terça-feira, 2 de março de 2021

‘É preciso parar esse cara’

O senador Tasso Jereissati foi enfático: 'É preciso parar esse cara'. Veterano, ele expressou sua estupefação com o comportamento do presidente

Político veterano, desses que já viram quase tudo na vida pública, Tasso Jereissati expressou sua estupefação com o comportamento do presidente, a quem infelizmente coube administrar o País em meio a uma das mais graves crises da história.

Bolsonaro não se limita a ser irresponsável ou omisso. Tornou-se nocivo, ao atrapalhar deliberadamente os esforços de profissionais de saúde e de autoridades públicas empenhados em conter o avanço da pandemia de covid-19.

Em meio ao recrudescimento da doença, enquanto governadores e prefeitos enfrentam o desgaste de decretar medidas drásticas para tentar frear o coronavírus e os médicos, em razão da falta de leitos de UTI, são obrigados a escolher quem vai viver e quem vai morrer, o presidente promove aglomerações, desestimula o uso de máscaras, desmoraliza vacinas e atiça a população contra as autoridades que, ao contrário dele, fazem o que precisa ser feito.

A mais recente agressão ocorreu no dia 26 passado, quando Bolsonaro chamou de “politicalha” as medidas restritivas adotadas contra a covid-19 e disse que “daqui para frente o governador que fechar seu Estado, o governador que destrói emprego, ele é que deve bancar o auxílio emergencial”.

A respeito do iminente colapso do sistema de saúde, o presidente disse que “a Saúde no Brasil sempre teve seus problemas” e que “a falta de UTIs era um deles”, como se a atual crise fosse fruto não de sua inépcia, mas do passivo de outros governos. Para completar, ante a informação de que seu governo reduziu drasticamente o financiamento de leitos de UTIs em plena pandemia, Bolsonaro apresentou dados distorcidos sobre repasses de verbas da União aos Estados para insinuar que dinheiro havia, mas não foi usado como deveria.

Para resumir: sem competência para providenciar vacinas, organizar o atendimento aos doentes e articular a renovação do necessário auxílio emergencial, e diante das perspectivas sombrias da economia, Bolsonaro manda às favas os princípios federativos e faz o que sabe melhor: foge da responsabilidade.

Incapaz de manifestar empatia em relação aos brasileiros que sofrem os efeitos da pandemia e de seu desgoverno, Bolsonaro só demonstra dedicação genuína quando o que está em jogo são seus interesses eleitorais. Ao longo de um ano de pandemia, o presidente gastou seu precioso tempo fazendo comícios em inauguração de obras desimportantes, mas não foi a nenhum hospital para prestar solidariedade a médicos e doentes e mal lhes dirige a palavra quando se pronuncia sobre a crise.

Já seria grave se fosse apenas indiferença, mas Bolsonaro parece na verdade considerar como inimigos todos os conterrâneos que não lhe devotam religiosa lealdade, pois só isso explica por que o presidente tanto se empenha em aumentar-lhes o padecimento.

É por isso que, como alertou o senador Tasso Jereissati, urge interromper essa marcha de insensatez, pois disso dependem incontáveis vidas. O melhor caminho para “parar essa insanidade”, disse o parlamentar, é a instalação de uma CPI – cujo pedido repousa na mesa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Motivos não faltam, e Tasso Jereissati os enumerou: “Primeiro, há crime contra a saúde pública, isso é claro. Segundo, há crime contra a Federação, porque está conclamando a população a fazer o contrário do decreto de um governador e ainda ameaçando governadores que fizerem isso”.

Diferentemente do que sustentam os governistas, para quem uma CPI neste momento seria indesejável ante a emergência da pandemia, o senador entende que a hora é agora, pois, a continuar nessa toada, sem que se responsabilize ninguém pela criminosa condução da crise, há uma “possibilidade enorme de termos um caos no Brasil inteiro”. O objetivo da CPI, disse Tasso Jereissati, “não é criar crise”, mas “mostrar que o presidente não pode fazer e dizer o que quer, que haverá consequências e que ele será responsabilizado”. É o que o Brasil civilizado ansiosamente aguarda.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em  02 de março de 2021

'Teremos o março mais triste de nossas vidas', prevê pneumologista da FioCruz

Para completar, não temos observado um comportamento de solidariedade, não só de todos os cidadãos, mas também de nossas autoridades políticas. Não vemos aumentar uma consciência cívica do que é preciso fazer neste momento, apesar do cansaço de um ano de pandemia. 

Seria necessário todos nós mantermos comportamentos individuais e coletivos de muito cuidado, com uso de máscara e distanciamento social. Já manifestei de que precisamos de medidas mais drásticas, com o fechamento de muitos serviços, para diminuir a circulação de pessoas e reduzir a transmissão viral.

Enterro de vítima de covid-19 em Manaus, em 17 de fevereiro; país supera 250 mil mortes (Crédito da foto: Reuters)

Em vários municípios brasileiros, leitos de enfermaria e UTI estão lotados de pacientes com covid-19. Não há mais vagas e os doentes não param de chegar.

De acordo com dados das secretarias estaduais de saúde, 17 estados têm ocupação em hospitais acima de 80%, um nível considerado crítico.

Outros oitos estados têm taxas que superam os 90% — no Rio Grande do Sul, por exemplo, o número chegou a 100%.

Onde ficarão essas pessoas que precisam de atendimento? E como poderemos conter essa avalanche de novos casos que põe em xeque o sistema de saúde e poderia afetar até mesmo a estabilidade social do país? O que fazer para se proteger num momento tão crítico?

Esses são alguns dos temas que preocupam a pneumologista Margareth Dalcolmo, professora e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), no Rio de Janeiro.

Em entrevista à BBC News Brasil, a médica, que se tornou uma das vozes mais ativas e influentes da ciência brasileira durante a pandemia, analisa como chegamos até esse estágio da pandemia e o que pode ser feito a partir de agora para aliviar a crise sanitária.

Leia os principais trechos a seguir.

BBC News Brasil - Nos últimos dias, acompanhamos notícias de diversas cidades com lotação em hospitais e colapso dos sistemas de saúde. Como classifica o atual estágio da pandemia de covid-19 no Brasil?

Margareth Dalcolmo - Nós estamos num momento muito grave da pandemia no Brasil, com um recrudescimento já materializado daquilo que consideramos uma segunda onda. Isso não nos surpreende, uma vez que as medidas de controle sanitário não foram só controversas, mas também ineficientes por um longo tempo. Nós sabemos também que a única solução possível para controlar a pandemia será a vacinação, e a campanha está apenas no início, numa velocidade muito aquém do desejável.

Para completar, não temos observado um comportamento de solidariedade, não só de todos os cidadãos, mas também de nossas autoridades políticas. Não vemos aumentar uma consciência cívica do que é preciso fazer neste momento, apesar do cansaço de um ano de pandemia. Seria necessário todos nós mantermos comportamentos individuais e coletivos de muito cuidado, com uso de máscara e distanciamento social. Já manifestei de que precisamos de medidas mais drásticas, com o fechamento de muitos serviços, para diminuir a circulação de pessoas e reduzir a transmissão viral.

A nossa grande preocupação hoje está no fato de que a transmissão viral é o grande mecanismo propiciador do aparecimento de novas variantes. E, considerando que já estamos enfrentando as primeiras mutações, precisamos responder a isso com estudos, com vigilância genômica. Precisamos entender se as vacinas utilizadas agora são capazes de nos proteger contra essas variantes. E, sobretudo, precisamos colaborar enquanto sociedade para não criar um cenário que propicie o aparecimento de novas versões do coronavírus.

Margareth Dalcomo recebeu em janeiro a dose da vacina Oxford/AstraZeneca na Fiocruz (Crédito foto: Tomaz Silva, Agência Brasil).

BBC News Brasil - Desde novembro de 2020, acompanhamos uma série de eventos que provocaram grandes aglomerações. Foi o caso das eleições municipais, das festas do final de ano, do Enem e agora do Carnaval. Algum desses episódios foi decisivo para chegarmos a crise de agora? Ou foi uma conjunção de fatores?

Dalcolmo - Foi realmente essa conjunção de fatores provocada por uma falta de entendimento do discurso dos cientistas, dos médicos e dos pesquisadores, que sempre estimularam uma consciência cívica coletiva, de solidariedade. A covid-19 mudou de lugar no Brasil e começou a entrar em nossas casas. Nós vemos agora pessoas que ficaram um ano em isolamento pegando a doença. Como isso é possível? Os jovens daquela família estão indo para as ruas e trazendo o vírus de volta.

As festas de final de ano foram trágicas. Eu mesma me manifestei diversas vezes dizendo que o Brasil teria o mais triste janeiro de sua história. E realmente tivemos, inclusive com o aparecimento da variante brasileira, identificada na família que viajou ao Japão vinda do Amazonas.

E agora eu não tenho dúvida de que teremos o mais triste março de nossas vidas. Isso é resultado do Carnaval e do descompasso entre o que nós, cientistas, dizemos, e o que as autoridades afirmam. Nos últimos dias, ouvimos que não é pra usar máscaras. Não há dúvidas, está demonstrado que a máscara é uma barreira mecânica que protege quem usa e todo mundo ao redor.

Todos esses fatores, somados ao cansaço de uma pandemia tão longa, geram um comportamento que tem se mostrado desastroso. O que vemos agora então é uma pressão enorme sobre o sistema de saúde, que sofre com uma taxa de ocupação de leitos acima de qualquer nível desejado em hospitais públicos e privados.

'O que vemos agora então é uma pressão enorme sobre o sistema de saúde, que sofre com uma taxa de ocupação de leitos acima de qualquer nível desejado em hospitais públicos e privados' (Crédito foto: AFP).

Junto a isso, há outro fator muito grave: a covid-19 se rejuvenesce no Brasil. Hoje vemos muitos jovens internados, que desenvolvem casos graves. Esses indivíduos têm uma força de transmissão enorme, porque eles se aglomeram, cantam, falam alto e repetem todos aqueles comportamentos que sabemos serem decisivos para transmitir uma doença viral respiratória.

BBC News Brasil - Na primeira onda, Manaus foi a primeira cidade brasileira a sofrer com a pandemia, em meados de abril de 2020. O mesmo se repetiu agora: a capital amazonense "antecipou" algo que veríamos ocorrer dali a algumas semanas em vários outros lugares. O que faz Manaus ser essa espécie de "medidor" da pandemia do país?

