quarta-feira, 2 de junho de 2021

Do medo da covid-19 à desolação: enfermeiros enfrentam danos psicológicos do trabalho na pandemia

"Os enfermeiros já enfrentavam, antes da pandemia, problemas de saúde mental relacionados a longas jornadas de trabalho, como estresse, esgotamento e havia até relatos de pensamentos suicidas. 

A gente sabia que a situação pioraria com a pandemia, mas não pensávamos que pioraria tanto", diz Dóris, como a enfermeira é conhecida, à BC News Brasil.

Duramente afetados pela rotina da pandemia, profissionais de enfermagem têm relatado diversas dificuldades a voluntários de projeto focado em saúde mental. (Crédito: Getty Images).

Logo no início da pandemia de covid-19, a enfermeira Dorisdaia Humerez, de 62 anos, propôs que o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) criasse uma iniciativa para cuidar da saúde mental dos profissionais que estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus.


Pandemia agrava 'déficit de natureza' em crianças e adultos: 'Estamos menos vivos quando nos concentramos nas telas'

Vacinas contra a covid-19: por que Brasil poderia ter reservado doses antes mesmo da aprovação da Anvisa, segundo especialistas

Coordenadora da Comissão Nacional de Saúde Mental do Cofen, ela recebeu apoio do conselho para criar o projeto "Enfermagem Solidária". De forma gratuita, 24 horas por dia, a iniciativa fez cerca de 8 mil atendimentos virtuais de trabalhadores de todo o país no ano passado, segundo Dóris.

Depressão, ansiedade e pensamentos suicidas foram alguns dos temas que os cerca de 150 voluntários leram em relatos dos profissionais de saúde.

Entre os casos que acompanhou, Dóris destaca um que a deixou muito comovida: uma enfermeira que se sentia culpada após a mãe morrer em decorrência do novo coronavírus. "Ela acreditava que tinha sido a responsável por infectar a mãe. Foi uma das situações mais difíceis", relata.

O "Enfermagem Solidária" ajudou até mesmo a idealizadora do projeto. Em novembro passado, o marido de Dóris morreu em decorrência da covid-19.

"Percebo que o "Enfermagem Solidária" até me ajuda a compreender melhor a perda que eu tive", diz.

Os enfermeiros na linha de frente

Desde o começo da pandemia, os profissionais de saúde que estão na linha de frente contra a covid-19 enfrentam situações extremas de esgotamento físico e mental, que se tornaram mais agudas nos picos da pandemia, como hospitais sobrecarregados, falta de equipamentos de segurança e ausência de medicamentos para intubar pacientes.

Esses trabalhadores também vivem com o medo de serem vítimas do novo coronavírus e lidam com a saudade de colegas que morreram em decorrência da covid-19.


Em março do ano passado, Dóris deu início ao "Enfermagem Solidária" para ajudar aqueles que estão na linha de frente da pandemia. (Crédito: Arquivo Pessoal)

Em todo o Brasil foram registrados, desde o começo da pandemia, 56,1 mil casos de infecções pelo novo coronavírus entre profissionais de enfermagem e 784 mortes, segundo dados atuais do Observatório de Enfermagem, do Cofen.

Doutora em saúde mental e professora aposentada da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Dóris afirma que desde o princípio da pandemia não havia dúvidas da necessidade de uma iniciativa para apoiar os profissionais de enfermagem. Após autorização do Cofen, ela procurou outros enfermeiros que também são especialistas em saúde mental. Em poucos dias, o projeto recebeu diversos voluntários.

O "Enfermagem Solidária" entrou em funcionamento a partir do fim de março de 2020. Meses depois, passou a atender também alguns trabalhadores da área da radiologia.

A responsável pela iniciativa ressalta que o projeto não tem o objetivo de substituir sessões de terapia ou acompanhamento psiquiátrico.

"O que fazemos é uma escuta empática, para acolher esses trabalhadores. O objetivo é que esses profissionais desabafem. Se necessário, criamos uma rotina com aquela pessoa, pedimos para ela voltar em outro momento também para conversar", explica Dóris.

"Alguns psicólogos ligaram para tentar ajudar no projeto, mas o meu objetivo era reunir voluntários que fossem da enfermagem e com especialização em saúde mental. Era um sentimento de que outros enfermeiros poderiam dar um apoio melhor aos colegas de profissão no atual momento, porque conhecem a rotina de trabalho", acrescenta.


Em novembro, o médico Oswaldo Humerez, marido de Dóris, morreu em decorrência da covid-19

Os relatos ao longo da pandemia

O projeto funciona por meio de um chat no site do Cofen. Ali, profissionais de enfermagem desabafam com os voluntários por meio de textos. "Acredito que quando eles escrevem o que sentem, também refletem sobre aquilo", afirma Dóris.

Ela comenta que os desabafos dos profissionais de saúde mudaram ao longo dos meses de pandemia. No início, segundo Dóris, a maior parte dos relatos eram referentes ao medo intenso de contrair o novo coronavírus e infectar a família.

"Era uma situação quase geral. Os profissionais se queixavam que não havia equipamento de proteção adequado ou, quando havia, não recebiam treinamento para usá-los. Era uma situação na qual ainda estavam se ajustando, pois era começo da pandemia", relata.

Meses depois, segundo a enfermeira, o medo da contaminação pelo vírus desapareceu. "A impressão foi de que todos já haviam aceitado que estavam contaminados ou seriam contaminados em algum momento. Muitos profissionais passaram a mudar de casa para proteger a família. Alguns alugaram casa com colegas de profissão para não colocar os parentes em risco", diz Doris.

"Com o passar do tempo, essa distância da família causou uma sensação de desamparo, porque estavam distantes dos entes queridos. Alguns diziam que passavam na rua abanando a mão para o filho ou para a mãe. Foi um período sofrido e de desamparo, porque eles precisavam da família naquele momento", comenta a enfermeira.

Outra situação que se tornou frequente entre os relatos foi sobre o estigma que passou a ser associado aos profissionais que trabalham em hospitais.

"Em determinado momento, começaram a aplaudir os profissionais de saúde. Mas ao mesmo tempo, esses trabalhadores foram estigmatizados. Houve situações de enfermeiros hostilizados no transporte público ou até nos condomínios em que moravam. Parecia que a sociedade queria os profissionais de saúde cuidando, mas não queriam eles por perto. Queriam que eles morassem no hospital e ficassem por lá", diz Dóris.

Quando os casos começaram a reduzir no país, por volta do fim do ano passado, o "Enfermagem Solidária" ficou desativado por cerca de 20 dias. Porém, o projeto logo voltou a funcionar, no período em que a situação no Amazonas voltou a ficar crítica.

"Quando chegou essa segunda onda no Amazonas, começamos a atender o caos. Nesse período, percebemos que os enfermeiros começaram a se perguntar: o que estamos fazendo aqui? Para que estamos aqui? Isso não vai acabar? Havia muitos óbitos e muitos diziam que não queriam mais trabalhar em UTIs", relata.

No início deste ano, segundo Dóris, o cansaço extremo e os temores relacionados à pandemia aumentaram entre os profissionais do país, em razão da explosão de casos de covid-19.

Desencanto com a profissão na pandemia é um dos relatos mais comuns entre os profissionais de enfermagem. (Crédito: Getty Images).

"Eles viram quantidades de óbitos que nunca haviam visto. Antes, eles eram como salvadores, pois conseguiam salvar muitas vidas. Eles estudaram e se especializaram para isso. 

Mas nos primeiros meses deste ano se desencantaram com tantos óbitos. Eles pensavam: isso não vai ter fim, o que estou fazendo aqui?", relata Dóris.

Após enfrentar explosão de mortes pela covid-19 no primeiro quadrimestre do ano, o Brasil registrou queda nos números de óbitos. Nos últimos dias, porém, os números voltaram a subir em algumas regiões do país.

No mês passado, os óbitos pelo novo coronavírus entre os enfermeiros caíram em 71% em comparação ao mês anterior. Enquanto em março foram 83 mortes pela covid-19 na categoria em todo o país, em abril foram 24. Os dados são do Cofen, que aponta que fatores como a vacinação — profissionais da saúde são prioritários — e melhor conhecimento sobre os protocolos para combater o novo coronavírus foram fundamentais para reduzir as mortes desses trabalhadores.

Apesar do cenário atual mais ameno, em comparação aos primeiros meses deste ano, Dóris afirma que o desencanto com a profissão ainda é frequente entre os trabalhadores da saúde. "É o que estamos sentindo nos relatos atualmente", diz. Esse sentimento, aponta a enfermeira, ocorre por tudo o que ocorreu nos últimos meses e pelo temor de uma nova explosão de covid-19 no país.

No período recente, o "Enfermagem Solidária" faz uma média de 80 atendimentos diários.

Do início do projeto até hoje, muitos daqueles que buscam ajuda são trabalhadores que sofrem de depressão, transtorno do pânico ou ansiedade generalizada. "Alguns já haviam sido diagnosticados por psiquiatras", relata Dóris. Muitos desses transtornos foram agravados durante a pandemia. "A depressão com vontade de desistir de tudo é a situação mais frequente", afirma a enfermeira.

'Ela dizia que foi a responsável por infectar a mãe'

Um dos casos mais marcantes para Dóris no "Enfermagem Solidária" ocorreu em maio de 2020. Na época, uma enfermeira que havia perdido a mãe para a covid-19 buscou ajuda.

"Ela dizia que estava chorando muito porque havia sido a responsável por infectar a mãe. Foi um caso muito difícil, tentei explicar para ela que qualquer um poderia contaminar o outro durante a pandemia", relata Dóris.

No relato, de maio do ano passado, a enfermeira contou que a mãe era muito cuidadosa em relação à prevenção contra a covid-19. "Essa moça dizia que não tinha dúvidas de que a mãe tinha morrido por causa dela. Era uma culpa tão grande essa moça tinha até ideação suicida. Era muito doído, porque ela acreditava que precisava pagar por ter contaminado a mãe", relembra Dóris.


Em todo o país, mais de 770 profissionais de enfermagem morreram em decorrência da covid-19 desde março do ano passado. (Crédito: Getty Images)

"Ela falava que a mãe era saudável e feliz. Cada vez mais, ela se culpava pela morte da mãe. Foi uma história muito triste", diz a enfermeira.

Dóris conversou com a moça por diversas vezes ao longo dos meses. "Consegui fazer com que ela se sentisse melhor. De vez em quando, ela ainda me escreve e diz que está um pouco melhor. É muito importante termos esse retorno positivo, que recebemos em muitos casos", comenta.

A perda do marido

Enquanto liderava o projeto, Dóris sofreu uma perda que a afetou duramente. O marido dela, o médico Oswaldo Humerez, de 70 anos, morreu em decorrência da covid-19 em novembro passado.

Ele trabalhava em uma unidade de saúde do Guarujá, em São Paulo — cidade em que o casal morava. Emocionada, a viúva relata a situação na qual o companheiro acredita ter contraído o novo coronavírus. "Ele estava saindo da unidade de saúde quando viu que um médico mais novo estava intubando um paciente. Ele quis ajudar e recebeu uma carga viral enorme, porque não estava com todos os equipamentos de proteção, apenas com a máscara. Quando ele chegou em casa, me disse; se eu peguei o coronavírus, foi hoje."

