quarta-feira, 31 de março de 2021

Na contramão do comitê, Bolsonaro critica medidas de distanciamento contra a covid

Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, pediu para população evitar aglomerações no feriado: 'Não há o que se comemorar'

Ao fim da primeira reunião do comitê de crise, criado para avançar nas medidas definidas pelos Três Poderes contra a pandemia, ficou claro que Jair Bolsonaro mantém visão diferente dos demais membros do grupo. Menos de dez minutos após o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), do presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), e do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reforçarem a necessidade de uso da máscara e do distanciamento social, apelando para que isso fosse praticado no feriado da Semana Santa, o presidente falou na direção oposta, criticando lockdown e isolamento. Lira e Pacheco também defenderam maior participação da iniciativa privada na compra de vacinas. 

Queiroga pede para população evitar aglomerações no feriado: 'Não há o que se comemorar'

Ao reclamar das medidas mais restritivas adotadas por governadores e prefeitos, Bolsonaro afirmou que as pessoas querem voltar ao trabalho. “Não é ficando em casa que vamos solucionar esse problema”, disse. “Essa política continua sendo adotada, mas o espírito dela era se preparar com leitos de UTI, respiradores, para que as pessoas não viessem a perder suas vidas por falta de atendimento", criticou Bolsonaro, num pronunciamento feito sem máscara - só colocou depois da fala e após ser alertado pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria.

O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Palacio do Planalto  Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO

O contraste de posições ficou mais nítido porque Bolsonaro acabou não participando da coletiva realizada pelos outros integrantes do Comitê de Crise, que falaram bastante alinhados. Na reunião entre os Poderes que definiu a criação do comitê, o presidente já tinha criticado a ação de governadores e de prefeitos que decidiram pela adoção do lockdown para tentar conter o avanço da doença. Agora, mais uma vez, disse que essas medidas impedem que as pessoas trabalhem e podem fazer com que passem fome. De novo, também usou a comparação dessas medidas com as de um estado de sítio.

Sem a presença do presidente, os integrantes do Comitê de Crise pareceram antever a trombada que iria acontecer. E defenderam que era importante um alinhamento na estratégia de comunicação social, justamente para garantir uma atuação uniforme na divulgação das informações necessárias para a população no combate da pandemia.

“É muito importante a comunicação. Que haja um alinhamento da comunicação social do governo, da assessoria de imprensa da Presidência da República, no sentido de haver uma uniformização do discurso”, disse Rodrigo Pacheco. “Que é necessário se vacinar, usar máscara, higienizar as mãos. Que é necessário o distanciamento social de modo a prevenirmos o aumento da doença no nosso País”, afirmou.

Já sabendo da posição de Bolsonaro, Queiroga usou jogo de cintura para não bater totalmente de frente com ele. O ministro admitiu que há dificuldade da população para seguir medidas extremas. Por isso, reforçou a defesa do distanciamento, do uso de máscaras e que cada um faça sua parte já na Semana Santa.

“No feriado, não pode haver aglomerações desnecessárias. É importante usar máscara, manter o isolamento. É importante fazer isso. Medidas extremas não são desejadas. Então vamos fazer isso", ponderou.

Na conversa, Bolsonaro acabou sendo surpreendido pela sugestão de que se vacinasse publicamente. Antes de sua “conversão” à defesa da vacinação, o presidente chegou a declarar que não se imunizaria é que já tinha anticorpos contra o coronavírus pois tinha contraído o vírus. Agora, acabou sem responder à sugestão, que ainda recebeu um acréscimo: a aplicação da vacina poderia ser feita pelo próprio ministro da Saúde, que é médico. Bolsonaro acabou mudando de assunto e não respondeu se toparia a ideia.

Mesmo sem conseguir o alinhamento do presidente, o Comitê de Crise vai tentar avançar em outros gargalos para frear a expansão da pandemia. Queiroga afirmou que vai discutir com o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, medidas relativas aos transportes urbanos. Hoje, a proximidade entre esses passageiros, que precisam se deslocar diariamente para suas atividades, é vista como ponto de risco na transmissão do vírus.

Arthur Lira e Rodrigo Pacheco aproveitaram a reunião para defender a atuação mais intensa da iniciativa privada no combate à pandemia e também para a compra de vacinas. “É importante que se comece um amplo diálogo, um debate que permita que empresas possam adquirir vacinas para seus funcionários, mesmo com o repasse obrigatório para o SUS. Cada brasileiro vacinado é um a menos que possa contrair o vírus”, defendeu.

Lira insistiu que a ampliação da vacinação e a garantia de que haverá mais leitos de UTI e medicamentos segue sendo prioridade. “O nosso problema é vacinar e esse é o nosso foco. A Câmara dos Deputados está discutindo soluções e votando projetos importantes para que se amplie a vacinação, leitos, insumos e toda a infraestrutura necessária no combate à pandemia”, disse.

Marcelo de Moraes, O Estado de S.Paulo, em 31 de março de 2021, às 14h49 hs

Seis presidenciáveis assinam manifesto conjunto pró-democracia

Manifestação ocorre um dia após Bolsonaro demitir os comandantes das Forças Armadas; texto é assinado por Doria, Eduardo Leite, Ciro, Mandetta, Amoêdo e Huck

Um grupo de seis possíveis candidatos à Presidência da República em 2022 lançou na noite desta quarta-feira, dia 31, um manifesto em defesa da democracia, da Constituição Federal de 1988 e contra o autoritarismo. O texto é assinado tanto por nomes da centro-direita quanto da centro-esquerda. 

A manifestação pró-democracia ocorre um dia depois de o presidente Jair Bolsonaro demitir o ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva; e os comandantes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército. 

Governador de São Paulo, João Doria Foto: Governo SP

O texto é assinado pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM); pelo apresentador de TV Luciano Huck; pelos ex-candidatos presidenciais em 2018 Ciro Gomes (PDT) e João Amoêdo (Novo) e pelos governadores tucanos João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS). Os seis são vistos como possíveis candidatos em 2022. 

Leia abaixo a íntegra do manifesto

Muitos brasileiros foram às ruas e lutaram pela reconquista da Democracia na década de 1980. O movimento “Diretas Já”, uniu diferentes forças políticas no mesmo palanque, possibilitou a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, a volta das eleições diretas para o Executivo e o Legislativo e promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Três décadas depois, a Democracia brasileira é ameaçada.

A conquista do Brasil sonhado por cada um de nós não pode prescindir da Democracia. Ela é nosso legado, nosso chão, nosso farol. Cabe a cada um de nós defendê-la e lutar por seus princípios e valores.

Não há Democracia sem Constituição. Não há liberdade sem justiça. Não há igualdade sem respeito. Não há prosperidade sem solidariedade.

A Democracia é o melhor dos sistemas políticos que a humanidade foi capaz de criar. Liberdade de expressão, respeito aos direitos individuais, justiça para todos, direito ao voto e ao protesto. Tudo isso só acontece em regimes democráticos. Fora da Democracia o que existe é o excesso, o abuso, a transgressão, a intimidação, a ameaça e a submissão arbitrária do indivíduo ao Estado.

Exemplos não faltam para nos mostrar que o autoritarismo pode emergir das sombras, sempre que as sociedades se descuidam e silenciam na defesa dos valores democráticos.

Homens e mulheres desse país que apreciam a LIBERDADE, sejam civis ou militares, independentemente de filiação partidária, cor, religião, gênero e origem, devem estar unidos pela defesa da CONSCIÊNCIA DEMOCRÁTICA. Vamos defender o Brasil.

André Shalders, O Estado de S.Paulo, em 31 de março de 2021, às 19h54 hs

Bolsonaro quebra tradição de antiguidade e coloca general Paulo Sérgio para comandar Exército

Paulo Sérgio substitui Edson Pujol, demitido por Bolsonaro com os outros dois chefes militares, que rejeitaram a tentativa de uso político das Forças Armadas; Baptista Jr. assume a FAB e Almir Garnier, a Marinha

 

O presidente Jair Bolsonaro escolheu o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira como novo comandante do Exército. Ele substitui o general Edson Pujol, demitido ontem com os comandantes da Aeronáutica e da Marinha, após rejeitarem tentativas do presidente de politizar as Forças Armadas. Foi a primeira vez na história que um presidente trocou a cúpula militar do País no meio do mandato.

Ao escolher o general Paulo Sérgio no Exército, Bolsonaro repete a ex-presidente Dilma Rousseff ao quebrar a tradição de optar pelo oficial mais antigo para comandar a tropa. O nomeado era o terceiro pelo critério de antiguidade e seria o quinto caso dois outros generais não tivessem passado para a reserva nesta quarta-feira.

Logo após o anúncio, Bolsonaro postou uma foto com o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e os três novos comandantes. 

Além de ser o terceiro na lista de antiguidade, o general Paulo Sérgio não era a primeira opção de Bolsonaro e nem mesmo o preferido dentro do Exército. Antes de ser alçado ao comando da tropa, ele chefiava o Departamento-Geral do Pessoal, um cargo administrativo, considerado de menor importância internamente. O general também contrariou o presidente em recente entrevista ao jornal Correio Braziliense em que apontou a possibilidade de uma 3.ª onda da covid-19 no País e defendeu isolamento social. Bolsonaro é crítico às restrições impostas por governadores e prefeitos como forma de conter a propagação da doença.

Pesou a favor de Paulo Sérgio, porém, o fato de ter um perfil apaziguador, hábil no trato com subordinados, e um estilo “um manda, outro obedece”, como definiu certa vez o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde que teve a gestão marcada por apenas cumprir as ordens do presidente. 

Nos bastidores, o ex-comandante do Exército e atual assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Eduardo Villas Bôas, é apontado como avalista da nomeação. O oficial da reserva, de quem Bolsonaro é próximo, foi decisivo para a promoção de Paulo Sérgio a general quatro estrelas, o topo da carreira militar.

O novo comandante do Exército também é próximo ao ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, amigo do presidente, mas que foi demitido nesta semana por resistir a ofensivas de Bolsonaro.