Dalcolmo - Eu não diria que Manaus é um medidor. A situação do Amazonas e de toda região Norte é muito particular. Manaus é uma cidade afastada, de difícil acesso, e teve um pico epidêmico precoce, muito antes do Sul e do Sudeste. Aqui, nós vimos o auge da primeira onda no final de junho, começo de julho. Manaus sofreu isso em abril. É preciso pensar que ali é Zona Franca, com um fluxo enorme de pessoas.

O que aconteceu foi que a covid-19 chegou, atingiu uma grande proporção da população de baixa renda e causou aquela tragédia de túmulos em cemitérios sendo abertos a toque de caixa. Mas era natural que essa imunidade conferida pela doença não fosse muito duradoura. O Amazonas nunca tomou medidas drásticas de fechar escolas, comércio ou fazer lockdowns.

Portanto, esperava-se que toda essa situação eclodisse, ainda mais com o surgimento de uma nova variante, que logo se expandiu para todo o Brasil. Manaus tem um fluxo de voos que diminuiu, mas continua acontecendo até hoje. Logo, não é de se estranhar que a variante brasileira esteja no Reino Unido e a variante britância se encontre no Brasil.

Diante de tudo isso, Manaus se tornou um paradigma de tudo aquilo que nós desejaríamos que não acontecesse.

A situação por lá foi agravada pela desídia administrativa. Não é possível que uma cidade como Manaus tenha um único fornecedor de oxigênio, sabendo que a logística de entrega é muito complexa. Se a mesma crise se abatesse sobre o Rio de Janeiro, onde a letalidade e a taxa de transmissão da covid-19 está alta, dificilmente teríamos problema igual, porque aqui nós não dependemos de um fornecedor de oxigênio só, temos quatro ou cinco.

Por fim, a pandemia em Manaus revela a absoluta e intolerável desigualdade social do Brasil. Porque quem morre no Amazonas é pobre e indígena. A classe média alta foi embora se tratar nos hospitais do Sudeste. A quantidade de jatos privados que foram alugados por 150 mil reais em Manaus para trazer pacientes para o Rio de Janeiro e São Paulo é enorme e isso está registrado.

A covid-19 é um marco em lugares como o Brasil e os Estados Unidos. Em Nova York, 40% dos óbitos pela doença aconteceram com pretos e pobres. A mesma coisa se repete aqui. Nós podemos dar inúmeros exemplos das medidas sanitárias necessárias para conter a crise, mas todas elas precisam ser coerentes e ter ligação com a questão social do país e das nossas desigualdades.

BBC News Brasil - Esse colapso poderia ser evitado com medidas que restringissem a circulação de pessoas e as aglomerações. Mas agora que essa oportunidade já passou, tem alguma coisa que podemos fazer para aliviar a situação?

Dalcolmo - Eu acredito que sim. A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, da qual sou presidente eleita, publicou um documento assinado por outras 70 sociedades médicas que contesta esse discurso contra as máscaras que ouvimos recentemente. Nosso manifesto mostra como esses equipamentos são ferramentas de proteção individual e coletiva.

Esse discurso contraditório entre a ciência e a política tem causado muitos males à sociedade brasileira. Só pra dar um exemplo, hoje de manhã eu estava num voo para voltar ao Rio de Janeiro, após resolver questões familiares, e sentei ao lado de dois jovens, que eram irmãos. Eles entraram no avião e tiraram as máscaras. Eu imediatamente chamei a comissária e disse, ainda antes do pouso: se eles não colocarem a máscara adequadamente, nós chamaremos o comandante, não haverá decolagem e os dois serão retirados imediatamente. Eu fui aplaudida pelo resto dos passageiros.

Não estou falando aqui de dois jovens pobres. Eles estavam viajando de avião, ora. E, quando já estávamos decolando, de novo os dois resolveram abaixar a máscara. Ah, aí eu fiquei zangada. Conversei de novo com a comissária e disse que, se ela não tomasse providências, eu mesma iria conversar com o comandante. No meio disso tudo, algumas pessoas me reconheceram, tinham me visto na televisão, gritaram para eles colocarem as máscaras.

Eu percebo então que existe um sentimento, ao menos naqueles indivíduos que têm um pouquinho mais de consciência, de que um comportamento como o desses dois irmãos é execrável e faz mal para o coletivo.

Quantas vezes nós falamos que aglomerações não poderiam acontecer? Eu entendo que as pessoas estejam cansadas. Mas nós também estamos. Estamos cansados sobretudo de ter que contar mortos todos os dias. Chega disso. Eu quero que a sociedade, o governo, as autoridades e todos nós passemos a nos comportar de maneira mais civilizada.

BBC News Brasil - Ainda no campo das medidas restritivas, governadores e prefeitos têm anunciado toques de restrição e fechamento de comércios à noite e durante a madrugada. Estratégias como essa fazem algum sentido?

Dalcolmo - Na forma como elas estão sendo propostas, não vão resolver nada. Por que fazer o fechamento e impedir a circulação entre meia noite e cinco da manhã? Nesse horário já não há gente na rua. E quem foi festejar, se aglomerar, beber e fazer tudo de errado, já fez. Essa é uma medida pouco eficaz.

Estou totalmente de acordo com o professor Miguel Nicolelis, que em entrevistas recentes disse que o Brasil precisaria de um lockdown de duas semanas bastante rígido para interceptar as cadeias de transmissão do coronavírus.

O Brasil nunca fez um lockdown adequado. Nunca conseguimos alcançar a taxa de 60% da população em casa, que seria um número desejável. Quem mais chegou perto disso foi São Paulo, com 58% de distanciamento social por momentos muito breves. Aqui no Rio de Janeiro não conseguimos.

E agora há esse descompasso entre o que a ciência diz e o cansaço generalizado de uma pandemia longa, com a economia tão machucada. Mas as pessoas precisam entender que não tem jeito. Se não tomarmos cuidado por algum tempo e não começarmos uma vacinação em massa, a situação só vai piorar.


Dalcomo diz que o Brasil 'nunca fez um lockdown adequado'

Precisamos vacinar 70% de nossa população até o meio do ano. Não é pra setembro. É para junho. Caso contrário, vamos propiciar as condições para o aparecimento de outras variantes. Também precisamos de um investimento pesado em vigilância genômica, para que possamos ter certeza que as vacinas produzidas pelos dois institutos públicos brasileiros, o Butantan e a FioCruz, são realmente efetivas contra as novas variantes.

BBC News Brasil - Falando em vacinação, o Brasil tem um sistema público muito bem estabelecido e uma capacidade histórica de imunizar 80 milhões de pessoas em poucos meses. Mas quando analisamos a campanha contra a covid-19, o ritmo está muito lento. Quais são os gargalos que não permitem a gente acelerar esse processo?

Dalcolmo - O primeiro deles é óbvio: não tem vacina. Se nós tivéssemos as milhões de doses que precisamos, bastava ter agilidade. E o nosso velho, tradicional e competente Programa Nacional de Imunizações tem uma enorme experiência em vacinar, quando é somado com essa capilaridade espetacular do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seríamos capazes sim.

Mas a pandemia de covid-19 nos colocou numa situação nova, e isso pode indicar um novo tipo de voluntariado de qualidade ao nosso país. O que estamos vivendo agora é uma possível parceria com setores privados. Eu estive em São Paulo para conversar com a empresária Luiza Trajano para discutir esse assunto.

Que fique claro: eu sou completamente contrária à compra de vacinas pela iniciativa privada e já me manifestei sobre isso inúmeras vezes. Permitir isso no Brasil é indecente e imoral.

O que precisamos é ter uma vacina comprada pelo Governo Federal, que pode contar com a ajuda de empresas e empresários em questões como logística e transporte. Imagina uma prefeitura pequena, que não tem uma capacidade de organização grande. A iniciativa privada pode prover avião, barco, caminhão refrigerado, geladeira, freezer…

O que nós precisamos agora é ter muita vacina e uma capacidade logística enorme para imunizar muita gente em pouco tempo. Só a partir daí vamos fazer a economia voltar a funcionar com um pouco mais de liberdade. Isso também permitirá que as escolas reabram em sua capacidade total. E, inclusive, eu defendo que os trabalhadores da área de educação sejam vacinados com prioridade após protegermos os idosos e os profissionais da saúde.

BBC News Brasil - Nós já temos duas vacinas em uso no país, a CoronaVac (Sinovac/Instituto Butantan) e a CoviShield (AstraZeneca/Universidade de Oxford/FioCruz). Além delas, vemos conversas sobre os imunizantes de Pfizer/BioNTech, Johnson & Johnson, a Sputnik V… É hora de diversificar nosso portfólio?

Dalcolmo - Nós estamos atrasados nisso. Poderíamos ter negociado com Pfizer e Johnson & Johnson desde que eles iniciaram os estudos de fase 3 aqui no Brasil, no segundo semestre de 2020. A Sputnik V parece ser boa, mas ainda carece de registro na Anvisa, que é nossa agência reguladora.

Mas quando alguém me pergunta qual vacina eu tomaria, eu sempre respondo: qualquer uma, desde que tenha registro na Anvisa. O que eu nunca tomaria é uma vacina que não passou por esse crivo de grande qualidade técnica que temos em nosso país.

Dalcomo: 'quando alguém me pergunta qual vacina eu tomaria, eu sempre respondo: qualquer uma, desde que tenha registro na Anvisa'

A verdade é que nós perdemos um tempo precioso e já podíamos ter a vacina da Pfizer por aqui. Hoje estamos implorando para negociar alguns poucos milhões que estão disponíveis.

Vale lembrar que não tem vacina para todo mundo. Se pensarmos que dez países já compraram 75% da produção mundial de vacina deste ano, isso de novo nos revela a enorme desigualdade em que vivemos. Só o Canadá garantiu cinco doses para cada habitante. E isso não é bom nem ruim, não estou julgando. Pelo menos eles farão uma coisa correta, que é doar o excedente para os países que não tem condições por meio do mecanismo da Covax Facility.

BBC News Brasil - Diante de todo o cenário que a senhora descreveu e analisou, quais são as mais importantes recomendações que todos nós devemos seguir pelas próximas semanas?