O marido dela apresentou os primeiros sintomas da doença. Logo a situação se agravou e Oswaldo precisou ser internado. Ele ficou cinco dias intubado, mas não resistiu às complicações do novo coronavírus.

"Foi tudo muito rápido e inesperado. Ele não tinha comorbidades, era esportista, jogava tênis e até dava uma surfadinha. Ele era muito vivo", lamenta Dóris, que também contraiu o novo coronavírus e teve sintomas leves.

"Pelo menos depois me informaram que o paciente que ele intubou conseguiu se salvar. Ao menos uma coisa boa", acrescenta.

Dóris e Oswaldo foram casados por 40 anos. Eles tiveram uma filha. Logo após a perda do marido, a profissional de saúde relata que ficou deprimida e com medo em relação ao projeto "Enfermagem Solidária".

"Não sabia se daria conta de ajudar aqueles vários voluntários que acreditavam em mim e no meu projeto. Mas o fato de achar que eles precisavam de mim fez com que eu criasse coragem para voltar", relata.

Quando retornou ao "Enfermagem Solidária", recebeu apoio intenso dos outros voluntários. "Todo mundo me deu força e isso me ajudou", diz Dóris.

Ela confessa que os atendimentos mais difíceis atualmente são os de profissionais de saúde que perderam parentes para a covid-19. "Tenho que ficar firme quando atendo casos que são semelhantes ao meu, senão eu choro também. Apesar de difícil, eu tento ajudar aquela pessoa que também está passando por isso, porque sei como é uma situação muito pesada", diz Dóris.

"Tenho a impressão de que está sendo um período difícil para todo mundo, para mim também", acrescenta.

Enquanto a pandemia segue sem prazo para acabar, o "Enfermagem Solidária" continua em funcionamento. No primeiro quadrimestre deste ano foram, ao menos, 3,5 mil atendimentos.

"Depois que a pandemia for controlada, vamos pensar em um novo modelo de projeto para acompanhar a saúde mental dos profissionais de enfermagem", afirma Dóris.

Vinícius Lemos - @oviniciuslemos, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 02.06.2021.

Afinal, Brasil vacina pouco ou muito? Confira 5 dados do ranking global

Como as quase 500 mil mortes são atualmente incontornáveis, as críticas ao governo de Jair Bolsonaro e os contrapontos têm se concentrado no desempenho brasileiro na vacinação.

Imagem reproduz uma pessoa que trabalha na área da saúde aplicando uma vacina em um símbolo de interrogação. (CRÉDITO,GETTY IMAGES)

Praticamente todos os dados que tratam da situação do Brasil na pandemia de coronavírus são questionados, comparados, recortados ou distorcidos desde que a doença chegou oficialmente ao país, em fevereiro de 2020.

Afinal, o Brasil vacina pouco ou muito?

Se a comparação considerar apenas o número total de doses que cada país aplicou, o Brasil aparece em quarto lugar no ranking global de dados oficiais compilados pela Universidade de Oxford, no Reino Unido. Um patamar esperado para o sexto país mais populoso do mundo, com 212 milhões de habitantes.

Mas quando a comparação do total de doses aplicadas leva em conta o tamanho da população de cada país, o Brasil aparece em 78º entre 190 nações e territórios.

A comparação pode ser feita também com o próprio Brasil. O Ministério da Saúde afirma que o país tem capacidade instalada de vacinar 2,4 milhões por dia. E já chegou a vacinar 18 milhões de crianças em campanha contra a poliomielite. Mas desde 17 de janeiro de 2021, o Brasil só superou dez vezes a marca de 1 milhão de vacinados em 24h.

Até o momento, 840 milhões de pessoas receberam pelo menos uma dose contra a covid-19 ao redor do mundo, equivalente a cerca de 11% da população.

Que porcentagem da população recebeu pelo menos uma dose? Brasil em 72º lugar

Até o dia 02/05, o Brasil havia aplicado pelo menos uma dose em 21% da população brasileira. Isso coloca o país em 72º lugar no ranking de 190 nações e territórios.

Na América, o Brasil figura em 15º lugar. O país mais bem posicionado do continente é o Chile, que aplicou pelo menos uma dose em 55% da população. E mesmo com o avanço expressivo da vacinação por lá, o país sul-americano também tem enfrentado desafios graves no sistema de saúde, o que indica que a contenção da pandemia precisa ser associada a medidas eficazes de distanciamento social e uso universal de máscaras capazes de evitar a infecção.

Parcela da população vacinada contra covid ao longo do tempo. Taxa de pessoas que receberam pelo menos uma dose da vacina, em %.  .

Que porcentagem da população recebeu duas doses? Brasil em 74º lugar

Com exceção da vacina da farmacêutica Janssen, todos os imunizantes precisam de duas doses para atingir a máxima eficácia contra o coronavírus. Em geral, uma pessoa pode ser considerada completamente imunizada duas semanas depois de receber a segunda dose.

Alguns países decidiram ampliar o período entre as duas doses, a fim de garantir logo a imunização parcial de uma fatia maior de sua população, como o Reino Unido.

No ranking da proporção da população que recebeu duas doses, o Brasil (10,4%) aparece em 74º no mundo e 18º na América.

Qual é a velocidade do programação de vacinação? Brasil em 89º lugar

No quesito velocidade de doses aplicadas diariamente por cada 1 milhão de habitantes, o Brasil (3.561) aparece em 89º no mundo e 13º na América. O ritmo tem caído: em meados de maio o Brasil aplicava 4.207 doses por cada 1 milhão de habitantes.

Desde fevereiro, o Brasil leva de 12 a 14 dias para aplicar 10 milhões de doses contra a covid-19.

Como dito acima, o Brasil tem uma enorme capacidade instalada por trás de um programação nacional de vacinação reconhecido mundialmente, mas a falta de vacinas impede o país de atingir os níveis de imunização de outras décadas. Na pandemia de H1N1, por exemplo, o Brasil imunizou quase 80 milhões de pessoas em três meses.

Na pandemia atual, o governo federal distribuiu de 17/01 a 02/06 quase 97 milhões de doses para Estados e municípios, mas apenas 68,2 milhões tinham sido aplicadas, segundo dados do Ministério da Saúde.

Média de vacinas contra covid-19 aplicadas diariamente no Brasil. Brasil atingiu 1 milhão de doses aplicadas num dia em 10 dos 135 dias de vacinação .  .

A diferença entre o número de doses distribuídas e aplicadas no Brasil se explica em parte à necessidade de reservar uma quantidade como segunda dose, e uma eventual escassez poderia afetar a imunidade dos vacinados. A eficácia contra a covid só é garantida semanas depois da aplicação da segunda dose.

Um estudo recente da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) apontou que que Brasil precisa vacinar 2 milhões por dia para controlar pandemia em até um ano. E atualmente o país mal tem conseguido passar de 1 milhão por dia. Isso ocorreu em 10 dos 135 dias do programa de vacinação.

Quantas doses foram compradas ao todo? Brasil em 6º lugar

A aceleração das aplicações na pandemia esbarra em um problema mundial: a falta de vacinas.

No caso brasileiro, isso se agravou porque o governo Bolsonaro recusou sucessivas ofertas da Pfizer, apostou todas as fichas na vacina AstraZeneca-Oxford, ameaçou boicotar a Coronavac por disputas políticas com o governo de São Paulo e só decidiu comprar outras vacinas quando a fila de países compradores já "dobrava a esquina".

No papel, o cronograma atual do Ministério da Saúde prevê 563 milhões de doses, e a entrega de 154 milhões delas no primeiro semestre de 2021, considerando apenas vacinas aprovadas pela Anvisa: Coronavac, AstraZeneca-Oxford e Pfizer.

Isso seria suficiente para imunizar o grupo prioritário inteiro, mas não significa que todas essas 78 milhões de pessoas estariam vacinadas antes de julho — o Brasil tem conseguido aplicar cerca de metade das doses disponíveis e há um intervalo de semanas entre a primeira e a segunda dose.

Cronograma previsto de entregas mensais de vacina contra covid-19. Em março, governo Bolsonaro mudou cinco vezes previsão de doses abaixo, em milhões.  .

Mas os constantes atrasos em importações de insumos e vacinas, além de problemas na produção em território nacional e a não aprovação de outros imunizantes por parte da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) fazem com que esse cronograma seja cada vez mais difícil de ser atingido.

Levantamento da Universidade de Duke aponta que o Brasil é o sexto maior comprador de vacinas no mundo, com 370 milhões de doses compradas (e outras 208 milhões com opção de compra negociada).

Ele fica atrás da União Europeia (1,8 bilhão), dos EUA (1,2 bilhão), do consórcio Covax (coordenado pela Organização Mundial da Saúde para beneficiar países mais pobres com 1,1 bilhão de doses), da União Africana (670 milhões) e do Reino Unido (457 milhões).

Quantas doses foram aplicadas ao todo? Brasil em 4º lugar

O dado do total de doses aplicadas no Brasil é o principal argumento utilizado para exaltar o avanço do programa de vacinação brasileiro.

Nesse quesito, o Brasil aparece em 4º lugar no ranking global, com 67 milhões de aplicações até o dia 02/06. Fica atrás de China (661 milhões), EUA (294 milhões), e Índia (210 milhões).

Matheus Magenta, de Londres para a  BBC News Brasil, em 02.06.2021.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Amartya Sen: “A desigualdade corrói as vantagens das democracias”

Economista indiano, ganhador do Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais em 2021, prevê uma crise de qualificação profissional entre os desempregados deixados pela pandemia

Amartya Sen, professor de economia e filosofia de Harvard, Nobel de Economia e ganhador do Prêmio Princesa de Astúrias, em uma foto de 2015.GRETCHEN ERTL / AP

Amartya Sen foi agraciado na terça-feira passada com o Prêmio Princesa de Astúrias de Ciências Sociais de 2021. Poucas horas depois, da sua casa em Cambridge (Estados Unidos), sede da Universidade Harvard, o economista (Santiniketan, Índia, 87 anos) atendia ao EL PAÍS cheio de gratidão pelo júri e destacando seus vínculos com a cultura espanhola. Entre constantes telefonemas de felicitação, ele conversou sobre duas de suas grandes preocupações: o recrudescimento da pobreza por causa da pandemia e a situação política e social do seu país natal, a Índia.

Seus estudos há décadas influenciam as políticas de combate à desigualdade extrema desenhadas por diversas organizações internacionais. Entretanto, após anos de avanços, a pandemia do coronavírus causou um sério retrocesso nessa tarefa. Em um recente relatório, a ONU alertou que a pior recessão em 90 anos levou à perda de 114 milhões de postos de trabalho e empurrou 120 milhões de pessoas para a pobreza extrema.

