quinta-feira, 15 de abril de 2021

STF confirma anulação das condenações de Lula na Lava Jato

Plenário do Supremo referenda decisão de Fachin que considerou a 13ª Vara Federal de Curitiba incompetente para julgar ações contra o ex-presidente. Com isso, petista retoma o direito de disputar eleições em 2022.

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou nesta quinta-feira (15/04), por 8 votos a 3, a decisão do ministro Edson Fachin que anulou todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no âmbito da Operação Lava Jato em Curitiba.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Ao derrubar as sentenças, a decisão retira o ex-presidente do alcance da Lei da Ficha Limpa, devolvendo assim seu direito de disputar eleições.

Em 8 de março, Fachin concluiu que a 13ª Vara Federal de Curitiba, que esteve sob o comando do então juiz Sergio Moro durante a maior parte da Lava Jato, não era competente para analisar e julgar as quatro ações penais que corriam ali contra o petista: a do triplex do Guarujá, a do sítio em Atibaia, a compra de um terreno para o Instituto Lula e doações feitas para o instituto.

Em seu voto nesta quinta-feira, o relator Fachin reforçou que as ações não estão diretamente relacionadas à corrupção na Petrobras – foco inicial da Lava Jato – e, por isso, não deveriam ter sido julgadas em Curitiba.

O ministro Alexandre de Morais foi o primeiro a seguir o voto do relator, favorável à anulação das condenações. Depois dele, também votaram a favor de Lula os ministros Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Luís Roberto Barroso.

Kassio Nunes Marques, Marco Aurélio Mello e o presidente da Corte, Luiz Fux, divergiram do voto de Fachin. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para o posto no STF, Nunes Marques alegou que as investigações contra o petista na Vara de Curitiba estão ligadas a crimes cometidos na Petrobras e não devem ser anuladas.

Processos encaminhados

Em sua decisão em março, Fachin, que é relator da Lava Jato no Supremo, determinou que os processos contra Lula fossem encaminhados à Justiça Federal no Distrito Federal, e que o novo juiz dos casos avalie se aproveitará parte dos atos processuais realizados em Curitiba, como depoimentos ou coleta de provas.

O habeas corpus havia sido impetrado pelos advogados do ex-presidente, Cristiano Zanin e Valeska Martins, em 3 de novembro de 2020.

Lula foi impedido de se candidatar à Presidência em 2018 porque havia sido condenado em primeira e segunda instância no caso do tríplex, julgado por Moro. A pena do petista no caso foi inicialmente de 12 anos e 7 meses – posteriormente reduzida para 8 anos e 10 meses pelo Superior Tribunal de Justiça. Lula chegou a ficar preso por um ano e sete meses.

Deutsche Welle Brasil, em 15.04.2021

Bolsonaro diz esperar 'sinal' de apoio do povo. Que povo?

‘O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu tenho que tomar providências. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização. Porque a fome, a miséria, o desemprego estão aí, pô. Só não vê quem não quer’, afirmou o presidente Jair Bolsonaro, na manhã da quarta-feira, à sua claque de plantão na porta do Palácio da Alvorada. / Comentário de Malu Gaspar n'O Globo hoje.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, durante discurso no Palácio do Planalto no dia 31 de março. Crédito da foto: Evaristo Sá/AFP)

“Esse pessoal, amigos do Supremo Tribunal Federal… Daqui a pouco vamos ter uma crise enorme aqui”, continuou. “Parece que é um barril de pólvora que está aí. E tem gente de paletó e gravata que não quer enxergar.”

Tudo o que Bolsonaro disse ali, ele já falou com outras palavras, em outras ocasiões. O golpismo continua, mas há algo diferente. O tom beligerante de um ano atrás deu lugar à desorientação e ao cansaço, e até o apelo ao povo sai sem muita convicção.

Embora o discurso para as redes bolsonaristas ainda seja triunfante e desafiador, o presidente no fundo sabe que não há nada de tão explosivo para acontecer, afora a tragédia sanitária da Covid-19, que já fez mais de 360 mil vítimas fatais. O capitão percebe, também, que seu “povo” não lhe dará nenhuma mostra de apoio mais enfática do que as já prestadas em manifestações de rua e buzinaços.

Não que elas tenham sido desprezíveis. O “mito” não deixou de ter seu público cativo. Até agora, porém, esse contingente não foi capaz de evitar a crise em que Bolsonaro se afundou.

O que o presidente da República mais precisa agora é de uma solução para o impasse em torno do Orçamento para 2021, que veio do Congresso com previsão de gastos acima do teto legal permitido, a maior parte com emendas parlamentares. Se não cortar despesas, Bolsonaro corre o risco de ser processado por crime de responsabilidade e de sofrer impeachment. Mas, se cortá-las, entra em colisão com o Congresso, que acaba de abrir uma CPI para apurar responsabilidades pelos erros na condução do governo na pandemia.

Na guerra feroz dos bastidores, líderes do Parlamento e ministros palacianos não aceitam cortes além de certo limite, considerado o mínimo necessário para deputados e senadores gastarem no “Orçamento da reeleição”. A equipe econômica defende os cortes, mas tem em Paulo Guedes um chefe politicamente cambaleante, que sofre ataques e humilhações de todos os lados, mas justifica o apego ao cargo com variações do “ruim comigo, pior sem mim”.

Embora já tenha enfrentado outras crises, Guedes nunca pareceu tão vulnerável. E não só aos olhos dos colegas de Esplanada, mas também aos dos operadores do mercado, que já especulam quem pode vir a substituí-lo. Isso diz muito não só sobre o ministro, mas também sobre o próprio presidente. Se Bolsonaro manteve o “posto Ipiranga” até hoje, foi por acreditar que abrir mão dele seria admitir uma derrota política de que talvez não pudesse se recuperar. Ele sabe que o Centrão está à espreita, esperando a vaga abrir para ocupá-la.

Nesse contexto, a fala de Fernando Collor de Mello contra a CPI da Covid, na sessão do Senado que a instalou, na última terça-feira, ganha contornos especialmente simbólicos. “Temos que ter consciência do momento que vivemos. Falo isso como alguém que já passou e viveu episódios dramáticos da vida nacional”, disse o ex-presidente, afastado depois que uma CPI desnudou as relações espúrias de seu operador, PC Farias, com a elite empresarial da época.

Há muitas diferenças entre a situação de Bolsonaro e a de Collor pré-impeachment, até porque, em 1992, a ameaça à sobrevivência dos brasileiros era “só” a inflação alta. Escândalos de corrupção abalavam o país, mas não havia centenas de milhares de mortes assombrando o Planalto. 

Mas há também semelhanças. A primeira é um governo em frangalhos, com os ministros que realmente importam se unindo em torno do presidente por poder e dinheiro. A segunda é uma CPI com maioria de membros da oposição, prestes a dar o bote.

Por fim, há um presidente acuado, que convoca o povo para ir às ruas apoiá-lo usando verde e amarelo. “Vamos mostrar a essa minoria que intranquiliza diariamente o país que já é hora de dar um basta a tudo isso”, disse Collor em agosto de 1992. “A sociedade quer tranquilidade para poder trabalhar.” Em resposta, o povo foi às ruas de preto, e Collor saiu do Planalto pelos fundos semanas depois.

Não há, por ora, sinais de que o destino de Bolsonaro será o mesmo. Mas já está claro que esse povo de quem o presidente espera sinais pouco pode fazer para salvá-lo. A esta altura, o único “povo” que pode tirar o presidente do corner é justamente essa gente que está de paletó e gravata, cercando seu gabinete em Brasília. Resta saber se ela o fará.

MALU GASPAR, Jornalista formada pela USP, cobriu política e economia nos principais veículos do país. Escritora, lançou dois livros: "Tudo ou Nada: Eike Batista e a Verdadeira História do grupo X" e "A Organização: a Odebrecht e o Esquema de Corrupção que Chocou o Mundo". Publicado originalmente n'O Globo, em 15.04.2021.

Governo Bolsonaro é o maior culpado por erros na pandemia no Brasil, indica estudo publicado na revista Science

Trabalho sai na mesma semana em que o Senado prepara CPI para investigar equívocos do governo federal na resposta à Covid-19

Cemitério Parque Taruma, em Manaus, Amazonas Foto: BRUNO KELLY/Reuters / BRUNO KELLY/Reuters

O fracasso brasileiro no combate à pandemia pode ser parcialmente atribuído a falhas de gestores públicos em diferentes lugares, mas o peso do governo federal tem um tamanho proporcionalmente muito maior na tragédia. A conclusão é de um estudo assinado por dez cientistas do Brasil e dos EUA, liderado pela demógrafa Márcia Castro, professora da Universidade Harvard, publicado na revista Science, vitrine da ciência mundial.

O trabalho, que mapeou o espalhamento da doença com detalhes no Brasil entre fevereiro e outubro do ano passado, sai na mesma semana em que o Senado prepara uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) para investigar a responsabilidade por equívocos na resposta à epidemia. Alavancada por outros estudos realizados antes, a pesquisa mostra houve grande variedade na qualidade da resposta à pandemia, e isso é uma marca típica de problemas de "omissão" e "erro" do governo federal, porque o Ministério da Saúde e o SUS são os grandes responsáveis por atenuar as desigualdades regionais nas políticas de saúde.

Bolsonaro defendeu o uso de cloroquina em lives Foto: Reprodução

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"Apesar de nenhuma narrativa única explicar a diversidade do espalhamento do vírus no Brasil, uma falha maior em implementar respostas ágeis, coordenadas e equânimes no contexto de desigualdades locais marcantes alimentou a disseminação da doença", escrevem os pesquisadores que apontam cinco ingredientes capazes de explicar por que o país foi tão mal na resposta à pandemia.

Se o primeiro ingrediente da falha foi a própria desigualdade já instalada no país, outros são problemas mais relacionados ao momento político que o país vive.

O segundo problema foi a falta de bloqueios que pudessem evitar o espalhamento da doença entre municípios e estados, porque o Brasil é um país grande e relativamente bem conectado. O terceiro ingrediente foi o fator político em si, porque cidades e estados governados por aliados do presidente Jair Bolsonaro tomaram menos ações, e a polarização ideológica prejudicou a adesão a medidas.

