domingo, 25 de abril de 2021

Roberto Romano: Federação, municípios, morticínio. Tragédia nacional

Temos um povo dizimado pelo poder, que age como conquistador em terra arrasada

Jair Bolsonaro ataca Estados e municípios como inimigos a serem destruídos. Para ele, não existem cidadãos merecedores de respeito nas unidades federativas. Em vez de lutar contra a pandemia, o presidente gera batalhas contra as bases administrativas e políticas do País. Surgem os frutos assustadores: mais de 350 mil brasileiros entregues à tortura da morte sem ar, o que revolta quem sente misericórdia ou segue a ética e a moral.

O ignaro governante reitera – em cena macabra – uma guerra antiga das culturas políticas humanas. Trata-se do choque entre poderes centrais e municípios. Estes últimos eram desconhecidos na Grécia e na Roma primitiva. Ali existiam soberanas cidades-Estado. Na Itália as urbes eram livres para organizar suas práticas internas. Vencidas por Roma e ela ligadas em federação (foedus) dela recebiam em especial a justiça. O prefectus, agente romano, resolvia os casos urgentes, mas o júri reunia habitantes locais, cujas instituições eram mantidas.

Os elos entre municípios e Roma se retraíam e se estendiam conforme as vicissitudes políticas, econômicas, sociais. Ora o poder se concentrava, ora se espraiava pelas bases federadas. Os municípios conservavam independência na sua organização, a assembleia do povo elegia os dirigentes. “Os magistrados municipais têm sobre os cidadãos o imperium. Todos obedecem à lei votada pelo povo e se inclinam diante dos administradores nas taxas ou nos trabalhos públicos. Em casos extremos o município cede aos poderes centrais e a lei de Roma toma a dianteira” (Mommsen). “Em casos extremos”, sublinhemos.

Após a chamada “guerra social”, quando as cidades italianas exigiram tratamento similar ao concedido a Roma, os municípios se generalizaram. Cito novamente o grande historiador Mommsen: “O município, constituído no interior do Estado e a ele se subordinando, é uma das mais notáveis manifestações políticas e das mais fecundas da era comandada por Sylla. As reformas constitucionais de Sylla definem um Estado cuja base é múltipla, a das comunas locais”. Dentre os municípios do Estado romano temos Olissipo, Lisboa. Aquelas unidades começaram a ruir por causa dos abusos das autoridades locais, abusos agravados pelo aumento sem freios do fisco em vantagem do poder central.

Os esqueletos municipais serviram às cidades europeias na resistência ao moderno absolutismo, cuja tarefa era unificar os Estados monárquicos. Nos século 16 e 17 tudo fizeram as Cortes para arrancar finanças e poderes dos municípios. Hobbes pensa as urbes como ameaça ao poder absoluto e vê como doença “a desmesurada grandeza de uma cidade, quando ela é apta a fornecer para além de seu próprio domínio os números e o pagamento de um grande exército” (Leviatã). A história da centralização estatal passa pela beligerância entre a Corte e os municípios. Tocqueville (O Antigo Regime e a Revolução) revela as táticas do rei: ele arranca das cidades as suas prerrogativas, como a de eleger os próprios magistrados, para revendê-las com lucro aos mesmos municípios. O prefeito assim escolhido, acrescenta Tocqueville, tem poder menor do que o fiscal do Reino. Daí ser possível aquilatar o grau de corrupção do Antigo Regime. Nele tudo se vende, tudo se compra. O Antigo Regime é um imenso Centrão.

Não citei Lisboa por acaso. Quando surge o Brasil os reis europeus – incluído o português – controlam os países, os municípios perdem força. Em nossa terra os municípios existem, mas não há foedus com a Corte, apenas subordinação. Líderes locais são desprovidos de real autonomia, como seus colegas da Europa absolutista. Tal realidade vigora no Império e na República. Maria Sylvia Carvalho Franco (Homens Livres na Ordem Escravocrata) analisa o controle e o parasitismo do poder central em relação às cidades. Impostos são retirados dos cofres municipais e para eles quase nunca retornam. Tal regime faz dos poderes subordinados fontes de recursos para o Executivo do País, sem retorno em obras públicas dignas do nome.

Com documentos a autora mostra aí a fonte brasileira da indistinção entre público e privado, o compadrio político e outras mazelas. Para obter verbas surgem as oligarquias regionais. No Congresso elas vendem apoio ao presidente/monarca. Tal é a gênese do perene Centrão.

As ditaduras do século 20 reforçam o Executivo nacional. Temos uma enganosa Federação a jungir Estados e municípios. Se na Presidência há uma pessoa despótica e desprovida de saberes – jurídicos, políticos, científicos, históricos –, o combate pátrio vira carnificina. Temos um povo dizimado pela virulência do poder, que age, em relação aos municípios, como conquistador em terra arrasada. Os mortos, hoje aos milhares, são enterrados sem justiça.

Se a Federação brasileira não deixar de ser apenas farsa, seguiremos sob o guante de dirigentes que violam os direitos de Estados e municípios, espaço onde vivemos ou morremos. Quem não respeita tal fato da vida pública não merece governar.

Roberto Romano, Professor da UNICAMP, é autor de "Razões de Estado e outros Estados da Razão". ( Ed. Perspectiva). Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 25 de abril de 2021 

Tasso admite disputar prévias no PSDB

'Se meu nome servir para unir, vamos trabalhar nessa direção', diz senador tucano sobre candidatura à Presidência, em 2022

Pela primeira vez desde que foi incentivado a entrar na disputa de 2022, o  senador Tasso Jereissati (CE) admitiu participar de prévias do PSDB para a escolha do candidato à Presidência e construir uma terceira via, diante da polarização entre a esquerda e a extrema direita. “Se meu nome servir para unir, em algum momento, vamos trabalhar nessa direção”, disse o senador ao Estadão.

Integrante da CPI da Covid, Tasso gostou de ser chamado de “Biden brasileiro” por um grupo do PSDB que se refere a ele como o único político capaz de agregar forças no campo de centro. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden, de 78 anos, teve esse papel. “Vejo nele um cara que está mudando a história do mundo”, afirmou o tucano, que tem 72 anos.

Senador defende conversas com outros partidos até 2022: ‘Acho que as prévias deveriam ficar para mais tarde’ .

Senador Tasso Jereissati (PSDB) e Senadora Simone Tebet (MDB)

As prévias do PSDB estão marcadas para outubro, mas Tasso acha melhor adiá-las para 2022. “Ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte”, previu. Até hoje, o PSDB tinha três pré-candidatos à sucessão de Jair Bolsonaro: os governadores João Doria (São Paulo) e Eduardo Leite (Rio Grande do Sul), além do ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio. Agora Tasso, ex-governador do Ceará, também entrou no páreo.

O presidente do PSDB, Bruno Araújo, lançou sua candidatura à sucessão de Jair Bolsonaro. O sr. pode ser a terceira via?

Ser candidato à Presidência não está ainda nos meus planos. Eu falo “ainda”. Eu defendo a ideia de uma união do centro. Quando eu digo união é porque vejo espaço, nas próximas eleições, para um candidato entre Lula (ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva) e Bolsonaro, que não seja nem de esquerda, nem de extrema esquerda, nem de extrema direita. Com certeza eu não acho bom para o País mais quatro anos de Bolsonaro. É um governo desastroso em todos os pontos, da condução da pandemia de covid – levando o Brasil ao maior número de mortes do mundo por dia – à política econômica, que não anda. E também não vejo como repetir o governo do PT. Então, está na hora do equilíbrio. Se dividir muito, ninguém vai ter (apoio para chegar ao segundo turno). Se meu nome servir para unir, em algum momento, vamos trabalhar nessa direção.

O sr. aceitaria disputar uma prévia no partido com João Doria, Eduardo Leite e Arthur Virgílio?

Eu sempre fui defensor de prévias. Mas ponderando que essa prévia seja feita dentro do limite da coerência, de um posicionamento ético. E que sirva para unir, não para desunir. Nunca falei isso, mas acho que as prévias deveriam ficar um pouco para mais tarde, para que nós pudéssemos conversar com os outros partidos. Quando defendo essa união, eu acho que não deve ser só dentro do PSDB.

Mas, com tanta divisão no PSDB, é possível um consenso, sem necessidade de prévia?

As prévias são boas. Eu não sei se são oportunas agora (em outubro). Até o início do ano que vem, muita coisa vai acontecer. Mas isso é minha opinião. Vai prevalecer, evidentemente, a visão do partido, dos dirigentes.

Esse vácuo não beneficia a polarização Bolsonaro-Lula?

Não tem vácuo, não. Tem é candidato demais. Daqui a pouco, um começa a dar cotovelada no outro. Ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte. Um exemplo de como as coisas mudam: eu não sabia (em 2018) que tinha uma extrema direita tão radical e tão organizada. Foi uma surpresa gigantesca. E esse movimento se uniu ao antipetismo e à facada (sofrida pelo então candidato Bolsonaro). Ninguém sabia o tamanho dessa direita porque ela estava enrustida há muito tempo. Bolsonaro soube catalisar isso através das redes sociais.

Como ninguém enxergou que a direita estava se estruturando pelas redes sociais?

Desde a redemocratização se criou uma espécie de preconceito contra a direita. Era difícil você encontrar alguém que dissesse que era de direita, mesmo sendo. Significava uma afinidade com o golpe, com a ditadura, com o período autoritário. Quando falavam que o Bolsonaro poderia ganhar, eu desprezava a hipótese, solenemente. Tinha certeza de que não seria possível porque um político que fazia aquele discurso nunca poderia ganhar. Se tem uma coisa do Bolsonaro que nós temos de respeitar é que ele não mudou.

Passados dois anos de governo, Bolsonaro ainda é um candidato competitivo, apesar de todas as crises? O centro se preparou para enfrentá-lo nas redes sociais?

Não. O centro não tem rede social organizada e espalhada. Nenhum desses candidatos que estão aí tem. Vamos precisar ter.

O sr. chegou a dizer que o marqueteiro João Santana, quando estava com o PT, espalhou fake news e derrubou Marina Silva. Agora, ele foi contratado por Ciro Gomes, que é próximo ao sr. e tem conversado com esse campo de centro. Isso preocupa?