Dalcolmo - As pessoas têm que entender que tudo isso já era esperado, por mais que não desejássemos que acontecesse. Quantas vezes eu disse coisas nessa pandemia e gostaria de estar errada… Parece que estamos numa crônica de morte anunciada, como aquelas escritas por Gabriel García Márquez em seus livros.

Mais uma vez, faço um apelo para que todo mundo entenda que estamos num momento muito grave, muito mais sério do que o primeiro pico. Esse número de mortes é absolutamente intolerável.

O que temos de fazer é proteger a nós mesmos, nossas famílias, nossos colegas de trabalho. Sei que estamos cansados da pandemia. Mas elas são assim mesmo e levam tempo.

Essa é a primeira pandemia de uma geração mais jovem, mas nós já vivemos outras no passado. Quando enfrentamos a H1N1 em 2009, por exemplo, estávamos mais preparados. O Brasil tinha 70 milhões de doses de vacina compradas, estocadas, com seringa, agulha, tudo. Não é o que está acontecendo agora…

É hora de todos colaborarem, fazerem sua parte e terem consciência cívica. Não adianta ser anárquico e desafiar uma ordem biológica que não é favorável a nós. Ou nos comportamos agora ou colaboraremos com a piora dessas estatísticas terríveis, que mais parecem filmes de terror.

André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo, em 02.03.2021

segunda-feira, 1 de março de 2021

Em nota, governadores dizem que governo ‘parece priorizar criação de confronto’

Autoridades se irritaram porque o presidente Jair Bolsonaro divulgou repasses obrigatórios da União aos Estados como se fossem uma verba extra para conter os problemas da pandemia

Governadores de 18 Estados decidiram reagir ao movimento do presidente Jair Bolsonaro de tentar repassar a eles a responsabilidade pela expansão da pandemia do novo coronavírus. Nesta segunda-feira, 1.º, o grupo divulgou nota criticando a atitude do governo federal de usar dinheiro público “a fim de produzir informação distorcida, gerar interpretações equivocadas e atacar governos locais”.

No documento, o grupo cobra a distorção da conta feita pelo presidente, que diz ter repassado R$ 837,4 bilhões para os Estados Foto: DIDA SAMPAIO / ESTADÃO

Foi uma resposta à estratégia do presidente, que passou a divulgar em público e, nas suas redes sociais, que a União repassava bilhões aos Estados para que reduzissem os efeitos da pandemia. Esse argumento também foi  reproduzido nas redes da Secretaria Especial de Comunicação (Secom) do governo.

A irritação foi grande porque a maior parte desses recursos aos quais Bolsonaro se refere é de repasses obrigatórios, previstos pela Constituição. Ou seja, não se trata de um gesto do presidente para conter os problemas da pandemia. Para o grupo, não há dúvidas de que Bolsonaro decidiu tentar repassar para o colo dos governadores pelo menos parte da conta política e do desgaste junto à população pela disparada no aumento dos casos de coronavírus.

Na nota, os governadores dizem que o governo parece “priorizar a criação de confrontos”. O texto é subscrito pelos governadores de Alagoas (Renan Filho - MDB), Amapá (Waldez Góes - PDT), Ceará (Camilo Santana - PT), Espírito Santo (Renato Casagrande - PSB), Goiás (Ronaldo Caiado - DEM), Maranhão (Flávio Dino - PCdoB), Pará (Helder Barbalho - MDB), Paraíba (João Azevêdo - Cidadania), Paraná (Ratinho Junior - PSD), Pernambuco (Paulo Câmara - PSB), Piauí (Wellington Dias - PT), Rio de Janeiro (Cláudio Castro - PSC), Rio Grande do Norte (Fátima Bezerra - PT), Rio Grande do Sul (Eduardo Leite - PSDB), São Paulo (João Doria - PSDB) e Sergipe (Belivaldo Chagas - PSD).

“Os governadores dos Estados abaixo assinados manifestam preocupação em face da utilização, pelo Governo Federal, de instrumentos de comunicação oficial, custeados por dinheiro público, a fim de produzir informação distorcida, gerar interpretações equivocadas e atacar governos locais. Em meio a uma pandemia de proporção talvez inédita na história, agravada por uma contundente crise econômica e social, o governo federal parece priorizar a criação de confrontos, a construção de imagens maniqueístas e o enfraquecimento da cooperação federativa essencial aos interesses da população”, diz o texto.

“A Constituição Brasileira, Carta maior de nossa sociedade e nossa democracia, estabelece receitas e obrigações para todos os Entes Federados, tal como é feito em qualquer federação organizada do mundo. No modelo federativo brasileiro, boa parte dos impostos federais (como o Imposto de Renda pago por cidadãos e empresas) pertence aos Estados e Municípios, da mesma forma que boa parte dos impostos estaduais (como o ICMS e o IPVA) pertence aos Municípios. Em nenhum desses casos a distribuição tributária se deve a um favor dos ocupantes dos cargos de chefe do respectivo Poder Executivo, e sim a expresso mandamento constitucional”, acrescenta a nota. 

“Nesse sentido, a postagem hoje veiculada nas redes sociais da União e do Presidente da República contabiliza majoritariamente os valores pertencentes por obrigação constitucional aos Estados e Municípios, como os relativos ao FPE, FPM, FUNDEB, SUS, royalties, tratando-os como uma concessão política do atual Governo Federal. Situação absurda similar seria se cada Governador publicasse valores de ICMS e IPVA pertencentes a cada cidade, tratando-os como uma aplicação de recursos nos Municípios a critério de decisão individual”.

Durante o fim de semana, as redes bolsonaristas trataram de espalhar a narrativa do governo, afirmando que R$ 837,4 bilhões haviam sido enviados pela União aos Estados. Ou seja, os governadores teriam dinheiro sobrando para combater o vírus. Essa tentativa de repassar responsabilidade causou grande desconforto até em governadores aliados do Planalto, como Ronaldo Caiado (Goiás), Ratinho Júnior (Paraná) e Claudio Castro (Rio), que subscreveram a nota crítica.

Alguns governadores foram mais duros na sua reação ao presidente. “Ao invés de construir alianças para combater a pandemia, Bolsonaro destrói pontes e prejudica o trabalho dos governadores para salvar vidas”, disse o governador de São Paulo, João Doria, ao Estadão.

“O presidente da República insiste em agredir a verdade para tentar atingir os governadores. Ele está postando contas malucas sobre recursos enviados aos Estados, misturando com municípios, recursos de FPE, FPM, auxílio emergencial etc. Em suma, é um irresponsável”, acusou o governador do Maranhão, Flávio Dino.

“O presidente da República mistura, sem explicar, todos os repasses federais (até os obrigatórios pela Constituição) e fala que mandou R$ 40 bilhões para o Rio Grande do Sul. Se a lógica é essa, fica a dúvida: como o Rio Grande mandou para Brasília R$ 70 bilhões em impostos federais, cadê os nossos outros R$ 30 bilhões que enviamos?”, questionou o governador gaúcho Eduardo Leite.

Apesar da reação, os bolsonaristas não recuaram da estratégia. O ministro das Comunicações, Fábio Faria, voltou a insistir na história mesmo depois da divulgação da nota dos governadores. Faria sustentou que os dados do governo procedem.

“Os valores de repasses do governo para os Estados estão 100% corretos. As fontes são acessíveis”, disse o ministro. “Os valores estão claramente discriminados nas publicações e são referentes a todos os repasses para os Estados: diretos (da União para os entes) e indiretos, como benefícios ao cidadão (Auxílio, Bolsa etc.) e suspensão de dívida. Não há o que contestar, não se briga com números”, afirmou o ministro, endossando o discurso do presidente.

Marcelo de Moraes, O Estado de São Paulo, em 01 de março de 2021


Brasil passa de 255 mil mortes por covid-19 e tem novo recorde na média móvel de óbitos

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

O Brasil acumula um total de 10.587.001 casos de covid-19 e 255.720 pessoas mortas pela doença, segundo boletim do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) divulgado nesta segunda-feira (1/3).

Nas últimas 24 horas, foram registrados oficialmente 778 óbitos e 35.742 novos casos da doença.

Pelo sexto dia consecutivo, o país bate recorde na média móvel de sete dias: nesta segunda, a média calculada dos últimos sete dias foi de 1.225 casos de óbitos.

O Estado com maior número de vítimas fatais é São Paulo (59.546), seguido de Rio de Janeiro (33.093) e Minas Gerais (18.598).

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 514,1 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins.

O país foi superado oficialmente em número de casos, entretanto, pela Índia (11,1 milhões), em segundo lugar, depois dos Estados Unidos (28,6 milhões).

BBC News Brasil, em 01.03.2021

"Tragédia entrará na conta dos negacionistas", diz diretor do Butantan

Diretor do Instituto Butantan diz que, se não fosse o governo, o Brasil já teria vacina desde dezembro, e aponta obscurantismo científico das autoridades como responsável direto por nova onda explosiva de covid-19.


Brasil vive no momento a maior média móvel de mortes da pandemia

Fazia exatamente três anos que o médico hematologista Dimas Tadeu Covas estava à frente do Instituto Butantan quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o mundo vivia uma pandemia: a de covid-19.

Na corrida aberta em busca de uma vacina, ele apostou em um parceria internacional que, meses à frente, se revelou minimamente eficaz: em janeiro de 2021, a campanha de imunização brasileira começou justamente com produto desse acordo, no caso a vacina Coronavac, desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac.

No momento em que o Brasil vive seu pior momento desde o início da pandemia, com mais de 250 mil mortos e hospitais operando no limite de suas capacidades, Covas diz que "a interferência política na saúde pública tem sido uma grande barreira para o combate adequado à epidemia e explica muito a posição do Brasil como vice-campeão mundial em mortes pelo covid-19".

"A negação da gravidade da pandemia, a disseminação de tratamentos sem comprovação científica, o combate deliberado ao uso de máscaras e às medidas de restrição de circulação são os grandes responsáveis, neste momento, pela segunda onda explosiva que o país está sofrendo”, diz ele. "A história colocará essa tragédia na conta desses negacionistas".

O Instituto Butantan é uma entidade pública ligada ao governo estadual paulista. Nos bastidores da crise com o governo federal estão os dividendos políticos de dois protagonistas do cenário político brasileiro: o governador de São Paulo, o tucano João Doria — que desde o princípio busca para si o capital político da vacina do Butantan — e o presidente da República Jair Bolsonaro — que em diversos episódios buscou difamar o imunizante.