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O quarto elemento (o mais bem documentado no estudo de Márcia Castro) é a falha de testagem e acompanhamento da epidemia, com várias cidades tendo começado a registrar alta nas mortes por Covid-19 antes da alta de casos.

— Isso tem a ver com questões de notificação e de falha na vigilância, porque não faz sentido que seja assim. Os casos precisam aparecer antes das mortes — diz Castro, lembrando que se estima que o vírus tenha circulado por mais de um mês no país antes de ser detectado.

O quinto ingrediente, finalmente, foi a falta de sincronia nas medidas de distanciamento e contenção do vírus. A falta de uma política nacional de distanciamento social ajudou o vírus a encontrar sempre um refúgio onde pudesse crescer, explicam os cientistas.

Munição para CPI 

Questionada sobre a possibilidade do uso de seu estudo como instrumento para a CPI da pandemia, Márcia Castro afirma que as conclusões tiradas ali não foram produzidas com finalidade jurídica, e que este não foi o único estudo científico a apontar as origens dos problemas na política brasileira contra o coronavírus.

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— O que estamos mostrando são associações e correlações, mas nenhum desses trabalhos vai apontar uma causalidade definitiva — diz a cientista. — Mas mesmo não sendo uma causalidade, esses trabalhos se unem num quebra-cabeça, bem complicado, em que todos convergem para a mesma coisa.

Entre os trabalhos citados pelo estudo de Castro está o levantamento produzido pela sanitarista Deisy Ventura, da USP, que compilou atos administrativos do governo federal e declarações de Bolsonaro e ministros sobre a Covid-19 para avaliar sua atuação na pandemia. Para a pesquisadora de Harvard, há alguns elementos, como a subutilização da estrutura de saúde do país, que são evidências gritantes de omissão.

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— Não há como negar que a rede do SUS não esteja sendo usada e que a estrategia de saúde da família não é envolvida. Os agentes estão até hoje sem treinamento e sem equipamento de proteção — afirma. — Se os estudos tivessem chegado a conclusões diferentes, seria outra situação, mas essas coisas não são subjetivas. É ciência. Os números estão aqui e não dá para negar.

Apelo por ação

O estudo da Science termina em tom de apelo, afirmando que a situação atual da pandemia agora é ainda mais preocupante, dada a demora do país na campanha de vacinação e à emergência de  variantes mais contagiosas do vírus, como a P.1.

"Sem contenção imediata, medidas coordenadas de vigilância epidemiológica e genômica e um esforço para vacinar o maior número de pessoas o mais rápido possível, a propagação da P.1 provavelmente vai emular o padrão mostrado aqui (no estudo), levando a uma perda de vidas inimaginável", escrevem os cientistas.

Rafael Garcia, O Globo online. Publicado originalmente em 15.04.2021, às 9:13 hs.

Miriam: Um país sem um dia de calmaria

"Quando eu terei um dia de calmaria para falar com os investidores? Preciso trabalhar notícias boas, mas é preciso encontrar uma fórmula de governar com menos ruídos.” Esse desabafo eu ouvi dentro do próprio governo, de uma autoridade que está convencida de que há, na economia, alguns dados positivos para comunicar. 

Mesmo quem não vê essas notícias boas concordaria com esse integrante do governo que o Brasil tem excesso de ruídos, tumultos, conflitos, como se já não bastasse o que a população vive na pior pandemia em um século.

A avaliação que essa autoridade faz é que o Congresso aprovou algumas medidas importantes no começo deste ano, como o marco do gás e do saneamento. Acha que o país pode ter um segundo semestre de recuperação, se conseguir vacinar parte importante da população neste primeiro semestre. No mundo, as economias em crescimento, como a China, estão valorizando as commodities exportadas pelo Brasil. O mercado global está melhorando, a bolsa americana está batendo recordes, tudo isso ajudaria a amenizar a crise interna. “Mas o Brasil continua prisioneiro da sua história.”

A questão é que a maior parte dos tumultos é resultado da própria ação do governo. Hoje, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022 tem que chegar ao Congresso, mas o país ainda não tem o Orçamento de 2021. As fórmulas mais estranhas para resolver o problema estão sendo discutidas, mas ninguém quer encarar o que é tecnicamente correto. A solução defendida por integrantes da equipe econômica — e eu já ouvi isso de mais de um — é vetar as emendas parlamentares e mandar um PLN reconstituindo despesas obrigatórias. “O ideal é ter tudo redondo, era vetar tudo, ter um PLN, mas isso não atende ao Congresso, porque seria a desmoralização dos tratados feitos. E o presidente pode ficar fragilizado”, explica essa autoridade que quer um dia de calmaria.

O presidente Bolsonaro sempre foi o principal foco de instabilidade institucional, e isso ele mostrou ontem novamente, quando fez novas ameaças ao país. Ele as faz sempre, de forma deliberadamente vaga para dar a impressão de que tem poderes que não está usando.

“O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”, disse Bolsonaro, no seu estilo autoritário e populista. E continuou: “Estamos na iminência de ter um problema sério no Brasil. Parece um barril de pólvora que está aí. Eu não estou ameaçando ninguém, mas estou achando que brevemente teremos um problema sério no Brasil”.

Bolsonaro foi assim desde o começo desta pandemia. A cada dia ele levanta um fantasma, joga uma sombra, cria um conflito. Criou, por exemplo, na semana passada, diretamente com o ministro Luís Roberto Barroso, quando ele determinou a abertura da CPI. Ficou claro no rápido julgamento de ontem que Barroso teve todo o apoio do STF para a sua decisão, que apenas determinou o cumprimento da Constituição. CPI é direito das minorias, e cumpridos os requisitos de um terço do Senado e fato determinado não cabe ao presidente do Senado impedir.

Barroso saiu vitorioso e mandou recados educados para responder à truculência do presidente. Elogiou o senador Pacheco, que, mesmo derrotado, reagiu com “elegância, correção e civilidade”, lembrando que são qualidades raras nos tempos atuais. Mas a resposta mais forte de Barroso toca no principal ponto de instabilidade do Brasil. Para os economistas, a fonte de incerteza é de natureza fiscal. Um orçamento confuso, soluções esquisitas, como a que surgiu na tal PEC do fura-teto, elevam os temores de um descontrole nas contas públicas.

Mas o mais eloquente recado veio com o aviso sobre o que está em jogo nos ataques ao STF. “Diversos países do mundo vivem hoje uma onda referida como recessão democrática”. O ministro citou Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Venezuela. Lembrou que todos eles, sem exceção, sofreram processos de esvaziamentos e ataques aos seus tribunais constitucionais. “Quando a cidadania daqueles países despertou, já era tarde. Reafirmar o papel das supremas cortes de proteger a democracia e os direitos fundamentais é imprescindível ato de resistência democrática”. Esse é o ponto. A nossa instabilidade é muito maior do que a questão fiscal. A fonte maior de tumulto institucional é o próprio Bolsonaro.

Miriam Leitão é um blog que tem análises exclusivas sobre economia nacional e estrangeira feitas pela Míriam e equipe. Além disso, posta os produtos que são divulgados em vários veículos do Grupo Globo pela jornalista, os comentários na TV e Rádio, e a coluna no GLOBO. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 15.04.2021. Com Alvaro Gribel (de São Paulo).


Nicolelis: Está na hora de remover Bolsonaro

Como um gigantesco navio sem capitão, singrando desgovernado por um oceano viral que rotineira e impiedosamente ceifa, num intervalo de 24 horas, perto de 4 mil vidas brasileiras — número equivalente ao total acumulado de mortes reportadas pela China em toda a pandemia —, a combalida nau chamada Brasil sofreu nos últimos dias mais uma série de golpes devastadores. 

Como se não bastasse ter de combater uma pandemia fora de controle, em meio a um colapso sem precedentes de todo seu sistema hospitalar e, no processo, ter se tornado um verdadeiro pária internacional, o Brasil assistiu atônito à escalada vertiginosa do pandemônio político que o assola. Rotulado de forma quase unânime pela imprensa internacional como inimigo público número 1 do combate à pandemia de Covid-19 em todo o mundo, o atual ocupante do Palácio do Planalto deu claras demonstrações públicas e notórias de estar perdendo qualquer tipo de controle — se algum dia o teve — do caos semeado por ele mesmo desde a ascensão ao maior cargo da República.

Acuado pela decisão do STF de obrigar o presidente do Senado Federal a instalar uma CPI para investigar a conduta do governo federal no combate ao coronavírus, isolado e demonizado pela comunidade internacional, e tendo sua tentativa de interferência nas Forças Armadas repudiada simultaneamente pelos comandantes das três Armas, o presidente da República parece ter achado um novo moinho de vento para chamar de seu inimigo preferido: os cientistas. Numa declaração proferida aos berros numa de suas aparições públicas em Brasília, o gestor e principal responsável pela maior catástrofe humanitária da história da República brasileira vociferou contra toda a comunidade científica brasileira (e mundial, presume-se) nos seguintes termos: “Cientistas canalhas, se não têm nenhum remédio para indicar, cale a boca e deixe (sic) o médico trabalhar”.

Ao indivíduo que transformou imagens de infindáveis fileiras de covas rasas, sendo abertas às pressas por todo o país, no mais visualizado “cartão-postal” do Brasil atual em todo o mundo, ao mandatário que selou o destino de centenas de milhares de brasileiros cujas mortes poderiam ter sido evitadas, levando o Brasil ao ponto em que as mortes em um mês podem superar os nascimentos pela primeira vez, ao gestor que impediu a compra de dezenas de milhões de vacinas quando elas ainda estavam disponíveis no mercado internacional, ao propagandista que estimulou a população a usar medicamentos sem nenhuma eficácia comprovada contra o coronavírus, ao presidente que nunca ofereceu uma palavra de consolo ou solidariedade a uma nação ferida e golpeada mortalmente como nunca antes na sua história, e que negou qualquer ajuda digna a milhões de brasileiros que diariamente convivem com a perda irreparável de seus entes amados, enquanto tendo de tomar a monstruosa decisão entre morrer de fome ou de Covid-19, a Ciência e os cientistas brasileiros só têm uma reposta a oferecer: Basta!