Eu não sabia que o Ciro tinha feito essa contratação. Pelo caráter do Ciro, acho muito estranho. Agora, o João Santana pagou tanto pelos seus pecados, indo preso, que talvez tenha mudado e queira se redimir.

Dizem que o sr. é o único que pode convencer  Ciro a desistir da candidatura presidencial em nome de uma aliança maior.

Eu acho difícil o Ciro sair (do páreo). Mas não acho muito difícil o Ciro vir. O Ciro já foi de esquerda, mas hoje é de centro. E acredito que ninguém vá mudar o desejo dele de tentar a Presidência. Ele tem esse objetivo na vida.

O manifesto assinado por seis presidenciáveis, em defesa da democracia, é um caminho para construir a terceira via, em 2022?

Acho que foi um primeiro passo. Como diz o poeta, “você começa o caminho caminhando”. Mas a abertura de diálogo entre todos esses candidatáveis é fundamental. Eu posso ajudar, acho até que tenho uma facilidade de diálogo. Isso não indica que seja eu o candidato. Tenho enorme admiração pelo governador Eduardo Leite.

O que falta, na  sua opinião? É um programa para unificar esse grupo ou deixar as vaidades de lado para montar uma aliança?

A palavra principal é desprendimento. Mas alguns pontos são relevantes para uma agenda comum, como meio ambiente, respeito à ciência e não desprezar a questão fiscal.

O sr. tem sido chamado por algumas alas do PSDB de ‘Biden brasileiro’ por ter um perfil capaz de unir diferentes correntes. O que acha dessa comparação?

Fico extremamente lisonjeado, mas acho que é por causa da idade (risos). Vejo nele um cara que está mudando a história do mundo. Eu meço, hoje, a responsabilidade do Bolsonaro na nossa pandemia através dos Estados Unidos. Prestem atenção na mudança que houve lá no combate à pandemia depois da eleição. E agora Biden está colocando a questão do meio ambiente na agenda do planeta.

O PSDB passou por várias crises e não conseguiu chegar nem ao segundo turno da eleição de 2018. Como o partido pode se reposicionar no jogo?

Todos os partidos sofreram crises. O PSDB, o PT, o MDB... De uma maneira geral, os partidos estão bastante desmoralizados. Nessas eleições agora, vamos ter de nos reconstruir com um programa claro e, ao mesmo tempo, restabelecer a questão da ética. 

Além do sr., quais outros nomes podem furar a polarização na campanha presidencial?

Tem o Mandetta (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta) pelo DEM. O PSDB tem aí tanto o Eduardo Leite quanto o Doria. Tem o Ciro pelo PDT. Luciano Huck é o que tem mais popularidade e está com meio caminho andado. Tem um grupo grande muito consciente dos riscos que o Brasil corre e se dispõe a conversar.

Quais riscos?

Se nós tivermos mais quatro anos de Bolsonaro, vamos ser um pária internacional, isolado do mundo. E com a economia no caos. O primeiro governo do Lula foi bom, mas ele teve como formulador de política econômica o Marcos Lisboa. Se ele vier com a política do Guido Mantega, do descontrole fiscal, nós também iremos por um caminho equivocado. Temos de reconstruir credibilidade.

A CPI da Covid pode desembocar em um processo de impeachment contra o presidente?

Não é o objetivo. Com certeza, a CPI vai levantar responsabilidades sobre esse drama que o País vive. Agora, eu acho que nós não devemos chegar a impeachment. Além de ser outra crise, é inócua porque uma CPI demora seis meses. E depois, se começar um processo de impeachment, vão no mínimo mais seis meses. O País ficaria parado e sem rumo, já chegando às eleições do ano que vem. Agora é trincar os dentes.

O ex-secretário de Comunicação Social Fábio Wajngarten disse à Veja que o Brasil não comprou antes vacinas da Pfizer por culpa do então ministro da Saúde Eduardo Pazuello. É crível que o presidente não soubesse de nada?

Eu não acho crível. Temos de averiguar, mas acho estranho que a compra de vacinas passe pelo secretário de Comunicação, e não pelo presidente. Até porque tem a célebre frase do então ministro da Saúde: “Ele manda, eu obedeço”.

O que se pode esperar da economia com o desemprego em alta e orçamento apertado? O “Posto Ipiranga” do governo corre o risco de incendiar?

Não tem mais gasolina (risos). Existe uma sensação de descontrole. A economia parada, o déficit e a inflação subindo. É o pior dos mundos. Mas há uma coisa para prestar atenção, no ano que vem. É que, em função da inflação, haverá uma bomba fiscal maior. Em 2022, o governo Bolsonaro terá mais dinheiro para gastar. Acho muito difícil o Paulo Guedes (ministro da Economia) avançar em seus planos liberais. Esse choque aconteceria de qualquer forma porque Bolsonaro nunca foi liberal. Ele sempre foi corporativista.

Muitos acreditavam que os militares fossem atuar como freio para o presidente, mas ocorreu o contrário. O sr. acha que eles podem não apoiar o projeto da reeleição?

Eu acho que os militares também ficaram surpresos. Não deveriam ficar porque Bolsonaro foi saído, não digo expulso, do Exército pela hierarquia militar. Eu acho que os militares têm de ficar neutros, como sempre estiveram. Não devemos nos preocupar com eles nas eleições. Eles têm de estar ali, respeitando a Constituição e fazendo o seu papel.

Vera Rosa e Andreza Matais, O Estado de S.Paulo, em 25 de abril de 2021 | 05h00

Em 20 anos, Câmara dos Deputados gasta R$ 6,4 bilhões com cota parlamentar

Criada em meio a pressão para o aumento salarial dos deputados em Brasília, a reserva desses recursos para reembolsar parlamentares gerou um efeito cascata no País

Plenário da Câmara dos Deputados

Somente no primeiro trimestre de 2021, a Câmara dos Deputados desembolsou R$ 32,2 milhões com a cota parlamentar. ( Crédito da foto: Najara Araújo/CD).

Entre 2001 e 2021, a Câmara dos Deputados gastou R$ 6,4 bilhões, em valores corrigidos, com a cota parlamentar - a verba que cada parlamentar federal tem para reembolsos como aluguel de carros, combustível, passagens aéreas, alimentação, contratação de serviços, entre outros. No período de duas décadas, as despesas somadas equivalem ao orçamento executado (R$ 6,5 bilhões) em 2020 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), durante a pandemia global do novo coronavírus.

Criada em meio a uma pressão para o aumento salarial dos deputados em Brasília, a reserva desses recursos para reembolsar parlamentares gerou um efeito cascata no País. Ainda no início dos anos 2000, as Assembleias Legislativas dos 26 Estados e do Distrito Federal criaram normas para as verbas indenizatórias ou cotas parlamentares com o objetivo de financiar o exercício do cargo. Câmaras Municipais espalhadas pelos 5.570 municípios brasileiros também surfaram na onda e adotaram o ressarcimento de gastos.

No Congresso, o uso de dinheiro público para esta finalidade motivou recorrentes denúncias de desvio e irregularidades nestes últimos 20 anos. O dinheiro que cada um dos 513 deputados pode gastar varia de acordo com o Estado pelo qual ele foi eleito. A cota mensal atual oscila de R$ 30,8 mil (Distrito Federal) até R$ 45,8 mil (Roraima). Somente nos três primeiros meses de 2021, a Câmara desembolsou R$ 32,2 milhões com a cota parlamentar. Os dados das despesas com a cota são da própria Câmara, por meio de sua assessoria de imprensa.

Em julho do ano passado, o Estadão revelou que deputados da base governista e da oposição transformaram a divulgação da atividade na Câmara num negócio privado. Eles recorreram a empresas contratadas com dinheiro da verba de gabinete e assessores pagos pela Casa para gerir canais monetizados no YouTube, com vídeos que arrecadam recursos de acordo com o número de visualizações. Dias após a publicação da reportagem, um ato da Mesa Diretora proibiu deputados de usarem o dinheiro da cota parlamentar para contratar serviços que gerem lucro na internet. 

Em 2017, o uso irregular da verba levou o Ministério Público Federal (MPF) a apresentar à Justiça 28 denúncias contra 72 ex-deputados por envolvimento na chamada “farra” das passagens aéreas. As acusações formais foram pelo crime de peculato (desvio de dinheiro público). Quando presidiu a Câmara pela segunda vez, entre 2009 e 2010, o ex-presidente Michel Temer (MDB) limitou o uso de passagens para os próprios deputados ou seus assessores.

Além da cota, os deputados recebem salário (subsídio) mensal de R$ 26,7 mil e têm uma verba de gabinete, no valor mensal de R$ 111,7 mil, para pagar salários de até 25 secretários parlamentares que podem trabalhar em Brasília, ou no Estado pelo qual o deputado federal foi eleito.

A cota parlamentar foi uma ideia do deputado Aécio Neves (PSDB-MG), quando ele ocupava a presidência da Câmara. Nasceu com o nome de verba indenizatória. O tucano, que hoje preside a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Casa, estava sendo pressionado pelos deputados por aumento de salários. A partir daí, a iniciativa foi reproduzida em todo o País. Em janeiro de 2003, sob a presidência de Ramez Tebet (1936-2006), do então PMDB-MS, o Senado adotou a fórmula de reembolso para os 81 senadores da República.     

Na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, a criação de uma cota ocorreu três meses após a implementação da regra na Câmara. No Legislativo do Maranhão, o deputado estadual é ressarcido por despesas mensais em até R$ 41,7 mil.

Na Câmara Municipal de São Paulo, que tem seu “auxílio-encargos gerais” vigente desde 2003, cada parlamentar tem direito a R$ 25,8 mil mensais para essas despesas (gasto de R$ 17 milhões ao ano). Pagamentos a empresas de marketing e manutenção de sites – que promovem os próprios vereadores – lideram os gastos. O vereador Felipe Becari (PSD), que se elegeu pela primeira vez no ano passado com uma agenda de defesa animal, gastou, por exemplo, R$ 19,6 mil com marketing, elaboração e hospedagem de sites. Segundo sua equipe, o site servirá para receber denúncias de maus-tratos contra bichos, enquanto a empresa de marketing presta consultoria para propor projetos de leis que conversem com outros públicos. 