O diretor do Butantan, contudo, frisa que à despeito dessa batalha, o instituto paulista "continuará como o principal fornecedor [de vacinas ao Ministério da Saúde] por muito tempo ainda”.

DW Brasil: Há um ano, o Brasil teve o primeiro caso oficialmente registrado de covid-19. Desde essa época, estava aberta uma corrida mundial pelo desenvolvimento de uma vacina contra o coronavírus. Quando o Butantan decidiu procurar um parceiro para a produção de vacinas?

Dimas Tadeu Covas: O Instituto Butantan mantém-se alerta para o surgimento de epidemias, inclusive participa de organismos internacionais como o CEPI [Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias] cujo objetivo maior é a preparação para o enfrentamento de epidemias. Com o surgimento da epidemia de covid-19, imediatamente iniciamos o trabalho de prospecção de vacinas e de rotas tecnológicas para a sua produção. Neste caminho, já tínhamos conhecimento prévio da Sinovac, [empresa] que visitamos em 2019 e da qual também recebemos uma visita para discutirmos cooperação em vacinas. Já existindo esse aproximação e considerando que a Sinovac já tinha uma vacina em desenvolvimento em cuja tecnologia [de vírus inativado] temos experiência, nada mais apropriado. A parceria foi firmada preliminarmente em maio e assinada em junho do ano passado. O acordo, amplo, incluía o desenvolvimento de estudo clínico de fase 3 para a vacina no Brasil.

Na época em que foi firmada essa parceria, como o senhor avaliou os riscos — no sentido de a vacina não se demonstrar eficaz ou viável? Houve momentos em que conviveu com dúvidas se daria certo a parceria, se os resultados viriam?

A parceria foi firmada já com o conhecimento dos resultados preliminares das fases pré-clínica e clínica de fase 1 e 2. Os resultados promissores nos animaram para prosseguir para a fase 3, que seria importante para a vacina em termos mundiais. Obviamente, todo estudo científico pode não ter resultados de acordo com o desejado, mas sempre acreditamos e trabalhamos duramente para conseguir realizar o estudo no menor tempo possível e com o maior rigor necessário para demonstrar a utilidade da vacina no combate ao covid-19. Riscos são inerentes a todo processo inovador e o cientista e gestor responsável deve avaliar corretamente e assumir estes riscos, principalmente quando se trata da vida de milhões de pessoas. Assumimos o risco e felizmente hoje temos uma excelente vacina que é a base do programa nacional de imunização nesse momento.

Em que momento o senhor teve a certeza de que a vacina desenvolvida pela empresa Sinovac funcionaria? 

No momento em que recebemos os resultados dos estudos pré-clínicos e clínicos de fase 1 e 2 que já demonstravam o grande potencial da vacina. Passou-me pela cabeça a grande oportunidade de contribuirmos de forma positiva para dotar o Brasil de uma alternativa viável e tornar-se autossuficiente nessa vacina no momento do maior desafio que o país enfrentava em termos de saúde pública

Como o senhor avalia o movimento antivacina, que já era grande antes da pandemia e agora tem sido turbinado com teorias conspiratórias sobre as vacinas? Como conscientizar as pessoas da importância da vacinação?

O movimento antivacina no Brasil era incipiente até muito recentemente. A postura de autoridades federais negando a sua utilidade e, inclusive, usando de uma campanha subterrânea de fake news e mentiras a respeito da vacina e da própria pandemia vieram a alimentar esse movimento. Recentemente, no entanto, com o início da vacinação, esse movimento sofreu um grande revés e hoje a procura e o apoio à vacina é muito grande. Ao contrário do que alguns esperavam, a vacina se tornou assunto nacional com grande apoio popular que se traduziu inclusive em manifestações da cultura popular como o rap [funk Vacina Butantan, de Mc Fioti].

O senhor declarou à Folha de S. Paulo que nunca existiu interferência política tão grande na saúde pública quanto agora. Como lidar com essas pressões?

A interferência política na saúde pública tem sido uma grande barreira para o combate adequado à epidemia e explica muito a posição do Brasil como vice-campeão mundial em mortes pelo covid-19. A negação da gravidade da pandemia, a disseminação de tratamentos sem comprovação científica, o combate deliberado ao uso de máscaras e às medidas de restrição de circulação são os grandes responsáveis, neste momento, pela segunda onda explosiva que o país está sofrendo e que vai se agravar pela presença da chamada variante P1. Esse obscurantismo científico das mais altas autoridades do país causou um dano irreversível ao país, que ultrapassou as 250 mil mortes, uma catástrofe sem precedentes. A história colocará essa tragédia na conta desses negacionistas. Para o cientista preocupado e engajado como eu nessa luta resta, além de apontar esses absurdos, trabalhar em todas as frentes para minorar o sofrimento da população, inclusive na frente da comunicação e na batalha política da ciência.

A relação com o Ministério da Saúde deveria ser melhor? O que precisaria ser feito para aparar as arestas, principalmente considerando que vivemos uma pandemia?

O Instituto Butantan é o principal fornecedor de vacinas e soros para o Ministério da Saúde, e o nosso relacionamento sempre foi excelente. O ponto fora da curva aconteceu nesse governo que vem negando, por motivos políticos e obscurantistas, essa importância. A despeito dessas barreiras que ocorreram esse ano passado e nesse ano, o Instituto Butantan continua cumprindo o seu papel e é o responsável pelo fornecimento das vacinas para covid-19 que permitiram o inicio da vacinação no Brasil. Sem o Butantan o Brasil não teria vacinado mais de 7 milhões de pessoas. O Butantan entregou mais de 12 milhões de doses até esse momento ao Ministério e continuará como o principal fornecedor por muito tempo ainda.

Por que a aposta do Butantan foi no sentido de firmar uma parceria internacional em vez de desenvolver uma própria vacina?

O Butantan tem três vacinas [contra covid] em desenvolvimento, mas optou pela parceria inicial para ganhar tempo na incorporação da vacina e permitir o acesso do Brasil mais rapidamente. Não tivéssemos tido os problemas de relacionamento com o governo federal, teríamos vacinas disponíveis desde dezembro de 2020.

Essas vacinas em desenvolvimento não chegarão tarde demais?

As vacinas que o Butantan desenvolve terão seu papel nesta pandemia visto que se prevê que ela venha a se tornar endêmica e possivelmente sazonal como a influenza. Trabalhamos nessa perspectiva e, em 2022, teremos vacina totalmente feita aqui, adicionalmente à vacina feita em parceria com a Sinovac.

Deutsche Welle Brasil, em 01.03.2021

STJ admite, ‘há muito’, decisão sucinta como a de quebra de sigilo de Flávio Bolsonaro, diz relator

Ministro Félix Fischer afirmou que juiz Flávio Itabaiana usou técnica válida para fundamentar abertura de dados bancários e fiscais para o Ministério Público em apuração sobre 'rachadinha'; considerada prova principal da denúncia, quebra foi anulada na 5.ª Turma, após voto de ministro Noronha

A brevidade das palavras do juiz Flavio Itabaiana de Oliveira Nicolau, da 27.ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, no decreto em que quebrou o sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro (Republicanos/RJ) e de outras 94 pessoas – todos suspeitos de desvio milionário na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) – foi o que motivou a 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a anular a prova principal da denúncia criminal contra o filho mais velho do presidente, Jair Bolsonaro.

No sucinto despacho, o magistrado do Rio usou uma técnica jurídica que “há muito, é admitida” pelo STJ para fundamentar a decisão. É o que defendeu o ministro Félix Fischer, relator do processo no STJ.

O Zero Um é acusado pelo Ministério Público do Rio de crimes de peculato, lavagem de dinheiro e de liderar uma organização criminosa. Considerado juiz linha-dura, Itabaiana atuou no caso das “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro de 2018 – ano de início das apurações – até julho de 2020.

O processo foi retirado da 27.ª Vara Criminal, após a defesa obter vitória no Tribunal de Justiça do Rio, que concedeu foro privilegiado ao ex-deputado e e enviou para a segunda instância a apuração. Decisão tomada dias após o MP prender o operador e estopim do esquema, Fabrício Queiroz – policial militar aposentado, ex-assessor na Alerj e amigo do presidente.

A 5ª Turma do STJ anulou a quebra de sigilo por 4 votos a 1, na última terça-feira, 23, em decisão encabeçada pelo ministro João Otávio de Noronha, ue derrubou o entendimento do relator do caso –  que seguiu a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Tribunal de Justiça do Rio.

Noronha acatou argumentou da defesa de Flávio Bolsonaro, de que o despacho do juiz Flávio Itabaiana – de abril de 2019 – é nulo, pois “falta de fundamentação da decisão do juiz”. A defesa alegou que o a decisão “não teria passado de um parágrafo, não fez referência ao caso concreto nem indicou importância da medida para as apurações nem mesmo sua urgência”. Argumentos levados ao colegiado pelo advogado e conselheiro da família Bolsonaro Frederick Wassef, encampados por Noronha e seguidos pelos ministros Reynaldo Soares da Fonseca, Ribeiro Dantas e José Ilan Paciornik.

“Ele (o juiz Flávio Itabaiana) afasta o sigilo de 95 pessoas, cada investigado tem uma situação, numa decisão de duas linhas. Em verdade, o magistrado não se deu ao trabalho de adotar de forma expressa as razões do pedido (do Ministério Público), apenas analisou os argumentos, concluindo que a medida era importante. Apenas isso. A decisão é manifestamente nula”, criticou Noronha, ao ler seu voto na sessão de terça-feira.

Com a decisão, a 5.ª Turma anulou o despacho da primeira instância e mandou retirar os dados da quebra do processo. Alinhado ao Palácio do Planalto, Noronha tem um perfil garantista, mais propenso a ficar do lado de investigados – e tem sido criticado, nos bastidores, por tentar se cacifar para a vaga que será aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) em julho.

‘Per relationem’. Flávio Bolsonaro passou a ser investigado no MP do Rio em fevereiro de 2018. A quebra dos sigilos fiscais e bancários dos investigados foi decretada em abril de 2019, por Itabaiana. A decisão curta remete os fundamentos aos elementos apresentados no pedido de quebra feito pela Promotoria.