No momento em que todos nós, brasileiros, testemunhamos a manifestação de uma bifurcação trágica e decisiva, é preciso dar um “Basta!” definitivo, decisivo e inequívoco aos inúmeros crimes perpetrados contra os brasileiros de hoje e os que ainda hão de nascer, antes que seja tarde demais. Tarde demais para salvar centenas de milhares de vidas que ainda podem ser salvas; tarde demais para salvar o que resta das instituições e da democracia brasileira; tarde demais para evitar que o país cruze o limiar de um ponto de onde serão precisos anos ou décadas para que dele se possa retornar.

Em nome dos 362.180 brasileiros que pagaram com a própria vida pelo maior ato de incompetência e inépcia da nossa história, em nome de todas as famílias das vítimas desta que já é a maior tragédia nacional, em nome da preservação do Brasil como nação e, finalmente, em nome da garantia de um futuro digno para futuras gerações de brasileiros, chegou a hora de remover do posto o carcereiro inominável que nos transformou a todos em prisioneiros, potencialmente condenados à morte, seja de fome ou de asfixia; isolados de todo o mundo e vivendo diariamente à merce dos delírios e desmandos de alguém que, por atos e palavras, renunciou voluntariamente a suas responsabilidades constitucionais de proteger, a qualquer custo, o povo brasileiro de uma guerra de extermínio contra um inimigo letal.

Miguel Nicollelis é médico, neurocientista e professor catedrático da Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos da América. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 05.04.2021.

Mentalidade do cercadinho

Mesmo as ameaças do presidente estão perdendo credibilidade, constata William Waack em artigo n'O Estado de S. Paulo.

Por ser o STF uma instância política, preocupada com política, e tomando decisões políticas, não é surpresa que esteja dando aulas de política para Jair Bolsonaro, aquele que assumiu recusando-se a fazer política. O próprio Bolsonaro acha que não, que está fazendo política, atividade que ele confunde com esbravejar declarações desconexas para grupelhos de apoiadores, proferir bobagens em lives e postar falsidades em redes sociais, além de vociferar ao telefone com senadores.

Algumas decisões do STF são para lá de exóticas (para se usar linguagem diplomática) e geram enorme insegurança jurídica, mas o ponto principal é que o conjunto da Suprema Corte tem um entendimento mais apurado do que Bolsonaro do que é o jogo institucional, o papel dos seus atores, seus limites políticos e legais. É esse jogo que o voluntarioso Jair disse que ia liquidar no gogó. Não conseguiu, e está perdendo de lavada do STF, mas não só.

Alguns feitos políticos de Bolsonaro são notáveis – pela ironia dos fatos. Ao seguir adiante com um Orçamento inexequível, mas que negociara com o Congresso, pois precisa gastar para se reeleger, acabou permitindo que os profissionais do Centrão carimbassem na testa do ministro que já foi estrela, Paulo Guedes, a expressão “fura-teto”. Outra ex-estrela, Sérgio Moro, o paladino da luta anticorrupção, Bolsonaro já tinha empurrado para uma espécie de vala comum de malfeitores (sob aplausos de ministros do STF, no único elogio que destinam a Bolsonaro).

Há dúvidas se Bolsonaro se deu conta do “golpe” que o Centrão lhe aplicou na esteira dessa ainda não resolvida confusão do Orçamento. O Centrão se recusou a votar uma PEC que, para acomodar interesses, declararia algumas despesas como fora dos limites hoje vigentes. O Centrão declarou que não aprova medidas “fura-teto”. Mas o motivo principal para a recusa é outro, e se constitui em mais uma aula de política: o Centrão não quer abrir mão de suas prerrogativas de determinar alocação de recursos via Orçamento, um clássico instrumento de poder que o presidente cedeu.

A dor de cabeça de uma CPI no Senado é real, porém pequena se comparada à dor de cabeça de uma economia que teima em não deslanchar. O problema para o governo é que não adianta dizer, como Guedes insiste, que o “Brasil estava decolando” e a economia “se recuperava em V” quando ocorreu uma segunda onda do vírus. Os fatos na cabeça das pessoas são preços em subida, inflação voltando, desemprego persistente, e economia andando devagar.

Nem todos os acontecimentos da economia são negativos para os planos do governo e o País, conforme atesta o sucesso dos leilões de concessão de portos, ferrovias e aeroportos. Porém, a inequívoca aposta de investidores na obtenção de bons retornos via concessões é coisa de longo prazo, e as questões emergenciais de pandemia e economia são no curtíssimo – as consequências políticas idem. A confiança de varejo, indústria e setor financeiro está sendo demolida pelo cenário político de instabilidade e imprevisibilidade.

Dedicado dia e noite a acelerar e piorar o que sozinha já seria uma tempestade perfeita, Jair Bolsonaro está perdendo a credibilidade até quando faz ameaças do tipo “aguardo sinal do povo para tomar providências”. O PT foi apeado do poder quando achava que era dono das ruas, mas não era. Vivendo na bolha peculiar de sites, portais e redes sociais amigas, Bolsonaro confunde esse tipo de espuma em meios digitais com “povo”. 

A expressão “mentalidade do bunker” se consagrou para descrever o governante que perde a noção da realidade, pois vive distante dela. No caso de Bolsonaro, deveria ser trocada por “mentalidade do cercadinho”. Fica do mesmo jeito em um outro universo, paralelo.

William Waack é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN / Brasil. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 15.04.2021.

Ameaças e arreganhos

É cristalina a tentativa de Jair Bolsonaro de intimidar os demais Poderes – não só o STF, de onde partiu a ordem para instalar a CPI

O presidente Jair Bolsonaro advertiu os “amigos do Supremo Tribunal Federal” que “daqui a pouco vamos ter uma crise enorme aqui”, referindo-se à possibilidade de tumultos como consequência dos efeitos econômicos da pandemia de covid-19. “Não estou ameaçando ninguém”, ressalvou Bolsonaro, para, em seguida, ameaçar: “O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar uma providência. Estou aguardando o povo dar uma sinalização, porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí, só não vê quem não quer”. E completou: “Eu só faço o que o povo quiser que eu faça”.

Como sempre, é difícil entender exatamente o que quis dizer o presidente Bolsonaro, cuja dificuldade com o idioma pátrio e com o raciocínio lógico é conhecida de todos. Mas é cristalina a tentativa de intimidar os demais Poderes – não só seus “amigos do Supremo”, de onde partiu a ordem para a instalação de uma CPI no Senado para investigar a delinquente gestão federal da crise, mas também o próprio Congresso, a quem cabe arrolar os responsáveis pelo morticínio.

O arreganho bolsonarista, antes de demonstrar poder, evidencia paúra. São tantas e tão robustas as evidências de múltiplos crimes na condução da crise que dificilmente os envolvidos escaparão impunes se a CPI fizer seu trabalho. É por isso que Bolsonaro trabalha com tanto ardor para miná-la – chegando a ponto de instruir um senador a inviabilizar a comissão, de avisar que daria uma “porrada” no líder da oposição no Senado e de ameaçar ministros do Supremo de impeachment, como registrado em diálogo gravado.

As ameaças em série – que em si mesmas constituem delito, como ressaltado neste espaço, ontem, no editorial Ameaçar é crime – queimam as precárias pontes políticas que ainda servem a Bolsonaro e, ao fim e ao cabo, não amedrontam ninguém. Ao contrário: o Supremo continua a adotar decisões contrárias aos interesses liberticidas do presidente e o Congresso afinal instalou a CPI, cujos desdobramentos podem enfraquecer ainda mais seu governo. De quebra, a OAB formulou um pedido de impeachment baseado nas conclusões de uma comissão de juristas, que caracterizou as ações e omissões de Bolsonaro como crimes comuns, de responsabilidade e contra a humanidade.

A esta altura, as manobras bolsonaristas para ampliar o escopo das investigações da CPI, colocando na mira a administração de Estados e municípios, serviram somente para escancarar a conhecida estratégia do presidente de criar tumulto, desviar a atenção e embaralhar as evidências dos crimes. Para os propósitos do departamento de agitação e propaganda do governo, isso pode até funcionar, pois prejudicaria governadores tratados como inimigos por Bolsonaro. Ademais, a julgar pelo histórico das comissões de inquérito, investigações com muitos focos não chegam a lugar nenhum – exatamente o que pretende o governo.

Assim, não é possível dizer, hoje, que resultados práticos terá a CPI, mas uma coisa é certa: se a comissão interrogar como deve o ex-ministro Eduardo Pazuello, sob cuja administração no Ministério da Saúde o Brasil se tornou um dos piores países do mundo na gestão da pandemia, ficará clara a inquestionável responsabilidade de Bolsonaro – que menosprezou a doença, trocou três vezes de ministro da Saúde, desestimulou medidas de distanciamento social, rejeitou o uso de máscara, incentivou aglomerações, fez campanha por remédios inócuos, sabotou a vacinação e hostilizou países dos quais dependemos para obter insumos para a imunização.

O intendente Pazuello, obediente servidor do presidente, terá a oportunidade de explicar por que doentes de covid morreram asfixiados em Manaus por falta de cilindros de oxigênio. Mas também poderá esclarecer por que o governo investiu em cloroquina enquanto atrasou a compra de vacinas e de insumos hospitalares, por que deixou de financiar leitos de UTI em meio à emergência sanitária e por que não fez campanha oficial pelo isolamento social, única forma de frear a contaminação na ausência de imunização em massa. O País está ansioso para ouvir as explicações – sob juramento – do ex-ministro.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 15 de abril de 2021 

Bolsonaro é 'grande responsável' por 'desastre' de covid, diz vice-presidente de delegação do Parlamento Europeu para o Brasil

Na visão da alemã Anna Cavazzini, eurodeputada pelo Partido Verde e vice-presidente da delegação do Parlamento Europeu para assuntos relacionados ao Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem "grande parcela de responsabilidade" pela crise sanitária desencadeada pela pandemia de covid-19 no país, que ela descreve como "um verdadeiro desastre".

Anna Cavazzini, eurodeputada pelo Partido Verde, participa nesta quinta-feira de reunião tendo como pano de fundo a abertura da CPI para investigar a crise do coronavírus no país e os recordes de mortes por covid-19 (Crédito da foto: Michel Christen).