O montante gasto pelos deputados federais nestes 20 anos de vigência do reembolso seria suficiente para custear os gastos realizados até o momento com a compra de vacinas para a covid-19. Os R$ 6,4 bilhões poderiam manter a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) operando por quase dez anos, dado o orçamento que a agência, crucial para a análise de vacinas, teve no ano passado (R$ 659,7 milhões).

O valor da cota parlamentar no período é bem superior ao valor previsto no Orçamento de 2021 - sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro na semana passada - de vários ministérios: mais de 200% a mais do que a previsão da pasta das Relações Exteriores (R$ 1,97 bilhão); do Ministério do Turismo (R$ 2 bilhões) e do Ministério do Meio Ambiente (R$ 1,99 bilhão).

Procurada, a assessoria da Câmara dos Deputados informou que não comenta os dados disponibilizados

'Transparência'

Aécio Neves afirmou que criou as cotas porque elas são necessárias para o “exercício” do mandato parlamentar e que elas dão mais transparência aos gastos. “A regulação das despesas referentes ao exercício da atividade parlamentar teve como finalidade ordenar, controlar e dar transparência a esses gastos, além de distinguir o que era remuneração do parlamentar daquilo que eram os gastos necessários ao exercício da sua função”, afirmou o deputado mineiro, por meio de nota.

Segundo ele, a criação da cota parlamentar se inspirou “no que já existia como prática administrativa em diversos parlamentos no mundo, como nos Estados Unidos e países da Europa”. Segundo o deputado, o uso das cotas deve ser fiscalizado pelos instrumentos de controle “e os responsáveis, devidamente punidos”.

Sem cotas

Na atual legislatura, dois deputados não usam a cota parlamentar da Câmara: a deputada Paula Belmonte (Cidadania-DF) e o deputado Hercílio Coelho Diniz (MDB-MG).“Fiz esse compromisso antes de ser eleita”, afirmou a deputada. “Não usei também recursos para mudança antes da posse, e recusei a aposentadoria especial e o plano de saúde da Câmara”. 

Já Diniz disse ser favorável ao benefício, apesar de não utilizá-lo. “O salário de deputado ajuda a custear as principais despesas, que são os deslocamentos para Brasília e no estado, telefones e hospedagem”, afirmou o deputado mineiro. “Mas reconheço a realidade dos colegas que usam os benefícios, pois cada gabinete tem suas despesas e as atividades nos Estados divergem.”

Carlos Eduardo Cherem,e Bruno Ribeiro, especial para o Estadão, em 25 de abril de 2021 | 14h00

CPI da pandemia: Quem é quem na comissão que investigará ações e omissões do governo Bolsonaro

CPI da Pandemia deve se estender pelos próximos 90 dias.

O Plenário do Senado (Crédito da foto: Marcos Oliveira, Ag. Senado).

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga ações e omissões no combate à pandemia pelo poder público deve realizar a primeira reunião nesta terça-feira (27/04).

A abertura da investigação foi determinada no início de abril pelo Supremo Tribunal Federal (STF), após senadores apresentarem mandado de segurança à Corte em que argumentavam que a presidência da Casa vinha ignorando o requerimento para instalação da CPI, mesmo com os requisitos formais sendo atendidos.

Conforme esses parlamentares, o pedido de autorização havia sido feito em fevereiro ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que contou com apoio de Bolsonaro na eleição para comandar a Casa no último mês de fevereiro.

Em manifestação ao STF, Pacheco atribuiu a demora à busca pelo "momento adequado" para instalar a investigação, diante da piora do quadro da pandemia no país.

A decisão do ministro do STF Luís Roberto Barroso pontua, contudo, que a criação da CPI não está sujeita a "omissão ou análise de conveniência política por parte da Presidência da Casa Legislativa" caso seus três requisitos sejam cumpridos. São eles: a assinatura de um terço dos integrantes da Casa, a indicação de fato determinado a ser apurado e a definição de prazo certo para duração - todos cumpridos pela chamada CPI da Pandemia.

O STF já determinou a instalação de comissões parlamentares de inquérito anteriormente. Nos governos petistas, foi o caso da CPI dos Bingos, em 2005, e da CPI da Petrobras, em 2014.

O governo reagiu defendendo a ampliação do escopo da investigação, inicialmente centrada no governo federal. Assim, após requerimento feito pelo senador Eduardo Girão (Pode-CE), também serão discutidos os repasses federais a Estados e municípios.

Ainda que os rumos e os resultados concretos das CPIs sejam imprevisíveis, há expectativa de que a investigação, que se estenderá pelos próximos 90 dias, se debruce sobre uma série de questões sobre a conduta do governo federal no contexto da crise sanitária.

Se o governo foi omisso ou não na aquisição de vacinas, por exemplo, ou se colocou a população em risco ao estimular o uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença, como a cloroquina.

Bolsonaro conta com uma base pequena para defender suas posições na comissão. Entre os 11 membros, apenas 4 são governistas ou próximos ao Palácio do Planalto: Ciro Nogueira (PP-PI), Eduardo Girão (Podemos-CE), Jorginho Mello (PL-SC) e Marcos Rogério (DEM-RO).

A expectativa é que a primeira reunião marque a escolha dos parlamentares que ocuparão a presidência e vice-presidência do colegiado.

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Conheça, a seguir, o perfil de cada um dos membros da CPI.

Ciro Nogueira (PP-PI) 

Senador Ciro Nogueira diz julgar importante investigar também Estados e municípios. (Crédito da foto: Marcos Oliveira / Ag. Senado)

Um dos principais líderes do Centrão e aliado do governo, o presidente do Progressistas tem repetido em entrevistas que a CPI foi instalada no momento errado, diante do recrudescimento da pandemia, e que foi criada com o único objetivo de atacar o governo federal.

À rádio Jovem Pan o parlamentar disse que mais importante do que investigar a União é apurar os desvios de recursos públicos entre os "bilhões" transferidos a Estados e municípios para o combate à pandemia.

A afirmação faz coro à estratégia do Planalto de tentar tirar o foco do governo federal e antecipa a queda de braço que se desenha entre governistas e oposição.

Na visão de críticos, o escopo demasiadamente amplo com a inclusão dos demais entes da federação pode acabar inviabilizando a investigação na prática, dada a grande quantidade de temas tratados.

Em conversa por telefone com o senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) no início de abril, cuja gravação foi divulgada posteriormente pelo parlamentar, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que, para que fosse "útil para o Brasil", a CPI deveria incluir governadores e prefeitos.

Junto ao correligionário Alessandro Vieira, Kajuru é autor do mandado de segurança que pediu ao STF que determinasse a abertura da investigação.

Eduardo Braga (MDB-AM)

Braga governou o Amazonas por dois mandatos e foi Ministro de Minas e Energia na gestão Dilma Rousseff (Crédito da foto: AGBR)

O atual líder do MDB no Senado chegou a rebater em uma audiência na Casa em fevereiro afirmações dadas pelo então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, de que a pasta não teria sido avisada sobre o colapso no fornecimento de oxigênio à rede de saúde de Manaus.

"Eu estive com Vossa Excelência, no seu gabinete, em dezembro. Eu já dizia que nós iríamos enfrentar uma onda no Amazonas muito grave. Sugeri, inclusive, que assumisse uma unidade hospitalar no Amazonas, diante da comprovação da ineficiência do governo do meu Estado. Eu dizia a Vossa Excelência que, se não tomasse providências para assumir a execução, não seria executado. Isso nós já sabíamos quando da primeira onda", afirmou.

A crise na capital manauara, marcada pela falta de oxigênio nas unidades de saúde, é mencionada no pedido de abertura da CPI e deve ser um dos temas abordados pela investigação.

Eduardo Girão (Podemos-CE)

Girão lançou candidatura para ser presidente da CPI (Crédito da foto: Edilson Rodrigues / Ag, Senado)

O senador é autor do requerimento para ampliar o objeto de investigação da comissão e incluir a utilização dos recursos dos repasses federais a Estados e municípios no contexto da pandemia.

Apesar de reverberar a estratégia defendida pelo Planalto, o parlamentar se declara independente, argumento que tem usado para defender sua candidatura à presidência da CPI.

A "campanha" ignora o acordo informal costurado entre a maioria dos membros nos últimos dias, que aponta o senador Omar Aziz (PSD-AM) como presidente, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) como vice e Renan Calheiros (MDB-AM) como relator.

"Se a sociedade não reagir, a CPI vai blindar governadores e prefeitos que receberam bilhões de verbas federais para o enfrentamento à covid. Casos de desvios precisam ser apurados! O comando da Comissão precisa ter isenção e independência para investigar todos os entes da Federação", escreveu nesta segunda (19/04) em seu perfil no Twitter.

Junto a Kajuru e Alessandro Vieira, o parlamentar entregou em março ao presidente do Senado um pedido de impeachment contra o ministro do Supremo Alexandre de Moraes e, nos últimos dias, tem se manifestado pedindo a apreciação da petição.

"Esperamos que, com a mobilização crescente e pacífica dos cidadãos de bem, a Casa Revisora da República não engavete monocraticamente o pedido como tantos outros em gestões de ex-presidentes da instituição", afirmou em um post no Facebook de 17 de abril.

A demanda vai ao encontro de um dos trechos da gravação da conversa telefônica entre Bolsonaro e Kajuru divulgada pelo senador, em que o presidente da República afirma que vê na situação colocada pela CPI uma oportunidade de "fazer do limão uma limonada" e peticionar o Supremo para pautar os pedidos de impeachment contra os ministros da corte.

A manifestação de Bolsonaro na ocasião foi interpretada por críticos como mais um esforço para desviar o foco do governo federal no âmbito da investigação, alimentando a tensão entre os poderes.

Humberto Costa (PT-PE)

Costa é um dos parlamentares de oposição na comissão (Crédito da foto: Jefferson Rudy / Ag. Senado)

O senador de oposição faz duras críticas à condução da pandemia pelo governo federal e já chegou a acusar o presidente Jair Bolsonaro de cometer crime de responsabilidade.