“Compulsado os autos, ou seja, analisando os argumentos expedidos pelo Parquet (Ministério Público) na petição inicial de folhas 02/87 e examinando os anexos constantes da mídia digital de folha 88, verifica-se que o afastamento dos sigilos bancário e fiscal é importante para a instrução do procedimento investigatório criminal”, escreve o juiz no decreto – agora anulado pela 5.ª Turma.

A técnica é chamada de fundamentação “per relationem“. Nela, o magistrado pontua no despacho sua motivação remetendo ou fazendo referência às alegações da parte – no caso, o Ministério Público, ou até mesmo a decisão anterior nos autos do mesmo processo.

O relator do caso no STJ, Felix Fischer foi voto vencido. Ele foi contra os argumentos da defesa de Flávio Bolsonaro e registrou, em decisão anterior, que era “importante ressaltar que a técnica da fundamentação per relationem, utilizada na primeira decisão, há muito, é admitida por este Tribunal Superior”.

O ministro destaca que Itabaiana usou a remissão, “chamada de fundamentação per relationem“, em que se refere aos fundamentos que deram suporte ao pedido do Ministério Público ou até mesmo a anterior decisão. Lembrou que a técnica visa economia processual e “constitui meio apto a promover a forma incorporação, ao ato decisório, da motivação a que ele se reportou como razões de decidir”.

O relator das “rachadinhas” no STJ listou também em despacho de abril de 2020 casos de julgamentos anteriores, inclusive da 5.ª Turma e de seus membros, em que a técnica per relationem foi aceita. Citou ainda entendimento do STF, em outros casos, que a técnica foi aceita.

Pesquisadores de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) levantaram que apenas 3 de 29 decisões da 5.ª Turma, tomadas em casos semelhantes ao do senador Flávio Bolsonaro, foram similares à da que derrubou a prova principal da denúncia, conforme reportagem do Estadão. O levantamento foi feito no banco de dados da Corte, e se referem ao período entre 1.º de janeiro de 2020 a 24 de fevereiro de 2021.

PGR. Fischer destacou também manifestação “esclarecedora” do sub-procurador-geral da República Roberto Luís Oppermann Thomé, em parecer do caso, em que considerou inexistente qualquer “constrangimento ou ilegalidade/nulidade” nas decisões” do juiz da primeira instância.

“As movimentações bancárias suspeitas na conta do investigado Fabrício Queiroz configuram fortes indícios de que assessores ligados ao co-investigado Flávio Bolsonaro faziam transferências bancárias ou sacavam mensalmente parte de seus próprios vencimentos e os repassavam em espécie a Fabrício Queiroz, configurando-se prática criminosa conhecida no meio político por ‘Rachadinha’, ‘Rachid’ ou ‘Esquema dos Gafanhotos’, ou seja, prática em tese de peculato.”

Para Fischer, a decisão de Itabaiana foi tomada com “amparo em fortes indícios de materialidade e autoria de crimes, inclusive, com a suposta formação de associação criminosa, com alto grau de permanência e estabilidade, envolvendo dezenas de pessoas”. “Não bastasse, a imprescindibilidade da medida de quebra de sigilo foi muito bem explicada na segunda decisão” de Itabaiana.

O juiz expediu novo despacho na época, em que registrou que o “afastamento dos sigilos bancário e fiscal” citados “é imprescindível para o prosseguimento das investigações”. “Pois somente seguindo o caminho do dinheiro é possível o Ministério Público apurar os fatos que estão sendo investigados, não havendo outros meios menos gravosos de averiguar o contexto fático.”

Denunciado. Flávio Bolsonaro, seu ex-assessor Fabrício Queiroz e outras 15 pessoas foram denunciadas em novembro. A derrota desta semana na 5.ª Turma do STJ foi considerada o pior revés das apurações do MP do Rio contra o senador. A decisão invalida o decreto de quebra de sigilo de Itabaiana, o uso dos dados obtidos e toda prova colhida à partir deles. No processo, enfraquece substancialmente a denúncia, mas não anula por completo o caso, segundo autoridades ligadas ao caso ouvidas em reservado.

No pedido de quebra de sigilo feito ao juiz da 27ª Vara Criminal do Rio, o MP lista todos os elementos colhidos até aquele momento que justificavam a necessidade do pedido.

“Diante dos desafios inerentes à compartimentalização da cadeia de comando em crimes desta espécie, a identificação das lideranças do núcleo político e de outros possíveis integrantes dos núcleos operacional e executivo, bem como a descoberta do destino final dos recursos desviados demandará, dentre outros meios de prova, o afastamento dos sigilos bancário e fiscal dos envolvidos”, registra o MP.

O pedido de quebra, que tem 87 páginas e uma série de anexos que foram analisados pelo juiz e mencionados como referência para sua decisão, lista os elementos colhidos até ali que indicavam as práticas de crimes e a necessidade de se obter os dados. Entre elas as movimentações financeiras suspeitas entre assessores, constante em relatório do Coaf, revelado pelo Estadão, que apontou movimentação atípica de R$ 1,2 milhão em uma conta de Queiroz, informações suspeitas prestadas pelo ex-assessor, transações imobiliárias suspeitas.

O Ministério Público do Rio informou em nota que ‘analisará as medidas’ a serem adotadas, depois que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou a quebra dos sigilos bancário e fiscal do filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Em entrevista à imprensa, após o julgamento de terça no STJ, o advogado Frederick Wassef e Flávio Bolsonaro afirmaram que o colegiado fez o que diz a lei e que toda apuração do MP do Rio foi invalida, assim como a decisão do juiz da 27.ª Vara Criminal. “Isso é absolutamente ilegal”, disse Wassef.

O senador disse que a corte reconheceu aquilo que ele e sua defesa afirmam desde o início do caso, de que ele era alvo de uma perseguição. Falou em conluio entre promotores e o juiz Flávio Itabaiana, sugerindo que ele tinha interesses políticos. “Pode me investigar a vontade. Agora, não dá para rasgar a lei.”

Ricardo Brandt e Fausto Macedo. publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 27 de fevereiro de 2021.

 

José Roberto Nalini: Uma democracia precária

 Assim não se aprimora o quadro democrático. Ao contrário: tudo parece encaminhar-se para uma radicalização que pode terminal bem mal. Já se ouvem vozes clamando por ordem, disciplina, cessação da bagunça generalizada. Isso é chamar o autoritarismo, que já ensaia sua entronização, atuando pelas bordas.

José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO

Em 17.4.1995, o jornal italiano “La Stampa” trazia um artigo de Norberto Bobbio cujo título era “A democracia precária”.

Interessante observar como um quarto de século depois, a impressão que Bobbio tinha da Itália de seu tempo guarda analogia com o Brasil deste 2021. Ele dizia: “Também nestes dias se disse que, para levar nosso país a uma democracia completa, isto é, em direção ao bipartidarismo perfeito, é necessário ir além do fascismo e do comunismo, inimigos mortais, entre os quais não pode existir alternativa”.

Parece exatamente a situação brasileira, ressalvado o fenômeno bizarro de que temos quase quarenta partidos e que os nanicos, que só existem para favorecer seus dirigentes e fazer conchavos, queiram ganhar sobrevivência e perpetuidade.

A polarização nacional antepõe em arenas belicosas os “fascistas” contra os “comunistas”. Não há uma terceira via. Tudo vai recair nesse binômio fatídico. Quem não está com a pauta conservadora, é comunista. Quem não adota o esquerdismo mais racial é fascista.

Há ridículo de parte a parte. O retrocesso na mentalidade política é manifesto. O muro de Berlim caiu em 1989. O fascismo foi derrotado na primavera de 1945. Mas as consciências absorveram a seiva que alimentou esses movimentos e não conseguem sair do confronto.

Assim não se aprimora o quadro democrático. Ao contrário: tudo parece encaminhar-se para uma radicalização que pode terminal bem mal. Já se ouvem vozes clamando por ordem, disciplina, cessação da bagunça generalizada. Isso é chamar o autoritarismo, que já ensaia sua entronização, atuando pelas bordas.

O próprio Norberto Bobbio deu uma receita de democracia: “Repetimos incessantemente que o ABC da democracia consiste no fato de que os dois concorrentes na competição livre para governar o país se considerem não dois inimigos, mas dois adversários, dos quais um reconhece ao outro o direito de estar no governo por um limitado período de tempo após ter vencido as eleições”.

Não é o que acontece aqui. Vários fatores impedem a experiência de uma verdadeira Democracia. O primeiro é a pulverização partidária. Não é possível existam mais de quarenta ideologias, para legitimar a formação de partidos. O que existe no Brasil é o aproveitamento de ineficácia da legislação para que grupelhos se intitulem portadores de uma parcela da vontade nacional e se autodenominem partidos. Com isso, legitima-se o acesso aos nefastos Fundo Partidário e Fundo Eleitoral. Pessoas sobrevivem durante décadas, vivendo às custas do povo que sustenta essa fantasia.

Outra, é o maldição da reeleição. Mal reconhecido pelo próprio primeiro beneficiado por ela, o Presidente Fernando Henrique Cardoso. A partir da implementação da possibilidade de mais um mandato, o primeiro dia do primeiro mandato já é uma articulação com vistas aos próximos quatro, depois de encerrado o primeiro.

Essa chaga acaba com a possibilidade de uma vida democrática digna. Para se reeleger, o candidato à reeleição vende sua alma. O pior é que vende também a alma de quase todos os brasileiros.

O terceiro fator é a ignorância. Um país de analfabetos, não apenas aqueles que não conseguem extrair verbetes da junção de letras. Mas os analfabetos funcionais, que não sabem o que leram, embora possam ler ou pelo menos titubeiem palavras, uma tropeçando na outra.

Há um analfabetismo digital, dos que não conseguiram adentrar à realidade da Quarta Revolução Industrial e vão ficar cada vez mais alienados de tudo o que acontece no Brasil e no mundo.

E a vasta legião dos iletrados. Mesmo os que superaram as barreiras do analfabetismo em sentido estrito, do analfabetismo funcional, do analfabetismo digital, não conseguem ler. E por não lerem, não conseguem pensar com clareza. Não têm discernimento para distinguir o que acontece ou não no seu país e no planeta.

