou, porém, foi o ex-ministro Celso de Mello, que deixou a corte no ano passado. Para o ex-decano, os discursos de Bolsonaro foram "ofensivos e transgressores da autonomia institucional do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, incompatíveis  com os padrões mais elevados da Constituição democrática que nos rege".

"Bolsonaro degradou-se, ainda mais, em sua condição política de Presidente da República e despojou-se de toda respeitabilidade que imaginava possuir! Essa conduta de Bolsonaro revela a figura sombria de um governante que não se envergonha de desrespeitar e vilipendiar o sentido essencial das instituições da República! 

É preciso repelir, por isso mesmo, os ensaios autocráticos e os gestos e impulsos de subversão da institucionalidade praticados por aqueles que exercem o poder!", disse Celso de Mello, em manifestação nesta terça-feira.

Celso de Mello citou também uma frase do ex-ministro Aliomar Baleeiro, do Supremo Tribunal Federal, segundo quem, enquanto houver cidadãos dispostos a submeter-se e a curvar-se ao arbítrio e à prepotência do poder, sempre haverá vocação de ditadores.

A resposta do povo brasileiro, segundo Celso de Mello, só pode ser uma: "as tentações autoritárias e as práticas governamentais abusivas que degradam e deslegitimam o sentido democrático das instituições e a sacralidade da Constituição traduzem justa razão para a cidadania, valendo-se dos meios legítimos proporcionados pela Constituição da República, insurgir-se, por intermédio dos Poderes Legislativo e Judiciário,  contra os excessos governamentais e o arbítrio dos governantes indignos".

Breno Pires, de Brasília, para O Estado de S.Paulo, em 07 de setembro de 2021 | 19h29

7 de Setembro

O que fazer quando um presidente se comporta como terrorista e impõe terror de Estado sobre seus opositores na data cívica mais simbólica do país?

Bolsonaro conversa com o ministro da Defesa, general Braga Netto em evento no Rio de Janeiro EFE/ André Coelho (ANDRE COELHO / EFE)

Não sabemos o que será o Brasil depois deste 7 de Setembro. É como se vivêssemos uma contagem regressiva para algo muito pior do que o muito pior que já vivemos. O “nós”, aqui, é o nós que não compactua com genocídio nem com destruição da Amazônia nem de outros ecossistemas nem com o crime de quadrilhas chamado “rachadinhas” nem com corrupção na compra de vacinas nem com disseminação do coronavírus para produzir “imunidade de rebanho” nem com o extermínio da democracia nem com rasgar a Constituição. Nós que não somos bolsonaristas nem antes de Bolsonaro, nem com Bolsonaro nem depois dele. Estabelecido o “nós”, o que temos para hoje?

Bolsonaro é preguiçoso. Como ele já tinha provado em quase 30 anos como parlamentar, sugando dinheiro público sem aprovar um único projeto relevante para o país, e continuou provando após se tornar presidente, Bolsonaro tem alergia a trabalho. Bolsonaro gosta de ficar berrando e fazendo arminha com os dedos, nas ruas e nas redes sociais. Semeando o ódio, em campanha permanente para se manter primeiro no Congresso, agora no governo. Ninguém nunca ganhou tão bem apenas berrando e promovendo violência, destruição e morte.

Bolsonaro possivelmente é corrupto. Há evidências robustas para suspeitar que Bolsonaro colocou seus filhos na política para fazer dinheiro para o clã. É para onde todas as investigações sobre o esquema criminoso das “rachadinhas” nos gabinetes dos filhos apontam, com vários coletores ligados à família atuando, como uma quadrilha.

Bolsonaro é, senão miliciano, intimamente ligado às milícias. Há declarações públicas dele e de seus filhos enaltecendo milicianos notórios. Assassinos, bem entendido, o principal deles possivelmente executado em operação policial. Há medalhas dada a milicianos assassinos. Há falas, há atos e há fatos. Sua eleição acelerou a conversão de parte das polícias em milícias, como ficou evidente em vários episódios nos últimos mais de dois anos e na recente adesão às manifestações golpistas deste 7 de Setembro.

Bolsonaro é apoiado pelos maiores destruidores da Amazônia e de outros ecossistemas, assim como de seus povos: grileiros (ladrões de terras públicas recentemente beneficiados na aprovação da “lei da grilagem” pela Câmara de Deputados), garimpeiros, madeireiros e agentes de empresas transnacionais. Ao “passar a boiada”, fragilizando e militarizando a fiscalização, incitando a invasão de terras públicas protegidas, destruindo a legislação ambiental, avançando com projetos de lei que permitem o avanço sobre as áreas de conservação, tudo isso apoiado pela vasta banda podre do Congresso ligada ao ruralismo, Bolsonaro acelerou escalada da maior floresta tropical do mundo rumo ao ponto de não retorno. As pesquisas mais recentes já mostram que a floresta emite mais carbono do que absorve, o que significa que a Amazônia começa a virar problema em vez de solução para o colapso climático provocado por ação humana.


Bolsonaro liderou a execução de um plano de disseminação do coronavírus para supostamente obter “imunidade de rebanho”. A ação genocida foi comprovada pelo estudo de mais de 3 mil normas federais realizado pela Universidade de São Paulo e Conectas Direitos Humanos. Nisso resultaram até hoje quase 600 mil vidas a menos, quase 600 mil pessoas que faltam para todos que as amavam, quase 600 mil pessoas que faltam para o país. Quando o Brasil atingiu meio milhão, pesquisas do epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, apontaram que 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se o governo federal tivesse tomado medidas de prevenção. Destas, 95 mil poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse comprado vacinas quando estas foram oferecidas. Isso significa o equivalente à população inteira de uma cidade grande. Mais do que uma cidade como Pelotas, por exemplo. Quase uma Santos. Várias comunicações por crimes de genocídio e de extermínio contra Bolsonaro já chegaram ao Tribunal Penal Internacional, pelo menos uma delas vinda do campo da direita.

Bolsonaro deveria ter sido condenado pela Justiça Militar quando planejou um ataque terrorista em que explodiria bombas em quartéis. Não foi. 

Bolsonaro deveria ter sido responsabilizado criminalmente e/ou pelo parlamento em várias manifestações racistas, homofóbicas, misóginas e de incitação à violência que fez durante os vários mandatos como deputado. Não foi. 

Bolsonaro deveria ter sido criminalmente responsabilizado e também pelo parlamento quando fez apologia à tortura e ao torturador durante a abertura do impeachment de Dilma Rousseff. Não foi. 

Bolsonaro já deveria estar respondendo por crime de genocídio nos tribunais brasileiros, mas, protegido por Augusto Aras, o procurador-geral de Bolsonaro que envergonha a República, (ainda) não está. 

Bolsonaro deveria já estar respondendo a processo de impeachment, demandado por mais de uma centena de pedidos engavetados por Arthur Lira (PP) —e, antes dele, por Rodrigo Maia (sem partido). Não está.

Bolsonaro foi gestado por deformações históricas do Brasil, com destaque para o racismo estrutural e para a impunidade aos crimes da ditadura civil-militar (1964-85). 

Assim, desde 2019, por todas as ações e omissões das elites do país, o Brasil é governado não apenas pelo pior presidente da história de nossa democracia de soluços, mas como um dos piores seres humanos de todos os tempos, e isso disputando com grande concorrência. 

Bolsonaro tem se comportado na vida pública como um criminoso compulsivo. E Bolsonaro é perigoso. O Brasil hoje é governado por um homem muito perigoso. E, neste 7 de Setembro, está determinado a mostrar todo o potencial de seu ódio a tudo o que não é ele mesmo.

Neste 7 de Setembro, Bolsonaro decidiu convocar suas hostes de fiéis para aterrorizar o país. Fez isso porque essa é a única estratégia em que é competente e porque está acuado. Muito acuado. Se ele não aterrorizasse o país na data “cívica” mais simbólica do Brasil, ele estaria exposto muito provavelmente a grandes manifestações de massa pelo seu impeachment, aos gritos de “Fora genocida” e de “Bolsonaro na cadeia”. Bolsonaro então se antecipou, convocando apoiadores que se comportam como crentes políticos para literalmente se armarem e ocuparem as ruas.

Isso porque Bolsonaro chega ao 7 de Setembro com popularidade em queda, parte dos tribunais superiores (finalmente) fazendo seu trabalho de proteger a Constituição, as investigações do esquema de corrupção das rachadinhas cercando cada vez mais seus filhos, o número de mortos se aproximando dos 600 mil, com a variante delta se infiltrando rapidamente pelo país, o desemprego corroendo a vida de mais de 14 milhões de pessoas, a inflação aumentando junto com o número de famintos e nenhum milagre no horizonte da reeleição em 2022. Para barrar seu impeachment no Congresso, Bolsonaro tem alimentado os deputados do Centrão com vários dígitos de dinheiro público. Mas Bolsonaro conhece os feitos de sua mesma matéria —e portanto sabe que não dá para confiar nos aliados de hoje.