Também está entre os parlamentares que defendem a abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro no Congresso.

Em entrevista à Rádio Senado, Costa afirmou acreditar que a CPI poderia ser uma forma de pressionar o governo federal "a fazer a coisa certa" no enfrentamento à crise sanitária.

Ministro da Saúde no primeiro governo Lula, entre 2003 e 2005, já adiantou que a comissão deve ouvir o atual titular da pasta, Marcelo Queiroga, e os demais que ocuparam o cargo desde o início da pandemia - Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Pazuello.

Jorginho Mello (PL-SC)

Mello é um dos aliados do presidente na comissão (Reprodução Facebook) 

O parlamentar também é integrante do chamado Centrão, filiado ao Partido Liberal. O presidente da sigla, Valdemar Costa Neto, tem se aproximado de Bolsonaro e já chegou a convidar o presidente a se filiar à legenda.

No último mês de outubro, Mello se tornou um dos vice-líderes do governo no Congresso.

Esteve com o presidente na visita a Chapecó (SC) no início de abril, quando Bolsonaro voltou a criticar as medidas de restrição adotadas por governadores e prefeitos para tentar conter o avanço do contágio da covid-19 e defendeu novamente tratamentos sem eficácia contra a doença.

Em seu perfil no Twitter, o senador afirmou que seu nome como membro da CPI da Pandemia "foi escolhido pelo bloco de partidos aliados ao presidente".

Marcos Rogério (DEM-RO)

Senador Marcos Rogério (esq.) com ex-ministro Pazuello: parlamentar é vice-líder do governo no Congresso (Reprodução Facebook) 

O senador por Rondônia é vice-líder do governo Bolsonaro no Senado.

Foi um dos parlamentares que defenderam, no início de abril, a manutenção do funcionamento de igrejas e templos religiosos apesar das restrições impostas pelos lockdowns parciais que tentavam frear o aumento de casos de covid-19 em diversas cidades.

O assunto foi parar no STF, que reconheceu o direito de Estados e municípios de proibir temporariamente missas e cultos presenciais no esforço para diminuir o contágio pela doença.

Em um vídeo veiculado no YouTube do Senado após a votação, o parlamentar criticou o voto do ministro Gilmar Mendes e disse que "não cabe ao Supremo mandar ou autorizar que fechem as igrejas".

Otto Alencar (PSD-BA)

Senador Otto Alencar diz que Pazuello foi 'instrumento' de Bolsonaro (Crédito da foto: Waldemir Barreto / Ag. Senado)

O líder do PSD no Senado é médico e foi secretário de Saúde da Bahia no início dos anos 1990.

Em entrevistas, tem criticado diversos pontos da condução da pandemia pelo governo federal, como a promoção da hidroxicloroquina (medicamento sem evidências de eficácia, mas que pode causar efeitos colaterais graves) como suposto tratamento precoce e a morosidade na assinatura de protocolos para compra de vacinas.

O parlamentar também tem feito críticas diretas a Bolsonaro. À rádio CBN afirmou recentemente que o presidente seria o responsável pelos erros na gestão da pandemia e que Pazuello teria sido apenas seu "instrumento".

"Nós também temos que investigar o procedimento que foi estabelecido pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, para que o então ministro Pazuello seguisse exatamente as suas recomendações. Porque, na verdade, o Pazuello foi só um instrumento do presidente da República, ele seguiu exatamente o que o presidente estabelecia como norma e protocolo para a ação do Ministério da Saúde no combate à covid", declarou.

Omar Aziz (PSD-AM)

Aziz é apontado como possível presidente da CPI (Crédito da foto: Jefferson Rudy / Ag. Senado)

O senador pelo Amazonas é apontado como possível presidente da comissão. Já afirmou que um dos objetivos da CPI não é buscar "vingança" ou "condenar pessoas antecipadamente".

"Nós temos é que investigar os fatos: por que não houve oxigênio para o povo do Amazonas? Por que não fizemos acordos e consórcios pra comprar vacina?", disse à Globonews.

Na mesma entrevista, o senador chegou a mencionar que perdeu o irmão recentemente para a covid-19 e disse que não culpava "ninguém" pelo ocorrido.

"Não posso dizer que o presidente ou o governador foram responsáveis. Eu quero é que mais vidas sejam salvas", acrescentou, referindo-se ao que acredita ser um dos objetivos da comissão, o estabelecimento de um protocolo único para enfrentamento da pandemia no país.

Em entrevista à BBC News Brasil, ele afirmou: 'Muito mal explicado por que não compramos as 70 milhões de doses da Pfizer'.

Randolfe Rodrigues (Rede-AP)t

Rodrigues defende que a CPI tenha foco no governo federal e que assembleias estaduais investiguem governadores (Crédito da foto: Marcelo Camargo / Ag. Brasil).

É autor da requisição que instaurou a CPI e não poupa críticas ao enfrentamento da pandemia pelo governo federal.

O parlamentar foi mencionado pelo presidente na ligação gravada por Kajuru. Na conversa, Bolsonaro se refere ao senador usando palavras de baixo calão e disse que teria de "sair na porrada" com ele.

Em entrevista à BBC News Brasil, Randolfe antecipou algumas das questões que devem ser investigadas pela comissão:

"O governo rejeitou ou não a oferta de 70 milhões de doses da Pfizer no ano passado? O governo se omitiu ou não no Consórcio Covax Facility, liderado pela OMS? O governo fez ou não campanha contra a Coronavac, que hoje responde pela maioria das doses? E, com isso, interferiu ou não para o atraso da vacinação?"

Renan Calheiros (MDB-AL)

Renan vem criticando de forma reiterada atuação do governo federal durante a pandemia (Crédito da foto: Marcos Oliveira / Ag. Senado)

A notícia de que o senador poderia ser o relator da CPI foi mal recebida entre bolsonaristas, que chegaram a fazer campanha contra a indicação com a hashtag #RenanSuspeito no Twitter.

A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) disse ter entrado com uma ação na Justiça do Distrito Federal para impedir que Renan assuma a relatoria, caso venha de fato a ser apontado pela comissão durante a primeira reunião. Em um vídeo divulgado em suas redes sociais, ela afirmou ainda que o senador teria conflito de interesses como membro da comissão, por ser pai do governador de Alagoas, Renan Filho (MDB-AL).

Renan é crítico recorrente de Bolsonaro. Chamou o presidente de "charlatão" recentemente por ter "prescrito" remédios sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus.

Apesar dos comentários, o parlamentar tem repetido que a comissão terá atuação "isenta" e "técnica".

Em entrevista à BBC News Brasil, o senador afirmou: "A primeira resposta (a ser dada pela CPI) é se houve materialização da tese da imunização de rebanho. A CPI vai dizer se houve ação ou omissão do governo e se isso pode ter agravado as circunstâncias. Em outras palavras: se o governo tivesse acertado a mão, quantas vidas poderiam ter sido salvas no Brasil?",

Tasso Jereissati (PSDB-CE)

Tasso já afirmou que acredita que o governo federal tenha responsabilidade pela crise sanitária (Crédito da foto: Marcos Oliveira / Ag. Senado) 

Em entrevista à Folha de S.Paulo no último dia 16 de abril, o tucano disse achar "difícil" que eventuais erros e omissões no combate à pandemia identificados pela CPI sejam completamente apartados do presidente Jair Bolsonaro.

Ao ponderar que "só juristas" poderão responder essa questão, o senador relembrou a teoria do domínio do fato, utilizada no julgamento do mensalão, que expressa que gestores públicos deveriam responder até mesmo pelos crimes não cometidos de forma direta, caso tivessem conhecimento e controle da situação.

Nesse sentido, Tasso afirmou ainda não haver "dúvida nenhuma que um dos principais culpados pela situação a que nós chegamos é o governo federal".

Ex-governador do Ceará, o tucano é um dos que defende uma "frente ampla" para se contrapor a Bolsonaro nas eleições de 2022.

BBC News Brasil, em 25.04.2021

Há 200 anos, Dom João 6º voltava a Portugal e, sem querer, abria caminho para independência do Brasil

Não fosse a pressão vinda de Portugal, Dom João 6º podia muito bem ir ficando no Brasil. Mas o descontentamento por lá com a ausência da família real era tamanho que havia risco inclusive para a continuidade da dinastia.

Em 26 de abril de 1821, o rei Dom João 6º embarcou de volta a Portugal (Retrato de D. João 6º por Albertus Jacob Frans Gregorius)

Do ponto de vista de uma colônia, considerando o modelo implantado durante o período conhecido como Grandes Navegações, foram bem estranhas as primeiras décadas do século 19 no Brasil.

O primeiro movimento foi a transferência de toda a corte da metrópole, Portugal, para a colônia, mais precisamente a cidade do Rio de Janeiro. Isso ocorreu em 1808 — então príncipe regente, Dom João 6º (1767-1826) se viu obrigado a fugir das tropas de Napoleão Bonaparte (1769-1821).

Se não bastasse essa configuração esdrúxula, em que o poder emanava da colônia e não da metrópole, em 1815, o monarca assinou um decreto criando o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Na prática, o Brasil deixou de ser colônia e passou a ser tratado como parte do reino.

Se do lado tupiniquim do Atlântico, a elite parecia entender que as coisas iam bem, os portugueses colecionavam descontentamentos — sem rei, longe do poder, cada vez mais mais periféricos.

Há exatos 200 anos, um novo movimento nesse xadrez tentava equilibrar as peças sem provocar xeque-mate de nenhum lado do tabuleiro.

Em 26 de abril de 1821, o rei Dom João 6º embarcou de volta a Portugal. "Junto foram cerca de 4 mil pessoas", salienta o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão (Uema). "Chegaram a Portugal em julho."

Nem os ossos ficaram para trás. "Até mesmo os membros da dinastia de Bragança que haviam morrido enquanto a família real estava no Rio de Janeiro, como a mãe de Dom João 6º, a rainha Dona Maria I, o sobrinho do rei, Dom Pedro Carlos, e uma tia, Dona Maria Ana Francisca, tiveram seus corpos levados para Portugal nos navios que transportaram a corte de volta", aponta o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre personagens da nobreza luso-brasileira.