Por isso é que o “fla-flu” do fascismo versus comunismo consegue manter as massas iludidas. Cada qual achando que está protegendo a Nação, sua família, sua descendência, impedindo que tudo caia sob o domínio de Satã, que é o inimigo. Enquanto isso, não se habilita a nova idade, o conjunto dos millenials, os nativos digitais, a se interessarem por política. Pela política da qual não podemos fugir, pois está distante a utopia de uma sociedade tão civilizada, tão humana e tão racional, que prescindisse do monopólio da força entregue a seres humanos que quase nunca sabem servir-se adequadamente dela.

Comunismo e fascismo são rótulos fáceis de se aplicar a quem quer que não pense como a gente. Mas existem muito mais na imaginação fértil e pouco iluminada de quem não quer acordar para a urgência de uma ação firme, coordenada e lúcida, que só pode partir dos verdadeiros donos do poder: os cidadãos.

José Renato Nalini, o autor deste artigo, é Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e Presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022. Publicado originalmente em      28.02.2021 n'O Estado de São Paulo.  

Para Tasso Jereissati, CPI é teste da autonomia de Pacheco

Senador tucano cobra do presidente da Casa a instalação de comissão para apurar a conduta do governo na pandemia

O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) pressiona o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a instalar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a conduta do presidente Jair Bolsonaro na crise de covid-19. O senador é um dos autores do pedido para abertura da investigação no Congresso que vai apurar a condução do combate à pandemia por autoridades públicas, incluindo o chefe do Planalto.

A instalação depende de Pacheco, apoiado por Bolsonaro na eleição para o comando da Casa e também pela oposição. “Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro” afirmou o tucano em entrevista ao Estadão.

Segundo Tasso, objetivo da CPI não é punir, mas tentar frear ‘insanidade’ do governo na condução da pandemia  Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO

Na sexta-feira passada, Bolsonaro visitou as obras de duplicação da BR-222, em Caucaia (CE), e, mais uma vez, cumprimentou simpatizantes sem respeitar as medidas de contenção da covid-19, na semana em o que País atingiu novo recorde diário de mortes pela doença. “É preciso parar esse cara”, disse Tasso. A aglomeração ocorreu após o governador do Estado, Camilo Santana (PT), decretar toque de recolher e reduzir o funcionamento de atividades em função do avanço do novo coronavírus. Confira os principais trechos da entrevista:

Como o senhor avalia a recente visita do presidente Jair Bolsonaro ao Ceará?

Dois dias antes, o governador e o secretário da saúde anunciaram toque de recolher e outras medidas. Tudo isso porque estamos pertinho do colapso e com tendência de crescimento da pandemia muito grande. Chega o presidente aqui e vai a um município, junta gente, aglomera gente sem máscara, depois vai para outro e conclama a população a sair de casa. Além de conclamar, joga uma ameaça: aquele governador que fechar agora tem que pagar o auxílio emergencial. É um esforço enorme para conscientizar a população e o cara vem e conclama o contrário. 

Por que o senhor defende a instalação da CPI no Senado?

Estou pedindo ao Senado, com receio de que teremos dificuldade porque não sei qual vai ser a posição do presidente Rodrigo Pacheco, que instale a CPI da covid-19. Ele colocou meio na gaveta, fez aquela audiência com Pazuello, que foi um desastre, para empurrar com a barriga. É preciso parar esse cara (Bolsonaro). O intuito da instalação da CPI não é nem para punir, mas é para pelo menos parar essa insanidade. Por ser presidente da República, não pode conclamar a população inteira a correr risco de morte sem nenhum tipo de punição.

Que medida prática a CPI faria? Pode encaminhar uma denúncia ao Ministério Público?

Denúncia ao Ministério Público. Primeiro, há crime contra a saúde pública, isso é claro. Segundo, há crime contra a federação, porque está conclamando a população a fazer o contrário do decreto de um governador do Estado e ainda ameaçando governadores que fizerem isso. 

O senhor advoga a tese do impeachment?

Eu só quero parar com isso, que o presidente caia em si. Acho que impeachment vai criar uma crise sem tamanho. E, outra coisa, ele tem seguidores. Vai piorar a coisa. Temos que conscientizar o presidente pelos seus puxa-sacos que isso tem consequências legais e ele vai ter que pagar por isso um dia. Não é assim. Dentro da CPI da covid-19, vamos levantar quem é responsável. 

O presidente do Senado está segurando a CPI. Qual é a viabilidade de ele autorizar?

O pedido de CPI está na mesa do presidente do Senado com as assinaturas. O que eles podem fazer é pedir que senadores retirem assinaturas. Se não, vai ser mais cedo ou mais tarde obrigado a implantar. Esse vai ser o grande teste do Rodrigo, se ele realmente é independente como está dizendo – e eu espero que seja – ou se para ganhar se comprometeu até à alma com o Bolsonaro.

O senhor acredita que Pacheco será independente? A comissão de acompanhamento que ele autorizou é para empurrar com a barriga?

Estamos com a possibilidade enorme de ter um caos no Brasil inteiro. Eu acredito que o presidente do Senado é um homem que tem consciência disso. A comissão de acompanhamento funciona bem, mas não tem consequência nenhuma. CPI é que mostra que tem consequência. O objetivo da CPI não é criar crise, é mostrar que o presidente da República não pode fazer e dizer o que quer, que tem consequências e que vai ser responsabilizado. 

O funcionamento remoto do Senado em função da covid-19 pode servir como justificativa para não instalar a CPI?

Justificativa não, pode servir de desculpa. Vai ter argumentação de que é difícil fazer virtualmente. A instalação tem de ser já, mesmo remotamente. Não podemos ficar quietos. Não estamos funcionando remotamente para outras coisas de muita responsabilidade? Não tá a PEC Emergencial aí agora? Não tá a PEC da imunidade na Câmara? 

Daniel Weterman, O Estado de São Paulo, em 01 de março de 2021

A decepção com Bolsonaro

Por diferentes motivos, mesmo os crédulos que confiaram nas promessas liberais e modernizantes de Bolsonaro começam a suspeitar que foram enganados.     

O desapontamento com o governo Bolsonaro não é um fato novo. Há quem tenha se desencantado com Jair Bolsonaro em razão, por exemplo, da saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça em abril de 2020. Na ocasião, o ex-juiz da Lava Jato relatou tentativas de interferência por parte do presidente na condução da Polícia Federal. O episódio levou a que muita gente revisse sua ideia sobre a suposta carta branca que Jair Bolsonaro teria dado a Sérgio Moro para o combate à corrupção.

Na semana passada, a interferência de Jair Bolsonaro na presidência da Petrobrás produziu uma nova onda de decepção. Além dos efeitos devastadores sobre a empresa, com prejuízos muito concretos para as centenas de milhares de acionistas minoritários, a ordem para mudar a chefia da empresa consolidou a percepção de que Jair Bolsonaro não tem nenhum compromisso com a agenda liberal proposta na campanha de 2018. Não há mais nem mesmo o cuidado de manter as aparências.

Sempre houve bons motivos para desconfiar da adesão de Jair Bolsonaro a uma pauta de reformas. Basta pensar, por exemplo, que, por mais de duas décadas, a atuação do ex-capitão na Câmara dos Deputados foi oposta a todo o conjunto de reformas anunciado por Paulo Guedes na campanha eleitoral do então candidato do PSL à Presidência da República.

O fato, no entanto, é que muita gente confiou em Jair Bolsonaro: em sua disposição e capacidade de promover uma profunda mudança liberal no Estado brasileiro. A ideia era a de que, sob a batuta de Paulo Guedes, haveria um choque de gestão. O déficit fiscal acabaria, muitas privatizações seriam feitas, o poder público seria mais eficiente e o ambiente de negócios sofreria uma revolução.

“Quando candidato, Bolsonaro falava em privatização, e o ministro Guedes, que é liberal, defendia a tese da redução do tamanho do Estado. Me senti motivado a deixar meus negócios para contribuir com isso”, disse o empresário Salim Mattar ao Estado. De janeiro de 2019 até agosto de 2020, Salim Mattar foi o secretário especial de Desestatização e Privatização do Ministério da Economia.

Hoje, ao falar daquele sonho liberal, Salim Mattar não esconde sua decepção. “O ministro Guedes é resiliente, obstinado e determinado, mas não percebeu que foi vencido. Por exemplo, há quanto tempo a história da Eletrobrás está no Congresso e não consegue autorização?” Como se sabe, a resistência à venda da Eletrobrás não vem apenas do Legislativo. Até a edição da MP 1.031/21, Jair Bolsonaro tinha colocado mais condições do que defendido sua privatização.

Ao avaliar o panorama atual do País, citando, entre outros pontos, o episódio do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) e a mudança no comando da Petrobrás, Salim Mattar não é otimista. “Nós perdemos o foco como país, não vai dar certo, não tem jeito de dar certo. O País precisa de foco para aquilo que é importante para o cidadão”, disse.

Paulo Uebel também não esconde sua decepção com os rumos do governo federal. Segundo o ex-secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, mais do que simplesmente não promover as reformas, o presidente Jair Bolsonaro segue o caminho das administrações petistas. “Isso (a interferência na política de preços da Petrobrás) é uma mudança que vai contra o que foi aprovado nas urnas e aproxima Bolsonaro de práticas que o PT fazia. E isso é o oposto do que o eleitor de Bolsonaro gostaria de ver”, disse Paulo Uebel ao Estado. Em sua avaliação, o resultado da interferência pode ser a “destruição de valor muito grande da empresa, como vimos durante a gestão do PT”.

O abandono de qualquer imagem de governo reformista se dá num momento em que a aprovação de Jair Bolsonaro caiu para 44%, uma queda de oito pontos em quatro meses, de acordo com a pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) em parceria com o Instituto MDA. No período, também diminuiu a avaliação positiva do governo (ótimo e bom) de 41% para 33%. Por diferentes motivos – a irresponsável atuação do governo federal na pandemia é apenas um deles –, mesmo os crédulos que confiaram nas promessas liberais e modernizantes de Bolsonaro começam a suspeitar, ora vejam, que foram enganados.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de São Paulo, em 01 de março de 2021 

Eliana Calmon: O desmanche das instituições

Embora a opinião pública embalasse a Lava Jato, os profissionais do direito, conhecedores do cotidiano dos Tribunais, sempre estiveram atentos ao seu destino e nunca esquecidos do que ocorreu na Itália, onde enterraram a Operação Mãos Limpas e desmoralizaram os seus  integrantes, sendo hoje a Itália, no dizer dos seus nacionais, tão corrupta ou até mais do que era antes da operação.