General Paulo Sérgio vai comandar o Exército

O ministro da Defesa, Braga Netto, apresenta os novos comandantes das Forças Armadas: (à esq.) almirante Almir Garnier (Marinha), o general Paulo Sergio (Exercito), e o brigadeiro Carlos de Almeida Batista Jr. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Azevedo deixou o cargo por algumas razões: 1) ter mandado o general Eduardo Pazuello de volta para o quartel, quando Bolsonaro queria alocar o ex-ministro da Saúde na Esplanada; 2) se recusou a confrontar decisões do Supremo Tribunal Federal, como queria o presidente; 3) se recusou a trocar o comandante do Exército, Edson Pujol, com quem Bolsonaro nunca teve boas relações. 

Com a escolha de Paulo Sérgio, porém, Bolsonaro tenta apaziguar os ânimos e passar a mensagem para a tropa de que vai manter a continuidade. 

Ao anunciar os novos comandantes, o general Braga Netto, novo ministro da Defesa, destacou o papel dos militares no enfrentamento da covid-19 e disse que as Forças Armadas “não faltaram no passado e não faltarão sempre que o País precisar”. “O Exército, a Marinha e a Aeronáutica se mantêm fiéis a suas missões constitucionais de defender a pátria e garantir as liberdades democráticas. O maior patrimônio de uma nação é a liberdade de seu povo”, afirmou. Ao se referir ao presidente, Braga Netto disse que o Comandante Supremo escolheu os comandantes.

Preterido na escolha, o general mais antigo na cúpula do Exército, general José Luiz Freitas, elogiou a indicação pelas redes sociais.  “Escolhido o novo Comandante do Exército, Gen Paulo Sérgio, excepcional figura humana e profissional exemplar. Como não poderia deixar de ser, continuaremos unidos e coesos, trabalhando incansavelmente pelo Exército de Caxias e pelo Brasil!”, postou o general, que deve ir para a reserva em três meses. 

O segundo na lista de antiguidade era o general Marcos Antonio Amaro dos Santos, chefe do Estado-Maior do Exército, que cuidou da segurança da ex-presidente Dilma e foi chefe da Casa Militar no governo da petista. 

À frente deles estavam ainda os generais Décio Luís Schons e César Augusto Nardi de Souza, que passaram oficialmente à reserva a partir desta quarta-feira, 31, e já foram substituídos no Alto Comando.

Marinha e Aeronáutica

Na Marinha, o escolhido por Bolsonaro foi o almirante de esquadra Almir Garnier, atual secretário-geral do Ministério da defesa. Neste caso, o presidente também ignorou a tradição e optou pelo segundo da lista de antiguidade. O primeiro era o almirante de esquadra Alípio Jorge Rodrigues da Silva, comandante de Operações Navais.

No Ministério da Defesa, Garnier atuou como assessor especial militar dos ministros Celso Amorim, Jaques Wagner, Aldo Rebelo e Raul Jungmann.

 Na Aeronáutica, assumirá o brigadeiro Carlos Almeida Baptista Junior, que demonstra nas redes sociais ser afinado ao governo, compartilhando mensagens ligadas a grupos de direita. Ele era o primeiro no critério de antiguidade.

Baptista Junior assume o cargo que já foi do pai dele no governo de Fernando Henrique Cardoso. Na época, Carlos de Almeida Baptista foi deslocado do Superior Tribunal Militar para o comando da Aeronáutica também num momento de crise com os militares, após a Corte reabrir a investigação do caso do atentado no Riocentro. Ele exerceu a função de 1999 a 2003.

Antiguidade 

Mais cedo, antes das escolhas serem anunciadas, o vice-presidente Hamilton Mourão defendeu  o respeito ao critério de antiguidade na escolha da nova cúpula militar. 

“Eu julgo que a escolha tem que ser feita dentro do princípio da antiguidade, até porque foi uma substituição que não era prevista. Quando é uma substituição prevista, é distinto. Então, se escolhe dentro da antiguidade e segue o baile”, afirmou o vice, que é general da reserva.

O presidente também havia sido aconselhado a seguir a lista para não criar atritos com generais mais experientes.  

Isso porque os oficiais mais antigos passam à reserva se um militar mais “moderno”, com menos tempo de Exército, for alçado ao comando. A aposentadoria não é uma regra compulsória, mas costuma ter força de norma não escrita nos quartéis.

Os oficiais costumam pedir para deixar a ativa como forma de não serem comandados por um antigo subordinado, uma inversão na hierarquia.  

Felipe Frazão e Eliane Cantanhêde para O Estado de S.Paulo, em 31 de março de 2021 | 17h05 Atualizado 31 de março de 2021 | 19h50

Golpe de 1964: novo ministro da Defesa fala em celebrar aniversário 'no contexto histórico' - mas qual é este contexto?

Ele afirma que o movimento militar de 1964 que derrubou o governo eleito de João Goulart "é parte da trajetória histórica do Brasil" e "assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março".


Os anos após o AI-5 foram os mais violentos da ditadura militar; foto mostra desfile de 7 de setembro em 1972 (Crédito da foto: Acervo Arquivo Nacional).

"Eventos ocorridos há 57 anos, assim como todo acontecimento histórico, só podem ser compreendidos a partir do contexto da época." Assim começa a mensagem alusiva ao 31 de março de 1964 assinada pelo novo ministro da Defesa, Walter Souza Braga Netto, que assumiu o posto nesta semana após divergências entre seu antecessor e o presidente Jair Bolsonaro sobre o papel político das Forças Armadas.

Ao longo de pouco mais de 2 mil palavras, Braga Netto cita o cenário geopolítico polarizado na Guerra Fria, que em suas palavras representava uma "ameaça real à paz e à democracia" do país. Ele afirma que o movimento militar de 1964 que derrubou o governo eleito de João Goulart "é parte da trajetória histórica do Brasil" e "assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março".

Em 2019, Bolsonaro gerou forte reação ao determinar a celebração do golpe que instaurou uma ditadura no país, e o caso se transformou em uma disputa judicial. Dois anos depois, a demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo, e dos chefes do Exército, Aeronáutica e Marinha, e a nota de Braga Netto dão novos contornos à participação ativa dos militares na política nacional.

Fiadores da candidatura de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, os militares deram força ao sentimento antipetista e antipolítica naquele pleito, apontam analistas. Vitoriosos, eles ocuparam a vice-presidência, ministérios estratégicos (inclusive com generais da ativa) e milhares de cargos comissionados no governo federal.

Ministros do STF ficam 'surpresos' com demissões e avaliam que Bolsonaro tentou 'politizar' Forças Armadas

Bolsonaro ataca própria base e arrisca reeleição ao demitir militares, diz especialista em Forças Armadas

Demissão de comandantes não tira apoio militar a Bolsonaro, dizem cientistas políticos

Em 2021, a pressão pública crescente sobre Bolsonaro por causa do agravamento da pandemia de coronavírus, que mata quase 4 mil pessoas por dia no Brasil e impacta duramente a economia, ampliou a cobrança do presidente por um posicionamento político mais ostensivo e mais alinhado das Forças Armadas.

Um episódio simbólico da divergência ocorreu em maio de 2020, quando Bolsonaro tentou apertar a mão de Edson Pujol, então comandante do Exército, e este lhe ofereceu o cotovelo, seguindo orientações internacionais para evitar a transmissão do vírus.

O gesto teria irritado o presidente. Enquanto Bolsonaro minimizava o coronavírus como uma "gripezinha", Pujol afirmava que a pandemia "talvez seja a missão mais importante de nossa geração".

Um dos principais pontos desse embate que culminou na demissão de Pujol e outros três colegas está entre cumprir políticas de governo ou políticas de Estado. Mas o que costuma atrair mais holofotes na imprensa é a defesa da ditadura militar por parte de bolsonaristas, com citações ao AI-5 (ato de dezembro de 1968 que fechou o Congresso e cassou liberdades individuais), negação de assassinatos e torturas e exaltações ao golpe militar de 31 de março de 1964, chamado de revolução ou movimento pelos militares.

Mudança na cúpula da Defesa traz risco de quebra de hierarquia e fissuras nas Forças Armadas

O que foi o golpe de 1964?

A "ameaça comunista" e a suposta iminência de um golpe de Estado da esquerda costumam ser apontadas como justificativa tanto para a derrubada de Jango quanto para a instituição do AI-5.

Em 2019, a BBC News Brasil revelou que o governo Bolsonaro enviou um telegrama à Organização das Nações Unidas (ONU) afirmando que os 21 anos de governos militares foram necessários "para afastar a crescente ameaça de uma tomada comunista do Brasil e garantir a preservação das instituições nacionais, no contexto da Guerra Fria".

E acrescentou: "As principais agências de notícias nacionais da época pediram uma intervenção militar para enfrentar a ameaça crescente da agitação comunista no país."

Então comandante do Exército, Pujol disse que pandemia 'talvez seja a missão mais importante de nossa geração' (Crédito da foto: Getty Images)

Braga Netto, em sua mensagem sobre o 31 de março de 1964, afirma que "os brasileiros perceberam a emergência e se movimentaram nas ruas, com amplo apoio da imprensa, de lideranças políticas, das igrejas, do segmento empresarial, de diversos setores da sociedade organizada e das Forças Armadas, interrompendo a escalada conflitiva, resultando no chamado movimento de 31 de março de 1964".

Segundo o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas, os militares brasileiros enxergavam que a ameaça à ordem vigente vinha de "inimigos internos" que supostamente poderiam implantar o "comunismo no país pela via revolucionária, através da 'subversão' da ordem existente - daí serem chamados pelos militares de 'subversivos'."

O exemplo mais próximo que reforçava essa tese era Cuba.

Em 2004, o ex-senador e ex-ministro da ditadura, Jarbas Passarinho, afirmou em entrevista à BBC News Brasil que o golpe militar de 1964 se tornou imperativo, na avaliação dele, pela presença à época de supostos guerrilheiros atuando em território brasileiro, encorajados pelo sucesso dos comunistas na China, na União Soviética e em Cuba, e pela insubordinação militar com o motim dos sargentos, em 1963 em Brasília, e dos marinheiros, em 1964 no Rio de Janeiro.

"Todo mundo tinha medo da ameaça comunista."

A restauração da disciplina e da hierarquia das Forças Armadas é apontada pelo CPDOC como outra justificativa para o golpe militar.

Mas especialistas apontam que esse risco era praticamente inexistente à época, tanto pelo fato de que João Goulart não era comunista quanto pela fragmentação dos movimentos de esquerda e da falta de apoio popular massivo à época.