Quadro de autor desconhecido representa a família real portuguesa embarcando de Lisboa para o Brasil

Antecedentes do retorno

Não fosse a pressão vinda de Portugal, Dom João 6º podia muito bem ir ficando no Brasil. Mas o descontentamento por lá com a ausência da família real era tamanho que havia risco inclusive para a continuidade da dinastia.

"Ele foi obrigado a voltar", enfatiza Rezzutti. "Em 1820, estourou em Portugal a Revolução do Porto, que acabou com o absolutismo do rei de Portugal, instituiu as cortes constitucionais portuguesas, que deveriam dar uma constituição, a primeira do reino, e exigiu o retorno da corte para Portugal. Segundo o manifesto produzido pelos revoltosos, eles estavam cansados de Portugal ter passado a ser tratada como uma colônia, com todos os assuntos tendo que ser resolvidos no Brasil junto à corte, que estava instalada ali desde 1808."

Também chamada de Revolução Liberal de 1820, esse movimento iniciado em agosto na cidade do Porto se espalhou por Lisboa no mês seguinte. "O movimento é chamado de liberal no sentido do juramento a uma constituição e na reorganização administrativa do Estado português, já que o monarca havia fugido por conta da invasão francesa", explica o historiador Galves.

Sessão das cortes de Lisboa, em quadro de Oscar Pereira da Silva (Crédito: Acervo Museu Paulista/USP).

O desenrolar da revolução precipitou o juramento das bases da Constituição portuguesa. "Na realidade, um texto de princípios que tomou como referência a ideia de que as cortes, como era chamado o Congresso, iria elaborar uma Constituição", complementa o historiador.

"As notícias desse conjunto de movimentações chegaram ao Rio e deixaram Dom João 6º impressionado. No fim de fevereiro de 1821 ele jurou as bases da Constituição, ou seja, assumiu ali o compromisso de respeitar a Constituição que seria elaborada e, junto com isso, o compromisso de retornar a Portugal."

"O retorno começou a ser planejado no final de 1820 e início de 1821, entretanto sempre ficou a incógnita de quem realmente iria e quem ficaria, ou se iriam todos, ou se não iria ninguém", comenta o pesquisador Rezzutti. "Após várias confusões políticas no Rio de Janeiro, Dom João finalmente tomou a decisão de deixar Dom Pedro no Brasil."

Não foi tão simples, contudo, vencer a reticência de Dom João. "A decisão foi tumultuada, como praticamente todos os episódios do governo dele", pontua Rezzutti.

Mas era preciso ter uma leitura da dimensão do que ocorria em Portugal. A Revolução Liberal ecoava a Revolução Francesa ocorrida décadas atrás e pretendia, em última instância, diminuir o poder da nobreza. Como explica o pesquisador Rezzutti, significava o "fim do absolutismo em Portugal, com a burguesia ascendendo politicamente".

"Foi um duro golpe para o rei, que viu os seus poderes diminuídos e suas ideias para a América Portuguesa ruírem", contextualiza. "Ele tergiversou o quanto pôde para não sair daqui, chegou a propor a ida do então príncipe Dom Pedro para Portugal, para que ele, Dom João, ficasse aqui com a família. Depois, voltou atrás."

Decisão tomada, em 22 de abril de 1821, Dom João 6º nomeou Dom Pedro príncipe regente — da parte brasileira, evidentemente, do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Quatro dias depois, em 26 de abril, despediu-se e voltou para as terras lusitanas.

Rezzutti provoca que ficou parecendo um presente de aniversário para a rainha, Dona Carlota Joaquina (1775-1830), já que a partida foi no dia seguinte às comemorações de seus 46 anos. "Deve ter sido um dos melhores presentes que ela recebeu, pois era público o seu desconforto com o povo brasileiro e o Brasil em geral", alfineta ele.

Gravura do desembarque de d. João 6º em Lisboa, no regresso a Portugal

Desdobramentos

Mas, se a emenda não saiu pior que o soneto, também não dá para dizer que foram agradados completamente gregos e troianos — ou portugueses e brasileiros.

Nos trópicos, uma aristocracia que havia se habituado a frequentar as proximidades do poder real de repente entendeu-se novamente rebaixada. Em Portugal, por outro lado, houve descontentamento porque Dom Pedro havia ficado para trás.

"Ao deixar o príncipe, seu herdeiro, como regente do Reino do Brasil, ele agiu à revelia dos que queriam as cortes constitucionais em Lisboa", afirma Rezzutti. "Elas queriam o retorno de toda a família real para Portugal e a extinção de qualquer centralização de poder no Brasil, que deveria ser governado diretamente da Europa."

"Dom João 6º, a partir do momento em que saiu do Brasil e deixou aqui seu filho, contrariou deliberadamente as ordens das cortes portuguesas", enfatiza ele. "A ordem era que toda a família real retornasse. Ele deliberadamente deixou aqui Dom Pedro como príncipe regente, assegurando ao Brasil a ideia de uma continuidade."

Começava a ser pavimentado o caminho da independência do Brasil — não com um movimento republicano, como vinha ocorrendo em outras colônias americanas, mas com um monarca, no caso, Dom Pedro 1º (1798-1834). "Aos poucos as cortes começaram a solapar o poder do príncipe regente para ter todo o controle do Brasil em Lisboa, o que acabou levando ao rompimento", diz Rezzutti.

Se no Brasil ficou uma estrutura estatal instalada no Rio, em Portugal passou a haver pressão pelo retorno do herdeiro. "A ideia era que se esvaziasse o poder do Rio de Janeiro", conta Galves. "No fim de setembro e em outubro, houve uma série de decisões tomadas [em Portugal] que, na prática, esvaziavam o poder do Rio de Janeiro como centro de autoridade. Isso causou um aumento de tensões."

O historiador ressalta, contudo, que, nesse momento, o que tais atritos indicavam era uma independência não no sentido de separação total de Portugal, mas sim apenas uma busca de autonomia do Brasil dentro do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.

"E o retorno do regente Pedro a Portugal comprometeria completamente esse projeto de autonomia. A situação se esgarçou a partir de janeiro de 1822 [com o histórico Dia do Fico, que sacramentou a decisão de Dom Pedro de não retornar, naquele momento, a Portugal]."

"Mas, a rigor, a ideia de independência mesmo do Brasil só começou a ser vista em agosto de 1822. Até então, as medidas eram em busca de autonomia da porção americana do reino, com Dom Pedro convocando uma assembleia constituinte, um conselho de procuradores, enfim, buscando mecanismos de aumento da legitimidade política de sua porção do reino."

A semente da rusga, porém, estava plantada. "O que levou o Brasil a se tornar independente foram as seguidas ordens intransigentes das cortes, que queriam recolonizar o Brasil a qualquer custo, impedindo um poder centralizado e administrativo no Brasil", salienta Rezzutti. "Isso afetava diretamente o interesse das elites locais e da burocracia estatal brasileira que seria desmontada."

Dom João 6º nos trajes de sua aclamação, pintura do francês Jean-Baptiste Debret

Nesse movimento, entendeu-se que era mais negócio uma independência "de continuidade" do que o risco de um esfacelamento do Brasil em várias republiquetas.

"Diversas forças nacionais chegaram à conclusão de que uma união nacional ao redor do príncipe Dom Pedro poderia consolidar a independência e evitar as diversas guerras civis que se abateriam no caso de cada facção escolher um líder que mais lhes agradasse, como acabou ocorrendo nas províncias espanholas na América durante o processo de independência", completa ele.

O que ficou no Brasil

Quando a frota marítima partiu de volta a Portugal naquele 26 de abril, ficaram pouquíssimos nobres, conforme as pesquisas de Rezzutti. Segundo ele, apenas Dom Pedro, sua esposa — a então princesa Dona Leopoldina — e os filhos do casal, Dona Maria, futura Maria 2ª de Portugal, e Dom João Carlos, não embarcaram.

Restou também, como pontua o pesquisador, a estrutura "administrativa do Reino do Brasil". Ou seja: tribunais, órgãos públicos, secretarias já existentes na época de Dom João no Rio de Janeiro.

"O decreto do pai nomeando o filho como príncipe regente estabelecia tudo o que ele podia ou não fazer na administração dos negócios de Estado e até mesmo eclesiásticos, uma vez que quem confirmava ou não bispados no Brasil era o governante e não o papa", comenta ele.

"Entre as prerrogativas cedidas por Dom João, estava a de que o jovem príncipe poderia fazer a guerra ofensiva ou defensiva contra qualquer inimigo que atacasse o reino."

"Também o decreto real assinalava que, em caso de impedimento, a regência seria assumida por Dona Leopoldina", conta. "Ainda trazia a imposição de uma tutela: Dom João partia determinando quais seriam os quatro ministros de Estado do governo de Dom Pedro. Para o cargo mais importante, o de Secretário de Estado dos Negócios do Reino do Brasil e Negócios Estrangeiros, foi nomeado o conde dos Arcos, Dom Marcos de Noronha e Brito, antigo vice-rei do Brasil e conhecedor do país."

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, 24 abril 2021

sábado, 24 de abril de 2021

Após vacinação rápida e lockdown, Israel tem o 1° dia sem mortes por covid em 10 meses

"Esta é uma grande conquista para o sistema de saúde e os cidadãos israelenses. Juntos, estamos erradicando o coronavírus", tuitou o ministro da Saúde, Yuli Edelstein, na sexta-feira (23/04)

Jovem é vacinado em Israel (Crédito da foto: Reuters)

Ao longo da pandemia, 6.346 pessoas morreram no país, segundo dados do ministério da saúde israelense. A última vez que Israel relatou zero mortes por covid-19 foi no final de junho de 2020, depois que outro lockdown conteve o avanço da primeira onda de infecções.

A doença recuou depois de atingir seu pico em janeiro deste ano. O governo israelense começou a flexibilizar as restrições à circulação de pessoas do lockdown um mês depois, à medida que as vacinações contra a covid-19 seguiam de forma mais ampla.