“Esta crise foi uma péssima notícia na luta contra a pobreza. Não só pela perda de renda que gerou para muitos trabalhadores, mas também porque muitos dos que ficaram sem trabalho perderão as habilidades que tinham adquirido anteriormente. Quanto mais você se isola, menos eficiente tende a ser”, responde do outro lado do telefone.

O economista e filósofo repete várias vezes que o maior golpe do coronavírus é a perda de vidas humanas. “Se você não estiver vivo, tanto faz se antes era rico ou pobre. A grande tragédia é a morte”, reflete.

Amartya Sen não é muito pessimista sobre a saída da crise. Considera que não será preciso esperar muitos anos para recuperar o nível de riqueza anterior à chegada do vírus que deixou o mundo de pernas para o ar. “A riqueza perdida poderia ser recuperada mais ou menos rapidamente, mas isso não devolverá a tragédia de que tanta gente tenha morrido”, acrescenta.

O novo ganhador do Princesa de Astúrias se mostra cético sobre a ideia de que as políticas de recuperação oferecidas pelo presidente dos EUA, Joe Biden, possam alterar o paradigma econômico que nasceu na década de 1980 com a revolução conservadora de Thatcher e Reagan: “Não acredito. Não acredito que estejamos pensando de uma nova forma”, diz.

Sen emergiu nos últimos anos como um dos grandes flagelos do Governo nacionalista indiano encabeçado pelo primeiro-ministro Narendra Modi. Agora, com a trágica situação no país por causa da expansão da epidemia, o também ganhador do Nobel de Economia acredita que muitos dos males das políticas impulsionadas pelo partido nacionalista BJP, de Modi, estão vindo à tona. “A resposta do Governo à covid foi péssima. Não foi claro em suas políticas. E teve uma atuação muito lamentável, sobretudo para os pobres, os que mais estão sofrendo a pandemia”, salienta.

Mas as críticas a Modi vão além da gestão dos últimos meses. “Esta má reação ocorreu também em outras decisões políticas, como as políticas econômicas, a falta de atenção à educação e à saúde. A situação na Índia é muito desigual e muito injusta. E a pandemia só agravou esta situação.”

Sen se tornou mundialmente famoso por sua teoria de que as democracias estão imunizadas contra as ondas de fome, já que seus governos têm incentivos para evitar grandes calamidades desse tipo, por seu alto custo eleitoral. Mas será que a catastrófica gestão desta crise na Índia desvirtua essa ideia?

 “Meu argumento é que, se o país que você governa sofre uma onda de fome, você deixará de ser popular e perderá as eleições. E, portanto, você fará todo o necessário para impedir essa catástrofe.” 

Mas em seu país se acrescenta outro elemento à equação: 

“Na Índia, o Governo conseguiu estabelecer um controle ferrenho dos instrumentos do poder, destinando enormes quantidades de dinheiro de uma forma assimétrica. O BJP conseguiu também calar a voz dos protestos. São coisas que a democracia deveria evitar”,

responde, num ataque frontal aos abusos cometidos em nome da preponderância do hinduísmo, a religião majoritária do país, sobre o islamismo.

“A desigualdade e a assimetria do poder têm o potencial de corroer as vantagens da democracia. E isso é o que vemos na Índia”, acrescenta. Diria então que seu país está a caminho de deixar de ser uma democracia funcional? “Não. Seria errôneo afirmar isso. É uma situação muito complexa. Mas acredito que o Governo tenha usado instrumentos que tornam a democracia menos viável”, conclui o premiado economista.

LUIS DONCEL, de Madri para o EL PAÍS, em 29 MAI 2021 - 12:30 BRT

Brasil registra mais de 2,4 mil mortes em 24 horas e passa de 465 mil óbitos pela covid-19

No dia 21/5, a Fundação Oswaldo Cruz alertou para o aumento de casos e o risco de uma terceira onda da pandemia no país.


Homens enterram vítima de covid-19 em Manaus (CRÉDITO,REUTERS)

O Brasil registrou nesta segunda-feira (1/6) 2.408 mortes por covid-19 nas últimas 24h, e o total de óbitos no país chegou a 465.199, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A soma oficial de casos da doença já chega a 16.624.480, sendo 78.926 deles nas últimas 24h. A média diária de mortes nos últimos sete dias ficou em 1.881.

O mês de abril registrou mais de 82 mil óbitos pela covid-19 no Brasil e se tornou o mais letal desde as primeiras mortes pela doença no país, em março de 2020. Até então, março deste ano havia sido o pior período, com 66 mil óbitos.

O Brasil foi o segundo país no planeta a contabilizar mais de 400 mil óbitos causados pelo novo coronavírus. Os Estados Unidos foram os primeiros e, hoje, lideram em números da tragédia no mundo, com mais de 594 mil mortes e 33,2 milhões de casos da doença, segundo a Universidade Johns Hopkins.

BBC Nwes Brasil, em 01.06.2021

Copa América: há mais de 100 anos, Brasil desistiu de sediar evento por causa de pandemia da gripe espanhola

No fim de maio de 1919, a seleção brasileira venceu o Campeonato Sul-Americano, hoje conhecido como Copa América, após disputar a final com o Uruguai. 

A competição, que trouxe o primeiro grande título ao futebol brasileiro, estava programada para o ano anterior, mas foi adiada em razão da grave crise sanitária causada pela gripe espanhola.

Em 1918, pandemia de gripe espanhola afetou todo o mundo e matou milhões de pessoas (CRÉDITO,GETTY IMAGES)

Mais de um século depois, o Brasil está novamente no centro de uma discussão que envolve a competição esportiva e uma grave crise sanitária.

O país enfrenta a pandemia de covid-19 com uma vacinação lenta, mais de 462 mil mortes e regiões nas quais especialistas apontam que os casos da doença têm aumentado nas últimas semanas. Apesar do atual cenário, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) anunciou na segunda-feira (31/05) que o Brasil sediará a Copa América deste ano.

O ano em que outra epidemia impediu que Brasil sediasse evento esportivo

Segundo a Conmebol, o presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Rogério Caboclo, foi procurado pela confederação após os outros países desistirem de sediar a competição.

O país foi definido como sede da disputa após Argentina e Colômbia desistirem de abrigar a Copa América.

Os jogos estão previstos para ocorrer entre 13 de junho e 10 de julho. O fato se tornou alvo de duras críticas de especialistas e de membros da oposição ao governo Jair Bolsonaro.

No início da noite de segunda, o ministro chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que ainda não há nada decidido e que a realização do torneio dependerá do cumprimento de certas condições.

O imbróglio sobre a Copa América fez com que muitos relembrassem da histórica disputa de 1919.

A gripe espanhola

Presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, disse que Brasil 'vive um momento de estabilidade' na pandemia. (CRÉDITO,REUTERS)

Os primeiros casos de gripe espanhola no Brasil foram registrados por volta de meados de 1918, mesmo ano em que a enfermidade começou a se propagar pelo mundo.

A doença, de rápida propagação e que matava em poucos dias, se espalhou por diversos países por meio dos portos. Estima-se que cerca de 50 milhões de pessoas tenham morrido em decorrência da enfermidade em todo o mundo.

Por volta de setembro daquele ano, navios chegaram de outros países e pessoas infectadas pelo vírus causador dessa gripe desceram em diferentes regiões do Brasil. A doença logo se espalhou.

O governo brasileiro chegou a negar a gravidade da enfermidade. Porém, poucos dias depois, nas últimas semanas de setembro de 1918, decidiu adotar medidas preventivas, como a recomendação de que as pessoas ficassem em suas casas.

Muitos reclamaram do pedido de evitar locais públicos. Sem a devida adoção das medidas sanitárias para conter a propagação do vírus, o Brasil enfrentou uma subida vertiginosa no número de mortes pela doença.

A gravidade da situação exigiu a construção rápida de hospitais de campanha e locais para isolamento de indivíduos infectados com o vírus.

Enquanto o vírus avançava, autoridades do Rio de Janeiro passaram a ficar alertas em relação ao evento que seria sediado na então capital da República naquele ano: o Campeonato Sul-Americano, programado para novembro de 1918.

Dados da época apontam que o Rio de Janeiro contabilizou cerca de 15 mil óbitos entre setembro e novembro de 1918.

Cartaz na Argentina critica a realização de competição de futebol no país, em meio ao pior período da pandemia de covid-19. (CRÉDITO,REUTERS)

Diante da alta de casos e mortes, as autoridades decidiram suspender todos os eventos esportivos.

No período, o clima na recém-criada Confederação Brasileira de Desportos (CBD) foi ruim, porque a entidade havia se empenhado em trazer a disputa, que estava em sua terceira edição, para o Brasil naquele ano.

"Mas os principais entretenimentos, como cinema e teatro, e as escolas estavam fechados por causa da pandemia. Os campeonatos locais estavam suspensos. A situação estava muito complicada, então não havia cabimento continuar com o Sul-Americano", detalha João Manuel Casquinha, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisador sobre a história do esporte no Brasil.

Em meados de outubro de 1918, a CDB enviou um telegrama à Conmebol para comunicar que não havia condições de sediar o campeonato naquele período, em razão da explosão de casos de gripe espanhola no Rio de Janeiro e da orientação para suspender eventos públicos.

Casquinha relata que chegou a haver pressão das confederações das seleções da Argentina e do Chile para que a disputa fosse realizada em outro país. O Uruguai, que também enfrentava um duro período da pandemia de gripe espanhola, chegou a ser cogitado, porque tinha campo apropriado para a disputa. Porém, a disputa acabou adiada.

A competição de 1919

No início de 1919, os números de casos e mortes pela gripe espanhola caíram no país. Diante desse cenário, houve relaxamento nas medidas de prevenção — apesar disso, houve registros de surtos e calamidades em outras regiões do país.

O Carnaval de 1919 se tornou conhecido como uma das maiores festas populares de todos os tempos. O futebol também voltou a ser atração e os estádios dos campeonatos locais passaram a atrair multidões.

O campeonato Sul-Americano daquele ano se tornou um grande sucesso de público. Milhares de pessoas se aglomeraram para assistir aos jogos no Estádio das Laranjeiras, na cidade do Rio de Janeiro, construído para abrigar a competição internacional que reuniu Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.

No dia 29 de maio daquele ano, o Brasil venceu por um a zero o Uruguai, que havia sido o campeão nas duas primeiras edições do Campeonato Sul-Americano. Na arquibancada, 27,5 mil pessoas acompanharam o jogo.

"Já naquela época quem não tinha dinheiro para assistir o jogo dava um jeitinho, na maioria das vezes se acomodava num morro existente nas Laranjeiras com vista para o campo do Fluminense", diz trecho do texto da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) sobre o jogo da final.

Mais de um século depois


Casos de gripe espanhola no Rio de Janeiro foram fundamentais para adiar evento esportivo no passado. (CRÉDITO,BIBLIOTECA NACIONAL)

O adiamento da competição de 1919 foi citado diversas vezes nas redes sociais na segunda-feira (31/05), após o anúncio do Brasil como sede da Copa América deste ano.

Isso porque muitos comentaram que o país deveria adotar a mesma postura do passado e adiar o campeonato enquanto a pandemia não for considerada controlada.