Cavazzini participa de uma reunião de duas horas sobre o Brasil nesta quinta-feira (15/4) marcada no Parlamento Europeu, tendo como pano de fundo a abertura da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar a crise do coronavírus no país e os recordes de mortes por covid-19.

O chefe da Missão do Brasil junto à União Europeia, embaixador Marcos Galvão, foi chamado para participar.

Aludindo a uma expressão em sua língua materna, Cavazzini diz que a situação atual do Brasil é como se o país "caminhasse rumo ao precipício de olhos bem abertos".

"Devo dizer que nenhum país é perfeito. Muitos governos estão lutando pelas melhores práticas. Por exemplo, em meu país, a Alemanha, também temos uma discussão muito crítica sobre se o governo está fazendo a coisa certa. Mas acho que a situação no Brasil realmente se destaca", diz ela, em entrevista à BBC News Brasil por telefone.

"É um nível completamente diferente de desastre, má gestão governamental, negação política, basicamente é como se o Brasil estivesse "caminhando rumo ao precipício de olhos bem abertos", acrescenta.

Segundo Cavazzini, Bolsonaro "tem grande parcela de responsabilidade pelo número de doentes e mortos porque não levou a doença a sério, incentivou as pessoas a se reunirem em grandes aglomerações, manteve-se cético no início em relação à vacinação e obstruiu os serviços de imunização em cidades e Estados do Brasil".

Reuniões como essa não têm implicação prática e são marcadas com antecedência para discutir temas de interesse bilaterais.

Mas Cavazzini diz que, embora o Parlamento Europeu não possa ditar a política externa, "pode participar nas conversas e influenciar a agenda" dos Estados membros do bloco.

"Queremos mostrar a solidariedade europeia para com as pessoas que estão lá (Brasil) e gravemente afetadas (pela covid). Claro que também queremos lançar luz também sobre a difícil situação dos direitos humanos no Brasil e principalmente das pessoas que defendem as florestas, que defendem suas terras, que estão ameaçadas e algumas delas infelizmente mortas", diz.

Cavazzini, que também é membro do comitê parlamentar responsável por assuntos relacionados ao meio ambiente, é uma das principais vozes críticas à política ambiental do governo Bolsonaro, especialmente no tocante ao desmatamento da Amazônia. Ela também se opõe ao acordo entre a União Europeia e o Mercosul (ainda em fase de revisão jurídica).

"Em geral, é claro que sempre é difícil influenciar realmente a política de saúde de outro país porque é realmente uma questão nacional. Mas acho que uma mistura de pressão diplomática, conversar com o governo, dialogar, tentar identificar os agentes que pensam e agem de forma diferente, apoiá-los é sempre muito importante", diz.

"Há a questão do financiamento de cooperação… no momento eu não daria nenhum dinheiro ao governo de Bolsonaro, talvez identifique corporações que possam ajudar algumas pessoas no Brasil. Essas são opções de política externa. O Parlamento Europeu basicamente não tem voz na política externa, mas pode participar nas conversas e pode influenciar a agenda", completa.

Em aviso sobre a audiência, Cavazzini citou a ordem emitida na quinta (8) pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), para que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), intalasse uma CPI da pandemia da covid-19. Pacheco tomou a decisão nesta terça-feira.

Pacheco oficializa CPI da Covid no Senado: o que acontece agora?

A CPI investigará a atuação do governo de Jair Bolsonaro no enfrentamento da pandemia de coronavírus, assim como o uso de recursos federais por Estados e municípios na contenção da crise sanitária.

Cavazzini também menciona que "mais de 340 mil brasileiros já morreram com o vírus" e que "nos últimos dias, a média diária de mortes ultrapassou 4 mil".

Além de abordar a "situação econômica e sanitária no Brasil", a audiência vai incluir "troca de opiniões sobre a cooperação científica e tecnológica entre a UE e o Brasil" e "troca de pontos de vista sobre a situação dos defensores dos direitos humanos no Brasil, incluindo o caso Fernando dos Santos Araújo".

Sobrevivente da chacina de Pau D'Arco, em 2017, que resultou na morte de dez trabalhadores rurais e atribuída a policiais, Araújo chegou a entrar no programa de proteção a testemunhas, mas voltou à fazenda neste ano e também foi assassinado.

Segundo Cavazzini, Bolsonaro não levou coronavírus "a sério" (Crédito da foto: Reuters)

Recentemente, Cavazzini fez parte do grupo de 68 deputados do Parlamento Europeu que enviou uma carta ao vice-presidente Hamilton Mourão e ao Conselho Nacional da Amazônia Legal, que ele coordena, reclamando de planos para restringir as atividades de ONGs na região.

A eurodeputada foi a primeira signatária do texto, que considera "muito preocupantes" notícias sobre o estabelecimento de limites e regras mais duras para a atuação de entidades da sociedade civil.

"O processo de autorização para funcionamento das ONGs já está bem regulamentado pela lei brasileira. Por muitas décadas, várias ONGs no Brasil têm implementado programas e ações para combater crimes ambientais, proteger a floresta amazônica e a sobrevivência de suas populações, enquanto promovem o desenvolvimento sustentável na região", afirma a carta, de novembro do ano passado.

Luis Barrucho - @luisbarrucho, de Londres para a BBC News Brasil, em 15.04.2021. 

'Kit intubação': 'Desativamos leitos de UTI para não ficarmos sem estoque', a dura rotina de hospitais com escassez de medicamentos em SP

Em meio à escassez de medicamentos essenciais para pacientes intubados, os responsáveis pela Santa Casa de São Carlos (SP) decidiram, há cerca de duas semanas, desativar seis dos 30 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) destinados a pacientes com a covid-19.

Decisão sobre o momento de intubar é crucial. Se uso da ventilação mecânica for retardada demais, paciente pode lesionar o pulmão só pelo esforço para respirar, dizem médicos ouvidos pela BBC News Brasil (Crédito da foto: Reuters / Diego Vara)

Os responsáveis pelo local afirmam que a medida se tornou necessária para não faltar medicamentos aos pacientes que já estão intubados na unidade de saúde.

"Fizemos isso porque temos enfrentado dificuldades para conseguirmos analgésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares, que são fundamentais para pacientes intubados", diz o infectologista Vitor Marim, diretor-técnico do hospital.

Segundo Marim, os seis leitos que estão vagos foram bloqueados no momento em que os pacientes que estavam neles receberam alta hospitalar.

"Há uma pressão muito grande para admitirmos novos pacientes. O nosso desejo é voltar aos 30 leitos. Mas a gente não consegue fazer isso agora, pela incerteza se teremos medicamentos suficientes para assistir os internados", declara o médico à BBC News Brasil.

A decisão de diminuir as vagas na unidade é preocupante, em razão da trágica fila por um leito de UTI, na qual somente em março morreram quase 500 pessoas em São Paulo. Porém, Marim afirma que foi a única alternativa no atual período. "Se esses leitos estivessem ocupados agora, certamente estaríamos sem medicações", declara.

Mesmo com a redução de 20% no atendimento na UTI destinada a casos de covid-19, Marim aponta que atualmente há medicamentos para pacientes intubados somente pelos próximos três ou quatro dias.

"O estoque de anestésico, principalmente, está muito crítico", declara. Ele ressalta, porém, que a situação é dinâmica e que "a busca por fornecedores é incessante e diária", por isso acredita que a unidade logo deve conseguir abastecer o estoque.

A atual realidade da Santa Casa de São Carlos é um exemplo em meio a tantas outras unidades de saúde que também vivem o drama da escassez de medicamentos que compõem o chamado "kit intubação". Esse cenário tem sido registrado em todo o país.

Nesta quarta-feira (14/4), São Paulo ganhou destaque em relação ao tema, após o governo estadual solicitar os medicamentos com urgência ao Ministério da Saúde e afirmar que teve pedidos anteriores ignorados pelo governo federal.

Seis leitos de UTIs foram desativados na Santa Casa de São Carlos (SP) em razão da escassez de medicamentos para pacientes intubados (Crédito da foto: Assessoria da Santa Casa de São Carlos,SP).

Escassez do 'kit intubação'

Medicamentos como anestésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares são fundamentais para casos graves de covid-19, quando o paciente precisa ser intubado. Esses fármacos garantem a realização do procedimento que assegura a chegada de oxigênio aos pulmões nos quadros mais críticos da doença.

Diante do atual cenário no país, o pior desde o início da pandemia, a explosão de internações pela covid-19 fez com que o sistema de saúde ficasse ainda mais sobrecarregado.

Cada vez mais, os medicamentos para pacientes em estado grave são utilizados. A partir de então, eles viraram alvos de alertas sobre a possibilidade de se tornarem escassos.

Em março deste ano, o Ministério da Saúde tomou uma série de medidas administrativas para centralizar as compras dos medicamentos que compõem o chamado "kit intubação".

Com isso, todo o excedente de produção dos laboratórios farmacêuticos que fabricam esses anestésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares foi encaminhado para o Governo Federal, que ficou responsável por realizar a distribuição aos Estados por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

Para o Ministério da Saúde, na época sob o comando do então ministro Eduardo Pazuello, a centralização das compras de medicamentos do "kit intubação" seria uma forma de melhorar a distribuição dos itens pelo país.

Mas desde o mês passado, os relatos sobre escassez desses medicamentos se tornaram cada vez mais comuns.

O secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Jean Gorinchteyn, afirmou nesta semana que a quantidade de medicamentos enviada ao Estado até o momento é "ínfima".

Na terça-feira (13/4), o governo de São Paulo encaminhou um ofício ao Ministério da Saúde afirmando que precisava receber medicamentos do kit intubação em 24 horas para repor estoques e evitar o desabastecimento das medicações nos hospitais.

Gorinchteyn disse que encaminhou, nos últimos 40 dias, nove ofícios ao Ministério da Saúde sobre a situação e a redução contínua dos estoques. Apesar disso, ele afirma que não recebeu nenhuma resposta.

Secretário de Saúde de São Paulo, Jean Gorinchteyn, disse que não teve respostas aos nove ofícios que afirmou ter enviado ao Ministério da Saúde para alerta sobre falta de remédios do "kit intubação" (Crédito da foto: Gov. do Estado de SP).