Israel tem a maior taxa de vacinação do mundo. Na quinta-feira, o país atingiu a marca de 5 milhões de pessoas vacinadas com as duas doses, o correspondente a 52% dos 9 milhões de habitantes — o Brasil, por exemplo, vacinou completamente 5% de seus 212 milhões de habitantes.

Na semana passada, Eyal Leshem, diretor do maior hospital de Israel, o Sheba Medical Center, disse que o país pode estar perto de alcançar a "imunidade do rebanho" ou "imunidade coletiva". A imunidade do rebanho ocorre quando um número suficiente de uma população tem proteção contra uma infecção impedindo que ela se espalhe com força.

Os especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) estimam que pelo menos 65%-70% da população precisa de cobertura de vacinação antes que a imunidade de rebanho seja alcançada. Mas ainda assim há dúvidas se esse patamar seria suficiente para conter a doença.

Leshem disse que a imunidade coletiva é a "única explicação" para a queda contínua de casos em Israel, à medida que restrições à circulação de pessoas são suspensas.

"Há uma queda contínua, apesar de voltar à normalidade", disse ele. "Isso nos diz que mesmo se uma pessoa estiver infectada, a maioria das pessoas que encontra andando por aí não será infectada por ela."

Israel começou sua campanha de vacinação em dezembro passado e, desde então, tem sido a nação líder mundial em número de doses aplicadas per capita.

O país até agora aplicou apenas a vacina desenvolvida pela dupla Pfizer e BioNTech. Em fevereiro, o ministério da Saúde de Israel disse que estudos revelaram que o risco de doenças causadas pelo vírus caiu 95,8% entre as pessoas que receberam as duas doses dessa vacina.

O país está se preparando para começar a vacinar crianças de 12 a 15 anos assim que órgãos reguladores aprovarem o uso da vacina para pessoas nessa faixa etária.

'Apartheid de vacinas'

Mas enquanto o país avançou com seu programa de vacinação, os territórios palestinos (ocupados por Israel) ficaram para trás.

Apenas os palestinos que vivem em Jerusalém Oriental receberam vacinas. (Crédito da foto: Getty Images)

Em março, os palestinos receberam a primeira remessa de cerca de 60.000 doses de vacinas sob o esquema internacional de compartilhamento de vacinas da Covax, coordenado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

No início do ano, o ministro da Saúde israelense, Yuli Edelstein, disse à BBC que, em relação ao programa de vacinação, sua primeira responsabilidade era para com os cidadãos de Israel.

Embora reconheça que o país tem "interesse" em vacinar os palestinos nos territórios ocupados por Israel, ele diz não ter uma "obrigação legal" de fazê-lo porque os Acordos de Oslo (princípios de paz assinados entre israelenses e palestinos em 1993 e que estão atualmente suspensos) "dizem claramente que os palestinos devem cuidar de sua própria saúde".

Israel incluiu em seu programa de vacinação seus cidadãos árabes e palestinos que vivem em Jerusalém Oriental, mas os outros quase 5 milhões de palestinos permanecerão desprotegidos e expostos ao coronavírus, enquanto os israelenses que vivem perto ou entre eles — incluindo colonos nos assentamentos — serão vacinados.

"Moral e legalmente, esse acesso diferenciado aos cuidados de saúde necessários em meio à pior crise global de saúde em um século é inaceitável", afirmou o Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (Acnudh).

Até o momento, a Palestina vacinou 0,85% de sua população de quase 5 milhões de pessoas. Em média, morrem atualmente 25 pessoas por dia de covid na Palestina. São registrados cerca de 1.600 novos casos, quase dez vezes mais do que Israel.

BBC News Brasil, em 24.04.2021, há 2 horas.

Merval: Brasil anda para trás

O julgamento do STF que decidiu pela suspeição do juiz Sergio Moro foi uma grande vitória política do ex-presidente Lula e uma grande derrota do combate à corrupção do Brasil, que não cansa de regredir. 

Um país que teve avanço brutal no combate à corrupção volta à estaca zero, supostamente na defesa do estado de direito, de um justo julgamento. 

Nem diante de todo o escândalo revelado, as forças políticas que querem continuar no poder, manter controle da situação, sempre encontram um jeito de prevalecer, mesmo depois de cinco, seis anos.

Impressionante que se transforme um juiz insuspeito em suspeito, com base em questões questiúnculas. Como disse o ministro Luis Roberto Barroso, todas essas leis que existem no Brasil foram feitas para não funcionar, precisam ser interpretadas de maneira mais ampla, se quiser prender corrupto. 

Antes do mensalão, nunca ninguém havia sido preso no Brasil por corrupção. E mesmo lá, tentaram desmembrar o processo – mas não conseguiram - para a acusação perder a força maior, ou seja, a combinação entre os fatos e a demonstração de que era um grupo unido para praticar a corrupção. 

Na Lava Jato conseguiram agora, cinco anos depois. Passaram anos tentando esvaziar a vara de Curitiba, que foi um avanço e agora é considerada uma operação suspeita e ilegal. Acabaram com tudo. 

O procurador-geral da República, Augusto Aras, desmontou as forças-tarefa. É o que acontece nos países onde há um grupo com interesses particulares que se interconectam, que não quer perder o poder. 

Agora Renan Calheiros volta com toda força e vai ser assessorado por Romero Jucá. É um país que está sempre andando para trás.

Merval Pereira participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Letras, Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University. Publicado originalmente em 23.04.2021, às 17:21.

Sardenberg: A culpa é do STF

Tomo emprestada a muito pertinente citação encontrada pelo advogado, jurista e escritor José Paulo Cavalcanti Filho: “O órgão que mais falhou à República não foi o Congresso; foi o Supremo Tribunal”. É de João Mangabeira, em “Rui, o estadista da República”, de 1937.

“Tenho medo de que, olhando para trás, um dia façamos juízo semelhante do Supremo de agora. Antes, pelo que não fez. Hoje, pelo que está fazendo” — acrescenta Cavalcanti Filho, em texto que pode ser encontrado em www.jp.com.br.

Pois o professor de Direito Constitucional Joaquim Falcão provavelmente entende que o Supremo de hoje é até pior que o comentado por Mangabeira. Depois de colocar as perguntas básicas acerca das últimas decisões do STF — afinal, Lula cometeu algum crime ou agiu dentro dos preceitos legais? —, Falcão arremata: “O Supremo não responde. Apenas constrói respostas reflexas. Não entra no mérito. Oculta-se em debates processuais sobre competências internas. Adia o Brasil. Nossa economia. Os investimentos. Nossa democracia. A normalização política”. (“O Estado de S.Paulo”, 23/04/21).

Mas, além de se esconder em firulas processuais (como já comentamos aqui), alguns ministros do STF, quando entram no conteúdo, apresentam teses estapafúrdias.

Ricardo Lewandowski, por exemplo. Para condenar a Lava-Jato, disse que a operação trouxe enormes prejuízos ao PIB, algo como uma perda em torno de R$ 150 bilhões, soma muito maior que o dinheiro recuperado pela força-tarefa.

De onde viria aquela perda? Do fechamento e/ou diminuição drástica das atividades de grandes empresas e empreiteiras. E mesmo na redução dos investimentos da própria Petrobras e do BNDES.

Mas não estavam todas envolvidas num enorme sistema de corrupção? Corrupção provada, demonstrada, confessada, sendo encontrado o produto do roubo nos caixas de partidos, empresas, partidos e seus chefes.

Portanto, a conta é outra. Quanto o país perdeu com as obras superfaturadas? Quanto a Petrobras terá perdido com os investimentos também superfaturados feitos em plataformas e refinarias projetadas apenas para abrir espaço para a corrupção?

Lewandowski simplesmente contou de outro modo a velha política do “rouba mas faz”, docemente aceita no século passado.

Até o mensalão, nenhum político ou grande empresário havia sido condenado por corrupção. Ainda nesse julgamento, advogados do primeiro escalão diziam: “Não se trata de corrupção, nem lavagem de dinheiro, é apenas caixa dois”.

Como se dissessem: “Qual é? Sempre foi assim”.

O mensalão abriu caminho para a Lava-Jato — força-tarefa que utilizou dos mais modernos métodos de combate à corrupção, recomendados e elogiados pela OCDE, introduzindo uma nova concepção do Direito Processual e Penal.

Durante seis anos, as operações de Curitiba e do Rio descobriram um monstruoso sistema que ligava empresas a partidos e aos governos.

Até que a velha política dá a volta por cima e, como disse o ministro Luís Roberto Barroso, agora quer vingança. Quer colocar na cadeia o ex-juiz Moro e o procurador Deltan Dallagnol.

Como não conseguem esconder que houve corrupção, ministros do STF inventam essa história de que o combate à roubalheira foi prejudicial ao país. É o contrário. Quantos investimentos deixaram de ser feitos por aqui porque só eram viáveis se os investidores entrassem na regra do jogo sujo?

Essa insegurança jurídica aparece inteiramente nas últimas decisões do Supremo. Não se sabe quem julga o que e onde. Conforme o réu e o momento, pode ser aqui ou ali. Conforme o juiz, o processo anda ou morre nas gavetas.

De certo, é a volta dos que pareciam ter ido. Lembram-se do Romero Jucá? Aquele que foi grampeado por um colega quando dizia, a propósito da Lava- Jato: precisa estancar essa sangria. Então, vai trabalhar como assessor na CPI da Covid, a ser relatada por Renan Calheiros.

Carlos Alberto Sardenberg é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 24/04/2021 • 00:02

O Globo, em editorial: Brasil perde com maioria contrária a Moro no Supremo

 Todo o edifício jurídico de provas e denúncias elaboradas pela Lava-Jato, as dezenas de delações e acordos de leniência assinados, as confissões, os R$ 14,8 bilhões em multas, os R$ 4,3 bilhões devolvidos aos cofres públicos, as penas de prisão cumpridas — tudo agora estará sujeito a revisão, mediante a conclusão, referendada no plenário do STF, de que a relação de Moro com os procuradores era espúria.