A própria falta de reação massiva contra o início do regime militar reforça esse diagnóstico.

Em seu livro "Em Guarda contra o Perigo Vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964)", o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e um dos principais estudiosos do tema no Brasil, mostra que o anticomunismo "não passou de engodo para justificar a intervenção", e que a retórica golpista passava mais por antipopulismo e antirreformismo.

A exemplo das reformas de base propostas por João Goulart, que passavam por mudanças profundas em áreas como a bancária e as universidades e principalmente por uma ampla reforma agrária via desapropriação de terras com título da dívida pública.

Mas as propostas enfrentaram forte resistência dos setores mais conservadores da sociedade e não avançaram no Congresso, apesar do apoio de diversas categorias.

A mesma ameaça de "perigo vermelho" foi usada quatro anos depois como justificativa para o endurecimento do aparelho repressivo da ditadura, por meio do AI-5. Isso reverbera até hoje no bolsonarismo.

Em outubro de 2019, um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), disse que, caso a esquerda "se radicalize", "vamos precisar ter uma resposta", que, segundo ele, "pode ser via um novo AI-5".

Mas o principal "inimigo" do regime já era outro.

Documentos e depoimentos da época mostram, dizem estudiosos, que o ato autoritário de 1968 foi uma forma de a ditadura militar controlar não só a oposição de esquerda ou os comunistas, mas os setores da sociedade civil que haviam apoiado o golpe de 1964 e que, quatro anos depois, estavam ficando descontentes com o governo, como a Igreja Católica, a imprensa, o Poder Judiciário e líderes políticos.

Militares ocupam milhares de postos administrativos no governo Bolsonaro (Crédito da foto: Getty Images)

"Muita gente tinha apoiado o golpe, imaginando que seria uma coisa de curto prazo. Mas aí os partidos políticos foram dissolvidos, a eleição para presidente foi indireta, a grande imprensa, que havia apoiado o golpe, começou a ser censurada... Você tinha um quadro de insatisfação muito ampliado", disse o historiador Daniel Aarão Reis, professor e pesquisador de História Contemporânea na UFF (Universidade Federal Fluminense), à BBC News Brasil em 2019.

Segundo Aarão Reis, os grupos da luta armada contra a ditadura eram poucos, pequenos, não tinham apoio popular e não apresentavam uma ameaça real ao regime.

Para Sá Motta, da UFMG, a ditadura já possuía os meios suficientes para reprimir a resistência da esquerda, e não precisaria ampliar seus poderes com o AI-5. Mas ela não tinha ainda "eram meios suficientes para enquadrar e disciplinar segmentos rebeldes da própria elite situados em lugares estratégicos, como o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e a imprensa".

O regime militar no Brasil durou de 1964 a 1985 e o período mais duro do regime, durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, foi de 1969 a 1974.

Segundo relatório da Comissão da Verdade, durante os 20 anos de duração da ditadura no Brasil, 424 pessoas morreram ou desapareceram. Foi identificado também, por exemplo, que o regime perseguiu, prendeu ou torturou 6.591 militares.

As práticas violentas contra dissidentes brasileiros também constam em documentos entregues pelos Estados Unidos ao Brasil em 2014, com relatórios que detalhavam informações de 1967 a 1977 sobre censura, tortura e assassinatos cometidos pelo regime militar do Brasil.

Anistia

Braga Netto, novo ministro da Defesa, cita em seu texto sobre o 31 de março de 1964 a Lei da Anistia, que foi aprovada pelo Congresso Nacional em 1979 e, segundo ele, "consolidou um amplo pacto de pacificação a partir das convergências próprias da democracia. Foi uma transição sólida, enriquecida com a maturidade do aprendizado coletivo".

A Lei da Anistia, que perdoou crimes políticos cometidos por militantes e agentes de Estado durante a ditadura, é um ponto-chave em embates entre militares e alguns setores da sociedade civil desde a redemocratização em 1985.

Em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) moveu uma ação para tentar derrubar a lei, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu mantê-la.

A postura do Brasil em relação à Lei da Anistia já foi condenada pela ONU e outros organismos internacionais e contrasta com a de vizinhos como Argentina, Chile e Uruguai. Nesses países, a Justiça tem condenado agentes de Estado por acusações de homicídios, torturas e sequestros ocorridos durante regimes militares.


O enterro do estudante Edson Luís, assassinado em março de 1968 no Rio por agentes da repressão no restaurante Calabouço; sua morte desencadeou uma série de manifestações contra o regime militar (Crédito da foto: Acervo Arquivo Nacional).

Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reacendeu o debate sobre a Lei da Anistia, mas a legislação tampouco foi modificada. Para que torturadores possam ir ao banco dos réus, é preciso que o STF modifique sua interpretação da lei de 2010 ou que o Congresso altere a redação.

Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade apontou 377 agentes públicos responsáveis pela repressão política durante a ditadura, e mesmo sem força para punições conseguiu gerar uma forte reação entre militares.

Os trabalhos da comissão são tidos como um dos diversos elementos que levaram o segmento a atuar politicamente em massa contra o PT e, por extensão, a fazer parte da candidatura e do governo Bolsonaro.

Desde o pleito de 2018, parte do comando das Forças Armadas repete publicamente que segue a Constituição, afasta qualquer risco de recuo democrático, critica a politização dos quartéis e reitera agir como instituição do Estado brasileiro, e não de um governo.

"A Marinha, o Exército e a Força Aérea acompanham as mudanças, conscientes de sua missão constitucional de defender a Pátria, garantir os Poderes constitucionais, e seguros de que a harmonia e o equilíbrio entre esses Poderes preservarão a paz e a estabilidade em nosso País", conclui Braga Netto.

Matheus Magenta, da BBC News Brasil em Londres. Publicado em 31.03.2021

'Crise estava fadada a ocorrer', diz historiador sobre demissões no comando das Forças Armadas

Os pedidos de demissão do agora ex-ministro da Defesa general Fernando Azevedo e dos três comandantes das Forças Armadas escancaram uma crise inédita no país, mas que "estava fadada a ocorrer", diz o historiador Carlos Fico.

Bolsonaro erra ao cobrar fidelidade política das Forças Armadas, diz pesquisador (Crédito da foto: Crédito / Reuters)

"Nunca houve o afastamento de três comandantes militares ao mesmo tempo na história da República. É grave", avalia o pesquisador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A crise nas Forças Armadas foi detonada às vésperas do aniversário do golpe militar de 1964, nesta quarta-feira (31/3). No entanto, Fico não acredita na possibilidade de ocorrer uma nova ruptura da ordem institucional.

"Não sei se é excesso de otimismo, mas pelo que vejo do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e da sociedade em geral percebemos que o apoio a Bolsonaro é barulhento, mas a maioria não o apoia e reagiria."

Autor de diversos livros, entre eles O golpe de 1964: momentos decisivos e História do Brasil Contemporâneo: da Morte de Vargas aos Dias Atuais, Fico diz que as Forças Armadas entraram em uma relação "promíscua" com o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e que isso inevitavelmente levou à crise atual.

"Falo promiscuidade porque houve um envolvimento indevido com o governo, com uma enxurrada de militares, uma presença excessiva e desproporcional. A crise estava contratada desde então", diz ele.

'Apoiar Bolsonaro foi um risco para as Forças Armadas'

Militares têm uma presença excessiva no governo, afirma Fico (Crédito da foto: Reuters)

O pesquisador aponta que, de um lado, o presidente se julgou no direito de cobrar lealdade política do ministro da Defesa e das Forças Armadas.

"Isso não convém, não compete a ele, e é totalmente inadequado e inconstitucional para as Forças Armadas, sendo um órgão de Estado", afirma.

Ao mesmo tempo, as Forças Armadas acreditaram que poderiam controlar os ímpetos e arroubos de Bolsonaro.

"Os militares foram ingênuos. Pretendiam tutelar o governo e até foram decisivos no começo, mas depois não conseguiram evitar as posições extremistas ou absurdas do presidente quanto à pandemia ou nas questões ideológicas e de costumes. Foi uma ilusão", diz Fico.

A pasta da Defesa foi criada em 1999 e era tradicionalmente chefiada por ministros civis. Desde o governo Michel Temer (2016-2018), porém, passou a ser comandada por um militar.

O agora ex-ministro da Defesa fez questão de ressaltar no comunicado divulgado na segunda-feira (29/3) sobre sua saída do governo que "preservou as Forças Armadas como instituições de Estado".

Depois, nesta terça, os três comandantes das Forças Armadas deixaram os cargos: Edson Pujol, comandante do Exército, Ilques Barbosa, da Marinha, e Antônio Carlos Moretti Bermudez, da Aeronáutica.

A saída dos comandantes é vista como um ato de protesto pela demissão sumária de Azevedo.

"Bolsonaro é autoritário, de viés golpista e extremamente incompetente. Apostar suas fichas como um cidadão ou como um político neste governo já seria um risco tremendo, imagina para as Forças Armadas…", diz Fico

'Não consigo imaginar um golpe'

Azevedo disse que trabalhou para manter as Forças Armadas como órgão de Estado

Atualmente, Bolsonaro tem militares no comando de seis ministérios, mas esse número já foi maior, sem contar os militares que ocupam outros cargos.

O professor da UFRJ diz que era previsível que essa grande participação militar no governo levaria a um desgaste das Forças Armadas. "Eles cometeram um erro tremendo", diz Fico.

Mesmo agora com um nome mais alinhado a Bolsonaro à frente Defesa, como é o caso do general Walter Braga Netto, e caso o mesmo venha a ocorrer na liderança das Forças Armadas, o pesquisador diz que "não consegue imaginar um golpe".

"(Os militares) já estão no poder. Seja qual for o general que ocupe o comando do Exército - que é o que importa -, não acho que pretenda se aventurar", diz Fico.

"Pode haver algum tipo de acomodação das Forças Armadas, para mostrar que elas estão unidas em torno do chefe, mas não creito que haja possibilidade de uma ruptura institucional."

Rafael Barifouse, da BBC News Brasil em São Paulo, em 31 março 2021, 15:44 -03

Brasil registra 3.869 mortes por covid-19 em 24h, novo recorde diário

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

O Brasil atingiu nesta quarta-feira (31/3) um novo recorde de mortes por covid-19 em apenas 24 horas, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass): 3.869 vidas perdidas em um dia.