Bolsonaro sabe também que, mesmo que consiga produzir imagens de grandes manifestações a seu favor no 7 de Setembro, o que possivelmente conseguirá, hoje seus apoiadores são minoria no Brasil. A maioria da população brasileira, como diferentes pesquisas mostraram, não quer Bolsonaro. O que Bolsonaro controla hoje é uma minoria de iguais, que já era bolsonarista antes de Bolsonaro aparecer para lhes dar nome. Parte dela por várias razões que podem ser encontradas nas deformações da democracia brasileira e na desigualdade abissal do país, parte delas, como sua base na Amazônia, porque se beneficia amplamente de Bolsonaro no poder, aumentando seu patrimônio com terra e recursos públicos do qual se apropria com o apoio do governo federal miliciarizado.

Bolsonaro também pode contar com a maior parte da elite econômica do país, a mesma parcela que o gestou e o apoiou na presidência. A vergonhosa novela das cartas e manifestos do tal do “pib” mostra que estão do lado que sempre estiveram, os dele mesmos. O país é seu quintal de extração e o povo, carne barata. A única diferença entre os que se recusaram a dizer qualquer coisa e os que disseram quase nada é que uns já acham que Bolsonaro deu os lucros que tinha que dar, destruiu os direitos e as leis que precisam ser destruídas para que possam lucrar mais, abriu a cerca para iniquidades até então impensáveis e, a partir de agora, o tiro pode sair pela culatra e, em vez de matar indígenas e pretos, pode atingir de raspão suas contas bancárias. Outros acham que ainda dá para massacrar o país mais um pouco, ainda tem linha no anzol bolsonarista para mais umas maldades da qual o país vai precisar de décadas para se recuperar mas que vai fazer mais alguns bilionários e supermilionários. Esperar que emerja algo minimamente decente da parcela das elites econômicas que controlam o país desde as capitanias hereditárias motivadas apenas pela extração e pelo lucro é ser mais “ingênuo” do que aqueles que afirmam ter votado em Bolsonaro porque achavam que ele era honesto e levaria gente honesta para o governo. Ou que seria possível controlá-lo.

Bolsonaro tem apoio, mas hoje é minoritário. Assim, o que ele tem para o momento é impor o terror, lição que aprendeu com o Exército ainda menino, quando as tropas da ditadura caçavam opositores para torturar e executar na região em que vivia, e pós graduou-se já como membro oficial do Exército, ao planejar um ataque terrorista e se safar para iniciar uma carreira de deputado. Na preparação para este 7 de Setembro, para Bolsonaro, mais importante do que demonstrar força era anular a resistência a ele que se organizava para ocupar as ruas pelo impeachment. Mais importante do que encher as ruas com seus iguais, é impedir que a oposição o faça. Bolsonaro quase certamente conseguiu.

Tudo indica que parte significativa de opositores não irá às ruas neste 7 de Setembro por uma razão bastante legítima: o medo de morrer por balas disparadas por seguidores convocados por Bolsonaro, sejam eles civis ou policiais militares. Chegamos a esse ponto. É esse o tamanho do abismo. E se alargando. O golpe já foi dado, como já escrevo há muito tempo, e vai se ampliando dia a dia. O que ainda não está dando é até onde pode chegar. E é com isso que Bolsonaro está jogando para se manter no poder. Ameaça chegar mais longe, ameaça terminar de arrebentar as instituições —e talvez consiga. Num país em que cidadãos que se opõem ao presidente não podem ir às ruas se manifestar na data mais importante do calendário oficial porque podem ser mortos por apoiadores instigados pelo presidente já não há mais democracia. É preciso reconhecer isso para ser capaz de barrar a ampliação do projeto autoritário.

O que Bolsonaro está dizendo é que o pouco que restou de democracia no Brasil não será capaz de impedi-lo de dar sequência ao golpe em curso. É este o impasse deste 7 de Setembro. Ele está testando. Como fez Donald Trump antes dele, com as consequências que sabemos, num país com instituições muito mais sólidas. Bolsonaro está pagando para ver.

O que fazer diante desse ultimato em que aquele que perde apoio nas urnas tenta se manter no poder pela força?

Cada um se posicionar e fazer a parte que lhe cabe. E, principalmente, as instituições que ainda resistem usar o poder constitucional que ainda tem. E a imprensa cumprir o seu dever com a responsabilidade que lhe cabe num projeto democrático, mas que com frequência é esquecida em nome de interesses estranhos ao jornalismo. Este é um momento crucial. E não há manual para enfrentá-lo. Nem quem viveu a ditadura civil-militar está preparado para responder ao horror que é ter um homem que se comporta como terrorista na presidência. Mas é isso o que vivemos hoje no Brasil. A forma como Bolsonaro preparou o 7 de Setembro pode ser enquadrada como terrorismo de Estado.

É importante reconhecer que Bolsonaro já conseguiu parte do seu objetivo, o de impedir grandes manifestações de oposição contra ele. A esquerda está dividida sobre ir às ruas ou não neste 7 de Setembro. Não é impossível, mas é improvável haver um número maior de opositores do que de bolsonaristas. Pela ameaça explícita, Bolsonaro já conseguiu garantir que a realidade evidenciada pelas pesquisas, a de que hoje ele só é apoiado por uma minoria, seja distorcida nas ruas. Como a manipulação é central em seu modo de operar, ele está preparando mais uma, ao buscar simular que tem a adesão da maioria da população pela imagem de uma rua cheia e que a oposição a ele é minoritária ou covarde porque grande parte está preferindo ficar em casa porque tem medo de morrer pelas balas de seus apoiadores ou da parte miliciarizada de policiais que o apoiam. É provável que ele obtenha imagens assim manipuladas para cantar vitória em São Paulo e também em Brasília.

É importante compreender que Bolsonaro conseguiu reprimir parte das manifestações contra ele no grito não porque é esperto, mas porque é armado. Bolsonaro impôs e segue impondo o terror contra o conjunto da população que por dever constitucional deveria garantir a proteção. As instituições deveriam saber o que fazer com um presidente que se comporta como terrorista contra seu próprio povo. Espero que saibam.

Não é fácil, como cidadão, decidir ir ou não ir às ruas neste 7 de Setembro contra Bolsonaro. Como colunista de opinião, penso que, apesar de ser muito difícil analisar uma história em movimento acelerado por um presidente que se comporta como terrorista, tenho o dever ético de me posicionar claramente. Não como dona de nenhuma verdade, mas tentando fazer o melhor que posso com os fatos disponíveis. Prefiro errar por ação do que por omissão. E sei que, no dia seguinte ou até mesmo na noite do mesmo dia, aparecerão vários analistas de retrovisor para fazer a análise perfeita dos fatos, a análise de quem sabe e de quem entendeu e anteviu e previu e concluiu e acertou. Não como se estivessem analisando o que passou, o que é totalmente legítimo, mas afirmando que já previam tudo o que iria acontecer só preferiram não contar para ninguém para não estragar a surpresa.

Respeito muito profundamente os movimentos e as pessoas que defendem ir às ruas no 7 de Setembro em nome da resistência a Bolsonaro e a seu governo autoritário. E respeito muito profundamente o argumento de que os mais pobres, e no Brasil a maioria dos mais pobres é preta, já estão sendo mortos nas periferias há muito. Ainda assim, penso que neste momento seria melhor que Bolsonaro encontre as ruas vazias. Que seus opositores, hoje majoritários, fiquem em casa ou reunidos em espaços onde tenham chances de se proteger. Desta vez, não estamos enfrentando adversários políticos, mas um presidente que se comporta como terrorista, com a máquina do Estado a seu favor e parte das polícias agindo como milícias. É de outra ordem. Penso que não dá para botar o corpo diante de fanáticos armados. Pode não acontecer nada. Pode acontecer tudo. Uso o princípio da precaução. Basta um dos seguidores de Bolsonaro disposto a mostrar serviço, determinado a se tornar herói, para acontecer uma tragédia.

Há evidências mais do que suficientes de que as forças de segurança, que deveriam manter a integridade dos cidadãos e assegurar o direito constitucional à manifestação, em parte se miliciarizaram. Há fatos mais do que suficientes para mostrar que parte das PMs não obedece aos governadores. Há escassas garantias de que as polícias estejam dispostas a proteger aqueles que se opõem a Bolsonaro neste 7 de Setembro. E, assim, as manifestações de oposição correm o risco de — sob qualquer pretexto, e sempre há um— enfrentar também policiais disparando contra cidadãos.

A democracia existe para que as leis —e não as armas— regulem as relações. Bolsonaro conclamou seus apoiadores a engatilhar as armas para destruir a Constituição. Pelo terror, o presidente tomou conta do campo e determinou as regras do 7 de Setembro. Penso que pode ser mais potente neste momento mostrar —e declarar— ao mundo que o direito constitucional de manifestação foi sequestrado no Brasil para aqueles que se opõem a Bolsonaro. E foi sequestrado pela ameaça e pela coerção. É necessário que isso seja estabelecido e reconhecido dentro e fora do país. Bolsonaro pode não escolher (ainda) quando fazemos manifestações contra ele, mas está escolhendo quando não podemos fazer, ao apropriar-se do 7 de Setembro pela imposição do terror.