Sérgio Moro, o ex-Juiz Titular da Lava Jato (Crédito da foto: O Globo)

‘Vossa excelência perdeu’, disse o ministro Gilmar Mendes ao colega Luís Roberto Barroso no bate-boca constrangedor na sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, ao reunir votos suficientes para confirmar a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro numa das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na prática representa o sepultamento da Operação Lava-Jato.

Gilmar está certo: Barroso perdeu. Mas quem venceu não foram Gilmar e os seis ministros que votaram com ele na sessão encerrada em tumulto na quinta-feira, sem a proclamação do resultado. Quem venceu foram, além obviamente de Lula, todos os demais 174 condenados em virtude das 179 ações penais deflagradas pela força-tarefa da Lava-Jato no Paraná, assim como os réus daquelas ainda não julgadas.

Todo o edifício jurídico de provas e denúncias elaboradas pela Lava-Jato, as dezenas de delações e acordos de leniência assinados, as confissões, os R$ 14,8 bilhões em multas, os R$ 4,3 bilhões devolvidos aos cofres públicos, as penas de prisão cumpridas — tudo agora estará sujeito a revisão, mediante a conclusão, referendada no plenário do STF, de que a relação de Moro com os procuradores era espúria.

Mesmo que depois se venha a dizer que a suspeição valia apenas para Lula, ela se tornará um argumento poderoso na mão da legião de advogados de defesa, especializados nas duas manobras que garantem a impunidade no Brasil: a anulação de provas e a protelação de processos até a prescrição dos crimes. É a mesma legião que, sob o argumento de defender o Estado de Direito, se transformou num lobby articulado em favor das chicanas judiciais que fazem do Brasil terreno fértil para corrupção.

As condenações de Lula, proferidas depois de investigação e denúncia que produziram provas eloquentes — entre elas, a confissão do próprio empreiteiro que lhe deu de presente a obra no triplex no Guarujá —, foram confirmadas em duas instâncias e no STJ por dez juízes diferentes. Soçobraram por uma dessas tecnicalidades em que os advogados são especialistas: quase cinco anos depois da denúncia, o ministro Edson Fachin decidiu que Lula não poderia ter sido julgado em Curitiba. Era uma tentativa de evitar o exame da parcialidade de Moro na Segunda Turma do Supremo, que poderia fazer desmoronar todo o resto da Lava-Jato.

A manobra de Fachin não funcionou. Depois de ter segurado por dois anos seu voto sobre a parcialidade, em poucas horas Gilmar levou-o à turma e, numa votação expressa, Moro foi declarado suspeito. No plenário, formou-se quinta-feira maioria para confirmar a decisão. Só não foi confirmada porque, em meio ao bate-boca, o presidente do STF, Luiz Fux, decidiu dar a sessão por encerrada, enquanto o ministro Marco Aurélio encetava pedir vista.

Pode até haver motivos jurídicos para justificar a decisão tomada pelo plenário. Mas, no mundo real, longe do universo estéril das discussões acadêmicas, o efeito está claro: como seu principal símbolo, a Lava-Jato acabou. A operação que pela primeira vez levou para trás das grades empresários e políticos do mais alto escalão virou história. Com ela, o país desperdiçou uma oportunidade de amadurecimento institucional, uma possibilidade de substituir a impunidade e o capitalismo de compadrio seculares por um ambiente de negócios mais justo, mais maduro e mais eficiente. Quem perdeu não foi só Barroso, como afirmou Gilmar. Quem perdeu foi o Brasil.

Editorial de O Globo, em 24 de abril de 2021.

Morre Levy Fidelix, presidente nacional do PRTB, aos 69 anos

Idealizador do Aerotrem, Fidelix concorreu à Presidência da República em duas eleições

Levy Fidelix ( PRTB ) candidato a prefeito de São Paulo Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

O presidente nacional do PRTB, Levy Fidelix, morreu na noite desta sexta-feira em São Paulo. Fidelix estava internado desde março deste ano em um hospital particular da capital paulista. A família não informou a causa da morte.

"É com profunda dor e pesar que o PRTB, por sua diretoria, comunica o falecimento do nosso líder, Fundador e Presidente Nacional, Levy Fidelix, ocorrida nesta data na cidade de São Paulo. Descanse em paz homem do Aerotrem!", diz texto postado no Twitter de Fidelix.

O vice-presidente Hamilton Mourão, que é filiado ao partido de Fidelix, lamentou a morte do fundador e presidente do PRTB:

"Lamento o falecimento do fundador e presidente do PRTB, amigo Levi Fidelix. O movimento conservador brasileiro perde um dos seus principais representantes. Que o Nosso Senhor Jesus Cristo abençoe e conforte toda família", escreveu no Twitter.

Fidelix concorreu duas vezes à Presidência da República, três vezes a deputado federal, duas vezes ao cargo de governador e outras três vezes a prefeito de São Paulo. Ele nunca se elegeu.

Além de político, Fidelix atuou como jornalistas, empresário e publicitário. Ele era casado com Aldinea Rodrigues Cruz e tinha uma filha, Lívia Fidelix.

Na última disputa eleitoral, Fidelix concorreu a prefeitura de São Paulo em 2020. Terminou a disputa no 11º lugar, com 11.960 dos votos (0,22% do total).

Em entrevista ao GLOBO durante a campanha eleitoral,  o idealizador do aerotrem, afirmou que não era uma pessoa de uma proposta só e que gostaria de promover a educação digital nas escolas de São Paulo. Apoiador do presidente Jair Biolsonaro na campanha presidencial - o vice-presidente Hamilton Mourão é filiado ao PRTB - Fidelix admitiu que não tinha o apoio de Bolsonaro, mas que mantinha relações com o presidente.

O Globo, em 24/04/2021 - 07:32 / Atualizado em 24/04/2021 - 08:45

Volta de João Santana à política envolve contrato de R$ 250 mil mensais e viagem de Ciro à Bahia

Ex-marqueteiro de Lula e Dilma vai trabalhar na comunicação do PDT com o presidenciável Ciro Gomes

O acerto que selou a volta de João Santana à política foi fechado em uma viagem do pré-candidato Ciro Gomes e do presidente do PDT, Carlos Lupi, à Bahia nesta quinta-feira (22). Na conversa, ficou definido que o marqueteiro receberá R$ 250 mil por mês em um contrato com prazo de duração de um ano assinado com o partido.

Se tudo der certo, em seguida, Santana assumirá o comando da comunicação da campanha presidencial de Ciro.

— (O acerto atual) é uma preliminar. tenho esperança que ele aceite participar da campanha  — afirma Lupi.

(Mourão cogita possibilidade de concorrer ao Senado em 2022)

Além da comunicação de Ciro, Santana vai cuidar da imagem do partido e das dos demais candidatos a governador.

— A gente ganhou o passe de um gênio  — comemora o presidente do PDT.

As conversas começaram ainda no ano passado, segundo Lupi. 

— É  um namoro que já vem há algum tempo e hoje foi selado o casamento — acrescenta Lupi.

Além de trabalhar com Lula e Dima, a agência de Santana atuou, entre 2003 e 2014, em outros países, como Argentina, República Dominicana, El Salvador, Panamá, Angola e Venezuela.

Santana cumpriu prisão domiciliar até outubro de 2020. Até essa data, ele também estava proibido pela Justiça de trabalhar com marketing político. Desde então, o marqueteiro não tinha assumido um trabalho de alcance nacional. Sem poder trabalhar com política, ele participou, como backing vocal, da gravação de um disco de uma banda formada por dois amigos. Santana também assinou composições do álbum.

Agora, o marqueteiro cumpre pena em regime aberto e ao menos até o fim do ano passado usava tornozeleira eletrônica. No último dia 15, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin determinou a restituição de um celular e dois notebooks que ainda estavam sob custódia da Polícia Federal.

A contratação de Santana pelo PDT pode afastar a ex-ministra Marina Silva (Rede) de uma possível aliança. Na campanha de 2014, o marqueteiro foi responsável por peças publicitárias com ataques contra a ex-ministra.

 Sérgio Roxo para O Globo, em 23/04/2021 - 04:30

Carlos Melo: Corra, Ciro, corra

Até cair em desgraça, João Santana era estrela do marketing político não apenas nacional, mas também da América Latina. 

No tempo em que o dinheiro jorrava de empresas interessadas em agradar candidatos, compôs com Duda Mendonça o seleto grupo de magos das campanhas eleitorais, capazes de organizar estratégias e programas de TV que resultaram em vitórias memoráveis. 

Enfrentando caciques como José Serra e Aécio Neves, conseguiu o prodígio de eleger e reeleger Dilma Rousseff — primeiro a desconhecida ministra, depois a temperamental presidente.

Santana conhece os caminhos das urnas; conhece a sociologia do voto nacional, a psicologia dos eleitores. Também conhece pontos fortes e vulnerabilidades 

             Ciro, Santana, Lupi, a nova cara do PDT (Reprodução/Twitter)

Santana conhece os caminhos das urnas; conhece a sociologia do voto nacional, a psicologia dos eleitores. Também conhece pontos fortes e vulnerabilidades dos adversários de seus futuros clientes. É duro e sabe bater forte.

Por tudo isso, Ciro Gomes e o PDT o contrataram. Não ignoram que 2022 pode ser a cartada definitiva de um candidato controverso que, em sua quarta tentativa, enfrentará gigantes como Jair Bolsonaro e Lula. E, antes, no campo delineado como centro, João Doria, Eduardo Leite; talvez, Tasso Jereissati. Melhor colocar destino em mãos profissionais.

Ano passado, entrevistado pelo programa Roda Viva, da TV Cultura, Santana demonstrou animação por uma chapa “Ciro/Lula”. É pouco provável que ocorra. Ciro tem destruído pontes, com sinais contraditórios: ora, de mãos postas, apela a Lula para que passe a vez; ora, iracundo, afirma que no hipotético segundo turno entre o petista e Bolsonaro, não hesitará em viajar, mais uma vez, a Paris.