A ideia de realizar a Copa América no Brasil surgiu após Colômbia e Argentina recusarem sediar o campeonato. Além de enfrentar a pandemia, o primeiro país passa por intensos protestos políticos, cuja repressão já causou dezenas de mortes, segundo organizações de direitos humanos. Já o governo argentino rejeitou a competição devido ao aumento de casos da covid-19 no país, que enfrenta o pior período da pandemia.

Conforme a Conmebol, o presidente da CBF, Rogério Caboclo, foi o responsável por conduzir o diálogo com o governo federal.

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) "imediatamente apoiou a iniciativa, com a aprovação dos Ministérios da Casa Civil, da Saúde, das Relações Exteriores e da Secretaria Nacional do Esporte", disse a Conmebol.

No comunicado, o presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, justificou-se dizendo que o Brasil "vive um momento de estabilidade" na pandemia.

Em entrevista à BBC News Brasil na segunda-feira, o médico Miguel Nicolelis, professor de Neurociência da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, afirmou que a realização da disputa no Brasil pode ser a "gota d'água" para a terceira onda de casos e mortes pela covid-19 no país.

O país enfrenta dificuldades relacionadas à pandemia, como o aumento de casos em algumas regiões, após queda nas últimas semanas, e o ritmo da vacinação, considerado lento.

Nicolelis definiu, durante a entrevista à BBC News Brasil, que o anúncio do Brasil como sede do campeonato é um "chute na boca dos brasileiros que perderam familiares, de todos nós que estamos há 14 meses em quarentena em casa. Mas era previsível."

"Nós viramos o escoadouro do lixo do planeta. Tudo que não deve ser feito em questão de pandemia está sendo feito aqui. Essa notícia já correu o mundo, e ninguém consegue acreditar que o segundo país em número de mortes vai sediar um evento continental", acrescentou.

Membros da oposição a Bolsonaro anunciaram medidas para suspender imediatamente a Copa América no país.

Em entrevista coletiva durante a noite de segunda-feira, o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, afirmou que o governo federal ainda está em fase de negociação sobre a realização do evento no país.

"Ainda não tem nada certo, estamos no meio do processo", disse Ramos. "Mas não vamos nos furtar a uma demanda, caso seja possível de atender", completou o ministro.

O historiador João Manuel Casquinha critica a necessidade de realização da disputa neste ano e afirma que se trata de uma situação puramente financeira.

"Em 1918, havia uma tentativa de não adiar a competição sob o argumento dos contratos que haviam sido firmados com empresas em razão da competição e precisavam ser cumpridos. E nessa época os jogadores eram amadores, não podiam ganhar salários como hoje, recebiam apenas um trocado por fora", diz, ressaltando que mesmo com essas condições a disputa foi adiada por seis meses.

"Hoje, vejo que esse interesse em continuar com a Copa é para render contratos de publicidades, além de adiantamentos de dinheiros recebidos para a competição. Os jogadores precisam trabalhar, as confederações precisam pagar as suas contas e tudo isso precisa acontecer. A questão é que agora, em 2021, o futebol é algo que envolve cifras bilionárias. Isso é um bom exemplo para entender que a vida humana não vale nada perto dos contratos, das movimentações financeiras e do entretenimento", acrescenta o professor de história.

BBC News Brasil, em 01.06.2021

'Jogadores deveriam dizer não à Copa América', defende ex-goleiro Chilavert sobre evento no Brasil

O anúncio da realização dos jogos da Copa América no Brasil levou o ex-goleiro da seleção paraguaia de futebol, José Luis Chilavert, a dizer que os jogadores estarão em perigo diante da gravidade da pandemia no país.

Ex-goleiro da seleção paraguaia, Chilavert afirma que jogadores da Copa América estarão em perigo diante da situação da pandemia (Crédito: Simon M Bruty / Getty Images)

"É uma loucura, uma aberração fazer uma Copa América neste momento. E pior ainda no Brasil, o país que todos sabemos como está na pandemia. O país com a pior situação sanitária, com mais casos (de coronavírus) na região", disse Chilavert à BBC News Brasil.

Os argumentos da Argentina para recusar a Copa América no país

Para ele, o campeonato deveria ser adiado, pelo menos por alguns meses, até que o quadro pandêmico atual possa estar mais controlado.

No domingo, a Argentina, que seria a sede originalmente, comunicou à Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) que decidiu não abrigar o evento, seguindo passo similar ao da Colômbia - que também receberia jogos, segundo o plano original.

Na Argentina, o presidente Alberto Fernández tinha declarado que o país "vive o pior momento da pandemia", mas a possibilidade de que realizasse o campeonato foi mantida até domingo.

'Saúde deve estar em primeiro lugar'

"É uma loucura, uma aberração fazer uma Copa América neste momento. E pior ainda no Brasil, o país que todos sabemos como está na pandemia", declara ex-goleiro. (Crédito: Jerome Prevost / Tempsport / Corbis / VCG VIA GETTY IMAGES)

Na visão do ex-goleiro Chilavert, que mora na Argentina, a situação em torno da realização da Copa América, em plena pandemia, mostra a "vulnerabilidade" a que os jogadores estão sendo submetidos.

Chilavert disse que os jogadores deveriam se rebelar e não participar do evento - "porque a saúde deve estar em primeiro lugar".

"Se eu estivesse hoje na seleção paraguaia, diria que não jogaria a Copa América no Brasil", afirmou. O ex-atleta paraguaio entende que os jogadores estarão "em risco" durante o evento no Brasil.

"Se algum jogador for infectado, voltará para casa e poderá infectar a família, além de poder ficar com sequelas e não poder mais jogar. Quem se responsabiliza por este perigo?", disse Chilavert.

Ele citou o jogador argentino Lionel Messi, do Barcelona, dizendo que, se o goleador for infectado, não seria a Argentina quem arcaria com sua situação sanitária e que, mesmo com possíveis seguros, a prevenção e a saúde devem falar mais forte.

"Os jogadores, se têm coragem e personalidade, deveriam dizer não à Copa América e pedir que ela seja realizada mais para frente", afirmou.

Contradição com orientações da ciência

Protestos demonstraram insatisfação de moradores com possibilidade de Argentina sediar a Copa América. Diante da grave situação da pandemia, governo do país desistiu de receber os jogos. (Crédito: Reuters / Nathalia Angarita).

Ex-goleiro do time argentino Vélez Sarsfield e três vezes eleito melhor goleiro do mundo pela Federação Internacional da História e Estatística de Futebol (IFFHS, na sigla em inglês), Chilavert observa contradições entre as orientações cientificas - e em alguns países, políticas - de defender que as pessoas fiquem em casa e tomem todas as precauções contra o coronavírus, mas permitam que a Copa América aconteça.

"As crianças não vão à escola, nem todos os idosos e pessoas de risco já foram vacinados, e, mesmo assim, se está defendendo a realização do evento. Continua o pão e circo e isso não é bom", afirmou.

Ele acha que o Brasil tem "bons estádios" para as partidas, mas que o panorama sanitário é o que importa neste momento. "Espero que a Justiça impeça (a realização da Copa América)", disse.

Na entrevista, ele fez fortes críticas à Conmebol, dizendo que a questão financeira, que envolve compromissos com os patrocinadores, está falando mais alto do que a prevenção contra a covid-19 e os cuidados dos jogadores e toda a equipe envolvida nos jogos.

"Vejam o que aconteceu com o time River Plate. Os jogadores voltaram da Colômbia infectados e, de volta, na Argentina, o time teve que jogar até sem goleiro. Um motorista do time foi infectado e morreu. Por que isso? Pra quê isso?", declarou o ex-goleiro. Ele entende que o que aconteceu com o River Plate é mais um exemplo de que os jogadores da América do Sul "estão sem proteção".

Procurada pela reportagem, a Conmebol, com sede em Assunção, no Paraguai, afirmou que era aguardada apenas a definição das sedes que realizarão o evento no Brasil.

Quando perguntados sobre as críticas contra o evento no país, diante da situação da pandemia, fontes da instituição afirmaram que "os protocolos têm 99% de efetividade", que os jogadores ficarão em "bolhas" (espécie de ilhas de isolamento) e não terão contatos com os demais.

"Desde o ano passado, quando não foi possível realizar a Copa América, por causa da pandemia, temos trabalhado, revisado e ajustado nossos protocolos, intensamente, com os médicos de forma constante. E os protocolos são efetivos", disseram as fontes, falando da capital paraguaia.

Nos bastidores da Conmebol, há críticas sobre "falhas" no protocolo do time argentino depois que pelo menos vinte integrantes do River Plate foram infectados após um jogo pela Copa Libertadores na Colômbia.

Num comunicado, depois dos contágios em série, o clube afirmou ter tomado todas as precauções, incluindo concentrações isoladas em hotéis, mas que ainda assim foi ampla a lista de infectados.

"O Clube Atlético River Plate possui hoje um time que, apesar de ter cumprido todos os protocolos, tem 25 casos positivos de coronavírus. É desalentador confirmar que não foi suficiente desenhar processos específicos e ampliar cuidados para evitar uma espiral de contágios desse tipo", afirmou-se no comunicado, que destacou ainda as conversas com a Conmebol para participar dos jogos com a menor quantidade de jogadores (aqueles sem problemas de saúde).

No texto, foi dito ainda que a principal preocupação do Clube é a "saúde e bem-estar" dos jogadores, corpo técnico e suas famílias.

Procurada pela BBC News Brasil para comentar as críticas do ex-goleiro paraguaio à realização da Copa América no Brasil, a assessoria de imprensa da CBF respondeu que a competição é coordenada pela Conmebol, quem tem os protocolos também de saúde para o evento.

Marcia Carmo, de Buenos Aires para a BBC News Brasil, em 01.06.2021

Carlos Melo: O outro lado da rua surgiu na foto

No delicado momento de pandemia, foi Jair Bolsonaro quem acionou o dispositivo das ruas. Insistiu em mostrar força e pouco caso com a Covid-19. 

Natural que cedo ou tarde o antibolsonarismo revidasse, na convicção de que mais letal que o vírus é a postura do presidente. A resistência explodiria inevitavelmente e retiraria o monopólio que ilusoriamente o bolsonarismo acreditava ter sobre o que chama de “povo”.

Foto: Taba Benedicto/Estadão

As jornadas do antibolsonarismo não devem parar por aí. Quem vacinado foi às ruas tende a repetir a dose; quem, sem a vacina, correu riscos continuará com a mesma disposição. E quem por falta de vacina se absteve, vacinado, pode aderir a novos protestos. A paisagem se alterou, o lado da Rua que faltava surgiu na foto.

Imagens aéreas sugerem que a rua oposicionista é maior que a governista – embora o extremismo possa contar com recursos espúrios, como a repressão policial. Ações como da PM de Pernambuco podem, paradoxalmente, potencializar o repúdio ao governo — como em 2013, quando uma jornalista foi igualmente baleada no olho, em São Paulo.