"À medida que o Governo Federal fez essa requisição emergencial, nós perdemos a possibilidade de adquirir esses produtos. Nós atendemos os nossos hospitais estaduais, mas os municípios também estão pedindo ajuda e nós precisamos acolhê-los", declarou Gorinchteyn, em entrevista coletiva na quarta-feira (14/4).

O secretário de São Paulo afirmou que a situação no Estado é "gravíssima". Ele disse que o sistema de saúde está na "iminência do colapso" por causa da escassez desses medicamentos.

De acordo com Gorinchteyn, o Estado paulista precisa receber essas medicações com urgência para conseguir abastecer 643 hospitais pelos próximos dez dias.

Durante a coletiva de quarta-feira, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), afirmou que o Ministério da Saúde "cometeu um erro gravíssimo" ao centralizar a compra e distribuição dos medicamentos.

"Nenhum governo estadual, municipal ou instituições privadas pode adquirir esses insumos porque as empresas receberam um confisco, um sequestro do Governo Federal. Gostaríamos de saber por que o Ministério da Saúde não faz a distribuição desse material aos Estados, que podem levar até a ponta nos hospitais", declarou.

Nos últimos dias, representantes de Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Bahia e outros Estados também fizeram manifestações e alertas ao Ministério da Saúde sobre a escassez dessas medicações.

Esse cenário existe atualmente em todos os Estados, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

Em nota à BBC News Brasil, o Ministério da Saúde afirma que já distribuiu mais de 8 milhões de medicamentos "para intubação de pacientes ao longo da pandemia". Segundo a pasta, um grupo de empresas vai doar, nesta semana, mais de 3,4 milhões de medicamentos, "que serão distribuídos imediatamente aos entes federativos".

O Ministério da Saúde afirma que estão em andamento dois pregões e uma compra direta desses medicamentos por meio da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).

"A pasta esclarece que todos os acordos feitos para aquisição de medicamentos de intubação orotraqueal (IOT) respeitam a realidade de cada fabricante, os contratos fechados anteriormente e a necessidade do Brasil, contemplando hospitais públicos e privados nas regiões com maior risco de desabastecimento", diz o comunicado do Ministério da Saúde.

'Está faltando em muitos locais'

Um médico intensivista que trabalha em UTIs de hospitais da Grande São Paulo afirma à BBC News Brasil que muitas unidades de saúde da região têm enfrentado diversas dificuldades diante da escassez do "kit intubação".

"A atuação está muito complexa. Hoje mesmo estava com o pessoal de compra de um hospital e não conseguiram sequer uma ampola de bloqueadores musculares. O Ministério da Saúde ordenou que as fábricas repassem os medicamentos ao governo federal, porém isso não está chegando na ponta", critica o médico, que pediu para não ser identificado.

"A gente tem recorrido a drogas alternativas, que não usamos em condições normais. Isso virou uma realidade em grande parte do país", acrescenta o médico.

Pelo país, profissionais de saúde têm recorrido a medicamentos que normalmente não são usados em terapia intensiva para manter paciente em ventilação mecânica atualmente. Desta forma, medicamentos que já estavam em desuso para esse fim voltaram a ser adotados em alguns locais, como Metadona (opioide), Diazepam (ansiolítico) em comprimido, tiopental (barbitúrico usado para indução de anestesia geral), entre outros.

Sem sedativos, anestésicos e bloqueadores neuromusculares, a intubação é muito mais difícil e traumática

O intensivista ouvido pela reportagem afirma que faltou organização do Ministério da Saúde em relação aos medicamentos.

"Chegamos à atual situação porque houve aumento mundial no consumo dessas drogas, mas isso era admissível. O governo federal deveria ter colocado as fábricas para até, se possível, quintuplicar as produções dessas drogas no Brasil ou importar para ter um estoque estratégico. Era preciso ter visão estratégica", diz.

O médico diz que o cenário de escassez do "kit intubação" aumenta a mortalidade nas unidades de saúde. Ele afirma que essa situação supera até a já preocupante média de 80% de mortes entre os infectados que precisam de ventilação mecânica no Brasil, conforme revelou levantamento feito em 2020 pelo pesquisador Fernando Bozza, da Fiocruz — a média mundial é de, aproximadamente, 50% de óbitos nesse estágio da doença.

"Posso dizer que está faltando muitos (medicamentos) em muitos locais. Isso faz com que a qualidade da assistência fique péssima. Não à toa a mortalidade em vários locais está acima de 90% em quem é intubado", declara o intensivista.

Dificuldades para adquirir medicações

Na Santa Casa de São Carlos, cujos atendimentos são por volta de 80% relacionados ao SUS, os estoques duravam de sete a 10 dias no ano passado, em meio à pandemia. "Se precisasse, a gente conseguia buscar o material, pois sabia onde encontrar", afirma o infectologista Vitor Marim.

Agora, além de alguns medicamentos terem aumentado até 500% em razão da alta demanda, os responsáveis pelos hospitais enfrentam dificuldades para encontrar os fármacos.

"Hoje, nem se tivéssemos muito dinheiro conseguiríamos encontrar com facilidade, por causa da escassez no mercado", declara Marim.

No fim de março, por exemplo, a unidade de saúde de São Carlos precisou receber anestésicos de outros dois hospitais da região porque não tinha o medicamento para a intubação de pacientes com a covid-19. Situação semelhante já foi registrada em outras unidades de saúde de São Paulo, como a Santa Casa de Limeira, que também precisou pedir medicamentos a outros hospitais.

Um levantamento feito com 300 hospitais filantrópicos nesta semana pela Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes de São Paulo (Fehosp) apontou que as unidades de saúde do Estado entraram em contato com mais de 22 fornecedores de medicamentos no início desta semana e não encontraram possibilidade de compra.

Segundo a Fehosp, a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo tem auxiliado, mas não tem conseguido grandes volumes dos fármacos.

UTI em São Paulo; pesquisa com farmacêuticos de hospitais paulistas despertou preocupação com o desabastecimento de medicamentos cruciais. (Crédito da foto: Reuters)

"Estamos batalhando por importações que estão sendo lideradas pela Confederação das Santas Casas, mas os estoques no exterior também não estão disponíveis e tememos pelo pior. Se o volume de internação não cair rapidamente, não conseguiremos repor os estoques e será uma situação trágica", afirmou o diretor-presidente da Fehosp, Edson Rogatti, em nota encaminhada à imprensa.

O levantamento da Fehosp apontou que mais de 160 hospitais consultados tinham estoques de anestésicos, sedativos e relaxantes musculares para, em média, três a cinco dias de duração. Além disso, os responsáveis pelas unidades também relataram que os antibióticos estavam começando a ficar escassos.

Segundo a federação, alguns dos hospitais que estão operando com estoques de dois a três dias estão localizados em cidades como Matão, Guarujá, Votuporanga, Presidente Epitácio, Fernandópolis e Rio Preto.

Conforme a Fehosp, são raros os locais de São Paulo que possuem estoque para 10 dias. Além disso, a entidade alerta que as unidades que afirmam ter medicamentos para cerca de oito dias são os hospitais maiores, que recebem grande volume de novas internações diariamente e nos quais o estoque pode cair "bruscamente de um dia para o outro".

O temor de faltar qualquer alternativa de medicamento é constante para profissionais de saúde que atuam em hospitais com pouco estoque do "kit intubação".

Vitor Marim, que está na linha de frente na Santa Casa de São Carlos, comenta que uma das maiores dificuldades é começar um tratamento e não saber se aquela prescrição será executada até o fim, em razão da possibilidade de que a medicação acabe em poucos dias.

"Diariamente avaliamos o que podemos usar hoje ou amanhã. Daqui a dois dias, pode ser que não tenha mais aquela medicação e precisaremos alternar com outra", diz o infectologista.

"O tratamento atual tem uma complexidade muito maior, porque não sei se terei medicamento para daqui a dois ou três dias", acrescenta.

Vinícius Lemos - @oviniciuslemos, de S. Paulo para a BBC News Brasil, 15.04.2021. 

Plenário do STF decidirá nesta quinta-feira sobre anulação das condenações de Lula; entenda aqui

Após acalorado debate, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o plenário da Corte julgará nesta quinta-feira (15/04) se os processos da Operação Lava Jato contra do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que tramitaram na Justiça Federal do Paraná devem ser anulados e refeitos na Justiça do Distrito Federal.

Lula em entrevista à BBC em Curitiba no ano de 2019; STF vai julgar se mantém ou não decisão de Fachin que considerou a Justiça do Paraná incompetente para julgar Lula.

A Corte analisará se mantém decisão do ministro Edson Fachin que, no início de março, entendeu que a 13ª Vara de Curitiba, comandada pelo ex-juiz Sergio Moro até novembro de 2018, é incompetente para julgar os processos do petista.

O tema gerou embate nesta quarta-feira entre os ministros porque Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello defenderam que a questão deveria ser julgada na Segunda Turma do STF, órgão responsável pela maioria dos processos da Lava Jato.

No entanto, a maioria da Corte entendeu que o relator do caso, Edson Fachin, tem o poder de remeter o recurso ao plenário, quando julgar que a questão é relevante e precisa ser apreciada pelos onze ministros.

Para críticos de Fachin, porém, sua decisão de remeter recursos de Lula ao plenário é uma manobra para evitar o julgamento na Segunda Turma, quando o balanço de forças é favorável ao petista.

Lewandowski lembrou que o mesmo foi feito em 2018, quando Fachin levou ao plenário o julgamento de uma habeas corpus de Lula que poderia ter evitado sua prisão no processo do Triplex do Guarujá. Aquele julgamento acabou em resultado apertado, de 6 a 5, levando o petista a ficar preso por 580 dias.

"Gostaria de veicular minha estranheza, que dos milhares de habeas corpus que a Primeira e a Segunda Turma julgam o ano todo, por que é justamente o caso do ex-presidente que é submetido ao plenário dessa Suprema Corte? Será que o processo tem nome e não tem apenas capa, como diz o eminente ministro Marco Aurélio?", questionou.

Sergio Moro comandou 13ª Vara de Curitiba até novembro de 2018 (Crédito da foto: Reuters)

Para Lewandowski, apenas questões constitucionais ou temas controvertidos na Corte deveriam ser levados ao plenário. Na sua avaliação, esse não é o caso da discussão sobre em que local os processos do ex-presidente devem ser julgados.