O dia anterior, terça-feira, já havia sido de recorde, com 3.780 mortes registradas nas 24 horas anteriores.

O total de mortes pela doença no Brasil já chega a 321.515, e de casos, 12.748.747.

O país registrou uma média móvel de 2.977 mortes nos últimos sete dias, a maior desde o início da pandemia — esse dado tem tido recordes sucessivos nas últimas semanas.

Na semana passada, o Brasil se tornou o segundo país a contabilizar mais de 300 mil óbitos causados pelo novo coronavírus. Os Estados Unidos foram os primeiros e hoje já contabilizam mais de meio milhão de mortes.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 550 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins. Também em número casos, o Brasil está atrás apenas dos EUA (30,4 milhões.

BBC News, em 31.03.2021

Bolsonaro e a escalada do caos

Observadores bem intencionados interpretam a onda de renúncias como sinal de idoneidade dos militares. Na verdade trata-se antes de consideração tática. E o bolsonarismo ainda sai lucrando, opina Philipp Lichterbeck

Jair Bolsonaro, fomentando o caos desde a posse como presidente

Jair Bolsonaro se alimenta do caos. Ele precisa da confrontação, da provocação e da contradição. O conflito constante é seu motor. Já era assim durante o tempo dele como militar de baixo escalão, quando planejou detonar uma bomba na lavanderia de uma caserna para obter um soldo mais alto.

A coisa continuou quando, no começo dos anos 90, ele se tornou o deputado cuja marca registrada era insultar outros cidadãos, sobretudo da esquerda ou de minorias, desejar-lhes morte, violência e tortura. Repetidamente em sua carreira, Bolsonaro defendeu a ditadura militar brasileira e, sem inibições, expressou fantasias totalitárias.

Como presidente, aperfeiçoou o método da quebra de tabu. Desde a posse, em janeiro de 2019, ele e seus filhos, assim como um círculo de deputados, assessores e propagandistas fiéis, bombardeiam o país semanalmente com novos descalabros, mentiras, provocações e ameaças. Elas não são a exceção, mas sim a regra.

Esse método serve para criar uma sensação constante de estado de exceção. "O caos é uma escada", diz Petyr Baelish, o sinistro conselheiro dos poderosos da série Game of Thrones. Esse é o princípio do bolsonarismo: na escada do caos agitado por ele próprio, ele quer subir cada vez mais e ampliar seu poder.

A lenda dos bravos generais

É por essa ótica que se deve ver a renúncia forçada dos três chefes das Forças Armadas brasileiras. Como tantas vezes nos últimos anos, diversos observadores, sobretudo correspondentes estrangeiros, falam de "caos no Brasil" e perguntam como interpretar a coisa toda. Alguns já anunciam o breve fim da presidência Bolsonaro, tendo perdido o apoio dos militares.

A leitura mais costumeira afirma: generais corajosos se opuseram a Bolsonaro para protestar contra sua tentativa de instrumentalizar as Forças Armadas para seus fins políticos. Ele teria pretendido empregar o Exército contra os lockdowns antipandemia decretados pelos governadores, além de ter contado com mais cobertura na eterna luta com o Supremo Tribunal Federal, que barra alguns de seus intentos mais radicais.

Com a tomada de posição conjunta, os líderes do Exército, Marinha e Aeronáutica teriam agora demonstrado que as Forças Armadas não são um instrumento bolsonarista, mas sim do Estado, e que estão firmemente plantados no solo da Constituição democrática. Até mesmo a esquerda brasileira exultou diante dessa suposta sensatez dos generais.

Na verdade, por trás dos acontecimentos se oculta a lógica interna do bolsonarismo, a do agravamento constante da crise. Em meio à pior fase da pandemia – uma média de cerca de 3 mil brasileiros morre a cada dia de covid-19 – Bolsonaro invoca um conflito com os máximos escalões militares, por supostamente não serem suficientemente fiéis ao regime.

Não é uma ruptura com os militares, em si, mas sim com os velhos senhores do Supremo Comando. Ao mesmo tempo, é um sinal para que os escalões mais jovens, mais baixos e também mais politicamente radicais, se atrelem mais firme ao presidente. "Esta é a tua chance", é a mensagem aos oficiais cujo entusiasmo por Bolsonaro era, desde o início, maior do que o dos generais, para quem o capitão da reserva era antes um bizarro estranho no ninho.

Um bolsonarismo mais perigoso

O cancelamento dos três chefes de armas aponta, ao mesmo tempo, para uma radicalização ainda maior do bolsonarismo. Para ele, já não basta mais procurar seus inimigos do lado de fora, ou seja, na esquerda. Agora é excluído quem não seja suficientemente bolsonarista.

Já foi assim com diversos ex-ministros, sendo os exemplos mais notórios os ex-chefes de pasta da Justiça Sérgio Moro e da Saúde Henrique Mandetta. Hoje, eles são vistos no movimento bolsonarista como traidores e infiltrados pela esquerda.

A ação de faxina continua agora com os veteranos militares. Quem expresse crítica ou hesitação é isolado e condenado como herege pelos tribunais bolsonaristas nas redes sociais. Desse modo, o bolsonarismo se encurrala cada vez mais – o que não é o prenúnco de nada de bom: o movimento deve se tornar mais paranoico, mais incalculável e mais perigoso.

Do outro lado dos turbulentos acontecimentos da semana corrente, estão os militares, que são saudados de todos os lados com atestados de responsabilidade político-estatal, mesmo por parte das forças esquerdistas e moderadas. Mas a verdade é que as Forças Armadas até hoje fomentam o circo bolsonarista.

Segundo o Tribunal de Contas, mais de 6 mil militares têm cargos no governo – mais da metade do que sob o presidente Michel Temer, que começou com a nomeação em massa dos uniformizados. Outra estimativa chega a 342 militares nos postos mais altos e mais bem pagos da já gigantesca maquinaria governamental de Brasília.

Eles estão por toda parte, do palácio presidencial aos órgãos ambientais, passando pelo Ministério da Saúde, e comandam quase um terço das firmas estatais. Não é sem motivo que observadores comparam o quadro ao da Cuba ou da Venezuela, onde numerosas empresas estão nas mãos dos militares.

Subindo a escada até despencar

Por isso não se pode falar de um racha entre as Forças Armadas e Bolsonaro. Nos pontos políticos fundamentais, reina consenso: a interpretação da ditadura militar como revolução necessária para deter o comunismo; o total rechaço de um processamento judicial da ditadura; o prosseguimento da ocupação e exploração da Amazônia, também das reservas indígenas; e, claro, a entrega dos cargos lucrativos aos homens de uniforme.

Portanto a explicação das renúncias dos chefes militares é menos uma questão de diferenças de opinião fundamentais do que de considerações táticas. Os militares procuram se distanciar da catastrófica política de Bolsonaro na crise do coronavírus.

Até alguns dias atrás, essa política ainda era codefinida pelo general Eduardo Pazuello, enquanto ministro da Saúde. Agora os generais parecem ter notado que, em algum momento, poderão ser responsabilizados pelos cerca de 3 mil brasileiros mortos diariamente.

Sobretudo os conservadores queriam ver, até agora, os militares como força equilibradora no governo Bolsonaro. Ao contrário dos ideólogos (malucos) encabeçados pela ministra da Família Damares Alves, e do ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo (agora afastado), os uniformizados teriam um efeito moderador e procurariam soluções pragmáticas.

Essa lenda não é mais sustentável desde a pandemia de covid-19. O Brasil está diante de uma catástrofe do sistema de saúde pela qual é o próprio culpado. As Forças Armadas aparentemente agora querem fazer de conta que não têm qualquer responsabilidade por isso. Para Bolsonaro, a confusão resultante é a chance de ocupar com seus acólitos cargos importantes no aparato militar.

O caos é uma escada. Por ela se sobe, até que se despenca. A escada de Bolsonaro balança, mas ele ainda continua subindo.

Philipp Lichterbeck é colunista e correspondente da DW no Brasil. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW. Publicado em 31.03.2021.

Anvisa aprova uso emergencial da vacina da Johnson & Johnson

Ministério da Saúde fechou a compra de 38 milhões de doses da vacina contra covid-19, que requer apenas uma aplicação. Lotes só devem chegar no segundo semestre.

Vacina tem eficácia média de 66%

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou nesta quarta-feira (31/03) o uso emergencial da vacina contra a covid-19 em dose única desenvolvida pela Janssen, braço farmacêutico da Johnson & Johnson.

Na terça-feira, o laboratório já havia obtido da Anvisa o certificado de boas práticas de fabricação.

Seguindo a recomendação da área técnica da Anvisa, a maioria dos diretores votou pela permissão de uso com base em uma avaliação de que os benefícios superam os riscos. O imunizante poderá ser aplicado em pessoas com mais de 18 anos, com ou sem comorbidades. 

No começo do mês, o Ministério da Saúde fechou contrato com a empresa para a aquisição de 38 milhões de vacinas. Segundo a pasta, 16,9 milhões de doses devem ser entregues em agosto e mais 21,1 milhões em novembro.  

O imunizante da Janssen envolveu testes clínicos realizados em diferentes países, inclusive o Brasil. 

Ao contrário das vacinas da Pfizer-Biontech, da Moderna, da AstraZeneca-Oxford e da Caronavac, que requerem a administração de duas doses, a vacina da Johnson & Johnson é aplicada em dose única, o que facilita a logística de campanhas de vacinação.

No fim de janeiro, a Johnson & Johnson informou que sua vacina de dose única tem eficácia média de 66% na prevenção da covid-19. Os testes foram feitos em três continentes, e o imunizante mostrou resultados robustos, em diferentes níveis, também contra mutações do coronavírus, sobretudo para evitar casos graves.

No ensaio com quase 44 mil voluntários, o nível de proteção contra a covid-19 moderada e severa variou de 72% nos Estados Unidos a 66% na América Latina e 57% na África do Sul, onde uma variante preocupante se espalhou. Contra casos graves da doença e hospitalizações, a eficácia foi de 85%.