A aceleração da contaminação frearia o processo, mas o aumento de casos tampouco seria favorável ao governo. Também interesses eleitorais se colocam e há a quem a eventual queda de Bolsonaro em nada interesse. Mas lideranças do tipo já têm sido atropeladas e vão a reboque da indignação incontida de manifestantes.

Apostar na recuperação econômica é a bala de prata do governo. Resta saber em qual ritmo se daria e o que seria o efeito do desemprego e do recrudescimento da fome, a pouco mais de um ano da eleição. No momento, não há respostas. E, mesmo assim, restarão os mortos — que, infelizmente, não voltarão.

O potencial de piora é impressionante, eis agora a Copa América, no País. Na Colômbia, o evento que lá se realizaria já estimulou protestos; em 2013, a Copa das Confederações, no Brasil, foi explosiva. Difícil saber seus efeitos por aqui, mas positivo não será. O gás dos protestos, uma vez liberado, tende a se expandir.

Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 31.05.2021

Volta às ruas para novas manifestações divide oposição a Bolsonaro

Possível terceira onda de covid-19 pode frear novos atos contra governo após os de 29 de maio, avaliam organizadores; governistas minimizam atos

    

Manifestantes anti-Bolsonaro no sábado, em SP: movimentos debatem hoje novas convocações Foto: Taba Benedicto / Estadão

Uma eventual convocação de novas manifestações contra o governo Bolsonaro divide organizadores dos protestos de 29 de maio. A maior parte dos movimentos que organizaram as passeatas vai se reunir ao longo da semana para decidir se novos atos serão, ou não, convocados. O temor, como da primeira vez, é com o avanço dos casos da covid-19 no País. 

As manifestações seguiram agendas próprias e reuniram dezenas de milhares de pessoas em mais de 200 cidades – em muitos locais, gerando aglomerações. A avaliação entre os organizadores é de que as manifestações surpreenderam ao levar mais pessoas do que o esperado às ruas. Atitudes e reações do presidente Jair Bolsonaro são apontadas como razões que podem impulsionar novos protestos, incluindo a possibilidade de realização da Copa América no Brasil.

Um dos organizadores do atos do último sábado, Raimundo Bomfim, da Frente Brasil Popular, disse que, apesar da repercussão da mobilização nacional, é preciso ter calma ao se falar em novas manifestações por causa da terceira onda da pandemia. “Não é uma competição de rua. Não há de nossa parte esse campeonato de quem leva mais (pessoas) para a rua a cada fim de semana”. Segundo Bonfim, os coordenadores da frente devem anunciar uma decisão até, no máximo, o início da próxima semana. Protestos simbólicos ou em outros formatos não estão descartados.

Mas na pauta de uma assembleia virtual convocada para hoje está a discussão de uma possível nova data para atos nas ruas. O evento é divulgado pelo partido Unidade Popular (UP). Porém, a ideia não ganhou adesão de outras frentes. Entre os demais partidos de esquerda que levaram sua militância às ruas, há cautela. 

“O PT apoiará a decisão coletiva. As pessoas que foram às ruas, cientes dos riscos, não estavam erradas em protestar. Errado está Bolsonaro e seu governo criminoso”, disse a presidente da sigla, Gleisi Hoffmann. “Não descartamos a realização de novos protestos”, afirmou Paula Coradi, Secretária Nacional de Movimentos Sociais do PSOL. "Já está mais que provado que o Bolsonaro debocha da vida dos brasileiros, a mais recente prova disso é a realização da Copa América no Brasil, rejeitada pela Argentina justamente por conta da pandemia."

Provocações

O governo tenta minimizar os atos contra Bolsonaro. "Sabe por que teve pouca gente nessa manifestação de esquerda neste fim de semana? Porque estão apreendendo muita maconha pelo Brasil. Faltou erva para o movimento", disse o presidente a apoiadores na segunda. Os filhos do presidente, o senador Flávio (Patriota), o deputado federal Eduardo (PSL–SP) e o vereador carioca Carlos (Republicanos), passaram o fim de semana ironizando as manifestações nas redes sociais. Integrantes de “tropa de choque” bolsonarista na Câmara, deputados como Vitor Hugo, Carla Zambelli e Bia Kicis foram na mesma linha.

Além das provocações, a estratégia de desacreditar as manifestações passa por apontar contradições no discurso de oposicionistas e de questionar o número de pessoas que participaram dos atos. “Nunca fomos hipócritas de dizer que defendemos isolamento, lockdown”, disse Zambelli.

O Estadão mostrou que bolsonaristas disseminarem fake news para emplacar nas redes sociais e em aplicativos de mensagens a ideia de que imagens da manifestação na Avenida Paulista seriam na verdade de atos de 2016, de quando a militância pró-Dilma Rousseff (PT) foi às ruas contra o impeachment. Porém, é possível ver nas imagens das publicações faixas contra Bolsonaro e o boneco inflável gigante em que o presidente é representado como a morte segurando uma caixa de cloroquina.

“A tendência é que o governo continue na defensiva que o caracteriza. Bolsonaro sempre se defendeu atacando. Ao ser contrariado, grita”, disse o cientista político Humberto Dantas. “Se essa quantidade de pessoas foi às ruas mesmo com as restrições impostas pela pandemia, imagine em situações normais. Essa conta o presidente e seu entorno fizeram.”

Impeachment

Apesar de opositores apostarem no fortalecimento da pauta pró-impeachment no Congresso após os atos, Dantas diz que é improvável que o tema avance na Câmara. Um dos motivos é a relação construída pelo governo com o presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas/AL), a quem cabe decidir sobre o andamento de uma eventual abertura de processo. Ele cita ainda o apoio sólido de cerca de 28% da população, que têm avaliado o governo como bom ou ótimo em pesquisas recentes apesar da gestão da pandemia, e o "trauma" político deixado pelo impeachment de Dilma. "Partidos que se opuseram a Dilma também foram levados para o buraco. Foi traumático", diz o cientista político.

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas/PR), avalia que a campanha para 2022 foi antecipada e o País deve viver em clima eleitoral de agora até o final do próximo ano. Ele defende que o governo siga com a mesma postura de mobilização dos bolsonaristas que tem marcado o último mês. “O governo não tem de reagir, a esquerda está reagindo à mobilização bem-sucedida do governo. O governo continua com seu jogo, o presidente tem sua agenda e está cumprindo”, diz. Ele avalia, ainda, que muitos oposicionistas que foram às ruas não devem votar em apenas um candidato de oposição. “Vamos assistir, daqui e até a eleição, essas mobilizações e esses discursos que se dirigem, cada um, à sua base. Ninguém fala com a sociedade como um todo.”

Na semana passada, Lira disse em entrevista à Rádio Bandeirantes que há condições dadas para o impeachment de Bolsonaro. "O impeachment se faz por diversas circunstâncias: quando você perde a capacidade política, quando você perde a capacidade de gestão econômica, quando você cria no Brasil uma condição de desemprego absurda, quando você cria no Brasil uma condição de inflação incontrolável, quando a economia vai mal, quando o povo está na rua. Não enxergamos essa situação no Brasil", afirmou. Até agora, 118 pedidos de impeachment contra Bolsonaro já foram protocolados na Câmara.

Matheus Lara e Tulio Kruse, O Estado de S.Paulo, em 01 de junho de 2021 

As manifestações contra Bolsonaro

Foram muito significativas as manifestações contra Jair Bolsonaro. Não é trivial ir às ruas para expressar descontentamento com o governo em meio à pandemia

Foram muito significativas as manifestações do sábado passado contra o presidente Jair Bolsonaro, não somente em razão da dimensão – houve passeatas em quase todas as capitais e no Distrito Federal, além de cidades menores – e da numerosa participação, mas principalmente pela realização, em si mesma, do protesto.

Afinal, não é trivial ir às ruas para expressar descontentamento com o governo em meio a uma pandemia, que dá todos os sinais de um novo recrudescimento. Até agora, as ruas eram uma espécie de monopólio da militância radical bolsonarista, desde sempre à vontade para desafiar as orientações sanitárias para demonstrar seu apreço por Bolsonaro e sua hostilidade às instituições democráticas.

Já a oposição ao presidente, com a fundada preocupação de que aglomerações poderiam contribuir para a disseminação ainda maior do vírus, demorou a mobilizar os muitos descontentes com Bolsonaro; afinal, não era uma decisão fácil ir às ruas depois de passar meses criticando os bolsonaristas e o presidente por incentivarem ajuntamentos irresponsáveis. Como resultado dessa hesitação, os bolsonaristas investiram na narrativa segundo a qual as manifestações promovidas por eles – sem nenhuma resposta da oposição, salvo inócuos panelaços – provavam que o “povo” estava com o presidente.

Mas isso agora mudou. A detalhada exposição pública, na CPI da Pandemia, da irresponsabilidade do governo Bolsonaro na condução da crise certamente encheu muitos brasileiros de vergonha. Ao mesmo tempo, o presidente mais uma vez causou indignação ao participar ativamente de um comício no Rio de Janeiro em que a pandemia foi ignorada, coadjuvado pelo sorridente ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, símbolo da desídia na administração da pandemia.

Essa caracterização explícita do desprezo bolsonarista pelos brasileiros em geral parece ter sido a gota d’água que levou parte dos grupos de oposição a Bolsonaro a deixar de lado a prudência e convocar manifestações de rua.

Muito se dirá sobre os organizadores desses atos e suas motivações. Não se pode ignorar que o protesto do sábado passado serviu para dar força à campanha de Lula da Silva à Presidência, tão antecipada e fora de hora quanto a de Bolsonaro. Embora o chefão petista tenha silenciado a respeito da manifestação, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, deu o ar da graça, bem como dirigentes de partidos que orbitam o lulopetismo. Ademais, a maioria absoluta dos organizadores era de partidos e movimentos de esquerda, o que tende a reduzir a representatividade do protesto.

Mas seria um erro entender, a partir disso, que o antibolsonarismo seja uma exclusividade da esquerda. As pesquisas de opinião mostram que parte significativa da população rejeita Bolsonaro, e é lícito supor que, se não fossem as reticências sanitárias motivadas pela pandemia, muito mais cidadãos, de diversos credos políticos, poderiam se animar a participar de manifestações contra o presidente.

O mais importante, contudo, é constatar que os protestos da oposição tendem a marcar uma inflexão na atmosfera política. Para muita gente, o risco da continuidade do governo de Bolsonaro é maior do que o perigo representado pelo coronavírus, razão pela qual valeria a pena arriscar-se em manifestações de rua se isso causar problemas para o presidente. Exagerado ou não, esse ânimo é significativo do cansaço com a irresponsabilidade de Bolsonaro, não apenas durante a atual crise, mas praticamente desde a posse.

Tudo indica que, no momento em que o País corre o risco de uma nova onda de contaminações na pandemia, as ruas voltaram a ser a arena política nacional – o que vem se repetindo com frequência desde 2013. O embate entre o bolsonarismo e o antibolsonarismo, que antes estava restrito ao universo das redes sociais, a partir de agora poderá ser travado ao ar livre, com ou sem vírus.