Respeito quem se arrisca a morrer para que Bolsonaro e sua turma não reinem sozinhos nas ruas no 7 de Setembro, mas acredito que esse país já têm mártires demais. Esse país produz mártires todos os dias. Para enfrentar Bolsonaro e tudo o que ele representa precisamos de gente viva. Para refundar o país precisamos de gente viva. A luta é hoje e terá que seguir no dia 8 e adiante. A luta, que para muitos é sempre, desta vez será longa para quase todos.

O que chamamos de povo brasileiro não é composto por covardes. Ao contrário. É resultado de uma monumental resistência cotidiana contra todas as formas de morte. O maior exemplo dessa monumental resistência é, neste momento, o acampamento dos povos originários em Brasília. Os indígenas, que resistem ao extermínio literalmente há 500 anos, chegaram ao centro do poder nas últimas semanas para o julgamento do “marco temporal”, uma das teses mais perversas de uma história marcada pela perversão. Pelo “marco temporal”, apenas povos que estavam em seus territórios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, teriam direito a suas terras ancestrais. Acontece que, se os povos não estavam em suas terras naquela data é porque tiveram de deixá-las para não ser mortos por grileiros (ladrões de terras públicas), garimpeiros, madeireiros ou empresas transnacionais. Foram obrigados a deixar suas terras para não ter sua comunidade inteira assassinada e, agora, legisladores alegam que perderam o direito sobre sua casa porque não estavam lá.

Como o julgamento no Supremo Tribunal Federal se prolongou, parte das lideranças segue acampada. Mais chegaram para a marcha das mulheres indígenas, que se inicia em 8 de setembro. É essencial que as instituições que ainda param em pé assegurem a proteção do acampamento de ataques bolsonaristas —e que a imprensa se mantenha vigilante, pronta para relatar ao mundo qualquer tentativa de massacre dos povos originários.

Há resistência cotidiana a Bolsonaro e aos bolsonaristas por todos os lados. Mas é preciso de mais apoio para aqueles que estão na linha de frente da luta não somente em 7 de Setembro, mas há muito. Nas últimas semanas, algumas das pessoas mais corajosas atuando hoje no Brasil foram colocadas em segurança para não serem mortas, já que as recentes manifestações presidenciais para o 7 de Setembro intensificaram ainda mais a violência, especialmente na Amazônia. Se ampliam no Brasil as redes de proteção tecidas pela sociedade para aqueles que estão no topo da lista de marcados para morrer. Não foi fácil para nenhuma destas pessoas decidir deixar temporariamente seu território de pertencimento, onde sofrem atentados e se arriscam dia após dia. Mas entenderam que para lutar é preciso estar vivo. Retiradas estratégicas são provas de coragem e de inteligência, só os brutos ganham na força bruta. A luta está longe de acabar e precisamos de todas as pessoas. Se há algo de que o Brasil não precisa é de mais cadáveres. Não podemos permitir que nos usem para justificar a violência que Bolsonaro e os seus escolheram como forma de vida e de reprodução do poder.

O 7 de Setembro sempre foi enaltecido pelos opressores. Durante a ditadura, as escolas eram obrigadas a desfilar pela pátria, numa pátria aviltada pelos generais golpistas, enquanto opositores eram torturados e executados por agentes do Estado nas dependências de órgãos de Estado obedecendo a uma política de Estado. Deixemos a data de nossa tragicômica independência para os violentos. Este 7 de Setembro em que a independência foi anunciada pelo descendente daqueles que iniciaram uma nação fundada sobre o extermínio primeiro dos indígenas, depois dos negros escravizados. Este 7 de Setembro em que Dom Pedro I declarou o Brasil independente de Portugal quando viajava montado sobre uma mula e prostrado por diarreia. Nossos símbolos são outros e ecoam uma resistência de 500 anos.

Ocupar as ruas é vital para qualquer movimento de resistência. É momento de encontro, é momento de declaração de princípios, é momento de fazer laços. É momento de fazer comunidade para lutar pelo comum. Neste 7 de Setembro, porém, há um presidente que se comporta como terrorista determinando as regras. E ele controla a máquina de Estado. Nós, que nos opomos a Bolsonaro, não lutamos um dia só. Mas todos os dias. Estaremos em pé em 7 de Setembro. E estaremos em pé nos dias seguintes. O principal ato de resistência no Brasil é ficar vivo para seguir lutando.

Eliane Brum, a autora deste artigo, é escritora, repórter e documentarista. Autora de sete livros, entre eles Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).

Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

Bolsonarismo dobra a aposta na ousadia, desta vez com um novo elemento: as armas

Caçadores e colecionadores, parte da base do presidente, têm registro de 409.000 armas. Autor de atentado contra o STF em 2020 tinha uma, apreendida antes de ele jogar carro no Ministério da Justiça

Apoiadores de Jair Bolsonaro fazem gesto de arma com as mãos em manifestação de apoio ao presidente, em julho de 2019. (PAULO WHITAKER / REUTERS)

Com apoio de um séquito cego e fiel, o presidente Jair Bolsonaro segue dobrando suas apostas na má condução do país. Em uma de suas jogadas mais ousadas, ele protocolou o pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em 23 de agosto. Feito depois que o ministro incluiu Bolsonaro como investigado no inquérito das fake news, o pedido foi prontamente rejeitado pelo Senado. Agora, o presidente segue incitando seguidores contra a corte, que precisou tomar providências para evitar riscos em 7 de setembro, quando estão previstas manifestações de apoio a Bolsonaro e contra o STF por todo o país.

No Palácio, governistas, militares da ativa e da reserva analisam mais de 100 decisões dos ministros da Suprema Corte, tomadas entre 2019 a 2021 para os pressionar. Ao chamar os ministros para “falar com o povo” no dia 7 de setembro e dizer que “não somos três Poderes, somos dois”, Bolsonaro estica novamente a corda, numa tensão que já é quase palpável. E há mais um elemento nessa receita: armas.

Os discursos de agitadores de Bolsonaro, chamando ações do Supremo de “ditadura da Toga” ecoam nas ações de seus seguidores, como o advogado Luiz Antonio Iurkiewiecz, que em novembro de 2020 viajou de Santa Catarina a Brasília, armado, para atacar o STF. Ele errou o prédio e jogou o carro contra o Ministério da Justiça, mas a investigação do Ministério Público mostra que Iurkiewiecz “pretendia promover um atentado contra o Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de protestar contra o que considera “uma ditadura do Judiciário” e “mostrar a ruptura institucional”.

Falha atrás de falha

Documentos aos quais o EL PAÍS teve acesso com exclusividade mostram que o atentado poderia ter tido consequências mais graves, já que o autor do crime percorreu mais de 1.500 km entre Lajes (SC) e Anápolis (GO), armado com uma espingarda Boito, calibre 12. Ele foi preso em flagrante em Goiás após uma denúncia de que um homem ostentava uma arma em frente a um hotel. A arma era legalizada (SIGMA 1207058), e só ficou apreendida porque o advogado não tinha autorização para transitar com a espingarda.

Pagou fiança, foi solto no mesmo dia e seguiu seu plano de ir até Brasília cometer um atentado contra o Supremo. Sem a arma, ele apelou para o plano B: jogou o carro contra o Palácio da Justiça. O estrago só não foi pior porque o homem errou o cálculo e o carro caiu no espelho d’água de Brasília. Na perícia do carro, alugado e com um adesivo de apoio a Jair Bolsonaro, foram encontrados também uma espada e um porrete.

Atiradores com pouca fiscalização

No celular periciado foi possível ver que o advogado participava de alguns grupos pró-armas, como “Muda Brasil CAC Sul” e “Muda Brasil - Armas”. Mas, apesar disso, nenhuma busca ou apreensão foi solicitada em endereços ligados ao investigado para saber, por exemplo, se ele tinha outras armas. Os CACs, grupo do qual Iurkiewiecz era parte e que é formado por caçadores, atiradores e colecionadores, são a categoria mais beneficiada por decretos que aumentaram o acesso a armas e munições na era Bolsonaro. Hoje há mais CACs armados no Brasil do que militares. Atualmente, o registro do grupo é superior a 409.000; enquanto os militares somam quase 335.000.

A quantidade se aproxima do efetivo das polícias militares nos Estados brasileiros, que registram 416.000, segundo dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Além da radicalização do discurso contra outros poderes da República e de um incentivo por parte do presidente para o uso de armas de fogo para fins políticos, hoje nós temos milhares de armas a mais nas mãos de civis e sinais mais fortes de cooptação de forças federais pelo presidente”, explica Bruno Langeani, advogado e gerente da área de Justiça e Segurança do Instituto Sou da Paz.