Talvez o primeiro dos trabalhos de Santana seja regular essas oscilações de Ciro, torná-lo mais estratégico e perene em seus humores e objetivos; menos mercurial e, tanto quanto possível, plácido. Não será simples. Depois, fazê-lo ganhar tração eleitoral.  Lula tem dito que, se querem que passe o bastão, será necessário, primeiro, que consigam correr à sua frente. Numa eleição, o tempo se esgota em átimos de segundo. Talvez Santana precise sussurrar em seu ouvido: “corra, Ciro, corra”.

Carlos Melo, cientista político, é  Professor do Insper. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.04.2021.

Marco Aurélio Nogueira: Pacto pelo futuro

O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos

É preciso compreender a dificuldade das oposições democráticas de se contraporem ao governo Bolsonaro.

Elas hoje preenchem um espaço amplo, vão da direita à esquerda, passando pelo imenso centro, cada pedaço com suas legítimas pretensões e seus problemas. Nas que se inclinam para o centro, o déficit passa pela ausência de lideranças incontestes, de um programa claro e de uma identidade substantiva.

As esquerdas não estão em melhor condição, embora estejam a comemorar a volta de Lula, que as magnetiza e seduz, agora com o adicional da absolvição conquistada e da incorporação de um papel de injustiçado perseguido político. Roda-se em torno de Lula como se dele emanasse a luz.

O que há de consenso cívico de repúdio e desejo de mudança não se traduz em consenso político e plataforma de atuação. Há ensaios unificadores e um esforço dedicado para que as oposições baixem o tom e conversem olho no olho. Manifestos, debates e proclamações indicam isso com clareza, o que é um alento. Mas não foram dados os passos decisivos, aqueles que fazem uma equipe vencedora. O momento é de dissolução de barreiras, retomada do diálogo e suspensão de vetos.

As oposições ainda estão a lamber as feridas da derrota de 2018. São feridas que tardam a cicatrizar, manuseadas nem sempre com habilidade. Enquanto permanecerem abertas, dificultarão aproximações e convergências, com o passado recente cobrando seu preço e embaçando o futuro. Além disso, há elementos que complicaram demais as interações, a começar da pandemia.

A pandemia tem lógica própria, deve ser enfrentada com toda a energia. Está expondo nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, a capacidade de resposta da ciência. Além dos estragos que provoca em termos de vidas e de pressão sobre o sistema sanitário, ela se mistura com os desdobramentos da revolução tecnológica do nosso tempo. A economia está desafiada, assim como o mundo do trabalho. Não há como fazer funcionar o que ficou para trás, em termos de arranjos sistêmicos, padrões organizacionais, práticas e leis. Tudo terá de ser repensado, seja para conter a disseminação da covid, seja para desenhar as políticas que serão necessárias para reforçar a saúde e proteger os desassistidos. Será preciso, além disso, reconfigurar o modo de organizar atividades produtivas, trabalhar, consumir, estudar. Estamos às portas de um começar de novo, tamanhas são as transformações com que temos de lidar.

Assistimos ao processamento de uma espécie de metamorfose, que da vida material atinge todas as esferas existenciais. Em termos políticos, centro-direita, centro-esquerda e esquerdas deveriam suspender temporariamente suas particularidades doutrinárias e ideológicas para promover a formação de um polo democrático encorpado, flexível e plural, que proponha uma política e uma governação com a marca da inovação. O momento pede que os democratas calcem as botinas da humildade e amassem barro no Brasil profundo. Não cabem jogos de cena, reiteração de projetos pessoais e checagens da força relativa de cada um.

Na política, diferenças, disputas e antagonismos não devem ser temidos. Funcionam como motores de organização e esclarecimento, na medida em que dialogam com o conjunto da sociedade e interpelam o imaginário social. Não são, porém, definitivos, compõem-se e se recompõem de múltiplas formas ao longo do tempo, criando novas exigências. Polarizações que remontam ao passado não ajudarão a que se pavimente o futuro. Se todos os democratas vencerem, haverá espaços para antagonismos mais profícuos e substantivos.

Não é fácil encontrar o ponto ótimo a partir do qual possa ocorrer tal convergência. A unidade política não exclui a diversidade, antes se alimenta dela. Constrói-se mediante muitos esforços, tensões e concessões, requerendo retomadas continuadas.

A definição desse pacto político se beneficiará da afirmação, pelos protagonistas, de alguns princípios básicos. Uma sociedade socialmente justa em termos de renda, oportunidades, etnia e gênero. Uma ideia de governo como operação cooperativa, que funcione como um colégio de líderes e especialistas, com um Executivo democratizado. A recuperação dos grandes sistemas públicos, a saúde, a educação, a assistência, o meio ambiente, a cultura, as relações exteriores, a segurança. O reconhecimento de que não deve haver tolerância com a corrupção, seja qual for a forma que assuma. Um reformismo de longo prazo, constante e progressivo, a ser definido por consultas constantes aos cidadãos. Uma ideia sustentável de desenvolvimento, que valorize e respeite o meio ambiente, o trabalho e o consumo consciente.

São pontos genéricos. Mas se forem proclamados firmemente pelos que se dispõem a governar o País, poderão mostrar que a política tem dignidade e mobilizar os cidadãos em prol da recuperação do Estado, com sua institucionalidade e seus deveres, da valorização da República (do bem público) e da reconstrução da solidariedade, que são a cada dia mais indispensáveis.

Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual de S. Paulo / UNESP. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 24 de abril de 2021 | 03h00

Pazzianotto: Anatomia do Habeas Corpus

O que levou à decisão arbitrária que fulmina a Operação Lava Jato e consagra a impunidade?

“O habeas corpus é meio processual destinado à proteção do direito de ir e vir, ameaçado por ilegalidade ou abuso de poder” - Ministro Eros Grau

O Supremo Tribunal Federal (STF) adquiriu duvidosa notoriedade nos últimos tempos. Após décadas de vida recatada, tornou-se autor de decisões nebulosas, com acentuada perda de prestígio e de autoridade.

A generalização é, todavia, injusta. Entre os 11 ministros da Suprema Corte encontramos alguns que julgam com a Constituição e são avessos ao populismo.

Exemplo de populismo jurídico é a decisão proferida em embargos declaratórios no Habeas Corpus 193.726-Paraná, relatado pelo ministro Edson Fachin. O julgamento se deu na Segunda Turma, integrada pelos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Embargo declaratório é o nome de recurso previsto no Código de Processo Penal (CPP) cujo objetivo é sanar obscuridade, contradição ou omissão na decisão embargada (artigo 619).

O habeas corpus foi ajuizado em 3 de novembro de 2020. Figurou como paciente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Atacou acórdão proferido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos autos do Recurso Especial n.º 1.765.139, “no ponto em que foram refutadas alegações de incompetência do Juízo da 13.ª Vara Federal da Subsecção Judiciária de Curitiba para o processo e julgamento da Ação Penal n.º 5046512-94.2016.4.04.7

000, indeferindo-se, por conseguinte, a pretensão de declaração de nulidade dos atos decisórios nesta praticados”.

O trecho está no relatório da decisão, do qual extraio também o seguinte parágrafo: “Após declinar argumentos pelos quais entende viável o ajuizamento da pretensão na via do habeas corpus, sustentam os impetrantes, em síntese, que, nos fatos atribuídos ao ora Paciente não há correlação entre os desvios praticados na Petrobrás e o custeio da construção do edifício ou das reformas realizadas em tal triplex, feitas em benefício e recebidas pelo Paciente (Doc. 11)”.

Desvios praticados por empreiteira na Petrobrás, sociedade de economia mista criada por lei, controlada pela União, com ações nas bolsas de valores, dos quais se beneficiaram além do Paciente, os demais acusados, causando prejuízos irreparáveis ao povo, a grandes e pequenos acionistas, à reputação do País no exterior.

A Constituição, cuja guarda incumbe ao STF, prescreve no artigo 5.º, inciso XV: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou sair com seus bens”. Enlaçado ao inciso XV temos o número LXVIII, que diz: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Ao julgarem o pedido, os integrantes da Segunda Turma ignoraram que Lula gozava de liberdade desde 8 de novembro de 2019, quando lhe foi devolvido o direito de locomoção, e a inexistência de risco de prisão. Esqueceram-se do alvará de soltura expedido pelo mesmo STF, que, após intensos debates, impôs às instâncias inferiores respeito ao artigo 5.º, LVII, da Lei Fundamental, cujo texto diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Habeas corpus não é recurso. Não há contraditório e contrarrazões. É medida pessoal específica, destinada a amparar o direito à livre locomoção. Ao anular a condenação de Lula, a decisão da Segunda Turma beneficiou seis outros réus por crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, denunciados pelo Ministério Público Federal na Ação Penal n.º 5046512-94.2016.04.7000/PR. Registre-se que a decisão condenatória havia sido confirmada no Tribunal Regional Federal de Curitiba e no Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade de votos.

No dia do ajuizamento do habeas corpus o paciente Luís Inácio Lula da Silva estava livre e circulava pelo território nacional. Organizava encontros com os olhos voltados para as eleições de 2022. Preparava-se para disputar a Presidência da República pelo Partido dos Trabalhadores. Se agisse com imparcialidade o ministro Edson Fachin teria aplicado ao pedido o artigo 659 do CPP, que diz: “se o juiz ou tribunal verificar que já cessou a violência ou coação ilegal, julgará prejudicado o pedido”.

Contra a decisão da Segunda Turma a Procuradoria-Geral da República interpôs recurso ao pleno do STF. A nulidade foi mantida por 8 votos contra 3. A corrente liderada por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, desafetos do ex-juiz Sergio Moro, foi contestada pelos ministros Kassio Marques, Marco Aurélio Mello e Luís Fux. Fiéis à Constituição e à jurisprudência, demonstraram inexistir nulidade por desvio de competência, prejuízo ao direito de defesa, abuso de poder e que fora observado o princípio do devido processo legal.

Houve colapso mental ou perda de lucidez pela maioria? Se não houve, qual o motivo para arbitrária concessão de habeas corpus que fulmina a Operação Lava Jato e consagra a impunidade contra a corrupção?

Responda o leitor.

Almir Pazzianotto Pinto, Advogado, foi Ministro do Trabalho e Presidente do Superior Tribunal do Trabalho. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 24.04.2021.