Bolsonaro menosprezou os protestos da oposição, dizendo que “teve pouca gente nessa manifestação de esquerda” porque a polícia está “apreendendo muita maconha” e “faltou erva para o movimento”. A troça infantil trai um certo nervosismo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 01 de junho de 2021 | 03h00

Protestos contra Bolsonaro: 5 possíveis consequências da mobilização, segundo analistas

Os protestos contra o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), realizados em todo o país neste sábado (29/05), representam uma novidade no já bastante conturbado ambiente político nacional.

Foi a primeira vez, desde o início da pandemia do coronavírus no Brasil, em março de 2020, que um número significativo de manifestantes contrários à atual gestão tomou as ruas, rompendo um longo período marcado por atos políticos realizados apenas por simpatizantes do governo.

Impeachment de volta à mesa e aumento da 'fatura' do Centrão estão entre os possíveis efeitos das mobilizações contrárias ao governo, dizem analistas (Getty Images)

Os atos aconteceram em pelo menos 180 municípios, de 24 Estados e do Distrito Federal, mostrando que há uma ampla diversidade geográfica na parcela da população que se opõe ao atual mandatário.

Também contaram com vasta repercussão na imprensa internacional, com cobertura de veículos tão diversos como Guardian, Economist, Al Jazeera, Le Monde, NY Post, La Nación e Indian Times, contribuindo para ampliar o desgaste da imagem internacional de Jair Bolsonaro.

As manifestações de rua da oposição acontecem num momento em que Bolsonaro se vê pressionado pela queda de sua popularidade nas pesquisas de opinião mais recentes e pelo avanço das investigações da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que avalia a resposta do governo à pandemia que já matou mais de 461 mil pessoas no país.

Mas o que essa novidade política deve trazer de consequências práticas para Bolsonaro?

A BBC News Brasil ouviu Carlos Melo, cientista político e professor do Insper; Pablo Ortellado, coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital e professor da USP (Universidade de São Paulo); e Claudio Couto, cientista político e professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) para saber o que podemos esperar do "dia seguinte" das manifestações.

1. Bolsonaro perde o 'monopólio das ruas'

Uma primeira consequência das mobilizações deste sábado, segundo os analistas, é que Bolsonaro perde o "monopólio das ruas", uma situação confortável em que apenas os seus apoiadores ocupavam o espaço público para se manifestar.

"Agora ele não pode mais falar que o povo está na rua em seu apoio. Aquela ideia de 'eu autorizo, presidente' [slogan usado por manifestantes governistas] não é mais tão simples, porque tivemos um contingente grande de pessoas dizendo que não autorizam o presidente", observa Melo, do Insper.

"Bolsonaro vinha até aqui com uma certa tranquilidade em mencionar essa figura abstrata chamada 'povo', porque havia uma situação em que apenas os seus apoiadores iam para a rua", diz o cientista político. "Agora, ele perdeu o monopólio da mobilização popular e da manifestação."

Cartaz em tecido diz Impeachment, sobre uma imagem de Jair Bolsonaro, com um boneco de Lula usando uma faixa presidencial escrita 'Lula Livre' ao fundo.

"O tamanho da manifestação e sua difusão pelo território nacional colocam de novo no horizonte um impeachment que parecia um pouco 'enterrado'", diz Pablo Ortellado, da USP (Buda Mendes / Getty Images)

2. Impeachment volta à mesa

Para Pablo Ortellado, da USP, uma outra consequência dos protestos deste fim de semana é que aumenta a pressão pelo impeachment no Congresso Nacional.

"O tamanho da manifestação e sua difusão pelo território nacional colocam de novo no horizonte um impeachment que parecia um pouco 'enterrado' pela persistência da aprovação do Bolsonaro", avalia o pesquisador.

Para Ortellado, isso gera diversas consequências, que vão desde novas movimentações para que o impeachment aconteça, até o aumento do "preço" que os deputados e senadores do Centrão cobram pelo apoio ao governo.

Carlos Melo avalia que o fato de o PT, principal partido da oposição, não ter interesse no impeachment nesse momento - já que o partido vê benefícios no desgaste de Bolsonaro para seu próprio projeto eleitoral de 2022 - não é um fator impeditivo para que o clamor pelo impedimento presidencial avance.

"O impeachment é sempre algo que depende muito mais da insatisfação popular e da mobilização de massas do que da vontade dos atores pura e simplesmente", diz o professor do Insper, lembrando dos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff.

"Com isso, não quero dizer que vai ter impeachment, mas não posso afirmar de forma alguma que simplesmente não vai ter porque o establishment não quer. Não é assim que a coisa ocorre."

Claudio Couto, da FGV, por sua vez, avalia que o impeachment volta como uma bandeira de mobilização, mas não necessariamente como "um item real do cardápio".

Segundo ele, são duas as razões para isso: a proximidade das eleições de 2022 e o fato de o vice-presidente Hamilton Mourão não se apresentar como uma alternativa confiável.

"Tem um ditado da política brasileira que diz que 'o Centrão ninguém compra, só aluga'", cita Claudio Couto, da FGV (Cleia Viana - Ag. Câmara de Noticias)

3. Aumenta a 'fatura' do Centrão

Se têm visões distintas sobre as perspectivas para o impeachment, em uma coisa os analistas são unânimes: a demonstração de força da oposição deve aumentar o preço cobrado pelo apoio do chamado "Centrão" - grupo de partidos de centro-direita que costuma estar na base de qualquer governo do país, independentemente da posição ideológica, mediante troca de favores como cargos e verbas.

"Os políticos são sensíveis às mobilizações e entendem elas como uma forma de pressão da população", avalia Melo.

"Isso aumenta a 'fatura' do Centrão e também a possibilidade de o Centrão, depois que 'resgatar essa fatura', não entregar o que prometeu, porque o Centrão é antes de tudo pragmático", observa o analista.

"Conforme a perspectiva de reeleição entra em risco, esses setores tendem a abandonar o barco, para embarcar em projetos mais promissores. Tem uma frase do Tancredo Neves que diz o seguinte: todo político vai com outro até a sepultura, mas não se joga."

Claudio Couto, da FGV, também escolhe uma frase de efeito para falar sobre essa questão.

"Tem um ditado da política brasileira que diz que 'o Centrão ninguém compra, só aluga'", cita o cientista político.

"Essa é uma ideia interessante porque ela mostra o seguinte: o Centrão não está ali para ser um partido orgânico do governo, que vai apoiá-lo até o final. Ele é importante para a aprovação de projetos, para proteger o presidente, por exemplo, de uma tentativa de impeachment, mas ele é insuficiente quando o governo enfrenta dificuldades reais. Se o Centrão perceber que o barco está afundando, ele corre para outro lado."

4. Dificulta a reeleição de Bolsonaro

A debandada do Centrão pode ter uma outra consequência para Bolsonaro: dificultar a aprovação no Congresso de projetos que o governo deve tentar encaminhar nos próximos meses com objetivo de melhorar sua popularidade para as eleições do próximo ano.

Em entrevista publicada pela Folha de S. Paulo na última segunda-feira (24/05), o ministro da Economia Paulo Guedes deixou clara essa intenção.

"Agora vem a eleição? Nós vamos para o ataque. Vai ter Bolsa Família melhorado, BIP [Bônus de Inclusão Produtiva], o BIQ [Bônus de Incentivo à Qualificação], vai ter uma porção de coisa boa para vocês baterem palma", disse o ministro, citando programa planejado pelo governo de incentivo à qualificação para jovens, tendo como contrapartida uma bolsa paga em parte pelo governo (que seria chamada de BIP) e em parte pelas empresas (BIQ).

"O projeto de reeleição depende de uma série de fatores, inclusive da aprovação de medidas na Câmara e no Senado e as manifestações enfraquecem a agenda do governo dentro do Congresso Nacional", avalia Carlos Melo.

"O governo tem desempenho frágil, é pouco realizador - não à toa Bolsonaro tem inaugurado ponte de madeira -, enfrenta o problema seríssimo da pandemia, com 460 mil mortos até agora, e uma economia que dá sinais de recuperação, mas com milhões sem emprego. Nada disso ajuda."

"De alguma forma, legitima a atuação da CPI, produz um efeito favorável no sentido de facilitar que a comissão avance no seu trabalho", diz Claudio Couto, da FGV (Ag. Senado)

5. Empodera a CPI da covid

Por fim, uma última consequência apontada pelos analistas deve afetar o novo entretenimento preferido dos brasileiros: a CPI que investiga a resposta da atual gestão à pandemia.

"A manifestação demonstra que há um grande descontentamento. Que esse setor que não gosta do Bolsonaro está com muito ímpeto", avalia Ortellado. "Isso dá mais respaldo para o bloco de oposição da CPI, porque ele se sente simbolicamente apoiado pela população."

Segundo o professor da USP, isso também deve permitir aos políticos não identificados com a oposição serem mais críticos, caso, por exemplo, do presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM).

Carlos Melo avalia que o clamor das ruas também pode retrair parte da base de apoio ao governo.

"Não acho que o Fernando Bezerra [senador pelo MDB-PE e líder do governo no Senado] amanhã estará intimidado, ou que o Flavio Bolsonaro estará intimidado. Mas uma série de nomes na CPI que andam ali no fio da navalha, fazendo discursos ambíguos, terão um pouco mais de cuidado."

Para Claudio Couto, mais do que as ruas empoderarem a CPI, são os achados da CPI que podem ajudar a esquentar a temperatura das ruas.

"A tendência é muito mais esse tipo de mobilização ser alimentada pela CPI do que o oposto. Mas, é claro, que isso também de alguma forma legitima a atuação da CPI, produz um efeito favorável no sentido de facilitar que a comissão avance no seu trabalho."

Thais Carrança, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 30.05.2021

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Brasil tem 860 novas mortes por covid-19

País registra 30.434 casos da doença em 24 horas, o que eleva o total de infectados para 16.545.554. Número acumulado de óbitos em solo brasileiro é de 462.791.

Média móvel de novas mortes em sete dias está em 1.848

O Brasil registrou oficialmente 860 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta segunda-feira (31/05).

Também foram confirmados 30.434 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 16.545.554, e os óbitos somam agora 462.791.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 14.964.631 pacientes haviam se recuperado da doença até esta segunda.

Com os dados de óbitos registrados nas últimas 24 horas, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 220,2 no país, a 9ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

A média móvel de novas mortes (soma dos óbitos nos últimos sete dias e a divisão do resultado por sete) ficou em 1.848, e a média móvel de novos casos, em 60.685.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 594 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (33,2 milhões) e Índia (28 milhões).

Ao todo, mais de 170 milhões de pessoas contraíram o coronavírus no mundo, e 3,54 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença, segundo números oficiais.