Para ele, este caso não pode ser analisado apenas como um carro jogado contra o Palácio da Justiça. É preciso se aprofundar e investigar ameaças reais que podem, ao contrário desta, “dar certo”. “Se alguém que fazia ameaças públicas na internet, participava de vários grupos de CACs e apoiadores do presidente e que publicou posts durante toda a viagem até Brasília, foi desarmado e preso a poucos quilômetros de Brasília e, mesmo assim, conseguiu realizar o atentado, isso nos traz sérias dúvidas sobre a capacidade dos órgãos de inteligência de prevenir ameaças deste tipo”, analisa.

Inicialmente Iurkiewiecz ficou preso em Brasília, depois foi transferido para uma clínica psiquiátrica e recebeu autorização para aguardar o julgamento em casa. Um laudo mostrou que ele estava com o “juízo crítico reduzido”, o que, alegadamente pode ter afetado parcialmente seu entendimento. A análise foi anexada ao processo sobre “tentativa de prática de atentado por inconformismo político”, no âmbito da Lei de Segurança Nacional. Revogada recentemente em partes, a LSN foi muito usada contra adversários políticos de Bolsonaro.

Apesar de o caso deixar claro o risco do acesso a armas por pessoas com “juízo crítico reduzido”, especialmente em um contexto de acirramento de ameaças democráticas, órgãos de inteligência do Governo, como ABIN e PF, não conseguiram se antecipar a esta ameaça. Na investigação, câmeras de monitoramento do Ministério mostram que Iurkiewiecz esteve no prédio dias antes do crime, segundo a PF, para analisar as condições de segurança.

Este “juízo crítico reduzido”, bem como o fato de Luiz ter sido preso em 2016 com munições ilegais, não impediu que ele conseguisse registrar uma nova arma junto ao Exército, em setembro de 2020, dois meses antes do atentado. Questionado sobre como uma pessoa com antecedentes criminais conseguiu ter acesso a uma nova arma, o Exército disse que não é possível responder dentro do período solicitado —data de publicação— mas que responderá assim que possível.

No início de setembro, o deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), se reuniu com a Polícia Rodoviária Federal e o presidente da Associação Pró Armas para reclamar de abordagem a atiradores. O deputado não gostou da ação de oficiais contra CACs que portavam armas em seus carros, que, ficou claro, é importante. Ao fim da reunião, Eduardo disse no Twitter que a “PRF em breve editará um manual para orientar seus policiais sobre abordagem a CACs”.

Radicais no limite

Durante uma live no início de agosto, o presidente Bolsonaro disse que “a hora dele vai chegar”, acusando o ministro do STF Alexandre de Moraes de atuar “fora das quatro linhas da Constituição”. O entorno bolsonarista tem inflado tais ataques nas redes. Ameaças ao ministro e ao Supremo se acirram com o 7 de setembro. Há alguns dias, um comandante da PM de São Paulo foi afastado do cargo após convocar manifestação contra o STF. No domingo (5) um usuário do Twitter identificado como Cássio Rodrigues Costa Souza, ex-PM em Minas Gerais, disse: “Morra, careca, filho da puta. Terça-feira vamos te matar e toda a sua família, seu vagabundo, advogadinho de merda do PCC. Sou policial militar e nós, militares, te eliminaremos”. O perfil foi apagado, mas deixou o alerta vermelho ligado.

Langeani lembra que Bolsonaro liberou tantas armas mais potentes a CACs e policiais, que mesmo entre as armas de porte, que podem ser carregadas e escondidas com mais facilidade, há armas que ameaçam os níveis de blindagem dos veículos das autoridades públicas. “Estamos falando de veículos de congressistas, ministros do STF. Mas, no limite, como este caso mostra, nem mesmo o Executivo Federal está a salvo”, alerta.

Uma pesquisa do Instituto Atlas Intelligence divulgada nesta segunda-feira mostrou que 30% dos policiais militares entrevistados pretendem ir “com certeza” aos protestos a favor de Jair Bolsonaro e contra o Supremo Tribunal Federal. Somada a pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que dá conta de que apoio a teses extremistas aumentou 29% entre policiais militares, é preciso redobrar a atenção.

Para o ex-corregedor da Polícia Militar do Rio de Janeiro e coronel da reserva Wanderby Medeiros, desde o ataque de Luiz Antonio Iurkiewiecz ao Ministério da Justiça no ano passado, a polarização subiu alguns degraus, “em grande parte motivada pela elevação de tom do próprio presidente da República, que, em mais de um momento, foi expresso quanto à possibilidade de quebra da normalidade democrática”. Apesar de não acreditar que as polícias estão envolvidas nos atos como corporação, ele reitera que punir eventuais abusos “é um dever que se impõe aos seus superiores, que inclusive podem estar incursos na prática de crime militar em não o fazendo”.

Mais uma movimentação da ala bolsonarista pode ter impacto nesse sentido. Em 2019 o presidente sancionou projeto de lei que prevê o fim da prisão disciplinar para bombeiros e policiais militares. Apesar de especialistas divergirem sobre isso —há quem julgue inconstitucional— há PMs que hoje só punem certos desvios com advertência e repreensão. Levantamento feito pelo jornal O Globo mostrou que apenas oito governadores pretendem de fato tomar alguma providência e punir PMs por adesão aos protestos desta terça-feira. A instrumentalização das polícias é um risco iminente à democracia que há muito vem sendo tratado sem a devida importância. Às vésperas de um dia D como o desta terça-feira, essa falta deixa uma janela aberta para um desfecho preocupante.

CECÍLIA OLLIVEIRA, do Rio De Janeiro para o EL PAÍS, em  06 SET 2021 - 19:18 

Presidente diz que não vai cumprir decisões tomadas por Moraes

PSDB diz que se reunirá para discutir impeachment de Bolsonaro. Ao discursar na Esplanada dos Ministérios, presidente falou em “ultimato” ao se referir ao presidente do STF, Luiz Fux. O ex-assessor da família Bolsonaro Fabrício Queiroz é festejado em protesto no Rio de Janeiro. Enquanto isso, a crise sanitária segue com tendência de queda. O país se aproxima de 584.000 mortes por covid-19; siga

“Ou o chefe desse Poder [Luiz Fux] enquadra o seu [ministro] ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”, discursou Jair Bolsonaro para um mar de apoiadores na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em referência ao Supremo Tribunal Federal (STF).

O presidente discursava ao lado de alguns ministros, como Braga Netto, da Defesa, Onyx Lorenzoni, do Trabalho, e Damares Alves, dos Direitos Humanos. O tom usado pelo mandatário levou o PSDB a anunciar que discutirá nesta quarta-feira sua posição sobre o impeachment de Bolsonaro. Horas depois, Bolsonaro repetiu o discurso para a plateia da avenida Paulista, acrescentando apenas o nome do ministro do STF Alexandre de Moraes, que ele não tinha mencionado na capital federal, e críticas sobre o sistema eleitoral brasileiro.

O 7 de Setembro nem havia começado quando os apoiadores do presidente conseguiram forçar a entrada na Esplanada dos Ministérios. Ao contrário do que estava planejado pela Polícia Militar do Distrito Federal, caminhões, entre outros veículos, circularam pelas vias do centro de Brasília, após os manifestantes romperem a primeira barreira estabelecida pela PM. 

Os atos desta terça são vistos no exterior como “insurreição” que coloca em perigo a democracia do Brasil e ex-presidentes e políticos de 26 países assinaram uma carta em alerta à situação. Enquanto isso, a crise sanitária segue com tendência de queda enquanto avança a vacinação. O Brasil registrou mais 9.154 casos e 182 mortes por covid-19 nesta segunda. 

Com isso, soma 20,89 milhões de infectados e 583.810 óbitos desde o começo da pandemia. Os dados são do Ministério da Saúde e são impactados pelas equipes reduzidas nos laboratórios durante o fim de semana. A média móvel de mortes por covid-19 no país segue em queda, com cerca de 600 registros diários.

MDB se une ao coro dos críticos a Bolsonaro: "Parece tentar desviar dos problemas reais"

"É lamentável o presidente da República usar o Dia da Independência para afrontar os outros Poderes. Parece tentar se desviar dos problemas reais: inflação de alimentos, combustíveis, crise fiscal, hídrica, desemprego e baixo crescimento", diz em nota o MDB. O partido diz respeitar "divergências programáticas", "mas se aferra à Constituição que determina a independência harmônica entre os poderes. Contra isso, o próprio texto constitucional tem seus remédios em defesa da democracia, que é sinônimo da vontade do povo", completa a nota.

Camilo Santana: "Ameaças de tom golpista tentam demonstrar força, mas só revelam a fraqueza e o desequilíbrio de quem as faz"

O governador do Ceará, Camilo Santana (PT), também repercutiu os atos com pauta antidemocrática e em apoio ao presidente Bolsonaro nesta terça-feira. "Essas ameaças de tom golpista tentam demonstrar força mas, ao contrário, só revelam a fraqueza e o desequilíbrio de quem as faz. Mostram desprezo às leis e à Constituição. Tentam provocar o caos para tirar o foco dos reais problemas do país e da total incapacidade de resolvê-los", afirmou o petista pelo Twitter.