O ministro chegou a dizer que, se Lula não tivesse sido preso, o resultado da eleição de 2018, vencida pelo presidente Jair Bolsonaro, poderia ter sido diferente. O petista liderava as pesquisas de intenção de voto, mas foi impedido de disputar por causa da Lei da Ficha Limpa, já que estava condenado em segunda instância.

"Se essa inversão (levar em 2018 o habeas corpus da Segunda Turma ao plenário) não tivesse sido feita, a história do Brasil poderia ter sido diferente. E talvez os acontecimentos que estamos vivendo no Brasil pudessem ter um rumo distinto. Então, foi uma opção que o Supremo Tribunal Federal fez e que teve consequências muito sérias", criticou ainda.

Apenas Marco Aurélio Mello acompanhou o voto de Lewandowski. Gilmar Mendes, por sua vez, aceitou a análise do caso pelos onze ministros, mas criticou a "arbitrariedade" da decisão de Fachin de levar os recursos de Lula ao plenário. Os demais ministros consideraram que o regimento interno do STF permite ao relator fazer isso.

O presidente do STF, Luiz Fux, ressaltou que a decisão sobre o local competente para julgar os processos de Lula — se a Justiça do Paraná ou do Distrito Federal — pode ter impacto sobre outros casos da Lava Jato e "atingir, digamos assim, um grande trabalho feito pelo Supremo Tribunal Federal no combate à corrupção". Na sua visão, isso torna a matéria relevante para análise no plenário.

Barroso, por sua vez, disse que o regimento interno da Corte "é claríssimo" ao permitir que o relator leve o caso ao plenário, e afastou interferência política na sua decisão.

"Desde que eu me tornei juiz, eu abdiquei inteiramente de quaisquer preferências políticas. E não nutro qualquer paixão jurisdicional. Julgo com serenidade, à luz da Constituição, das leis e do regimento interno, nesse caso", ressaltou.

Entenda o julgamento que ocorre na próxima quinta-feira

No início de março, Fachin deflagrou uma reviravolta na política brasileira ao decidir individualmente anular as condenações de Lula pela Justiça Federal do Paraná, o que devolveu ao petista o direito a se candidatar na eleição de 2022.

O plenário, agora, vai julgar se mantém ou não essa decisão. Depois, caso a maioria referende a posição de Fachin, a Corte analisará se isso derruba ou não o julgamento da Segunda Turma do STF que declarou Sergio Moro parcial ao condenar Lula no caso do Triplex do Guarujá.

Isso porque Fachin argumenta que o reconhecimento de que Moro não poderia ter julgado o petista por não ser o juiz competente da causa derrubaria a necessidade de decidir se ele foi parcial ou não.

Esse intrincado cenário torna improvável que o julgamento desta quinta reverta a atual situação de Lula, retirando do petista novamente seus direitos políticos, já que ao menos uma das decisões tende a ser mantida — a que anula as condenações pela incompetência de Moro ou a que o considerou parcial.

Há ainda a possibilidade que ambas continuem válidas, o que demandará que os processos contra o ex-presidente sejam refeitos, com possibilidade pequena de reaproveitamento de provas produzidas na Justiça do Paraná.

Nesse cenário, Lula só ficará impedido de disputar a eleição se for novamente condenado em segunda instância judicial antes de outubro de 2022.

Entenda melhor essas questões a seguir em três pontos.

1) Qual o debate sobre "incompetência" da Justiça do Paraná?

A decisão de Fachin, relator da Lava Jato no STF, foi tomada a partir de um recurso da defesa de Lula que argumentou que seus processos não deveriam ter sido julgados na 13ª Vara de Curitiba, comandada até novembro de 2018 por Moro.

Advogados de acusados na Lava Jato há muito questionavam por que processos que envolviam possíveis crimes em diversas partes do Brasil eram julgados na vara do Paraná.

Na visão desses defensores, isso contrariava o princípio do juiz natural, segundo o qual a vara para a qual um caso é remetido tem relação com o local dos crimes investigados.

Uma decisão do plenário do STF do início da Lava Jato, porém, permitiu que todos os casos envolvendo corrupção na Petrobras fossem mantidos em Curitiba, gerando uma "supercompetência" nas mãos de Moro.

Na decisão que anulou as condenações contra Lula, Fachin diz que hoje há novos entendimentos do Supremo que levaram diversos processos a serem distribuídos para outras varas do país. Nesse contexto, ele considerou que as acusações contra o ex-presidente devem ser julgadas pela Justiça do Distrito Federal.

"Com as recentes decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal, não há como sustentar que apenas o caso do ora paciente deva ter a jurisdição prestada pela 13ª Vara Federal de Curitiba. No contexto da macrocorrupção política, tão importante quanto ser imparcial é ser apartidário", disse Fachin.

Segundo a decisão de Fachin, os supostos atos ilícitos citados nos processos contra Lula iniciados em Curitiba "não envolviam diretamente apenas a Petrobras, mas ainda outros órgãos da Administração Pública".

Nota do gabinete do Fachin sobre a decisão diz que, "embora a questão da competência já tenha sido suscitada indiretamente, é a primeira vez que o argumento reúne condições processuais de ser examinado, diante do aprofundamento e aperfeiçoamento da matéria pelo Supremo Tribunal Federal".

O fato de haver precedentes — ou seja, outras decisões similares do STF — retirando de Curitiba processos da Lava Jato torna mais difícil que o plenário da Corte reverta a decisão de Fachin sobre Lula. Casos contra a deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR), o ex-ministro Paulo Bernardo e o ex-ministro Guido Mantega, por exemplo, já foram enviados para São Paulo ou Brasília.


'No contexto da macrocorrupção política, tão importante quanto ser imparcial é ser apartidário', afirmou Fachin (Crédito da foto: Nelson Jr. / SCO/STF).

"Inicialmente, retirou-se todos os casos que não se relacionavam com os desvios praticados contra a PETROBRAS. Em seguida, passou a distribuir por todo território nacional as investigações que tiveram início com as delações premiadas da Odebrecht, OAS e J&F. Finalmente, mais recentemente, os casos envolvendo a Transpetro (subsidiária da própria Petrobras) também foram retirados da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba", dizia a nota divulgada pelo gabinete de Fachin no início de março, ao listar ações do STF que restringiram o alcance da competência da 13ª Vara Federal.

A decisão de Fachin anulou todas as decisões processuais em quatro ações penais contra Lula. Duas delas já tinham gerado condenações (Triplex do Guarujá e Sítio de Atibaia) e duas ainda não tinham sido julgadas (ambas relacionadas a suposto recebimento de propina por meio do Instituto Lula).

Nos quatro casos, o petista é acusado de ter sido beneficiado ilegalmente por empreiteiras que receberam contratos superfaturados da Petrobras e de outras empresas ou obras públicas. Lula nega as acusações e se diz perseguido pela Lava Jato.

2) Quais os argumentos contra a decisão de Fachin?

A Procuradoria-Geral da República (PGR) recorreu da decisão de Fachin e pede ao plenário do STF que reconheça a competência da Justiça do Paraná para julgar Lula na Lava Jato.

A subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, que assina o recurso, argumenta que sucessivas decisões de instâncias inferiores da Justiça ao longo de cinco anos reconheceram a vara de Moro como responsável pelos processos de Lula. Na sua visão, reverter esse entendimento agora vai contra a estabilidade processual e a segurança jurídica.

Enquanto a defesa do petista diz que o Ministério Público Federal não foi capaz de provar que Lula foi beneficiado por recursos desviados da petroleira, na medida em que os procuradores descrevem uma suposta conta geral de propinas abastecida por diversos contratos públicos superfaturados, Lindôra Araújo diz que os crimes descritos nos processos contra o petista "estão, a toda evidência, associados diretamente ao esquema criminoso de corrupção e de lavagem de dinheiro investigado no contexto da 'Operação Lava Jato' e que lesou diretamente os cofres da Petrobras"

Caso o STF não aceite os argumentos da PGR e mantenha a decisão de Fachin, a subprocuradora-geral pede ao menos que a incompetência da vara de Curitiba seja válida apenas para etapas futuras dos processos contra Lula, mantendo assim as duas condenações contra ele (casos Triplex do Guarujá e Sítio de Atibaia).

Se esse pedido for acatado, apenas os dois processos em estágio menos avançado seriam remetidos à Justiça do Distrito Federal.

3) Como o julgamento interfere na suspeição de Moro?

Edifício do STF em Brasília


Um dos cenários possíveis é o STF manter a incompetência da Justiça do Paraná, mas derrubar o julgamento da parcialidade de Moro

A Segunda Turma do STF decidiu em 23 de março que Moro foi parcial ao julgar Lula no caso do Triplex do Guarujá — decisão que tende a ser estendida aos outros processos do petista que tramitaram na 13ª Vara de Curitiba.

Para Fachin, o julgamento da suspeição não deveria ter ocorrido porque a decisão sobre a incompetência da Justiça do Paraná automaticamente derrubaria todos os outros recursos do petista nos processos da Lava Jato.

Esse argumento de Fachin, porém, foi rejeitado por quatro ministros da Segunda Turma — Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Nunes Marques. Com isso, o recurso foi julgado, e acabou aceito por três a dois (apenas Fachin e Nunes Marques votaram contra a suspeição do ex-juiz).

Se a maioria do plenário do STF manter a incompetência da Justiça do Paraná, mas derrubar o julgamento da parcialidade de Moro, os quatro processos terão que ser refeitos em Brasília, mas pode ser mais fácil que provas produzidas em Curitiba sejam reaproveitadas.

Já se a parcialidade do ex-juiz for mantida, esse reaproveitamento fica mais difícil, na medida em que as provas produzidas em processos conduzidos por Moro estariam "contaminadas" por sua conduta suspeita, ou seja, seriam consideradas ilegais.

