Todo o edifício jurídico de provas e denúncias elaboradas pela Lava-Jato, as dezenas de delações e acordos de leniência assinados, as confissões, os R$ 14,8 bilhões em multas, os R$ 4,3 bilhões devolvidos aos cofres públicos, as penas de prisão cumpridas — tudo agora estará sujeito a revisão, mediante a conclusão, referendada no plenário do STF, de que a relação de Moro com os procuradores era espúria.
‘Vossa excelência perdeu’, disse o ministro Gilmar Mendes ao colega Luís Roberto Barroso no bate-boca constrangedor na sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, ao reunir votos suficientes para confirmar a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro numa das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na prática representa o sepultamento da Operação Lava-Jato.
Gilmar está certo: Barroso perdeu. Mas quem venceu não foram Gilmar e os seis ministros que votaram com ele na sessão encerrada em tumulto na quinta-feira, sem a proclamação do resultado. Quem venceu foram, além obviamente de Lula, todos os demais 174 condenados em virtude das 179 ações penais deflagradas pela força-tarefa da Lava-Jato no Paraná, assim como os réus daquelas ainda não julgadas.
Todo o edifício jurídico de provas e denúncias elaboradas pela Lava-Jato, as dezenas de delações e acordos de leniência assinados, as confissões, os R$ 14,8 bilhões em multas, os R$ 4,3 bilhões devolvidos aos cofres públicos, as penas de prisão cumpridas — tudo agora estará sujeito a revisão, mediante a conclusão, referendada no plenário do STF, de que a relação de Moro com os procuradores era espúria.
Mesmo que depois se venha a dizer que a suspeição valia apenas para Lula, ela se tornará um argumento poderoso na mão da legião de advogados de defesa, especializados nas duas manobras que garantem a impunidade no Brasil: a anulação de provas e a protelação de processos até a prescrição dos crimes. É a mesma legião que, sob o argumento de defender o Estado de Direito, se transformou num lobby articulado em favor das chicanas judiciais que fazem do Brasil terreno fértil para corrupção.
As condenações de Lula, proferidas depois de investigação e denúncia que produziram provas eloquentes — entre elas, a confissão do próprio empreiteiro que lhe deu de presente a obra no triplex no Guarujá —, foram confirmadas em duas instâncias e no STJ por dez juízes diferentes. Soçobraram por uma dessas tecnicalidades em que os advogados são especialistas: quase cinco anos depois da denúncia, o ministro Edson Fachin decidiu que Lula não poderia ter sido julgado em Curitiba. Era uma tentativa de evitar o exame da parcialidade de Moro na Segunda Turma do Supremo, que poderia fazer desmoronar todo o resto da Lava-Jato.
A manobra de Fachin não funcionou. Depois de ter segurado por dois anos seu voto sobre a parcialidade, em poucas horas Gilmar levou-o à turma e, numa votação expressa, Moro foi declarado suspeito. No plenário, formou-se quinta-feira maioria para confirmar a decisão. Só não foi confirmada porque, em meio ao bate-boca, o presidente do STF, Luiz Fux, decidiu dar a sessão por encerrada, enquanto o ministro Marco Aurélio encetava pedir vista.
Pode até haver motivos jurídicos para justificar a decisão tomada pelo plenário. Mas, no mundo real, longe do universo estéril das discussões acadêmicas, o efeito está claro: como seu principal símbolo, a Lava-Jato acabou. A operação que pela primeira vez levou para trás das grades empresários e políticos do mais alto escalão virou história. Com ela, o país desperdiçou uma oportunidade de amadurecimento institucional, uma possibilidade de substituir a impunidade e o capitalismo de compadrio seculares por um ambiente de negócios mais justo, mais maduro e mais eficiente. Quem perdeu não foi só Barroso, como afirmou Gilmar. Quem perdeu foi o Brasil.
Editorial de O Globo, em 24 de abril de 2021.
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