Em São Paulo, Bolsonaro diz abertamente que não cumprirá decisões do Supremo tomadas por Alexandre de Moraes

Ao iniciar seu segundo discurso do dia, desta vez em São Paulo, o presidente Jair Bolsonaro falou sobre a pandemia de covid-19 e, mais uma vez, criticou as autoridades estaduais e municipais que adotaram medidas restritivas para tentar frear o contágio do coronavírus. "Tinha de esperar um pouco mais para que a população fosse se conscientizando do que é um regime ditatorial. Pior do que o vírus foram as ações de alguns governadores e prefeitos", afirmou. 

Depois, adotou o tom já usado pela manhã, em Brasília, e voltou a criticar os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), citando nominalmente, pela primeira vez, Alexandre de Moraes, magistrado que tem adotado decisões contrárias aos aliados do presidente. Segundo ele, Moraes "açoita a democracia" e "desrespeita a Constituição". 

"Ou Alexandre de Moraes se enquadra ou ele pede para sair!", repetiu Bolsonaro, sob gritos de apoios da multidão e foi ainda mais categórico do que na capital do país: "As ordens de Alexandre de Moraes, esse presidente não obedecerá mais". 

Diante de apoiadores pedindo "liberdade", o presidente disse que defende a democracia, mas que não pode aceitar participar de uma "eleição que não oferece qualquer segurança". Sem mencionar nominalmente o ministro Luís Roberto Barroso, disse ainda que o sistema eleitoral não pode ser definido por uma única pessoa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). "Não posso mais participar de uma farsa patrocinada pelo presidente do TSE", acrescentou, fazendo alusão ao voto impresso, uma das pautas dos atos deste 7 de Setembro. 

Dória: "Bolsonaro afronta a Constituição, desafia a democracia e empareda a Suprema Corte brasileira"

O governador de São Paulo, João Doria, defendeu nesta terça o impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Ele diz que não integra a Executiva nacional do PSDB e, portanto, não vai participar da reunião marcada para esta quarta para discutir a questão, mas defendeu que os tucanos marquem oposição ao presidente e se coloquem favoráveis ao impedimento. "A nossa posição é pelo impeachment do presidente Jair Bolsonaro. Eu até hoje nunca havia feito uma manfestação pró-impechment, quero deixar claro. Me mantive na neutralidade, entendendo que até aqui os fatos deveriam ser avaliados e julgados pelo Congresso Nacional. Mas depois do que assisti hoje e ouvi em Brasília, sem sequer estar ouvindo o que pronunciará aqui o presidente Jair Bolsonaro, ele afronta a Constituição, desafia a democracia e empareda a Suprema Corte brasileira", declarou em entrevista coletiva na capital paulista. 

Eduardo Leite: "Foi um erro colocar Bolsonaro no poder. Está cada vez mais claro que é um erro mantê-lo lá".

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, diz que foi um erro colocar Bolsonaro no poder. "Está cada vez mais claro que é um erro mantê-lo lá", postou no Twitter. "Inflação, desemprego, apagão de energia, desmatamento da Amazônia, pandemia… Esses deveriam ser os inimigos do PR do Brasil, e não outros brasileiros. Mas Bolsonaro se engana: nossas cores e nosso país não têm dono. Iremos defender os brasileiros e a democracia que ele ataca", afirma o tucano. Leite apoiou o presidente nas últimas eleições gerais e agora seu nome é cotado como um dos pré-candidatos ao Planalto. Seu partido, o PSDB,  informou nesta terça que discutirá a abertura de impeachment contra Bolsonaro.

EL PAÍS, em 07.09.2021

Em protestos, Bolsonaro faz ameaça golpista ao STF

Enfraquecido, presidente comparece a atos em Brasília e São Paulo convocados para mobilizar ala mais radical de seus apoiadores. Ele repete ameaças ao Supremo e diz que "só Deus me tira de Brasília".

Bolsonaro em Brasília, durante evento com apoiadores

O presidente Jair Bolsonaro discursou nesta terça-feira, feriado de 7 de Setembro, em atos pró-governo, quando voltou a expressar falas em tom golpista, fazer ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF) e criticar o sistema eleitoral do país.

Em São Paulo, diante de apoiadores aglomerados na Avenida Paulista, o presidente renovou seus ataques ao STF, que recentemente prendeu vários de seus aliados e tem tomado algumas iniciativas para impedir que o governo tumultue as eleições de 2022.

Bolsonaro chegou a mencionar pelo nome o ministro Alexandre de Moraes, seu desafeto na Corte e responsável por inquéritos que afetam bolsonaristas. "Ou esse ministro se enquadra ou ele pede pra sair", afirmou. "Não vamos admitir que pessoas como Alexandre de Moraes continuem a violar nossa democracia."

Após ter rejeitada pelo Congresso sua proposta de reforma do sistema eleitoral, o presidente voltou a questionar a idoneidade e a segurança das eleições, apesar de ainda não apresentar evidências que comprovem suas acusações.

"Não podemos admitir um sistema eleitoral que não oferece qualquer segurança", disse. "Não é uma pessoa do Tribunal Superior Eleitoral que vai nos dizer que esse processo é seguro e confiável." Bolsonaro é crítico das urnas eletrônicas e defende o voto impresso auditável, apesar de o TSE ter assegurado que as urnas já são auditáveis.

No fim do discurso, Bolsonaro ainda repetiu uma frase que havia dito há poucos dias, sobre seu futuro em Brasília: "[Só saio] preso, morto ou com vitória. Direi aos canalhas que eu nunca serei preso", declarou. "Só Deus me tira de Brasília." 

Segundo a Polícia Militar, o ato na Paulista reuniu 125 mil pessoas. Uma manifestação simultânea organizada por grupos de oposição a Bolsonaro no Vale do Anhangabaú, o chamado Grito dos Excluídos, contou com 15 mil pessoas. 

Horas antes, o presidente já havia feito ameaças ao Supremo em um primeiro discurso no protesto de Brasília, também parte de uma convocação nacional organizada por ele e aliados.

"Ou o chefe do Poder [Judiciário] enquadra o seu, ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos", disse Bolsonaro, em recado direto ao presidente do STF, Luiz Fux. "Quem age fora dela [Constituição] ou se enquadra, ou pede para sair", completou Bolsonaro, no ato que reuniu apoiadores na capital federal.

"Não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população. Não podemos aceitar mais prisões políticas no nosso Brasil", discursou.

No momento, Bolsonaro enfrenta uma queda constante de aprovação, economia em crise, pandemia, o fantasma de um apagão energético, insatisfação crescente entre o empresariado e denúncias de corrupção.

"[Só saio] preso, morto ou com vitória. Direi aos canalhas que eu nunca serei preso", diz Bolsonaro em São Paulo

Tentativa de demonstrar força

A convocação dos atos deste feriado é encarada como uma tentativa de Bolsonaro de demonstrar alguma força nesse momento de perda de influência e como uma forma de intimidar o STF. Os atos vêm sendo divulgados há semanas pelo presidente, também como uma forma de agitar a ala extremista de sua base.

O foco das falas foi especialmente dirigido aos ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso – este também presidente do TSE –, que são com frequência tratados como inimigos pelo presidente e sua base.

Moraes é responsável por diversos inquéritos que afetam bolsonaristas e determinou a prisão de aliados do presidente, como o deputado Daniel Silveira e o presidente do PTB, Roberto Jefferson, que incitaram violência contra ministros do Supremo.

Já Barroso, na condição de presidente do TSE, se opõe à adoção do voto impresso, uma bandeira bolsonarista, encarada como uma forma de minar a confiança no processo eleitoral e tumultuar as eleições de 2022, que se desenham extremamente desfavoráveis para Bolsonaro, segundo pesquisas.

Bolsonaro também tem um longo histórico de falas a favor de um golpe de Estado no Brasil, e desde que tomou posse tem protagonizado embates tanto com o Judiciário quanto com o Congresso.

Atos de 7 de Setembro

O discurso do presidente não foi transmitido ao vivo por canais de TV ou redes sociais devido a dificuldades técnicas no sinal da região. Algumas filmagens conseguiram captar apenas alguns trechos da fala do presidente, que estava cercado de apoiadores que seguravam placas e faixas pedindo um golpe militar e a dissolução do STF e do Congresso.

Em Brasília, imagens da manifestação mostraram um comparecimento mais considerável que nos esvaziados protestos bolsonaristas dos últimos meses, mas observadores políticos apontaram que o número de manifestantes foi menor do que o esperado. Filmagens aéreas mostraram vários espaços vazios ao longo da Esplanada. Era também possível ver junto aos canteiros diversos ônibus e caminhões que transportaram manifestantes.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, houve registro de episódios de violência em Brasília. Pelo menos duas pessoas na Esplanada dos Ministérios que participavam dos atos com filmagens foram apontadas como "infiltradas" por manifestantes da base radical do presidente e agredidas com empurrões e socos.

Em São Paulo, simultaneamente à manifestação na Paulista, ocorria um ato organizado pela oposição, o Grito dos Excluídos, que reuniu milhares de pessoas no Vale do Anhangabaú, região central da cidade. A manifestação é organizada tradicionalmente em 7 de setembro por partidos da esquerda, encabeçados por PT, Psol e PSB, e por centrais sindicais.