A vacina pode ser armazenada por pelo menos três meses em temperaturas de 2 ºC a 8 ºC. Em temperaturas de 20 ºC negativos, ela pode ficar estável por dois anos.

As vacinas da Pfizer-BioNTech e a da AstraZeneca-Oxford já obtiveram o registo definitivo para aplicação na população brasileira. Já a Coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, recebeu a autorização para uso de emergência.

Deutsche Welle / Brasil, em 31.03.2021

Entre golpistas e velhacos

Nenhuma das trocas ministeriais visa a melhorar a administração. Prestaram-se somente a aplacar as neuroses do presidente e a saciar os apetites da família Bolsonaro, além da voracidade do Centrão

A anunciada substituição dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica foi o desdobramento natural da resistência da cúpula das Forças Armadas à pretensão do presidente Jair Bolsonaro de aliciá-la para propósitos autoritários.

O comando militar vem agindo patrioticamente e em respeito à Constituição, que confere às Forças Armadas o papel de instituição de Estado, e não de governo, a despeito das inúmeras tentativas de Bolsonaro de transformá-las em guarda pretoriana.

Seria inaceitável humilhação, para a corporação militar, submeter-se aos caprichos desvairados de um ocupante temporário da Presidência. Já basta o papel vergonhoso desempenhado no Ministério da Saúde pelo general da ativa Eduardo Pazuello, que, como se fosse um recruta, se empenhou obedientemente em cumprir as ordens estapafúrdias de Bolsonaro.

A grave crise foi a culminação de uma reforma ministerial atabalhoada, que mostra um governo submetido ao mandonismo de um presidente que, inseguro sobre sua capacidade, se imagina cercado de inimigos por todos os lados. Ele só confia nos filhos e naqueles desqualificados que lhe prestam obsequiosa vassalagem.

Fernando Azevedo, por exemplo, foi demitido sumariamente do Ministério da Defesa porque, em suas palavras, preservou “as Forças Armadas como instituições de Estado” – algo inadmissível para Bolsonaro, que sempre se referiu ao Exército como “meu Exército”. Para seu lugar, Bolsonaro escolheu Walter Braga Netto, outro general da reserva, que estava na Casa Civil e é conhecido no meio militar como um disciplinado cumpridor de missões.

Assim como a mudança na Defesa, nenhuma das trocas ministeriais anunciadas nos últimos dias visa a melhorar a administração federal. Prestaram-se somente a aplacar as neuroses do presidente e a saciar os apetites da família Bolsonaro, além da voracidade do Centrão. Os novos ministros das Relações Exteriores, Carlos França – que nunca chefiou uma Embaixada –, e da Justiça, Anderson Torres – delegado da Polícia Federal –, têm como principal credencial a proximidade com os filhos do presidente. Já a nova ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda (PL-DF), deputada de primeiro mandato, só foi colocada ali para ser despachante dos interesses do Centrão, dispensando-se intermediários.

Com exceção do extravagante diplomata que chefiava o Itamaraty e foi substituído por pressão de quase todo o Congresso, perderam o emprego no governo Bolsonaro justamente aqueles que, como o ex-ministro da Defesa, se recusaram a avalizar a truculência do presidente.

Foi o caso de José Levi, demitido da Advocacia-Geral da União porque se negou a assinar a ação que Bolsonaro encaminhou ao Supremo Tribunal Federal para questionar as medidas de distanciamento social adotadas por governadores de Estado contra a pandemia de covid-19. A atitude de Levi levou Bolsonaro a assinar ele mesmo a petição, o que foi considerado como “erro grosseiro” pelo ministro Marco Aurélio Mello ao rejeitar a ação no Supremo.

Levi foi substituído por André Mendonça, que estava no Ministério da Justiça e ali foi fidelíssimo cumpridor de ordens de Bolsonaro, a quem já chamou de “profeta”. Para o lugar de Mendonça, Bolsonaro escolheu um amigão de Flávio Bolsonaro. Fica tudo em família.

Muito se dirá sobre quem ganha mais com as mudanças, mas certamente só há um perdedor: o cidadão brasileiro, em nome de quem todos em Brasília dizem trabalhar. Enquanto Bolsonaro brinca de césar, o Centrão, senhor de fato do governo, patrocina um Orçamento criminoso, que ignora despesas obrigatórias como se não existissem e distribui dinheiro à farta para emendas parlamentares. Não por acaso, a presidente da Comissão Mista de Orçamento era justamente a deputada Flávia Arruda, apadrinhada do presidente da Câmara e prócer do Centrão, Arthur Lira, e que agora é a ministra encarregada da articulação política do governo – ou do Centrão, o que dá no mesmo.

Tudo isso em meio a uma pandemia que já matou mais de 300 mil pessoas e a uma gravíssima crise econômica. Parte de Brasília está entregue a golpistas delirantes e a velhacos. Está claro que os brasileiros só podem contar consigo mesmos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 31 de março de 2021 | 03h00

No Brasil, 25 estados têm mais de 80% de UTIs ocupadas

Levantamento da Fiocruz mostra que Amapá e Mato Grosso do Sul estão com capacidade de terapia intensiva 100% esgotada; há 16 estados com lotação acima de 90%

UTI do Hospital de Campanha AME Barradas, em Heliópolis (SP), lotada de pacientes com Covid-19 Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

O Brasil registrou na terça-feira 3.668 mortes por Covid-19 em um único dia, uma marca sem precedente na pandemia e que ocorre quando 25 das 27 unidades da federação têm taxa de leitos de UTI com ocupação acima de 80%.

(Estudo:  Vacinação contra Covid está longe até de reverter subida de casos)

O quadro da epidemia, descrito como “extremamente crítico” pela Fiocruz, já exibe dois estados (Amapá e Mato Grosso do Sul) com capacidade de terapia intensiva 100% esgotada. Há 16 estados com lotação acima de 90%, incluindo São Paulo (92%), que teve terça sozinho o recorde de 1.209 mortes em 24 horas.

O Brasil acumula 317.936 óbitos pela Covid-19, segundo dados do boletim do consórcio de veículos de imprensa. Na terça, o país teve 86.704 pessoas diagnosticadas com infecção pelo novo coronavírus, totalizando 12.664.058 casos até agora.

O grupo Observatório Fiocruz Covid-19, que monitora os números da capacidade de atendimento do sistema de saúde em todo o país, afirma que a elevação do número de mortes está em um novo patamar.

“Se Manaus e o Amazonas, com o colapso do seu sistema de saúde, constituiu um alerta do que poderia ocorrer em outros estados, a situação hoje de São Paulo e capital é um alarme do quanto esta crise pode ser mais profunda e duradoura do que se imaginava até então”, afirmaram os pesquisadores do grupo em comunicado nesta noite.

“As medidas de restrição de mobilidade, adotadas nos últimos dias por diversas prefeituras e estados, ainda não produziram efeitos significativos sobre as tendências de alta de todos os indicadores”, diz o grupo, que conclui: “Esses indicadores sempre estão defasados no tempo, e o crescimento do número de casos na última semana epidemiológica (21 a 27 de março) pode ser resultado de exposições ocorridas em meados de março”.

(Colapso:  Ministério da Saúde atropela OPAS em negociação de compra de remédios do kit intubação para o Brasil)

No documento, os pesquisadores sugerem que os estados que se encontram em situação crítica adotem “lockdown”, medidas de contenção duras, por duas semanas ou até que o número de casos se reduza “em torno de 40%”.

Segundo a epidemiologista Margareth Portela, da Fiocruz, que participou do levantamento nacional sobre a ocupação de leitos, a margem pequena de ocupação que resta aponta um risco iminente de colapso.

— Pode haver variação de forma muito rápida. De 88% passa para 93% rapidinho, até porque o crescimento da pandemia é exponencial. Um dia de crescimento mais expressivo, potencialmente, consome essa folga de alguns leitos — afirmou a cientista.

Escalada rápida

A média móvel de sete dias do número diário de mortes no país agora está em 2.728, o que representa aumento de 34% nas últimas duas semanas. Os três estados com maior aumento percentual no número de mortes ao longo da última quinzena são Espírito Santo (118%), Distrito Federal (100%) e Mato Grosso do Sul (68%). A ocupação hospitalar também cresce nesses locais.

— Não há dúvidas de que no estágio em que a gente está é preciso interromper a transmissão de forma significativa — diz Portela, que completa: — O sistema de saúde não está dando conta, tem que interromper porque o Brasil está colapsado. A gente tem que parar. Eu estou muito apavorada.

(Imunização:  Ministério da Saúde diz que Butantan aguarda nova remessa de matéria-prima da vacina e cronograma de abril pode atrasar).

Segundo a pesquisadora, não há um sinal muito claro ainda de estabilização da situação, mesmo com as medidas um pouco mais rígidas tomadas em alguns estados.

O número de diagnósticos positivos registrados por dia, caso não esteja subdimensionado, está se estabilizando, mas devagar, e ainda está crescendo. Aumentou 7% em relação à quinzena anterior, quando tinha aumentado 14%.

Os números de vacinação contra o coronavírus estão avançando, mas devagar. O Brasil conseguiu aplicar a primeira dose até agora em 16.937.084 pessoas (8% da população), e 4.946.579 já receberam a segunda dose, o que representa uma cobertura vacinal completa de 2,34% no país.

Aflição paulista

Segundo o governo de São Paulo, a situação é difícil, mas o recorde de mortes no estado se deve em parte a um acúmulo de notificações de dias anteriores, que acabaram sendo processadas apenas ontem.

Diretriz:  Santa Catarina pede a médicos que sigam à risca regras sobre pacientes que devem ocupar leitos de UTI

O pico anterior de mortes por Covid-19 no estado tinha sido registrado na última sexta-feira (26): 1.193 óbitos em 24 horas. No mesmo dia, o governo de São Paulo prorrogou a fase de emergência em todo o estado até 11 de abril.

Inicialmente, as regras valeriam até ontem, mas o Centro de Contingência considerou ser importante alocar mais tempo para que as medidas de restrição resultem em uma significativa diminuição das hospitalizações.

— São Paulo estar onde está, vivendo esse caos, é muito assustador, e a região Sul do país também — diz Portela. — São Paulo reúne recursos e tem um sistema de saúde mais estruturado. A região Sul tem histórico de ser bem estruturada e também colapsou.