Eliana Calmon. (Crédito foto: Instituto Não Aceito Corrupção - INAC / Divulgação).

A partir de 1992 o mundo ocidental foi surpreendido com um feito inédito da Justiça: a “Operação Mãos Limpas” que enfrentou os criminosos da “máfia italiana”, infiltrada há anos nas instituições do país,  considerada, à época, a maior investigação destinada a desvendar a engrenagem de corrupção entre políticos e empresários, pondo de cabeça para baixo a política italiana, com 5.000 investigados, 1.300 condenações e sumiço dos dois principais partidos políticos.

O Brasil, nessa época, lutava para implantar as mudanças trazidas com a Constituição Federal de 88, dentre as quais dar nova estrutura à Polícia Federal e ao  Ministério Público Federal, até então despreparados para atender aos desafios de combate à corrupção em um país tradicional e historicamente patrimonialista, onde o interesse público sempre esteve a serviço dos interesses privados das elites política e econômica.

Mas no final do século XX o mundo estava bem diferente: os parceiros comerciais estavam preocupados em estancar a corrupção que tanto prejudicava as relações negociais e exigiam cada vez mais segurança jurídica, enquanto as nações mais desenvolvidas, preocupadas com o terrorismo, incentivavam o combate aos crimes transnacionais, alimentados pelo dinheiro fácil da corrupção.

E o Brasil praticamente foi indiretamente persuadido pelas relações internacionais a ingressar nesse novo quadro da economia globalizada, modernizando a sua defasada legislação anticorrupção e aprovando importantes instrumentos legislativos tais como a Lei de Improbidade Administrativa (1992), a Lei de Combate às Organizações Criminosas (1995), a Convenção Interamericana da OEA (1996), a Lei de Lavagem de Dinheiro (1998), a Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), dentre outras.

Esses ingredientes deram início às primeiras operações  contra os históricos saques aos cofres públicos, com severa atuação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal.

A Justiça Brasileira, infelizmente, muito resistiu às mudanças  estruturais e enfrentou a pós-modernidade de forma acanhada, formal e defasada da realidade, preocupada em manter o seu status de privilégios como “super partes”, perdendo-se no tempo. Praticamente quase todas as operações foram inutilizadas pela prescrição consentida, ou pelo formalismo exacerbado, construído de forma sofisticada pelos grandes escritórios de advocacia, sendo certo que as eruditas teses jurídicas tecidas ao sabor de parcerias elitistas e compadrio não tiveram o poder de esconder uma realidade: os que conseguiram fugir da Justiça nunca foram inocentados dos crimes cometidos, nem obrigados a devolver o que furtaram dos cofres públicos. E com o tempo foram esquecidos, voltando à vida pública.

A única operação que prosperou, fugindo de qualquer prognóstico, foi o Mensalão, em 2005, envolvendo políticos, empresários, banqueiros e o Partido dos Trabalhadores, ao qual pertencia o Presidente da República. Foi um divisor de águas. O que aconteceu?

A resposta ficou gravada nas páginas da história, deixando a receita para todo o Poder Judiciário: a forte atuação do  Ministro Presidente do Supremo à época, institucionalmente comprometido como guardião constitucional, a figura de um destemido Ministro Relator, focado unicamente na técnica, um Ministério Público já fortalecido pelo papel constitucional que lhe foi dado na Constituição Cidadã e no descuido das defesas que, à cargo de uma elite de causídicos, acostumada  às facilidades da processualística, descuidaram-se das provas que, de forma ululante,  saltavam dos autos à primeira vista d”olhos.

O Mensalão foi responsável por um novo momento, em que o Poder Judiciário se reabilitou perante a nação brasileira, devolvendo aos magistrados a autoestima, e valorizando as demais instituições parceiras.         E foi neste clima de democracia nova que em junho de 2013 a população foi para rua exigindo punição para os corruptos e serviço público de qualidade.

Assustados com as manifestações deram os parlamentares um jeito de rapidamente aderirem aos pleitos e às pressas aprovaram uma lei importantíssima que lá dormitava há três anos.

Refiro-me à Lei Anticorrupção, a qual traz no seu contexto dois importantíssimos institutos, já conhecidos do ordenamento jurídico brasileiro, mas só sedimentados com a lei nº 12.846: delação premiada e acordo de leniência.

Assim surgiu a Operação Lava Jato, a maior iniciativa de combate a corrupção e lavagem de dinheiro da história do Brasil. Iniciada em março de 2014, perante a Justiça Federal de Curitiba, conduzida por uma força tarefa do Ministério Público Federal, sob o comando do Procurador da República Deltan Dallagnol, tendo como juiz principal o Dr. Sergio Moro.

Não esquecidos das inúmeras operações anuladas por Tribunais Superiores, dentre as quais 4 delas tidas como emblemáticas (Banestado, Satiagraha, Castelo de Areia e Boi Barrica), cujas decisões, para tirar  os réus das mãos da Justiça, não se acanharam em colidir com decisões precedentes, dos mesmos tribunais, agiram os investigadores com extrema cautela e estratégia. Iniciaram investigando primeiro os  agentes públicos menos graduados, passando depois aos diretores de empresas estatais, em seguida aos  empresários, sendo deixada a empresa Odebrecht, a maior e mais protegida pelos políticos, por último e em um processo em separado, para só ao final chegarem aos políticos de primeira grandeza. Coincidentemente foi quando começou o desmanche da operação.

Embora a opinião pública embalasse a Lava Jato, os profissionais do direito, conhecedores do cotidiano dos Tribunais, sempre estiveram atentos ao seu destino e nunca esquecidos do que ocorreu na Itália, onde enterraram a Operação Mãos Limpas e desmoralizaram os seus  integrantes, sendo hoje a Itália, no dizer dos seus nacionais, tão corrupta ou até mais do que era antes da operação.

Juristas italianos, ao visitarem o Brasil, sempre advertiam. O Dr. Gherardo Colombo, por exemplo, magistrado protagonista da Operação Mãos Limpas, disse em entrevista ao Estadão: “a Justiça sozinha é incapaz de derrotar a corrupção. No mesmo sentido o pensamento da socióloga italiana Donatella Della Porta, foi enfática ao declarar: “O grande erro foi acreditar que o Poder Judiciário conseguiria mudar sozinho o corrupto sistema italiano. Uma transformação significativa necessitava que profunda reforma política fosse feita em paralelo às investigações policiais e às decisões judiciais”.

O esforço derradeiro do juiz Sergio Moro, ao sentir o que se avizinhava, foi tentar na política provocar a mudança que foi capaz de realizar no Judiciário. Lamentavelmente não deu certo, faltou ao Ministro o necessário apoio político, sendo engolido por uma realidade que o fez recuar e reiniciar na trincheira da cidadania, a única capaz de causar uma mudança significativa na política. Afinal está com os cidadãos o poder de mudança pelo voto, o que não é nada fácil,  mas é o único caminho para mudar.

Não são poucos os cidadãos que estão dispostos a lutar pelo pais, pela democracia, pelos seus filhos e netos, principalmente porque no Brasil a hecatombe foi pior do que a da Itália. A nação está sofrendo ataques poderosos vindos de dentro das próprias instituições, na tentativa de desacreditar os órgãos de controle, deixando a cidadania duvidosa, cabisbaixa e amedrontada. Afinal em quem acreditar quando assistimos a mais  alta Corte de Justiça a assim se comportar?

Sem preocupação em construir uma nação, sem assegurar os postulados da Constituição da qual são ou deveriam ser guardiões, a leniência e incoerência de teses jurídicas, julgando ora de uma forma, ora de outra, destrói a segurança jurídica dos jurisdicionados, a hierarquia do Judiciário que os magistrados acostumaram-se a obedecer, fazendo dos juízes órfãos institucionais.

Como profissional do direito e magistrada que fui, por quarenta anos acreditei, e obedeci, tendo os olhos sempre voltados para uma Corte que respeitei até o momento em que, com tristeza, perdi a minha ingenuidade.

Conservo entretanto a minha fé na cidadania e por ela continuo a defender a Lava Jato, até agora o instrumento mais eficaz para proteger uma democracia que sangra com desmanche de suas instituições.

Eliana Calmon foi Ministra do Superior Tribunal de Justiça e Corregedora Nacional de Justiça. Advogada em Brasília e Professora de Direito Público. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de São Paulo (blog do Fausto Macedo), edição de 26.02.2021. 

sábado, 27 de fevereiro de 2021

Ala liberal perde espaço e sobe o tom contra Bolsonaro

Um dos pilares da frente que elegeu o presidente em 2018, o grupo sofreu perdas relevantes no governo e ampliou as críticas ao presidente com intervencionismo na Petrobrás e outras medidas populistas

Nesta semana, em linha com o seu estilo “morde e assopra”, o presidente Jair Bolsonaro resolveu fazer um afago no ministro da Economia, Paulo Guedes, depois de criticar a política de preços da Petrobrás e anunciar a demissão do comandante da empresa, Roberto Castello Branco.

Diante dos rumores de que Guedes poderia deixar o cargo após a dispensa de Castello Branco, um dos expoentes do grupo de liberais que ele levou para o governo, Bolsonaro resolveu tirar da gaveta as privatizações da Eletrobrás, a estatal de geração e transmissão de energia, e dos Correios, defendidas desde sempre pelo ministro.

Política Econômica

Bolsonaro pediu a saída de Roberto Castello Branco, presidente da Petrobrás Foto: Wilton Junior/Estadão

Bolsonaro também procurou mostrar que a percepção de que não está comprometido com a agenda liberal de Guedes – cada vez mais acentuada até entre seus apoiadores – é infundada. “Nossa agenda continua a todo o vapor”, afirmou, ao entregar o projeto de privatização da Eletrobrás ao Congresso, na terça-feira, 23. “Nós queremos, sim, enxugar o Estado, para que a economia possa dar a resposta que a sociedade precisa.”