Um dos organizadores do evento, o coordenador da Central de Movimentos Populares, Raimundo Bonfim, disse que, pela primeira vez em 27 anos, a manutenção da democracia é o tema central do Grito dos Excluídos, em vez de desemprego, fome e exclusão social.

Segurança reforçada

O Supremo Tribunal Federal, um dos alvos favoritos de críticas dos bolsonaristas, reforçou a segurança do seu prédio para desestimular potenciais atos de depredação ou invasão.

Em várias redes bolsonaristas, seguidores mais fanáticos do presidente têm encarando os protestos do feriado como uma oportunidade de insurreição similar a que ocorreu em 6 de janeiro nos EUA, quando uma turba de apoiadores de Donald Trump invadiu o Capitólio para tentar impedir a confirmação da vitória de Joe Biden, ou como uma chance de estimular as Forças Armadas a aderirem ao movimento.

Influenciadores bolsonaristas já estimularam atos violentos no passado que acabaram não se materializando ou que não geraram o efeito desejado. Dessa forma, analistas apontam que os atos podem se limitar a servir para mais uma vez agitar a base extremista do governo e alimentar a tensão permanente com outros Poderes.

Antes de participar do ato com apoiadores, Bolsonaro acompanhou a cerimônia de hasteamento da bandeira ao lado de 16 ministros e do ex-presidente e senador Fernando Collor, nos jardins do Palácio da Alvorada.

Também participaram o vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), e o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que está no centro de um escândalo envolvendo suspeitas de compra superfaturada de vacinas e favorecimento de empresas.

Em meio ao clima de tensão entre os Poderes estimulado por Bolsonaro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, não participaram da cerimônia de hasteamento da bandeira.

Mais cedo, Pacheco publicou em suas redes sociais uma mensagem sobre a "absoluta defesa do Estado Democrático de Direito".

"Ao tempo em que se celebra o Dia da Independência, expressão forte da liberdade nacional, não deixemos de compreender a nossa mais evidente dependência de algo que deve unir o Brasil: a absoluta defesa do Estado Democrático de Direito", escreveu o senador, que recentemente freou uma investida de Bolsonaro contra o Judiciário ao engavetar um pedido de impeachment apresentado pelo presidente contra o ministro Alexandre de Moraes.

Deutsche Welle Brasil, em 07.09.2021

Carta a Bolsonaro neste Sete de Setembro

Você sabe que sua massa de estimação está descolada do Brasil real; não estamos em 2018

Chegou o seu dia, Bolsonaro. O dia que você preparou com afinco, dia D e hora H, como diria um coronel que você arrastou para a lama consigo. Sabemos palavra por palavra o seu discurso de hoje no caminhão de som da avenida Paulista: vai falar que o STF não te deixa governar, ameaçar sair das "quatro linhas da Constituição", pregar o voto impresso, exaltar militares que te seguem, desacreditar as pesquisas blá-blá-blá...

Sua audiência aplaudirá efusivamente, erguendo faixas intervencionistas e, quiçá, cometendo atos de covardia em algum canto do país. Mas no fundo você sente que sua massa de estimação já está descolada do Brasil real. Não estamos mais em 2018. Lá suas pregações confluíam com um desejo de mudança, com um feroz sentimento de antipolítica. Agora o problema é você. É o preço da gasolina, do gás, do feijão. O morticínio da pandemia, o desemprego, enfim, os feitos desumanos do seu governo. Seu discurso prega para convertidos, mas está alheio às preocupações do povo.

Você está com medo, Jair. Também, pudera: Carluxo sentindo o cheiro da cadeia, CPI fechando o cerco e até o 04 pode entrar na dança. Nas suas palavras de ameaça vejo um homem desesperado, mal resolvido, acuado pelo turbilhão dos fatos. Você não vê alternativa a não ser dobrar a aposta, fugir para a frente. É assim que você lida com seus medos desde Eldorado Paulista ou, depois, tentando explodir quartéis.

Getúlio, quando acuado por forças golpistas em 1954, deu sua vida à nação e adiou o golpe militar por uma década. Brizola, vendo a mesma marcha em 1961, entrincheirou-se no Sul e deu início à Campanha da Legalidade. Jango, três anos depois, mesmo sitiado, promoveu o Comício da Central do Brasil e manteve-se fiel aos interesses do povo até o final. Tiveram todos grandeza histórica. Mas grandeza é uma palavra que você desconhece.

Prefere deixar o país refém de suas alucinações e tentar jogar-nos a todos no mesmo abismo em que você se encontra. Tudo para salvar a própria pele e a dos seus. Você não tem ideais, não tem projeto, é movido apenas pelos ressentimentos que acumulou ao longo da vida e por um instinto animalesco de sobrevivência.

Nada indica que vá dar certo, não importa quantas pessoas você coloque hoje em Brasília e na avenida Paulista. Sua única chance é que instituições que têm muito a perder —ao contrário de você— embarquem numa aventura suicida. Convenhamos, Jair, é improvável, até porque neste caso ao vencedor não sobrariam nem mesmo as batatas. Apenas um país ingovernável, sem credibilidade e com terra arrasada. Mesmo assim você foi para o tudo ou nada. Vejamos o que este dia 7 reserva ao Brasil, mas para você pode ser o início do fim.

Guilherme Boulos, o autor deste artigo, é  Professor, militante do MTST e do PSOL. Foi candidato à Presidência da República e à Prefeitura de São Paulo.Publicado originalmente pela Folha de São Paulo, em 6.set.2021 às 18h21

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

O mandato de Jair Bolsonaro está em perigo

As vacinas podem lhe custar o governo

As pedaladas que custaram o mandato a Dilma Rousseff tinham um algo de malandragem contábil, só. O rolo das vacinas tem muito mais que isso. Ainda faltam-lhe, contudo, as digitais de Jair Bolsonaro. Os irmãos Miranda denunciaram a picaretagem indiana durante uma conversa, e ele não fez nada. É forte, mas pode ser pouco.

Negacionismo só produz misérias. A "gripezinha" abalou a credibilidade do governo em tudo que tem a ver com uma pandemia que já matou mais de 500 mil brasileiros. O mandato de Jair Bolsonaro está em perigo. Na melhor das hipóteses (para ele) a reeleição torna-se um sonho perdido que milicianos não conseguirão reativar.

A Bolsonaro de nada adianta mobilizar pelotões contra a CPI, maltratar repórteres, ou falar para convertidos nas redes sociais. A compra de vacinas pelo governo brasileiro expôs um redemoinho de picaretagens. Um cabo da PM mineira diz que recebeu um pedido de pixuleco de US$ 1 para cada uma dos 400 milhões de doses da AstraZeneca.

Capilé de US$ 400 milhões num golpe semelhante é coisa que não existe, mas outras libélulas giravam em torno da AstraZeneca. A vacina do cabo custaria US$ 4,50 (com o pixuleco incluído). Na mesma época, um misterioso operador oferecia-se para privatizar imunizações, oferecendo a mesma vacina a um grupo de empresários por US$ 23,79 a unidade . A proposta foi detonada pelos bilionários que seriam mordidos. Isso com a AstraZeneca.

Já com a Covaxin indiana o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas, pergunta ao governo por que a unidade, negociada a US$ 10 em novembro do ano passado, foi contratada por US$ 15 em fevereiro.

Todos os laboratórios reiteram que nada tiveram a ver com essas ofertas. Tudo não passaria de conversa de atravessadores, mas em todos os casos (salvo no da oferta ao consórcio de empresários), na outra ponta havia servidores públicos habilitados a negociar.

A única vacina que não foi rondada pela turma do pixuleco foi a Coronavac. Aquela que, segundo ele, NÃO SERÁ COMPRADA (maiúsculas de Bolsonaro).

O capitão pode persistir no caminho do vitupério. Nele, a Covid era uma" gripezinha" e as vacinas poderiam transformar cidadãos em jacarés. Esse negacionismo já levou o país à ruína dos 500 mil mortos e mandou o governo às cordas. Recorrer aos militares nem pensar, pois eles já carregam o desastre do general Pazuello e dos coronéis que levou para o Ministério da Saúde.

O tamanho do problema sugere que seria conveniente nomear uma pessoa ou uma comissão independente para tratar dessa cavalariça, limpando-a. Nada a ver com notáveis terrivelmente seja lá o que for. Para fulanizar, apenas mostrando um perfil dessa pessoa, poderia entregar o caso ao ministro Marco Aurélio Mello, que acaba de deixar o Supremo Tribunal Federal.

Essa pessoa, ou comissão independente, investigaria o que acontece no Ministério da Saúde e no seu entorno, restringindo-se à questão do preço das vacinas. Terminado o serviço, entregaria a Bolsonaro uma bandeja com as cabeças dos envolvidos, bem como uma avaliação de seu papel nos episódios. Esse procedimento não tiraria das costas do capitão os 500 mil mortos da Covid nem os 14 milhões desempregados. No mínimo, aliviaria o país de um aspecto de sua conduta irracional.