Constança Tatsch e Rafael Garcia, de O Globo, em 31.03.2021, às 4:30 hs. (Colaborou Ana Letícia Leão)

Bela Megale: Bolsonaro queria que Pujol criticasse decisão do Supremo sobre Lula, como Villas Bôas

Segundo auxiliares do presidente, Bolsonaro não concordava com a postura de “isentão” de Pujol, de não mostrar publicamente insatisfações alinhadas às do Palácio do Planalto. 

O motivo que fez Jair Bolsonaro pedir a demissão do agora ex-comandante do Exército Edson Pujol se resume em um fato: o presidente queria que o general fosse a reedição de seu antecessor do cargo, Eduardo Villas Bôas. A postura de isenção de Pujol irritava cada vez mais Bolsonaro. 

No início deste mês, o presidente esperava manifestações públicas do então comandante do Exército, quando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin anulou as condenações da Lava-Jato contra Lula e o tornou novamente elegível.

Bolsonaro também tinha expectativa que, há duas semanas, Pujol se manifestasse para condenar a ministra do STF Carmén Lúcia, após a magistrada mudar seu voto e se posicionar a favor da suspeição de Sergio Moro. A decretação de parcialidade do ex-juiz no caso Lula foi mais uma vitória para o petista. Segundo auxiliares do presidente, Bolsonaro não concordava com a postura de “isentão” de Pujol, de não mostrar publicamente insatisfações alinhadas às do Palácio do Planalto. 

O exemplo que Bolsonaro mira é Villas Bôas. Em 2018, quando era comandante do Exército, o general deflagrou uma crise ao escrever um tuíte na véspera do julgamento de um habeas corpus de Lula, recorria da sua condenação em liberdade. Na mensagem, disse que a instituição "julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade" e que o Exército "se mantém atenta às suas missões institucionais". Na época, a postagem foi interpretada como uma pressão direta sobre o STF, apesar de o ministro Fachin tê-la condenado somente neste ano.

Bela Megale é colunista do GLOBO em Brasília e colaboradora da revista "Época". Passou pelas redações do jornal "Folha de S.Paulo", revistas "Veja" e "Istoé", entre outras publicações. Este artigo foi publicado orignalente n'O Globo online, em 31.03.2021, às 04:00 hs.

Crise com militares deixa Bolsonaro mais isolado e distante do Exército, avaliam oficiais da reserva

Segundo eles, entrada de um militar na ativa no governo hoje é mais difícil; Ramos e Augusto Heleno são vistos mais como políticos do que como militares pelas tropas


Oficiais do Exército na Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende Foto: Marcelo Régua / Agência O Globo (31/05/2019)

Militares da reserva acreditam que a crise que levou à saída do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica contribuirá para o isolamento do presidente Jair Bolsonaro diante do comando das Forças Armadas. O episódio também deve levar o Exército, força com mais quadros da reserva em postos no Planalto, a se distanciar do governo.

Um general que já trabalhou na gestão Bolsonaro avalia que a instituição deixou de lado a postura passiva, que permitia ao presidente passar a impressão de que tinha o aval da tropa para as suas falas. Agora, com a decisão do ex-comandante Edson Pujol de não ceder ao alinhamento que Bolsonaro pretendia impor, ficou clara a separação, na sua visão.

Oficiais acreditam que dificilmente um militar da ativa aceitaria neste momento cargo no primeiro escalão do governo, como aconteceu com o general Eduardo Pazzuello nomeado ministro da Saúde, no ano passado.

Para um general da reserva, o presidente pode ter problemas até para colocar em prática eventuais operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), como a que foi implantada na Amazônia no ano passado para combater o desmatamento ilegal. Quando requisitados, os comandantes poderiam impor empecilhos para colocarem suas tropas em ação, como a exigência de recursos, o que na prática impediria a operação. Tudo dentro de uma diretriz, de acordo com a formulação desse general da reserva, de não misturar as imagens do governo com a da instituição.

Com a ida de Braga Netto para o Ministério da Defesa, ficarão na cozinha do Planalto com o presidente apenas dois ministros militares: Luiz Eduardo Ramos na Casa Civil e Augusto Heleno no Gabinete de Segurança Institucional. A avaliação é que ambos atuam mais como políticos hoje por terem se misturado ao bolsonarismo. E já não têm mais o respeito entre os seus pares, ao contrário de Braga Netto.

De acordo com um outro oficial, hoje o militar no governo que goza de maior simpatia entre os comandantes da ativa é o vice-presidente, o general Hamilton Mourão. Por diversas vezes, Mourão mostrou discordância com as posições de Bolsonaro. Como resposta, deixou de ser consultado pelo presidente e pouco participa das decisões de governo.

Entre os militares também há quem veja com bons olhos uma solução caseira: que passaria por um impeachment do presidente Jair Bolsonaro para Mourão assumir. O perfil de Mourão é tido como conciliador e ideal para um momento em que o país precisa de união para superar a pandemia. Generais da reserva temem a polarização entre Bolsonaro e uma eventual candidatura do ex-presidente Lula em 2022. Há quem veja o vice-presidente como uma figura capaz de ocupar o espaço no centro do espectro político

No domingo, o GLOBO mostrou que generais da reserva que já atuaram no governo Bolsonaro defendem a construção de uma terceira via política para a eleição de 2022 com o objetivo de se contrapor ao atual presidente e ao ex-presidente Lula (PT).

Sérgio Roxo, O Globo online, em 31/03/2021 - 04:30 / Atualizado em 31/03/2021 - 10:41

Vera Magalhães: 31 de março, Bolsonaro e o escorpião

 Chegamos ao nefasto 31 de março em que o golpe militar que ceifou a democracia e nos jogou numa longa noite de 21 anos completa 57. 

Assistimos à data arriados diante do número de 3.780 brasileiros mortos em 24 horas e diante de uma crise sem precedentes desde o próprio golpe envolvendo as Forças Armadas. 

O Brasil não tem nada, absolutamente nada, a celebrar nesta quarta-feira.

Ainda assim, não é descartado que Jair Bolsonaro, algum filho, algum ministro, algum deputado ou algum terraplanista que habita o submundo da sua rede de apoiadores da internet decida cuspir na cara de um país enlutado e traumatizado alguma fanfarronice bravateira sobre o golpe de 1964.

Por que seria impossível? Afinal, Bolsonaro ordenou aos quartéis já em 2019 que celebrassem a data. No ano passado, o agora demitido general Fernando Azevedo e Silva assinou uma nota em que dizia que o regime que matou e torturou milhares de pessoas, cassou mandatos, empastelou jornais e sustou eleições teria sido responsável por assegurar a democracia no país!

O “clima festivo” conta ainda com uma mãozinha da Justiça: quase um ano depois do 31 de março de 2020, em que essa nota do ex-ministro foi lida, o TRF da 5ª Região achou por bem acolher um recurso da Advocacia-Geral da União e dizer que tudo bem celebrar.

Mas quais são as Forças Armadas que chegam ao 31 de março? São uma instituição cindida, envenenada pelo bolsonarismo, para o qual ofereceu carona de forma ingênua ou cúmplice. Ou ambas.

Não é dado aos militares, logo a eles, o direito de dizer que não sabiam com quem estavam lidando quando apoiaram Bolsonaro, inclusive com lances de conotação golpista como o tuíte do general Eduardo Villas Bôas ameaçando o Supremo Tribunal Federal em abril de 2018, quando do julgamento do habeas corpus que decidiria se Lula ficaria solto ou preso.

Bolsonaro saiu do Exército pela porta dos fundos, justamente por desafiar a hierarquia e insuflar a base contra os comandantes. Se fez isso quando era um jovem capitão e durante a ditadura, por que não faria quando é o presidente eleito democraticamente?

Um general que já sentiu na pele o ferrão do presidente me disse ontem que Bolsonaro não dará um golpe porque — atenção — “ainda não tem força para incendiar os quartéis”. Ainda! Qual a gravidade de uma avaliação dessas vinda de um general do Exército?

Ela embute a constatação de algo que venho falando e escrevendo desde fevereiro de 2020, quando cunhei o termo “bolsochavismo”: o fato de o bolsonarismo alimentar nas bases das polícias militares e das Forças um fanatismo de apoio ao presidente, inclusive para “medidas extremas”, que passem por cima dos comandos.

A forma humilhante com que o presidente se livrou simultaneamente dos três comandantes das Forças logo depois de despachar Azevedo e Silva deveria ser sinal de alerta para as tropas do que pode acontecer. Mas pode também ser um recado de que está liberada uma sublevação, com endosso do presidente ou de seus apoiadores radicalizados.

São gravíssimas, ainda que não se concretizem, as ameaças (já explícitas, e reiteradas) de uso de instrumentos como decretação de estado de sítio e estado de defesa.

O mesmo general que me disse que “ainda” não haverá fogo nos quartéis terminou assim seu raciocínio: “Mas ele vai esticar a corda ainda mais. É do escorpião”.

Todos conhecemos a fábula do escorpião que usa o sapo para atravessar o rio e, antes mesmo de desembarcar em segurança, ferroa o motorista e, diante da surpresa, admite: "É a minha natureza". Os militares, Paulo Guedes, Sergio Moro, todos toparam de bom grado oferecer carona ao escorpião Bolsonaro, com a lenga-lenga de que ele seria um democrata, um liberal.

Cada um já levou sua ferroada, umas letais, outras que estão purgando. Quantas vezes mais oferecerão a pele a outra investida?

Vera Magalhães é jornalista especializada na cobertura de poder desde 1993, com passagens por veículos como "Folha de S.Paulo", "Veja" e "O Estado de S.Paulo". Além de colunista do GLOBO, é âncora do "Roda Viva", na TV Cultura, e comentarista na CBN. Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 31.03.2021.

Elio Gaspari: Fritura de comandante é perde-perde

As Forças Armadas não são milícia

Faltavam três dias para a posse de Jair Bolsonaro, e o professor Delfim Netto ensinou:

— Na quarta-feira, o presidente terá que abrir a quitanda às nove da manhã com berinjelas para vender a preço razoável e troco no caixa para atender à freguesia. Pelos próximos quatro anos, a rotina essencial será a mesma: abrir a quitanda, com berinjelas e troco. Todos os desastres da economia brasileira deram-se quando deixou-se de prestar atenção na economia da loja.