Guedes, aparentemente, “agasalhou” mais esse revés e deverá continuar por ora a conferir ao presidente o verniz liberal que foi essencial para a sua eleição, em 2018, com a esperança de que ainda receberá o aval do chefe para dar tração às suas propostas. Guedes costuma dizer a seus auxiliares que é “duro na queda” – e, considerando que permaneceu no cargo até agora, apesar das inúmeras “bolas nas costas” que levou de Bolsonaro nos 26 meses de governo – é difícil discordar dele neste aspecto, independentemente do que se pense a seu respeito. Em sua posição, outros, provavelmente, já teriam abandonado o barco por muito menos.

Legado econômico

Com a aproximação das eleições de 2022 e a provável candidatura de Bolsonaro à reeleição, a implementação de medidas que são fundamentais para o País, mas mexem com interesses de todos os tipos, como as privatizações, as reformas, a austeridade fiscal, a abertura econômica e o fim de privilégios setoriais e de categorias profissionais, deverá se tornar cada vez mais difícil. O ministro, porém, parece encarar a sua passagem pelo governo como uma missão e se mostra disposto a enfrentar as adversidades para tentar deixar um legado na economia do qual possa se orgulhar.

“O ministro Paulo Guedes é resiliente, obstinado e determinado, mas não percebeu que foi vencido”, disse recentemente o empresário Salim Mattar, ex-secretário especial de Desestatização, à repórter Cleide Silva, do Estadão. “O presidente está de olho na reeleição e não quer fazer nada que possa prejudicar a sua imagem.”

Política Econômica

Salim Mattar, ex-secretário de Desestatização do Ministério da Economia Foto: Gabriela Biló/Estadão

Batizado de Posto Ipiranga por Bolsonaro durante a campanha eleitoral, o superministro que reuniu quatro pastas sob seu comando – Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento e Trabalho, além da Previdência – está se tornando uma voz cada vez mais solitária no governo. Aos poucos, mas de forma consistente, a ala liberal que ele representa e que foi um dos pilares da frente política que elegeu Bolsonaro, está vendo seu espaço minguar a olho nu. Da equipe de liberais puros-sangues levados por Guedes para Brasília, restam apenas Carlos da Costa, secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia, e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central.

Batida em retirada 

Com a queda de Castello Branco, que faz parte da velha guarda da Universidade de Chicago, o templo do liberalismo global no qual Guedes também se formou, já são cinco os representantes do “núcleo duro” de liberais do governo que ficaram pelo caminho. Isso sem contar os nomes que bateram em retirada, mas tinham um perfil mais técnico e eram profissionais de carreira no setor público, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, ou não faziam parte do círculo mais próximo do ministro.

Além do próprio Castello Branco e de Salim Mattar, que deixou o cargo por não ter conseguido realizar as privatizações em série que pretendia, a lista inclui o ex-secretário especial de Desburocratização, Paulo Uebel, que saiu contrariado com a resistência do presidente em promover uma ampla reforma administrativa, que englobasse os atuais servidores. Inclui ainda o ex-presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, também ex-aluno da Escola de Chicago, que renunciou ao posto dizendo que “é muito difícil para um grupo de liberais trabalhar no ambiente de Brasília”.

Política Econômica

Economista e diplomata Marcos Troyjo foi secretário de Comércio Exterior até julho de 2020 Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Outro integrante da ala liberal que se desligou do governo foi o ex-secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, Marcos Troyjo, que tinha a missão de tocar a abertura econômica desejada por Guedes. Mas, como a abertura não saiu do papel, em razão da influência exercida por representantes do setor industrial junto a Bolsonaro, Troyjo acabou indicado para ocupar a presidência do Conselho de Governadores do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, em inglês), mais conhecido como Banco do Brics (a organização formada por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Rompimento com liberais

Se o presidente do Banco do Brasil, André Brandão, deixar mesmo o posto, como tudo indica, o grupo vai ganhar mais um integrante. Brandão colocou o cargo à disposição na sexta-feira, 25, depois de ser ameaçado de demissão por Bolsonaro, por ter anunciado um programa de redução de custos que previa o fechamento de agências e um plano de demissão voluntária para eliminar 5 mil vagas na instituição.  O episódio, aliado à intervenção na Petrobrás, reforçou o temor de que a guinada de Bolsonaro possa  levar  a um rompimento definitivo com os liberais, culminando com a saída de Guedes do governo.

Política Econômica

Rubem Novaes, predecessor de André Brandão no comando do Banco do Brasil Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Em vez do discurso adotado na campanha, o presidente está resgatando as velhas posturas corporativistas e nacional-desenvolvimentistas, de viés estatizante, que marcaram a sua trajetória política, sem qualquer identificação com as bandeiras defendidas pelos liberais no País.

'Função social'

"O petróleo é nosso ou de um pequeno grupo no Brasil?”, afirmou Bolsonaro, em referência à frase do ex-presidente Getúlio Vargas adotada depois na campanha nacionalista que levou à criação da Petrobrás, nos anos 1950, ao esbravejar contra os seguidos aumentos nos preços dos combustíveis.  “Uma estatal, seja ela qual for, tem de ter visão social”, acrescentou, incorporando um discurso que é o oposto do adotado pela turma de Guedes.

Segundo a visão liberal, a melhor forma de as estatais cumprirem a sua “função social”, é por meio do aumento de eficiência e de produtividade, para gerar mais lucros e mais dividendos para o governo poder aplicar o dinheiro em saúde, educação e segurança. "Os combustíveis são commodities, como o açúcar, o café, o trigo. São commodities cotadas em dólar e seus preços são formados pela oferta e demanda internacional", afirmou Castello Branco, em resposta às críticas de Bolsonaro, durante a apresentação do balanço da Petrobrás no quarto trimestre de 2020, que apontou lucro recorde de R$ 59,9 bilhões. “O preço não é caro nem barato, o preço é preço de mercado. Se o Brasil quer ser uma economia de mercado tem de ter preços de mercado. Não atenderemos aos melhores interesses da sociedade subsidiando os preços dos combustíveis.” 

Ironicamente, os aplausos à intervenção de Bolsonaro na Petrobrás vieram do PT e de outras organizações de esquerda, defensores tradicionais do “papel social” das estatais e principais adversários do presidente. “Não se rendam ao mercado financeiro e aos interesses especulativos”, disse o ex-ministro e ex-senador petista Aloizio Mercadante. “Parem a privatização das refinarias, defendam uma Petrobrás forte e tragam uma política de preços justa para o povo brasileiro, os caminhoneiros e os motoristas de aplicativos.”

'Práticas do PT'

Ao mesmo tempo, representantes da ala liberal, que até ontem ou anteontem reforçavam as fileiras bolsonaristas nas redes sociais, saíram em defesa de Castello Branco. Até o ex-secretário Paulo Uebel, que era um dos homens de confiança de Guedes, decidiu se manifestar.

“Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras, será substituído por estar fazendo o trabalho certo: blindar uma empresa estatal contra o uso político, contra o populismo. As empresas estatais não devem ser usadas para gerar votos. Isso viola os princípios da administração pública e contraria as boas práticas de governança”, afirmou no Twitter.  Depois, em entrevista ao Estadão, Uebel foi além. “A mudança na Petrobrás aproxima Bolsonaro das práticas do PT”, disse. “Isso é o oposto do que o eleitor de Bolsonaro gostaria de ver.”

Política Econômica

Ex-secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, Paulo Uebel Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Um caso relatado pelo economista Gustavo Franco em sua coluna de 27 de dezembro no jornal, ocorrido durante uma visita de Bolsonaro à Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), revela, de forma emblemática, o desapreço que ele confere às ideias e propostas da ala liberal do governo, muitas vezes camuflado por um discurso que pode até “levantar a arquibancada”, mas tem pouco a ver com a realidade.

Segundo os relatos de testemunhas ouvidas por Franco, Bolsonaro afirmou, ao chegar ao palanque armado no local para recebê-lo: “Vocês viram meu projeto econômico liberal por aí? Acho que deixei cair...Não consigo encontrar, é uma coisa pequena”. Em seguida, acrescentou: “Vocês sabem, pode estar em qualquer parte, as reformas liberais estavam todas no mesmo chaveiro...É uma coisinha pequena, mas importante para mim, deve estar jogada no chão, vamos procurar por favor...”.

A troça de Bolsonaro fala por si mesma, mas, para não deixar margem a dúvida, Franco sintetizou o seu real significado no artigo: “A visita-comício na Ceagesp serviu como um marco para assinalar o rompimento público entre o projeto político de Jair Bolsonaro com sua política econômica, declaradamente de livre mercado, uma junção tensa, às vezes descrita como um casamento arranjado”.

Apesar das divergências com Bolsonaro, boa parte da ala liberal que o apoiou em 2018 vinha relativizando os seus pecados até agora. Mas, diante da sucessão de transgressões às crenças do grupo nos últimos tempos, o divórcio dos liberais com Bolsonaro talvez esteja mais próximo do que se poderia imaginar algum tempo atrás e deverá afetar a correlação de forças nas eleições de 2022 e reforçar a busca por uma alternativa política para a disputa.

Polarização política

Salim Mattar, por exemplo, que chegou a ser sondado como candidato do Novo à Presidência em 2018, tem confidenciado a interlocutores do partido que estaria disposto a participar do pleito se houver um posicionamento independente da legenda, que fuja da polarização política entre Bolsonaro e o PT.

“Hoje, não tenho mais confiança na fidelidade de Bolsonaro à agenda liberal”, diz Lucas Berlanza, presidente do Instituto Liberal, uma organização voltada para a difusão das ideias liberais no País. “Imaginava que, para mim, o ponto máximo de decepção com Bolsonaro seria a saída do Paulo Guedes, mas isso não foi necessário para eu chegar lá. Muitos liberais se decepcionarem com o presidente  sem a necessidade de o ministro sair.”

Como líder dos liberais no governo, Paulo Guedes, provavelmente, vai “apagar a luz”. A questão, agora, pelo que se pode observar, não é tanto saber “se” ele vai deixar o governo, mas “quando” o fará. Se a guinada nacional-desenvolvimentista e intervencionista de Bolsonaro se confirmar, o risco de Guedes esticar a sua permanência no cargo e continuar a “engolir sapos” do presidente é ele estar à frente de um exército de um homem só – ele próprio.

José Fucs, O Estado de São Paulo, em 27 de fevereiro de 2021