Elio Gaspari, o autor deste artigo e também de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada", é Jornalista Profissional. Publicado na Folha de São Paulo,  em 6.jul.2021 às 23h15

Bolsonaro vai tentar dar um golpe de Estado

O presidente sairá vitorioso? Provavelmente não, mas é terrível termos chegado a este ponto

É fundamental que todos os democratas tenham clareza da iminência do golpe: visões do tipo “as instituições estão funcionando” (ainda alimentadas por alguns cientistas políticos) só nos aproximam de uma catástrofe. Bolsonaro vai tentar o golpe, e a prioridade agora é que seu plano dê errado.

Trata-se de um processo a ser concluído só em 2022, e uma data chave (mas não decisiva) é a manifestação programada para 7 de setembro, por “liberdade”, “intervenção militar”, “contra o STF”, “pelo voto impresso” e sabe-se mais o quê.

Trata-se de um evento provocador, e é importante que nós, democratas, não aceitemos provocações. Que gritem sozinhos. Segundo eles, é o “7 de setembro do povo”. E nós somos o quê? Acaso não fazemos parte desse povo, não temos direito de comemorar o Dia da Independência, nossa Festa Pátria?

Evidente que temos, e somos maioria. Mas evitemos provocações: tudo que querem é encontrar justificativas para fechar o regime.

​POR QUE E COMO O GOLPE SERÁ DADO?

Remeto aqui ao maior cientista político brasileiro, Wanderley Guilherme dos Santos, e a seu clássico livreto de 1962 “Quem Dará o Golpe no Brasil?”, premonitório do golpe de 1964. O trabalho hoje é bem mais simples, por óbvio, e não precisa ser realizado por um Wanderley, pode ser por mim mesmo.

Bolsonaro dará o golpe porque sempre foi autoritário e sabe que suas chances eleitorais são reduzidas. Vem adotando comportamento histérico e paranoico, denotando seu isolamento político.

Com o quadro de economia debilitada, desemprego, inflação e juros em alta, seca e crise energética à vista e pandemia de Covid-19 criminosamente gerida e ainda longe de um final, não é provável que Bolsonaro vença a eleição de 2022 (se houver).

Lula se impõe como virtual eleito, catapultado pela retomada de seus direitos políticos, pela memória de tempos melhores e pelo escancaramento do viés persecutório da Operação Lava Jato.

Como o caminho eleitoral lhe parece bloqueado, Bolsonaro terá que encontrar outros caminhos (segundo sua expressão recorrente) “fora das quatro linhas da Constituição” para seguir em seu projeto regressista, de retorno a um Brasil imaginário harmonioso, cristão, no qual comunistas estavam pendurados no pau de arara e mulheres, “pretos” e “bichas” aceitavam um lugar inferior na sociedade sem protestar.

Um projeto centrado numa figura “messiânica”, convencida de sua predestinação, que mobiliza camadas médias ressentidas com sua perda de status, elites arrivistas, setores retrógrados do agro e da mineração e parte dos mais precarizados da sociedade.

Parece fascismo, tem cheiro de fascismo, tem sabor de fascismo. E é fascismo mesmo.

Bolsonaro dará o golpe da seguinte forma: seu "modus operandi" de sempre é produzir caos, eleger novos inimigos e polarizar. Vai, desse modo, mantendo seus apoiadores mobilizados e crescentemente armados. Vão acossando ministros do Supremo Tribunal Federal, senadores, jornalistas, as esquerdas, movimentos indígenas, negros e feministas. Enquanto isso, seguem se armando.

Idealmente, Bolsonaro tentará evitar a eleição, produzindo caos como justificativa para uma “intervenção militar”.

Mais provavelmente, Bolsonaro conseguirá produzir algo mais concreto após sua derrota eleitoral. Alegará fraude, falta de confiança nas urnas eletrônicas, e é bem possível que resolva se encastelar no Palácio do Planalto.

Apoiadores produzirão motins de policiais militares nos estados, eventualmente insubordinações de setores de baixa patente das Forças Armadas, no limite invasões do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

Tem tudo para dar errado: parece faltar base social. Mas o inferno está nos detalhes.

POR QUE O GOLPE PODE DAR CERTO?

Não há apoio popular majoritário para uma tentativa golpista. Não há maioria no Senado Federal (já da Câmara dos Deputados amorfa e conservadora pode-se esperar qualquer coisa), nem sustentação no Supremo Tribunal Federal ou entre os governadores de estado.

A grande mídia se coloca dessa vez claramente contrária a uma aventura desse tipo, bem como a Igreja Católica, boa parte do empresariado e mesmo os banqueiros. Tem tudo para dar errado.

Porém cabe mencionar que as instituições brasileiras estão despedaçadas e que o Estado vem sendo crescentemente ocupado por militares desde o golpe de 2016.

Ocorre também que Bolsonaro tem seus apoios: empresários aventureiros, parte do agro, associações de caminhoneiros, as cúpulas das igrejas evangélicas, clubes de tiro, paramilitares.

E o principal: contingentes importantes das polícias militares (que podem resolver responder diretamente a ele e não mais aos governadores) e possivelmente das Forças Armadas e da Polícia Federal parecem dispostos a seguir Bolsonaro em seu "putsch".

Quem detém as armas não é uma questão de pouca monta. Assim, se setores armados resolverem manter Bolsonaro no Planalto e ocupar o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal após a derrota nas eleições, cabe perguntar quem vai retirar o golpista e seus apoiadores dos palácios.

Assim, dependemos mais uma vez dos chamados “militares legalistas”, ou seja, de uma parte do aparato repressivo do Estado que resolva garantir a posse do presidente eleito (supomos que será Lula).

Considerando a trajetória autoritária, intervencionista e demofóbica de nossas Forças Armadas, depender apenas delas não é o melhor cenário. Melhor não se fiar apenas nisso.

O QUE OS DEMOCRATAS DEVEM FAZER

É fundamental garantir a preservação física dos democratas e suas principais lideranças. Já passou da hora de redobrar cuidados nas manifestações oposicionistas (que têm que continuar ocorrendo), evitar provocações e reforçar a segurança de figuras como Lula.

Uma vitória retumbante do candidato opositor em 2022 será importante. Garantir a posse, ainda mais.

Não resta muito a fazer a não ser buscar uma “frente ampla”, procurando conversar com todos. Preservando, porém, o caráter de esquerda da candidatura e a agenda de retomada de direitos e da própria Constituição de 1988.

Um ambiente com tal nível de polarização como o brasileiro torna inviável qualquer pretensa “terceira via”.

Assim, se terão que engolir Lula, o “sapo barbudo”, mais uma vez, não há necessidade de que se ceda tudo nas negociações. Trata-se de um tênue caminho entre garantir a eleição, a posse e a governabilidade de um lado e manter uma agenda transformadora do outro.

De todo modo, um ano na conjuntura conflagrada brasileira equivale a um século. É arriscado fazer qualquer previsão, mas me arrisco aqui a mais uma para concluir.

Recentemente, Bolsonaro afirmou em evento evangélico visualizar três alternativas em seu futuro: “Estar preso, morto ou a vitória”.

Não há dúvida de que todos os democratas devem lutar pela derrota de Bolsonaro (de sua candidatura e de seu golpe) e desejar que se preserve bem e com saúde para quando finalmente for responsabilizado e preso por seus crimes.

Fabricio Pereira, o autor deste artigo, é Professor de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago (Chile). Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 5.set.2021 às 15h55.

Bolsonaro é o perdedor

Nenhuma imagem do feriado mudará o apoio da imensa maioria do país à democracia

O presidente Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira/Folhapress

Paira no ar um frisson, de certa forma compartilhado por bolsonaristas e antibolsonaristas, sobre qual será a imagem de maior impacto no período de 7 a 12 de setembro —vale dizer, a foto com mais manifestantes, como se isso retratasse a maioria dos brasileiros.

Trata-se de um equívoco flagrante.

A ciência da pesquisa, como no levantamento conduzido pelo Datafolha em junho de 2020, mostra que a maioria esmagadora de 75% dos brasileiros é favorável à democracia —e que para 78% o regime militar foi uma ditadura da qual não há saudades.

Não importa o quão fanaticamente os bolsonaristas apoiem seu chefe e o quanto os opositores estejam menos mobilizados ainda em respeito à crise sanitária; nada muda o fato de que Jair Bolsonaro erra, mais uma vez, ao apoiar atos golpistas repudiados pela imensa maioria que não irá às ruas.

Repudiados também pelos setores organizados da sociedade que, a despeito de preferências e interesses heterogêneos, compreendem que só o ambiente de livre manifestação do pensamento e respeito ao Estado de Direito permite a apresentação de demandas e a busca por justiça e prosperidade.

Tal entendimento se espelha na representação política. Entre governadores, prefeitos e parlamentares inexiste massa crítica a encorajar ensaios de ruptura. A sustentação fisiológica ao governo no Congresso não faz mais do que levar adiante projetos econômicos e evitar o impeachment.