O capitão trocou seis ministros. Noves fora as berinjelas, tinha na quitanda 14 milhões de desempregados e uma pandemia que já matou quase 318 mil pessoas — e decidiu criar uma encrenca militar.

Bolsonaro teria aumentado sua influência sobre o primeiro escalão. Falta dizer para quê.

No rastro dessa troca, veio o veneno: a saída do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, abriria o caminho para a troca do comandante do Exército, general Edson Pujol.

Não se frita comandante do Exército. A troca mais traumática dos últimos 50 anos ocorreu em 1977, quando o presidente Ernesto Geisel demitiu o general Sylvio Frota. Os dois não se bicavam há tempo, mas fritura não houve. Tanto foi assim que Frota chegou ao Palácio do Planalto sem saber que seria demitido. (Quando Bolsonaro era um capitão afastado do Exército abrigado na política, Geisel definiu-o com três palavras: “um mau militar”.)

Fritura de comandantes do Exército foi coisa do governo João Goulart, com quatro ministros em apenas três anos. Em 21 anos, os presidentes militares tiveram oito ministros. Deles, um deixou o cargo para ser presidente (Costa e Silva), e outro morreu (Dale Coutinho). Nenhum foi frito.

Desde que foi criado, em 1999, o Ministério da Defesa teve outros 11 titulares. Todos chegaram e partiram sem ruídos. A demissão do general Azevedo e Silva resultou na saída dos comandantes das três Forças, coisa nunca vista.

O primeiro murmúrio de uma eventual fritura de Pujol surgiu em maio do ano passado, mas não prosperou. Pujol pouco fala e não tuíta.

Trocar comandantes da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica é atribuição do presidente da República. Afinal, ele é o comandante das Forças Armadas. Apesar de o capitão gostar de se referir ao “seu” Exército, elas não são de sua propriedade. Chefes como Henrique Lott, Orlando Geisel e Leônidas Pires Gonçalves nunca usaram essa expressão possessiva. O problema aparece quando se acende o fogareiro da fritura. Isso porque se cria uma situação de perde-perde. Perde se frita e perde se não frita.

O marechal Castello Branco era cauteloso (até demais) e tinha as ideias no lugar. Em março de 1964, ele chefiava o Estado-Maior e distribuiu uma circular reservada onde dizia:

— Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos. Destinam-se a garantir os poderes constitucionais e sua coexistência.

O presidente acreditava estar amparado num poderoso dispositivo militar com seus “generais do povo”. Um mês depois, João Goulart estava no Uruguai. Deu no que deu.

As Forças Armadas não são milícia, e na porta da quitanda há quase 318 mil mortos e 14 milhões de desempregados. Em qualquer país e qualquer época, quem tem problemas desse tamanho não precisa de novas encrencas.

Elio Gaspari é Jornalista e Escritor - dentre os cinco volumes sobre a ditadura militar instaurada em 32.03.1964, editados pela Intrínseca, sugere-se agora "A ditadura envergonhada". Este artigo foi publicado originalmente n'O Globo, em 31.03.2021.

terça-feira, 30 de março de 2021

Merval Pereira: Por que trocar o ministro da defesa se não for para dar um golpe?

Colocar o Ministério da Defesa dentro do xadrez político contra o poder civil é fora do que a democracia defende e o estado de direito permite. 

Bolsonaro usa e abusa do apoio dos militares para assustar e amedrontar os políticos e quer transformar as Forças Armadas em força auxiliar do governo. 

Ele fomenta as ações políticas dentro dos quarteis a partir das bases militares, e nas polícias militares. E porque fazer isso se não quer dar um golpe? Não tem sentido, se estiver dentro das leis, da Constituição, do estado de direito e se entender o papel das Forças Armadas. 

Mas Bolsonaro não entende, quer dar uma relevância política a elas que  não devem ter. Nenhuma instituição armada do Estado pode ter funções políticas. Esse é um dado básico da democracia, que Bolsonaro desdenha. 

Ao contrário, usa as Forças Armadas para fazer seu jogo político, o único que sabe fazer. É um perigo permanente, uma tentativa de autogolpe. 

O presidente não deixa dúvida sobre o que pensa, sempre foi muito claro e diz que está defendendo a democracia. Não sei o que ele chama de democracia. Na verdade, quer ser autoritário e que suas teses prevaleçam e fica nervoso quando tem que ceder terreno. 

Como teve que ceder agora, com a demissão do ministro Ernesto Araújo e a entrada do Centrão no Palácio do Planalto. Não acredito que a crise com os militares tenha sido resolvida com a mudança do ministro da Defesa.

Merval Pereira participa do Conselho Editorial do Grupo Globo. É membro das Academias Brasileira de Letras, Brasileira de Filosofia e de Ciências de Lisboa. Recebeu os prêmios Esso de Jornalismo e Maria Moors Cabot, da Columbia University. Este artigo foi publicado no Globo online, em 30/03/2021, às14:38 hs.

Para Santos Cruz, Forças Armadas não devem ter 'alinhamento' com governo e não há 'explicação' plausível para trocas no comando militar

Ex-ministro de Jair Bolsonaro afirma que mudanças podem ter ocorrido por "mania pessoal" do presidente

General Carlos Alberto dos Santos Cruz Foto: Agência Brasil

Ex-ministro do governo Jair Bolsonaro, o general Alberto Santos Cruz avalia não haver motivo plausível para as trocas dos comandantes do Exército, da Marinha e das Forças Armadas, a menos que tenha sido por "mania pessoal" do presidente Jair Bolsonaro. Para Santos Cruz, qualquer tentativa de politização das Forças Armadas representa uma subversão da hierarquia e da disciplina da instituição. "Forças Armadas não são ferramentas para fazer pressão política, ferramentas para você utilizar no jogo político, não é para isso. Forças Armadas têm uma destinação constitucional", afirmou ao GLOBO.

Ele também criticou a forma como os comandantes foram demitidos, dizendo que foi um desrespeito e uma ofensa aos militares. Na visão dele, a reforma ministerial é normal, mas "não tem nada a ver com comandante militar". "Comandante militar não faz parte dessa primeira camada política. Eles não fazem parte, são elementos operacionais, com uns 40, quase 50 anos na sua profissão. E aí é exonerado no mesmo nível de uma camada política, sem nenhuma explicação. Isso aí é falta de consideração pessoal e funcional."

Existem sinalizações de que o presidente Bolsonaro já estava insatisfeito com as Forças Armadas, especialmente com o comandante do Exército. Como o senhor vê isso?

Minha pergunta é a seguinte, (Bolsonaro) estava insatisfeito por quê? O que está acontecendo de errado no Exército? Nada. Só se for pelo seu gosto pessoal, a sua mania pessoal. Aí é outra coisa. Os comandantes das Forças estavam cumprindo com as funções deles, de acordo com a Legislação. São pessoas que vêm de dentro da instituição. Cada um daqueles lá tem quase cinquenta anos dentro da sua instituição. Cada um daqueles passou por dezenas de avaliações dentro da sua instituição. É completamente diferente de um ministro, que pode ser de fora daquele órgão, mas os comandantes militares, não.

É plausível a justificativa de que a troca ocorre apenas pela mudança no comando do Ministério da Defesa? 

A reforma política é normal, vários governos fazem, mas não tem nada a ver com comandante militar. Comandante militar não faz parte dessa primeira camada política. Eles não fazem parte, são elementos operacionais, com uns 40, quase 50 anos na sua profissão. E aí é exonerado no mesmo nível de uma camada política, sem nenhuma explicação. Isso aí é falta de consideração pessoal e funcional.

Esse tipo de demissão ocorreu em outros casos no governo, inclusive no do senhor...

No meu caso eu não dou bola, pessoalmente eu não dou bola. O problema é a falta de consideração institucional. Isso é um desrespeito, uma ofensa ao Exército, à Marinha, à Aeronáutica.

A mensagem que o general Fernando Azevedo deixou ao sair destaca as Forças Armadas com instituições de Estado. O senhor avalia que houve uma pressão do presidente para ir além disso de alguma forma?

Não sei, acho que é uma mensagem bem institucional, onde ele destacou, resumiu qual foi o esforço dele, o perfil institucional das Forças Armadas. Isso não quer dizer tecnicamente que tenha havido uma tentativa de quebrar isso daí. Uma tentativa de quebrar isso daí é a politização das Forças Armadas e a subversão da coesão necessária para as Forças. As Forças Armadas não são um órgão de governo, são um órgão de Estado, instituição de Estado. Qualquer tentativa de politização é subversão da hierarquia, da disciplina que tem que ter... Forças Armadas não são uma ferramenta para fazer pressão política, ferramenta para você utilizar no jogo político, não é para isso. Forças Armadas têm uma destinação constitucional.

Acredita que existe um desgaste entre as Forças Armadas e o presidente Jair Bolsonaro?

Não vejo desgaste nenhum. Desgaste por quê? As Forças Armadas estavam cumprindo o seu papel, estão cumprindo o seu papel de acordo com a Constituição. Não tem razão nenhum para se supor desgaste.

... E divergências dos comandantes com o presidente Bolsonaro?

Não...

Talvez não existia um alinhamento da forma como o presidente gostaria?

Não tem que ter alinhamento nenhum. Ela tem uma destinação constitucional, tem que cumprir a função constitucional dela. Alinhamento é conversa fiada.

Julia Lindner, de O Globo online, em 30/03/2021 - 19:01 / Atualizado às 19:30hs

General Etchegoyen: "O Exército vai se manter como sempre esteve esse tempo todo: longe de qualquer papel político."

 "O Exército vai se manter como sempre esteve esse tempo todo: longe de qualquer papel político." É a opinião do general Sérgio Etchegoyen, que além de ter passado 45 anos no Exército, também foi ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Michel Temer. 

Do Rio Grande do Sul, onde trabalha em consultorias, Etchegoyen tem acompanhado a crise entre o comando das Forças Armadas e o governo Bolsonaro. Que, aliás, considera inadequado chamar de crise. "Não há nada mais do que uma troca de comando que é prerrogativa do presidente. Isso é o que existe, por enquanto." 