Deutsche Welle Brasil, em 31.05.2021

“Copa América no Brasil é inaceitável para a saúde pública e pode impulsionar a terceira onda”

Especialista chama a atenção para os riscos de organizar um torneio continental em momento de nova piora da pandemia no país. Com aprovação de Bolsonaro, sede foi confirmada pela Conmebol a duas semanas do início do torneio

Bolsonaro posa com jogadores após a conquista da Copa América de 2019, no Maracanã.CARL DE SOUZA / AFP

Copa América será disputada no Brasil em meio à pressão da terceira onda da pandemia

“É evidente que a Copa América pode impulsionar a terceira onda. A realização desse torneio no Brasil é absolutamente despropositada, inaceitável do ponto de vista da saúde pública, e só poderia acontecer num país que não tem respeito pela vida”. Assim resumiu Bruno Gualano, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), as possíveis consequências da escolha, anunciada pela Conmebol na manhã desta segunda-feira (31), do Brasil como sede de última hora da edição de 2021 do principal torneio entre seleções sul-americanas, marcado para começar em 13 de junho. 

Uma Copa que, negada na Colômbia pelo caos político e social e na Argentina pela crise sanitária, migrou para o país mais atingido pela pandemia de covid-19 no continente e, recentemente, envolto em protestos contra o Governo federal.

Originalmente, colombianos e argentinos dividiriam as sedes. A Colômbia recuou no dia 21 de maio, enquanto a Argentina comunicou que não receberia o torneio neste último domingo, 30 de maio. Cerca de 12 horas depois, o anúncio do substituto: “A Conmebol agradece ao presidente Jair Bolsonaro e sua equipe, assim como à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) por abrir as portas do país ao que hoje em dia é o evento esportivo mais seguro do mundo”, publicou a entidade do futebol sul-americano no Twitter. 

“O Governo brasileiro demonstrou agilidade e capacidade de decisão em um momento fundamental”, acrescentou Alejandro Domínguez, presidente da Conmebol, que ainda disse que “o Brasil vive um momento de estabilidade, tem estrutura comprovada e experiência acumulada e recente para organizar uma competição dessa magnitude”. 

Nos últimos dias, o Brasil ultrapassou 460.000 mortos e 16,5 milhões de infectados pela covid-19, além de detectar variantes brasileiras e indiana, atrasos na vacinação e aumento da lotação em hospitais que preocupam os especialistas para uma terceira onda ainda mais mortal nos meses em que será realizada a Copa América. 

“E não temos como medir o impacto desse evento nos números porque o Brasil não adotou a testagem e o rastreio de casos como uma política de combate à pandemia. Se você não testa, não sabe a dimensão do problema. Só vamos ver a ponta do iceberg lá no fim, que são o aumento de mortes e as UTIs lotadas”, comenta Bruno Gualano.

O especialista coordena, desde o ano passado, um grupo de estudo da USP que busca dimensionar os impactos que o futebol tem, com todos os seus protocolos, na crise sanitária brasileira. Em uma pesquisa divulgada em março de 2021, o grupo analisou testes feitos em mais de 4.000 atletas, homens e mulheres, de oito torneios realizados pela Federação Paulista de Futebol (FPF) em 2020, e chegou a conclusão de que o índice de infecção entre esses jogadores (11,7%) é equivalente ao de profissionais de saúde na linha de frente da pandemia. 

Foram 25 surtos detectados apenas no futebol paulista —para efeito de comparação, o futebol no Qatar, que foi usado como comparação por apresentar uma realidade semelhante à brasileira, não teve nenhum surto entre 549 atletas e o índice de casos positivos ficou em 4,4%. “É importante lembrar que esse estudo foi feito em 2020, antes da segunda onda, antes das variantes e antes do relaxamento das restrições —e só em São Paulo. Tudo indica que em 2021 foi muito pior”, pontua Gualano.

Para o especialista, a pesquisa prova que os protocolos e medidas sanitárias adotadas pelo futebol para que o setor continue funcionando em meio à pandemia “não serviram de nada”, bem como a abertura desse setor influencia no aumento de transmissões na sociedade —levando em conta somente os dados de jogadores envolvidos diretamente no esporte. 

Esses protocolos são, no entanto, o argumento para que centenas de pessoas envolvidas nas delegações de dez seleções sul-americanas, além de toda a equipe e imprensa responsável por trabalhar em um evento dessa proporção, possam comparecer a jogos em diferentes Estados no Brasil. 

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), apesar de fazer oposição a Bolsonaro durante toda a crise sanitária, afirmou em entrevista coletiva que ”não fará objeção caso a CBF defina São Paulo como um dos locais de jogos, desde que protocolos sejam obedecidos”. Na direção oposta, governadores de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), e Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), anunciaram que barrarão jogos da Copa em seu Estado.

Vacinas em cima da hora

Visando atenuar os efeitos que a realização de seus torneios podem ter na pandemia por todo o continente, a Conmebol fechou um acordo de doação no qual recebeu 50.000 doses da vacina contra o coronavírus do laboratório chinês, Sinovac, para imunizar equipes e delegações de times e seleções que disputam seus torneios continentais, em troca de patrocínio. Atlético-MG e Atlético-GO, que jogam competições sul-americanas, foram os dois times brasileiros que já imunizaram seus atletas com as doses da Conmebol. 

“É um problema ético, porque esses caras estão furando a fila para o circo passar”, opina Gualano, que lembra que, apesar dos jogadores serem perigosos vetores de transmissão, não consistem grupos de risco, enquanto muitos destes grupos não receberam sequer a primeira dose no Brasil. E, no caso da seleção brasileira, boa parte da delegação não foi vacinada a duas semanas da estreia da competição, o que inviabiliza a devida imunidade antes da realização da Copa América. 

“Além de tudo é uma medida simbólica, que passa uma falsa sensação de segurança. Resume como as prioridades são o futebol, o bar, o shopping, e não as UTIs ou os remédios para intubação. Os protocolos são só engodo”, conclui o pesquisador.

Independente das vacinas, a postura adotada pela Conmebol durante a pandemia ainda é alvo de outras críticas. Na final da Libertadores, realizada no Maracanã em 30 de janeiro, a entidade permitiu a presença de 5.000 pessoas nas arquibancadas —precedente que pode servir, inclusive, para a abertura ao público na final da Copa América, que deve ser no mesmo estádio. 

Mais recentemente, a Conmebol forçou a realização de partidas da mesma competição na Colômbia, onde jogadores do Atlético-MG e do América de Cali paralisaram a partida pelo gás lacrimogêneo oriundo da repressão a protestos sociais que aconteciam do lado de fora; e na Argentina, contornando o decreto federal que paralisou o futebol local durante os últimos dias de maio.

As sedes da Copa América ainda não foram confirmadas pela Conmebol —apenas as datas de início e fim, que permanecem em 13 de junho e 10 de julho. Nos bastidores, as maiores possibilidades apontam para partidas realizadas em locais mais estruturados, como Rio e São Paulo, e em cidades que contam com estádios herdados da Copa do Mundo cuja utilização é esporádica, uma vez que o calendário não prevê uma pausa nos jogos dos principais campeonatos nacionais. Seriam os casos de Manaus, Recife, Natal e Brasília. 

Na capital nacional, o evento esportivo já respinga entre a classe política. Randolfe Rodrigues (Rede), senador do Amapá e líder da oposição, avisou em seu Twitter que protocolou um pedido para a convocação do presidente da CBF, Rogério Caboclo, na CPI da Pandemia, que apura supostas negligências do Governo federal no combate à pandemia. Na Câmara, o deputado federal Júlio Delgado (PSB-MG) irá ao Supremo Tribunal Federal (STF) para barrar a realização do torneio no Brasil.

DIOGO MAGRI, de S. Paulo para o EL PAÍS, em 31 MAI 2021 - 17:20 BRT

José Roberto Batochio: Não se trata de genocídio, mas de crime contra a humanidade

O incremento do coronavírus se deu por ações e omissões do mecenas da doença

Na candente retórica da política não configura crime qualificar o presidente da República de genocida em razão de sua estratégia de amistosa convivência com o coronavírus. Tampouco é crime desejar a sua morte, pois a causa supralegal do “direito à perversão” isenta de punição quem deseja o falecimento de outrem, desde que não faça preparativos para tanto e, por óbvio, muito menos atue para consumar o ato. Ainda que recorrente como palavra polissêmica nas manifestações populares, a imputação leiga de genocídio estiliza a legítima crítica pública sem encontrar adequação técnica no Direito Internacional, mas é indubitável que, à luz da boa doutrina, tal conduta mais se identificaria com a que vem definida como crime contra a humanidade.

Criados pelo jurista polonês Raphael Lemkin, em 1943, com a união das palavras grega génos (família, tribo, raça) e latina caedere (matar) a partir dos episódios de extermínio de armênios e judeus, os termos genocídio/genocida foram introduzidos no Direito pelo Estatuto de Roma, tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional (TPI), em 1998, do qual o Brasil se tornou signatário pelo decreto de número 4.388/2002.

O artigo 6.º define o crime de genocídio como “qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo”.

Os crimes contra a humanidade estão conceituados no artigo 7.º, em que se tipificam as iniciativas de ataque sistemático e generalizado a populações civis, sem distinção de características físicas ou culturais, entre eles “atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”.

Nessa barbárie se enquadraria a performance do presidente – suficiente para levá-lo às barras do TPI, a exemplo do general croata Ante Gotovina, do ditador líbio Muamar Kadafi e do ex-ministro queniano William Samoei Ruto. Os “atos desumanos” do presidente do Brasil estão demonstrados em entrevistas, lives, memes e outras manifestações tão trágicas quanto sarcásticas, para sustentar uma política sanitária na qual especialistas identificam, antes de descaso com a saúde pública, uma campanha pró-vírus. Não se trata apenas de manifestações pessoais, mas de atos oficiais – como demonstrou um levantamento de 3.049 normas federais para a covid-19, analisadas pelo Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo e pela Conectas Direitos Humanos.

O incremento descontrolado do coronavírus se deu por ações e omissões. Como um mecenas da doença, o presidente não equipou o serviço de saúde para o combate à pandemia e boicotou medidas recomendadas pelas organizações internacionais, como o confinamento, o uso de máscara e a restrição a aglomerações, tanto quanto deixou de adquirir vacinas em tempo hábil, e ainda pôs em dúvida a eficácia de imunizantes, ao mesmo tempo que, como um taumaturgo desastrado, tentou sobressair com a receita de remédios ineficazes, a buscar um quiproquó diversionista de “tratamento precoce” – contradição terapêutica e semântica. Que mais poderia fazer, se, como justificou, “não é coveiro?”

A coreografia de abre-alas da pandemia, apregoando laissez-faire, laissez-aller, laissez-passer, ou deixai fazer, deixai ir, deixai passar, foi incentivo para a população viver e trabalhar como se o perigo fosse uma “gripezinha” que segrega um agente infeccioso só maléfico para os predestinados à morte, aos portadores de comorbidades e, no linguajar chulo, aos “maricas”. A degenerada epidemiologia do Planalto consistiu em deixar a natureza seguir seu curso, o vírus abater os que, em darwinismo imunológico, não adaptassem o organismo à resistência ao mal, enquanto a maioria ficaria naturalmente refratária, e sobreviesse a chamada imunidade de rebanho – ao custo, quem sabe, de alguns milhões de vidas. De quebra, a economia não sofreria tanto e a reeleição do messias estaria assegurada.