Mariana Schreiber - @marischreiber, de Brasília para a BBC News Brasil, em 14.04.2021.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

TCU aponta omissões graves de Pazuello em gestão da pandemia e sugere punição

Ministro Bruno Dantas diz que a gestão do ministério ‘envergonha’ e que já há argumentos de sobra para impor ‘condenações severas’

Ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) sinalizaram nesta quarta-feira, 14, que devem punir o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e seus auxiliares por omissões na gestão da pandemia da covid-19. Relator da ação sobre a conduta da Saúde na crise sanitária, o ministro Benjamin Zymler disse que a pasta evitou assumir a liderança do combate ao novo coronavírus.

Segundo o relator, uma das ações da gestão de Pazuello foi mudar o plano de contingência do órgão na pandemia, com a finalidade de retirar responsabilidades do governo federal sobre o gerenciamento de estoques de medicamentos, insumos e testes. “Em vez de expandir as ações para a assunção da centralidade da assistência farmacêutica e garantia de insumos necessários, o ministério excluiu, por meio de regulamento, as suas responsabilidades”, disse Zymler.

O relator sugeriu a abertura de processos para avaliar omissões da Saúde na pandemia sobre estratégias de comunicação, testagem e distribuição de insumos e medicamentos. Segundo Zymler, o ministério descumpriu determinações anteriores feitas pelo TCU, as quais já apontavam a falta de planejamento em diversas áreas.

Em análises deste tipo, o TCU pode aplicar multas, indisponibilidade dos bens e determinar que o alvo da apuração não possa exercer cargo em comissão ou função de confiança no serviço federal por até oito anos. 

O ministro Bruno Dantas disse que a gestão do ministério “envergonha” e que já há argumentos de sobra para impor “condenações severas” a gestores da pasta. Para Dantas, as responsabilidades podem ser medidas “em números de mortos”.

Os ministros Augusto Nardes e Jorge Oliveira pediram vista e o caso deve retornar à pauta em 30 dias. Indicado pelo presidente Jair Bolsonaro ao TCU, Jorge Oliveira é ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência do atual governo.

Oliveira disse que concorda “no mérito”, com o relatório, mas alertou que o tribunal não deve extrapolar as suas atribuições e “desgastar” a relação entre as instituições. “(Peço) que o tribunal não extrapole suas funções, não faça desgastar uma relação que, por motivos alheios à nossa vontade, já está muito desgastada, que as instituições respeitem umas as outras”, disse. 

Segundo o ministro, o TCU poderia estar indo além das suas atribuições ao determinar, por exemplo, que a Saúde altere as suas campanhas de comunicação.

Em seu relatório, a área técnica do TCU sugeriu que os ministros já aprovassem a aplicação de multa a Pazuello, além do ex-secretário executivo da Saúde, Elcio Franco, do atual secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da Saúde, Helio Angotti Neto; e do atual secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Correia de Medeiros. O tribunal pode aplicar multa de, no máximo, R$ 67,854 mil. Zymler, porém, optou por não seguir a área técnica e sugeriu a abertura de processos separados, que poderão levar às sanções.

O posicionamento do tribunal pode ter desdobramentos cruciais sobre o governo, principalmente se considerada a abertura de uma CPI da Covid no Senado, que tem justamente a missão de apurar a conduta do governo federal na gestão da crise na saúde. 

O TCU é, por definição, um órgão de assessoria do Congresso Nacional. Foi do TCU que saiu, em 2015, o relatório final que recomendava a rejeição das contas do governo Dilma Rousseff de 2014. O julgamento das chamadas “pedaladas fiscais” foi a base onde se ergueu o impeachment da ex-presidente.

Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou.

O que diz o relatório técnico do TCU

O relatório técnico do tribunal lista uma série de medidas tomadas pelo Ministério da Saúde em relação ao Plano de Contingência Nacional. No entendimento do TCU, as mudanças tiveram o efeito prático de apenas reduzir as responsabilidades da pasta.

O plano original previa, por exemplo, que o governo federal devia “garantir estoque estratégico de medicamentos para atendimento de casos suspeitos e confirmados para o vírus. Esse missão, porém, foi alterada para o papel de “apoiar nos processos de aquisição não programada de medicamentos utilizados no tratamento de pacientes com covid-19, em articulação com as áreas técnicas demandantes”. 

O MS justificou que o financiamento da assistência farmacêutica é de responsabilidade das três esferas de gestão do SUS. Dessa forma, parte dos medicamentos é adquirida pelos Estados ou municípios, conforme pactuação e, por isso, caberia a cada ente a gestão de seus estoques.

O TCU, porém, apontou que, ao contrário do afirmado pelo ministério, a função de garantir estoque de medicamentos não se referia à responsabilidade de aquisição de todos os medicamentos, mas o monitoramento dos insumos essenciais e a aquisição, de forma a evitar desabastecimentos. “A alteração da ação, conforme realizada, tende a enfraquecer a gestão logística da pasta, atribuindo responsabilidade ao MS apenas para aquisições pontuais, não programadas, ou seja, sem planejamento, e levando ao abandono da função de controle do estoque, princípio essencial para fiscalização/monitoramento”, conclui.

O tribunal aponta ainda as alterações realizadas em ações de assistência farmacêutica, que representaram uma redução no escopo das atividades de gestão logística do ministério. 

Zymler também disse que o TCU irá acompanhar mais de perto os trabalhos da Fiocruz para produção de 100% da vacina de Oxford/AstraZeneca no País, o que deve ganhar corpo no segundo semestre. Hoje o laboratório público envasa os insumos que são enviados de fábrica na China. “Estamos um pouco preocupados com a Fiocruz. Ela tem diversas incumbências. Há percepção de que está estressada com diversas competências que lhe foram outorgadas na produção de vacinas e em outras ações de combate ao novo coronavírus”, disse o relator das ações da Saúde na pandemia.

O ministro ainda apontou preocupação pela queda na cobertura vacinal de crianças abaixo de 1 ano. Ele atribuiu os números à dificuldade de circulação por causa da pandemia, mas ponderou que há impacto das informações falsas. “Temos de reconhecer que há movimentos antivacina. Vinculados, e isso não é uma brincadeira, a movimentos terraplanistas”, disse ele.

O relator também apontou que falta planejamento da Saúde sobre o orçamento da pandemia. Ele ressaltou que nem sequer há discursos reservados em ação específica sobre a pandemia na proposta de lei orçamentária deste ano. “A chamada segunda onda, era anunciada e exigiam-se medidas adicionais de prevenção e preparo da estrutura de saúde. Não foi o que aconteceu, entretanto”, escreveu Zymler, em seu voto.

O relator disse que o Brasil caminha a passos largos para chegar ao topo no ranking de mortos em relação à população. Ele ainda lembrou que, se fossem países, Amazonas e Rio de Janeiro teriam as maiores taxas de mortos por 100 mil habitantes do planeta. 

A corte de contas chama a atenção para uma nota técnica da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, a qual chama a atenção para o fato de que não existe uma fórmula a ser seguida para o enfrentamento de pandemias em todo mundo, mas que os países com melhores resultados no controle da pandemia compartilham, ao menos, uma característica em comum: a adoção, de modo rápido possível, de medidas planejadas e coordenadas para o controle da disseminação do vírus, além da preparação do sistema de saúde para cuidar adequadamente das pessoas infectadas.

Veja abaixo os argumentos apontados pelo relator para pedir a abertura de processos três específicos sobre omissões da Saúde na pandemia. 

1. Comunicação falha

Em seu relatório, Zymler aponta que o ministério descumpriu determinações de criar uma estratégia de comunicação que atinja toda a população brasileira para a divulgação de medidas farmacológicas de eficácia comprovada.

O ministro afirma que a Saúde gastou cerca de R$ 290 milhões em campanhas de comunicação na pandemia, mas R$ 88 milhões foram destinados a propagandas sobre o agronegócio e a retomada das atividades comerciais. Ele também cita reportagem do Estadão que revelou que o aplicativo TrateCov, da Saúde, indicava cloroquina até para um bebe recém-nascido com diarréia e náusea.

Para Zymler, a conduta do ministério pode caracterizar omissão e desvio de finalidade no uso de recursos para campanhas de comunicação, pois as peças serviram para informar sobre cuidados sérios contra a covid-19.

2. Falta de assistência farmacêutica

O relator também propôs um processo separado para avaliar omissões na definição de responsabilidades sobre monitoramento de estoques e distribuição de medicamentos e insumos. 

O relator afirma que o tribunal já havia recomendado mudanças na gestão da Saúde em ações deste tipo, mas a pasta seguiu na direção contrária. Em vez de ampliar a sua liderança, o ministério mudou o plano de contingência para se isentar de responsabilidades como monitorar estoques nacionais de insumos para diagnóstico e medicamentos para a covid-19. 

Segundo Zymler, a Saúde pode ter contrariado a lei de criação do SUS ao fugir de responsabilidades na pandemia. Ainda assim, o relator disse que a Saúde não feriu uma determinação anterior do tribunal, apenas interpretou à sua maneira. “É uma percepção diferencial do Ministério da Saúde acerca das determinações do tribunal e eventualmente do que a lei e regulamentos sugerem”, disse Zymler.

3. Estratégia de testagem falha

Segundo o relator, a área técnica do TCU não encontrou qualquer organização na estratégia de testagem da população. “Surpreende que o Brasil tenha implantado como estratégia esperar que os cidadãos com sintomas procurem os serviços de saúde e realizem um teste de detecção da doença, sem estabelecer qualquer meta, ação ou objetivo de acordo com os resultados”, afirma a área técnica do tribunal.

O tribunal cita estoque de testes prestes a vencer, revelado pelo Estadão, e afirma que com estes exames a Saúde poderia ter conduzido ampla estratégia de testagem. A área técnica do órgão disse ainda que a distribuição dos exames não obedece a nenhum critério.

Mateus Vargas e André Borges, O Estado de S.Paulo, em 14 de abril de 2021 | 17h24 / Atualizado 14 de abril de 2021 | 18h23

Brasil tem 3.459 mortes por covid-19 em 24 horas

País supera 360 mil óbitos ligados ao coronavírus. Balanço oficial confirma ainda mais de 73 mil novos casos, e total de infectados chega a 13,67 milhões.

Funcionários de cemitério em São Paulo enterram caixão em seputalmento noturno

O Brasil registrou oficialmente 3.459 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta quarta-feira (14/04).