Entrevista a Malu Gaspar, de O Globo

O Alto Comando do Exército se reuniu ontem e hoje e seus membros têm dito a interlocutores que a força não vai ceder a tentações golpistas. Como devemos entender isso? O Exército pode vir a atuar para parar o presidente? 

Nunca as Forças Armadas aceitaram ser tratadas de outra forma que não como instituição de Estado e pelos canais apropriados, por mais hostil que fosse o momento. Nos últimos anos, já enfrentaram, por exemplo, uma tentativa sórdida de avanço sobre as competências dos comandantes na gestão do pessoal, no mandato da presidente Dilma – que depois o próprio PT botou lá em seus documentos que lamentava não ter promovido oficiais generais que não fossem alinhados com o projeto de governo deles. E ainda assim o Exército se manteve fiel aos princípios legais. Acho que não será diferente agora. 

Mas a atitude do presidente de demitir o ministro da Defesa e os comandantes das forças, da forma como foi, não é uma atitude hostil? 

Se você considerar o aspecto pessoal, da relação com os comandantes, pode ser entendido assim. Mas do ponto de vista institucional, das Forças Armadas, não, porque o presidente tem a prerrogativa de fazer isso. É um dos poderes dele. Na cabeça do militar, vai ser analisado sempre da seguinte forma: isso é legítimo do ponto de vista legal? Goste-se ou não, é.

A questão é que as razões pelas quais o presidente fez isso parecem ir além da relação pessoal. Estariam mais ligadas a coisas que o presidente queria que fossem feitas, como por exemplo acomodar o ex-ministro Pazuello ou manifestações contra decisões do STF sobre o lockdown.

Para comentar isso, eu teria que imaginar que os próximos comandantes aceitariam uma proposta de ilegalidade, e nisso não acredito. A substituição pode ter a ver com o fato de o  presidente estar incomodado com alguma coisa e buscar ter um relacionamento mais fácil com os chefes das forças. Mas daí a achar que vai mudar a posição das Forças Armadas em relação a seu papel institucional vai uma grande distância. 

Há uns dias, o presidente disse que "meu exército não vai cumprir lockdown". O general Fernando Azevedo disse a aliados que saiu porque não queria repetir o mês de maio de 2020, quando houve as manifestações por intervenção militar. Na carta de demissão, ele fez questão de registrar que defendeu as instituições de Estado. Isso não denota uma preocupação com o que pode acontecer com essas instituições? 

Eu não conheço as razões do general Fernando, como não conheço as razões do presidente, mas ele (o general Fernando) foi muito feliz nas palavras e na condução do ministério da Defesa. Na carta, ele deixa uma síntese da ação dele. Se botou isso, é porque foi importante para ele. Veja que ele salienta na nota o agradecimento aos comandantes pelo que fizeram na área humanitária. Ele achou isso tão importante a ponto de ser um parágrafo na nota de despedida.   

( Crise: Azevedo diz que saiu da Defesa porque não queria reviver maio passado )

O senhor diz que o Exército não vai assumir um papel político. Se houver um impasse institucional, então, a quem caberá resolver?

Numa situação hipotética, se houver um impasse institucional, a solução será institucional. As instituições vão ter que encontrar a forma de resolver. As Forças Armadas não têm legitimidade para isso. Nem querem, nem eu acredito que entrassem numa aventura desse tipo. Qualquer solução terá de ser imposta por um dos poderes, particularmente o Congresso e a Justiça. É o Judiciário quem tem a capacidade de tomar decisões desse tipo e o Congresso, de editar as leis. As Forças Armadas só agirão se forem convocadas por qualquer dos poderes, nos limites do artigo 142 da Constituição.

E se o presidente as convocar para alguma ação golpista?  

Não acredito que o presidente convoque para fazer ações golpistas. Eu acho que o que aconteceu foi uma crise política que envolveu os comandantes militares e o ministro da Defesa. Não é uma crise militar no sentido de que os militares ou as forças possam tomar uma atitude. É uma crise política que chega no ministério da Defesa. O novo ministro, como vai lá com a confiança do presidente, certamente saberá resolver. O presidente fez amparado na legalidade. 'Ah, mas eu não gosto do que ele fez" Tá bem, todo cidadão pode ter sua opinião. Mas o presidente está amparado na legalidade. 

O senhor acha normal que uma crise política envolva o ministério da Defesa?  O que isso diz sobre o momento que a gente vive?

Isso gera um mal estar interno. Mas faz tão mal à nossa democracia a gente achar que em  qualquer soluço político os militares possam tomar uma atitude… Não faz muito tempo que me afastei, conheço as pessoas que estão lá, existem valores perenes e um deles é o apego à normalidade democrática, à soberania popular e ao presidente da República como comandante Supremo. Nós já  tivemos comandantes supremos que não eram os mais votados nas Forças Armadas e nem por isso deixaram de comandar.   

Não é o caso do Bolsonaro, que teve apoio das Forças Armadas. 

Sim, mas mesmo quem não teve esse apoio, governou sem dificuldades. Outro dia mesmo o presidente Lula disse que teve um excelente relacionamento com o Exército. As Forças Armadas vão seguir cumprindo seu dever, tocando os seus projetos, fazendo o que tem que fazer. E não serão fonte de crise e de instabilidade. 

Essa crise pode afetar o apoio que Bolsonaro teve na caserna ou nas tropas?

Poder pode, não sei dizer em que medida. Mas não vejo como isso vá mudar o cenário geral, que é o do papel institucional e da missão a cumprir. Daqui a pouco as coisas se arrumam e as pessoas restabelecem as relações de confiança. 

Até a próxima crise. 

Eu não acho que a crise esteja nas Forças Armadas, se há crise ela pode ter acontecido nas nomeações de outros ministros. Provavelmente houve um desgaste no relacionamento e o presidente resolveu trocar. O que eu acho é que a gente tem uma visão estruturalmente equivocada. Cada vez que acontece uma coisa, a gente acha que houve uma crise militar. Não teve no governo Lula, não teve sob Dilma, não teve no governo Temer e não terá agora. As Forças Armadas não vão para a rua defender politicamente ninguém. 

Não há nessa crise nenhum eco de 1964? 

Em 1964 tinha apoio popular, apoio da imprensa, apoio da população, uma porção de coisas. Se acharem que tem gente na mesma quantidade para sair para a rua apoiar uma ruptura em nome do presidente ou a queda do presidente, tá bem. Mas não vão achar. Nem vão achar nas Forças Armadas alguém que imagine que isso seja a solução. E lamento muito que alguns na sociedade achem que isso seja possível. O Brasil é um país sofisticado institucionalmente. Eu mesmo tenho críticas a muitas coisas no funcionamento das nossas instituições. Mas elas estão funcionando e, mais do que isso, estão sendo obedecidas. 

Com tudo isso, os senhor acha que instituições estão funcionando? 

Veja, crise é o sobrenome da política. Sempre tem sido assim no Brasil. Cada vez que há um conflito a gente vive uma crise, talvez até banalizando o termo, e vamos indo assim. Nós enfrentamos tudo. Quando eu olho em volta, acho difícil imaginar um país como o nosso, que tenha tido tantas crises e mesmo assim não tenha tido um abalo institucional. Um grande patrimônio que a gente construiu, de um país que amadureceu. Isso tem que ser valorizado. 

A questão é que o próprio presidente sugere rupturas toda hora. 

Não vou comentar o presidente. Qualquer cidadão pode dizer o que quiser, o que interessa  é se isso tem consequência ou não. O presidente é um homem chegado a declarações fortes. Mas ele não tomou nenhuma medida concreta que afrontasse a democracia

Não foi por falta de apoio? 

Não sei avaliar a razão, mas a realidade é essa. Ele adota uma política com discurso forte, mas isso não se reflete nas ações dele. Ele nunca deixou de acatar as decisões do STF.  Não deixou de acatar, nas vezes em que o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia deixou vencer uma medida provisória. Não cercou Congresso, não cercou STF. A gente tem que trabalhar com antecedentes. Quais os antecedentes? Eu nunca vi o presidente sair de um discurso forte para ações que ferissem a institucionalidade.

Publicado originalmente n'O Globo online, em 30.03.2021, às 19,58 hs.

Carlos Melo: Manda, mas não lidera

Somente os próximos dias tornarão o cenário, gradativamente, menos opaco. A decisão do presidente da República em remodelar profundamente o seu governo causou surpresas (muitas), espantos e suspeitas. O anúncio das mudanças foi frio, seco; menos que burocrático pareceu indiferente. O País se assusta, mas ninguém se digna dizer o que, afinal, se pretende.

O governo mudará de rumo, abandonando a penca de erros que tem cometido, ou o presidente deseja apenas encontrar quem lhe sirva mais fielmente? Para o que serve e a quem serve mesmo a reforma ministerial?

Em nenhuma área essa pergunta parece mais crucial do que no ministério da Defesa. Nas circunstâncias porque passa o País, a demissão do ministro Fernando Azevedo e Silva foi muito mais ruidosa que as demais, pois em seu nevoeiro podem se esconder os maiores perigos para a democracia.

As informações ainda incompletas; tudo o que se tem é o que o jornalismo profissional e independente conseguiu coletar no primeiro momento. A impressão mais consolidada, porém, indica haver conflitos entre a visão equivocada do presidente da República — de que teria um Exército para chamar de seu — e a posição deixada, como pista, pelo agora ex-ministro em seu curto documento de despedida: “a preservação das Forças Armadas como instituições de Estado”.

Naturalmente, dada as características da caserna e à disciplina militar, os conflitos não são públicos. Mas, os bastidores revelam que as mais elevadas patentes da Ativa têm resistido às investidas de um Comandante Supremo insensível à Constituição.  Por tudo o que diz e faz, por seus sinais, é plausível acreditar em versões desfavoráveis a Bolsonaro.

Talvez não compreenda é que mesmo detendo o mando do governo, a liderança política não se resume à dominação burocrática. Se Bolsonaro precisou demitir o general Azevedo, se guarda com o comandante Edson Pujol diferenças que lhe exigem uma espécie de intervenção na cúpula, é porque já não lidera, já não conduz. É porque não tem sido capaz de se impor pelo exemplo.

Carlos Melo, o autor deste artigo, é cientista político e Professor do Insper. Publicado originalente n'O Estado de S. Paulo online, em 29.03.2021, às 23,48hs