O conjunto da obra aponta para o crime contra a humanidade. Advogados brasileiros já protocolaram pedido de investigação no Tribunal Penal Internacional. Embora lento, pois segue o rito do indispensável devido processo legal, com audiências de instrução e amplo direito de defesa, o inquérito do TPI pode declarar a infâmia de uma administração que elegeu a morte como opção preferencial.

Tudo considerado, porém, não se pode negar que “#genocida” tem força de palavra de ordem e internacionaliza o problema, ao correr o mundo como motivo já invocado para intervenção estrangeira no Brasil.

José Roberto Batochio, advogado criminalista, foi Presidente nacional da OAB e Deputado Federal pelo PDT-SP. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30 de maio de 2021.

A inconstitucionalidade como tática

Bolsonaro tenta fustigar o Supremo por meio de ações acintosamente inconstitucionais

Não há nada de anormal em que, vez por outra, haja alguma tensão nas relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário. A autonomia de cada Poder não é absoluta, cabendo aos outros promover ou restabelecer o equilíbrio. Fundamento da separação dos Poderes, essa dinâmica de freios e contrapesos é o cerne do sistema proposto por Montesquieu.

O presidente Jair Bolsonaro tem, no entanto, se valido desse sistema de controle para uma nefasta manobra. O objetivo tem sido fustigar o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de atos acintosamente inconstitucionais.

A manobra se dá da seguinte forma. O governo Bolsonaro propõe ações judiciais ou edita atos que, desde o início, já se sabe que o Supremo rejeitará, em razão de manifesta inconstitucionalidade. O objetivo, no entanto, não é obter o que foi pedido. O que se quer é a decisão negativa do Judiciário.

Depois, esse conjunto de decisões judiciais contrárias ao governo Bolsonaro – afinal, não se trata apenas de uma ação manifestamente inconstitucional, mas de uma série de medidas contrárias à Constituição – é usado como desculpa para a incompetência do próprio governo. A mensagem de irresponsabilidade é simples: o presidente Jair Bolsonaro tenta fazer o bem para o País, mas o Supremo não deixa.

Exemplo dessa tática é a mais nova manobra do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia. A Advocacia-Geral da União (AGU) acionou o Supremo para questionar as medidas de restrição dos governadores de Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Norte.

O tema é pacífico. A Constituição prevê a competência compartilhada da União, Estados e municípios em relação à saúde pública.

Além disso, o Supremo, no primeiro semestre de 2020, já reconheceu que governadores e prefeitos podem decretar restrições para conter a pandemia. Ou seja, não há nenhuma dúvida sobre qual será a decisão do STF em relação à nova ação da AGU, mas mesmo assim – ou melhor, precisamente por isso – o governo Bolsonaro acionou o Supremo.

Outro ato para fustigar o Supremo diz respeito ao decreto, anunciado pelo Executivo federal, sobre as redes sociais. Sob o pretexto de regulamentar o Marco Civil da Internet, o presidente Jair Bolsonaro deseja proibir que as redes sociais excluam publicações ou suspendam perfis que contrariem as normas dessas plataformas.

As redes sociais não podem ser passivas no combate à desinformação. É crescente a percepção de que – para a saúde pública, para o livre debate de ideias e para a própria democracia – as redes sociais não podem ser um espaço sem lei.

O presidente Jair Bolsonaro promete, no entanto, fazer o exato oposto, impedindo que as redes sociais zelem pelos respectivos ambientes virtuais e pela validade de suas regras. É óbvio que um decreto com tal conteúdo não tem como prosperar no Supremo, por manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade. Mas isto é o que Jair Bolsonaro deseja: mais um pretexto para dizer a seus apoiadores que ele defendeu – e o Supremo negou – a liberdade de expressão.

Uma terceira medida sem a menor viabilidade, mas que por isso mesmo Jair Bolsonaro vem dedicando cada vez mais energia, é o voto impresso. O STF já declarou que é inconstitucional, pelos riscos de manipulação e pela desproporção do custo econômico, a obrigatoriedade da impressão de registros de votos depositados de forma eletrônica na urna. Na decisão, o Supremo lembrou que não há nenhum indício de fraude nas urnas eletrônicas. A fraude existia antes, quando se utilizava cédula de papel nas eleições.

A inviabilidade do voto impresso pouco importa, no entanto, a Jair Bolsonaro. Seu objetivo é disseminar a desconfiança no sistema eleitoral, para que possa apresentar sua eventual derrota eleitoral como resultado de um complô contra ele – um complô com a participação do Supremo.

O uso do aparato público – em última análise do dinheiro público – para produzir continuamente inconstitucionalidades não é apenas uma afronta ao Supremo. É um deboche com a Constituição e um vil insulto à Nação.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 30 de maio de 2021 

Conmebol agradece apoio de Bolsonaro e diz que protocolo da competição tem '99% de eficácia'

Torneio foi retirado da Argentina de última hora; datas serão mantidas e jogos devem ser realizados com portões fechados

Alejandro Domínguez, presidente da Conmebol Foto: Divulgação/Conmebol

A escolha do Brasil para ser a nova sede da Copa América passou pela aprovação do Presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem partido). O principal mandatário da Conmebol, Alejandro Domínguez, e do país conversaram na manhã desta segunda-feira, e o apoio do governo foi decisivo para que levar a competição para o Brasil, que não era uma opção no começo da reunião, virasse a solução.

Apesar de considerar o protocolo da CBF suficiente, a Conmebol prentende adotar o próprio durante a Copa América.

Um dos dados que a entidade faz questão de mostrar é a porcentagem de eficácia do protocolo sanitário da entidade, o mesmo da Copa Libertadores e Sul-Americana. A eficácia é superior a 99%, segundo dados oficiais da Conmebol. Em 2021, entre janeiro e maio, a entidade organizou 45 jogos da Libertadores, da Sul-Americana e Recopa, em cidades e estádios do Brasil. A Copa América, de 13 de junho a 10 de julho, terá 28 jogos.

Nas redes sociais, Alejandro Domínguez agradeceu pelo apoio.

"Hoje, recebemos o firme respaldo dos membros do Conselho da CONMEBOL que, por unanimidade, aprovaram a proposta da CONMEBOL Copa América 2021 ser disputada no Brasil. É um prazer contar com o apoio constante de nossos colegas", escreveu Alejandro.

A Conmebol anunciou na manhã desta segunda-feira que a Copa América 2021 acontecerá no Brasil. A competição de seleções estava sem sede após Argentina e Colômbia desistirem de realizar o evento, que acontecerá entre 13 de junho e 10 de julho. É a 6ª vez que o país recebe o torneio.

"A Conmebol Copa América 2021 será disputada no Brasil! As datas de início e término do torneio estão confirmadas. Os locais e os jogos serão informados nas próximas horas. O torneio de seleções mais antigo do mundo fará vibrar todo o continente!", escreveu a entidade ao anunciar a mudança em suas redes sociais.

O Globo, em 31/05/2021 - 17:15 / Atualizado em 31/05/2021, às17:25 hs.

Copa América: Pernambuco e RN rejeitam, São Paulo e Bahia só aceitam se jogos forem sem público

Jogos serão disputados sem público e até o momento, dentro da Conmebol, não há a intenção de fazer alterações neste sentido

Tão logo o Brasil foi anunciado como nova sede da Copa América, começou-se a discussão sobre quais cidades serão as sedes do torneio. A entidade e a CBF estão reunidos para tentar encontrar locais em que a realização da Copa América não interfira na realização do Campeonato Brasileiro. 

Oficialmente, a Conmebol anunciará as datas e locais ainda nesta segunda-feira. Segundo o blog do Lauro Jardim, as cidades-sedes serão Natal, Brasília, Cuiabá, Recife e Manaus. O governo de Pernambuco, uma das possíveis sedes, emitiu nota oficial informando que "nas últimas semanas foi identificada uma nova aceleração de casos, que motivou medidas restritivas no Agreste e na Região Metropolitana". E que "reforça que o atual cenário epidemiológico não permite a realização de evento do porte da Copa América no território de Pernambuco".

Nova sede da Copa América, Brasil tem média de mortes por Covid-19 próxima à da Argentina

Fátima Bezerra, governadora do Rio Grande do Norte, também foi ao Twitter afirmar que o estado não receberá quaisquer jogos. Declarou que, “apesar de sermos um dos estados com estrutura física disponível, não temos hoje níveis de segurança epidemiológica para realização do evento”.  

Ela frisou que não foi procurada por ninguém de forma oficial sobre a realização do torneio no estado. 

O Governado do Distrito Federal, uma das cidades dadas como quase certas para receber as partidas, disse que não recebeu nenhum contato oficial e tudo o que sabe é sobre a imprensa.

Já o governador da Bahia, Rui Costa, afirmou em sua conta no Twitter que "não há possibilidade de flexibilizar regras para que a Bahia seja sede". Costa frisou que jogos no estado apenas se forem sem público:

– Não será permitido público. Se a exigência é ter público, aqui na Bahia não terá.

O Governo de São Paulo informou que "não fará objeção caso a CBF defina São Paulo como um dos locais de jogos da Copa América, desde que os protocolos do Plano São Paulo sejam obedecidos", ou seja, assim como na Bahia, jogos sem público.

Wilson Lima, governador do Amazonas, também aceitou receber jogos em seu estado, mas ponderou que a contrapartida é que não haja público no estádio. 

— Não recebi nenhum contato formal. Mas em princípio não teria nenhum problema, desde que os jogos sejam sem público.

Os jogos serão disputados sem público e até o momento, dentro da Conmebol, não há a intenção de fazer alterações neste sentido.

Athos Moura, O Globo, em 31/05/2021 - 14:12 / Atualizado em 31/05/2021, às 16:28 hs.

Copa América no Brasil é desrespeito

Por Merval Pereira

A CPI da COVID terá muito assunto essa semana, mas a notícia de que a Copa América de futebol será no Brasil é uma verdadeira calamidade. 

É inacreditável que esteja acontecendo isso, com o país na iminência de uma terceira onda. É um desrespeito, mais uma tentativa de fingir que está tudo bem no Brasil. 

Foi uma decisão claramente política, que a CBF ajudou a montar.  Brasil é atualmente um pária mundial; os brasileiros estão impedidos de sair e vamos trazer gente de fora para fazer uma grande manifestação esportiva. 

Acredito até que algumas seleções não venham porque a imagem do Brasil no exterior não favorece a realização de qualquer evento internacional por aqui. 

O depoimento na CPI amanhã da médica Nise Yamaguchi será naturalmente polêmico e deve dar uma confusão no plenário. Será uma sessão midiática, mas não deve mudar nada de concreto, porque a defesa e a contestação da cloroquina já foram feitas. 

A convocação dos governadores está no STF. É uma disputa política dentro da CPI e reflete o ambiente de contestação do governo Bolsonaro e dos objetivos da CPI.

Merval Pereira participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Letras, Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University. Este artigo foi publicado n'O Globo online, em 31/05/2021,às 13:19hs.