As instituições, ainda que imperfeitas, se encontram amadurecidas por mais de três décadas de democracia —o período mais longo de normalidade na história republicana— e consolidação dos freios e contrapesos a serem respeitados por todos os Poderes.

Está claro para todos que o alarido provocado por Bolsonaro deriva de sua incapacidade de governar e da perspectiva de ser mandado para casa pelos brasileiros em uma eleição livre e justa, como têm sido todos os pleitos realizados no país.

O mandatário usa a data nacional para uma demonstração de suposta força. Conta, não é novidade, com o apoio de parcela minoritária, mas ainda expressiva, do eleitorado. Mas só aprofundará seu fracasso ao insistir na arruaça e na truculência golpista.

Editorial da Folha de São Paulo, edição impressa, às 23h15, em 6.set.2021 editoriais@grupofolha.com.br

A Ordem do Dia*

A reação do empresariado brasileiro diante do governo Bolsonaro sugere que a política do medo funciona e explicita que o establishment carrega pouco custo em apoiar projetos que flertam com o autoritarismo

A reação do empresariado brasileiro diante do governo Bolsonaro sugere que a política do medo funciona. Os empresários têm medo de criticar um governo que ainda conta com mais de 20% de apoio popular e com o apoio dos partidos de centro – que garantem alguma governabilidade em troca de emendas orçamentárias e cargos. Uma crítica hoje pode ser um não amanhã. Além disso, a reação também explicita que o establishment carrega pouco custo em apoiar projetos que flertam com o autoritarismo e que corroem as instituições do país.

No dia 17 de julho de 2015, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), anunciou que passaria a ser oposição ao governo de Dilma Rousseff. Desgastado com investigações na Lava Jato e com descontentamento popular crescente em relação ao governo, era dado início a um processo que culminaria no impeachment da presidente Dilma.

Em março de 2016, pulavam manifestos de empresários pedindo pelo impeachment da presidente. A Fiesp pendurou uma faixa em seu prédio na Avenida Paulista em São Paulo com o pedido de “Renúncia Já”. A CNI dizia que o cenário brasileiro era um “espetáculo deprimente”, pedindo “um basta”. 

Hoje é diferente. O empresariado brasileiro vem se pronunciando, como comentei na coluna de 13 de agosto, “Não tá no preço”. Mas, as manifestações parecem relativamente cautelosas. Não há “basta”, não existe um “tchau, querido” e nem pedidos de renúncia e impeachment. Os empresários se dizem a favor da democracia e da paz entre os Poderes.

Os empresários se mostram menos vocais e objetivos contra os descalabros do governo Bolsonaro do que com os erros cometidos pelos seus antecessores. De um lado, há empresários que parecem ainda simpatizar com o jeito autoritário do presidente. Há também os que podem não simpatizar, mas buscam pragmaticamente ficar do lado de quem permite a apropriação do Estado.

Há também, imagino, aqueles que têm medo. Se sentem intimidados pelo governo. Saem em defesa da democracia, mas ficam na retaguarda em falar abertamente que já basta um governo como este. O medo não é descabido. Nas últimas semanas, vimos, por exemplo, que a Caixa e o Banco do Brasil ameaçaram deixar a Febraban depois que a federação bem se manifestou em apoio da harmonia entre os Poderes. Um manifesto como este só existe e só impressiona quando as instituições estão, de fato, trêmulas.

O Brasil, e o establishment econômico, escolheu rejeitar mais governantes que cometeram crimes contra a economia, como foi o caso de Dilma e de Collor, ou presidentes que subiram ao poder depois de um impeachment, como foi o caso de Temer, do que um governo que atenta contra a vida e as instituições. E, mesmo quando se manifestam contra a derrocada democrática, o fazem de forma relativamente tímida. O descasamento entre benefícios individuais e custos coletivos fica evidente na atuação do establishment brasileiro.

Para alguém que nasceu no Brasil democrático, como eu, viver uma situação em que empresários redigem um documento se dizendo a favor da democracia é um pesadelo impensável. Eu cresci e vivi tomando a democracia como certa. Acabo de ouvir Bolsonaro falando “que se alguém quiser jogar fora dessas quatro linhas (da Constituição), nós mostraremos que poderemos fazer também”. Nunca achei que viveria no Brasil com um presidente que fala coisas do tipo. Mas, nunca achei também que veria tanta indiferença e medo por parte do povo e do establishment diante de ameaças como esta. O sentimento de retrocesso é enorme.

*O título da análise é o mesmo do livro de Éric Vuillard. No romance histórico, Vuillard conta como parte do empresariado alemão apoiou líderes nazistas mesmo os considerando vulgares e medíocres. 

Laura Karpuska, a autora deste artigo, é Professora do INSPER (SP), PHD em economia pela Universidade de Nova York (USA). Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 03.09.2021.

Cantanhede: Bolsonaro quer o 7/09 para dizer que o ‘povo’ está com ele, mas 2/3 são contra

No sábado, uma semana atrás, o presidente da Câmara, Arthur Lira, surpreendeu seus aliados no pequeno e pobre município de Lagoa da Canoa, em seu Estado, Alagoas, ao ligar para o presidente Jair Bolsonaro pelo celular, ser atendido e abrir a conversa pelo viva voz: “Olha aqui, é o nosso presidente!” Foi uma festa.

É assim que Bolsonaro governa, ou melhor, não governa. Faz campanha e marketing, num desbragado populismo, a la Hugo Chávez, que corrói as instituições, cria um clima de guerra – inclusive entre Câmara e Senado – e vai transformar o 7 de Setembro numa grande fake news, de defesa do nada e ataque à democracia, às instituições e à realidade.

Há os que, como Lira, se movem por interesses pessoais, políticos e eleitorais. Outros são os crentes, que tapam olhos, bocas, ouvidos – e narizes – para não enxergar e não entender o que está bem na sua cara. Caem em qualquer lorota e atacam quem tenta trazer luz e racionalidade ao País.

Eliane Cantanhêde: '(Bolsonaro) faz campanha e marketing, num desbragado populismo, a la Hugo Chávez'.  Foto: Marcos Correa/Presidência da República

O fato é que Jair Bolsonaro, que há pouco esfumaçou a Praça dos Três Poderes com tanques obsoletos e sem graça, tirou da população a festa e a alegria de saudar a Pátria, curtir o desfile militar e as manobras da Força Aérea para se concentrar numa única coisa: ele próprio.

Está prevista uma presença recorde em Brasília, Rio, São Paulo e várias capitais. Essa gigante massa de manobra será usada por Bolsonaro para mais uma fake news: a de que “o povo” está com ele. Segundo todas as pesquisas, porém, ele tem menos de um terço da população. Os outros dois terços observam, indiferentes ou perplexos, ou se desesperam, temendo que vá das palavras aos atos contra instituições, eleições e a democracia.

Tipos como Roberto Jefferson, Sérgio Reis, Ottoni de Paula, Daniel Silveira, Wellington Macedo, Zé Trovão e aquela outra que sumiu, depois de se fantasiar de Ku Klux Klan diante do Supremo, fazem da violência e do “quebro e arrebento” a sua bandeira. Esse é o seu lado, leitor?

Outros usam instrumentos da democracia como armas letais. A deputada Bia Kicis ameaça (sim, é uma ameaça) com um projeto para acabar com o TSE, a Justiça Eleitoral, que tem tantos serviços prestados. O deputado, ex-líder do governo e ex-major Vitor Hugo lança um projeto para tirar o comando dos governadores sobre as PMs e transferi-lo para Bolsonaro, transformando as polícias em milícias bolsonaristas, novamente a la Chávez.

E há os que transitam entre o incompreensível, o patético e a insanidade, como o negro Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, que, anteontem, levou ao delírio uma tal conferência conservadora (o Foro de São Paulo da extrema direita) ao chamar os movimentos negros de “afromimizentos, negrada vitimista, pretos com coleiras”. A escravidão, para ele, foi o maior barato.

Misturam-se a essa gente os ex-ministros Ricardo Salles, da destruição da Amazônia, e Ernesto Araújo, da implosão da política externa, além de Onyx Lorenzoni, que pula de ministério em ministério em nome de Deus, da família e da moral. Como o Taleban.

Arthur Lira faz o jogo e outros fazem gol contra, como Pedro Guimarães, da CEF, que transformou um traque numa bomba: um texto anódino da Fiesp e da Febraban, que seria nada, acabou fazendo emergir a resistência entre empresários, banqueiros, executivos e agronegócio. Instabilidade afeta desenvolvimento, investimentos e o futuro.

O mais triste é como um presidente que não governa, não tem programa, erra tudo na pandemia, não dá a mínima para a crise hídrica e só destrói, sem construir, consegue surrupiar a bandeira nacional, o verde e amarelo e a racionalidade de tantos inocentes úteis para atacar o Supremo, pilar da democracia, e endeusar a ele próprio, líder da desordem, do caos, da violência, da enganação.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da RádioJornal (PE) e do Tele-Jornal "Em Pauta", da GloboNews. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 05 de setembro de 2021 | 03h00