Também foram confirmados 73.513 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 13.673.507, e os óbitos somam agora 361.884.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números diários desta quarta-feira não incluem as cifras do Ceará, devido a problemas no acesso a base de dados do estado, informou o Conass.

O conselho de secretários não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 12.074.798 pacientes haviam se recuperado da doença até a noite de terça-feira.

Com os dados de óbitos registrados nesta quarta, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 172,2 no país.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 564 mil óbitos. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois dos EUA (31,4 milhões de infectados) e da Índia (13,8 milhões).

Ao todo, mais de 137,8 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus em todo o mundo, segundo números oficiais, e 2,96 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença.

Deutsche Welle Brasil, em 14.04.2021, há 5 minutos

Juan Arias: Os três gols seguidos em Bolsonaro podem prever sua derrota final

Até os que continuavam apoiando-o porque o viam como o grande inimigo da esquerda começaram a se distanciar dele principalmente após a desastrosa gestão da pandemia com seu negacionismo exasperado.


Presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Palácio do Planalto. ( Crédito da foto: Evaristo Sá / AFP)

Os que convivem com o presidente Jair Bolsonaro afirmam que nunca o viram tão irritado como nestes dias. Talvez porque tenha sofrido três gols seguidos que podem prever sua derrota definitiva.

Até os que continuavam apoiando-o porque o viam como o grande inimigo da esquerda começaram a se distanciar dele principalmente após a desastrosa gestão da pandemia com seu negacionismo exasperado que fez com o que o Brasil seja visto hoje no exterior como o maior perigo sanitário do mundo.

O capitão viu de repente seu governo vazado três vezes. Primeiro quando o Exército fez com que ele soubesse com a renúncia dos três chefes das Forças Armadas que não está disposto a entrar em política e deu a entender que não é “seu Exército” como ele cacareja a cada dia.

O Supremo que ele achava ter dominado marcou dois gols seguidos em Bolsonaro. Primeiro derrubando por 9 votos contra 2 sua pretensão de que as Igrejas se mantivessem abertas ao culto apesar do agravamento da pandemia. Os magistrados se mantiveram firmes em que são os governadores e prefeitos que, segundo a gravidade do momento, poderão ou não impedir o culto presencial nos templos.

O outro gol do Supremo foi marcado pelo juiz Barroso obrigando o Senado a dar sinal verde à abertura de uma CPI para analisar as responsabilidades do Presidente e de seu Governo na gestão da pandemia que levou o país à catástrofe que está sofrendo com o horror de que em muitas cidades os mortos já superam os nascimentos. No Senado já existiam os votos suficientes para dar andamento à CPI, mas o presidente da Casa se fazia de desentendido e continuava sem abrir a comissão de inquérito sobre os possíveis crimes de Bolsonaro que zomba do que ele chamou de uma simples “gripezinha”. Enfurecido, o Presidente ameaçou o Supremo e o Senado em usar a “bomba atômica” contra eles. Ameaça que deixa a descoberto sua fragilidade e o poder que achava ter sobre as instituições.

Essas três derrotas às que é preciso somar o fato de ter sido obrigado a demitir seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, considerado o coração ideológico do Governo, seguidor fiel de Donald Trump e que estava fazendo com que o Brasil brigasse com meio mundo, indicam que as placas tectônicas de seu poder estão se movimentando e podem causar um terremoto político.

É importante que o amante das ditaduras comece a ver seu poder se quebrar porque com seus desmandos e ataques contínuos à democracia está fazendo com que o Brasil perca as esperanças. E já sabemos o que costuma acontecer quando um povo perde as esperanças nos que o governam.

De fato, com Bolsonaro o Brasil do futuro ficou muito para trás, o do Deus é brasileiro, o do milagre econômico, o país desejado pelos europeus que queriam vir trabalhar aqui, o Brasil respeitado em todos os foros internacionais, o de sua invejada diplomacia exterior. Tudo isso parece de repente ter se desfeito como uma bolha de sabão dando lugar a um pessimismo nacional.

Hoje predominam as fake news que envenenam a sociedade e a desorientam levada pelo ódio em vez da convivência pacífica. Onde se esconderam envergonhadas a esperança e a alegria de viver? Hoje até a música popular se tornou mais violenta.

De tanto falar de armas, de militares, de golpes de Estado, de genocídios e de sentirem-se abandonados em meio à matança da pandemia os brasileiros se veem a cada dia mais abandonados à sua sorte.

Enquanto os mortos se amontoam e já faltam cemitérios, soam macabras as zombarias, as ironias e até as imitações grosseiras de alguém que morre asfixiado por falta de oxigênio por parte de quem detém o poder da nação e deveria mostrar solidariedade e compaixão com tanta dor.

Dá a sensação de uma grande confusão que desorienta as pessoas que já não sabem em quem confiar com as instituições do Estado também até ontem desorientadas e incapazes de se unir contra o perigo comum de quem só pensa em conseguir o poder absoluto para impor um sombrio golpe ditatorial.

É surpreendente ver, por exemplo, os grandes empresários aplaudindo o candidato a ditador que arrastou o país a uma das maiores crises econômicas da história com milhões que ou passam fome, ou estão sem trabalho e que quase não conseguem viver com dignidade com o que ganham.

Estão cegas essas elites financeiras que não veem as lágrimas de milhões de brasileiros que levantam todas as manhãs sem saber se poderão dar de comer aos seus filhos? Esses empresários que manejam as finanças do país não veem que o Brasil está desmoronando e que a cada dia se sente mais inseguro sem saber que futuro seus filhos esperam?

Essas elites da política e do dinheiro não veem que o Brasil amanhece a cada manhã com os grandes veículos de comunicação mundiais anunciando a queda e desmoralização de um país que deveria e poderia ser o coração do continente?

Não, o Brasil não precisa para ser governado e para recuperar sua esperança hoje quebrada de mais messias e redentores, e sim de estadistas capazes de organizar o país em relação à sua dignidade, sem saqueá-lo vergonhosamente para que eles e suas famílias enriqueçam condenando um país rico material e espiritualmente à pobreza e ao desalento.

A única esperança é que a sociedade procure sua unidade e o antídoto para se defender contra os vírus políticos mais mortais do que os da pandemia porque envenenam não só o presente, e sim também o futuro da nação.

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A palavra de ordem dos brasileiros hoje deveria ser a da resistência aos que se divertem e lucram saqueando não só seus recursos, como suas liberdades até de expressão e, principalmente, a esperança de sair do pesadelo que os aflige mais unidos e com orgulho do que realmente representa este país no mundo.

O que espera, por exemplo, o Congresso para dar seguimento aos aproximadamente cem pedidos de impeachment contra o Presidente por parte da sociedade? O Congresso não é a voz e a expressão dos anseios da sociedade?

É desmoralizador ver essa voz da sociedade sufocada pelos interesses puramente pessoais dos que a governam. O que podem pensar os milhões sem casa e morando em pardieiros como animais vendo um senador jovem, filho do Presidente, investigado por corrupção, comprar uma mansão de seis milhões no coração aristocrático de Brasília?

Quando o poder que deveria pensar em como melhorar a vida das pessoas aparece preocupado somente em acumular privilégios e benefícios, a democracia se quebra envergonhada e humilhada.

O Brasil sofreu como tragédia os 21 anos de ditadura militar e agora parece viver como farsa a democracia. Só que às vezes a farsa dos aprendizes a ditadores pode ser mais grave do que a realidade.

O Brasil precisa com urgência de verdadeiros líderes capazes de devolver a esperança perdida a 220 milhões de pessoas submersas hoje no medo e na desilusão. A história é sempre mãe da sabedoria. O que o Brasil vive hoje pode lembrar quando há mais de 2.000 anos Cícero, senador romano, jurista, político e escritor enfrentou o conspirador Catilina que pretendia tomar o poder absoluto, com suas famosas palavras que atravessaram os séculos: “Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência? Por quanto tempo tua loucura zombará de nós? A que extremo chegou tua audácia desenfreada? Não percebeu que seus planos foram descobertos?”. O conspirador Catilina acabou fugindo de Roma com suas hostes fanáticas e derrotado.

Sim, o Brasil precisa de um novo Cícero capaz de repetir ao conspirador que só sonha em conquistar o poder absoluto zombando da Constituição e da democracia: até quando continuará abusando de nossa paciência?

Juan Arias, o autor deste artigo, é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente. Publicado em 11.04.2021.

Cármen Lúcia pede que STF julgue queixa-crime contra Bolsonaro por genocídio

Ministra quer que o caso seja avaliado pelo colegiado, que pode determinar que a PGR abra inquérito para avaliar responsabilidades do presidente ao vetar envio de insumos médicos aos povos indígenas durante a pandemia.

Ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. (Crédito da foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press)

A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu que seja levado ao plenário da Corte uma queixa-crime contra o presidente Jair Bolsonaro pela acusação de genocídio dos povos indígenas durante a pandemia de covid-19. Os ministros devem avaliar se a Procuradoria Geral da República (PGR) abre inquérito para investigar o caso.

De acordo com o pedido protocolado no Supremo, o presidente vetou um trecho da lei de assistência aos povos indígenas que previa o fornecimento de água potável e insumos médicos as comunidades tradicionais em meio ao avanço da covid-19 no país. A queixa-crime também acusa o presidente de genocídio por se omitir das ações de combate à pandemia em relação a população em geral.

A PGR se manifestou contra a abertura de investigação. Na avaliação do procurador-geral da República, Augusto Aras, o presidente agiu de acordo com a Constituição ao vetar o envio de insumos médicos aos indígenas, pois não havia recurso destinado para custear a compra do material.

"Dever do Judiciário"

Na ação, o advogado André Barros, representado pelo defensor Max Telesca, pede que o presidente seja investigado e punido por atuar pela disseminação do vírus em território nacional. "O presidente da República buscou, de maneira concreta, que a população saísse às ruas, como de fato saiu, para que contraísse rapidamente a doença, sob a falsa informação da imunização de rebanho", disse o defensor.

Sustentou ainda que é dever do Poder Judiciário atuar para punir os mal feitos. "Se o STF acatar o arquivamento, serão fechadas as portas do Judiciário para a apuração deste genocídio contra o povo brasileiro", aponta a petição.

Renato Souza / Correio Braziliense online, em 13.04.2021