segunda-feira, 1 de março de 2021

José Roberto Nalini: Uma democracia precária

 Assim não se aprimora o quadro democrático. Ao contrário: tudo parece encaminhar-se para uma radicalização que pode terminal bem mal. Já se ouvem vozes clamando por ordem, disciplina, cessação da bagunça generalizada. Isso é chamar o autoritarismo, que já ensaia sua entronização, atuando pelas bordas.

José Renato Nalini. FOTO: ALEX SILVA/ESTADÃO

Em 17.4.1995, o jornal italiano “La Stampa” trazia um artigo de Norberto Bobbio cujo título era “A democracia precária”.

Interessante observar como um quarto de século depois, a impressão que Bobbio tinha da Itália de seu tempo guarda analogia com o Brasil deste 2021. Ele dizia: “Também nestes dias se disse que, para levar nosso país a uma democracia completa, isto é, em direção ao bipartidarismo perfeito, é necessário ir além do fascismo e do comunismo, inimigos mortais, entre os quais não pode existir alternativa”.

Parece exatamente a situação brasileira, ressalvado o fenômeno bizarro de que temos quase quarenta partidos e que os nanicos, que só existem para favorecer seus dirigentes e fazer conchavos, queiram ganhar sobrevivência e perpetuidade.

A polarização nacional antepõe em arenas belicosas os “fascistas” contra os “comunistas”. Não há uma terceira via. Tudo vai recair nesse binômio fatídico. Quem não está com a pauta conservadora, é comunista. Quem não adota o esquerdismo mais racial é fascista.

Há ridículo de parte a parte. O retrocesso na mentalidade política é manifesto. O muro de Berlim caiu em 1989. O fascismo foi derrotado na primavera de 1945. Mas as consciências absorveram a seiva que alimentou esses movimentos e não conseguem sair do confronto.

Assim não se aprimora o quadro democrático. Ao contrário: tudo parece encaminhar-se para uma radicalização que pode terminal bem mal. Já se ouvem vozes clamando por ordem, disciplina, cessação da bagunça generalizada. Isso é chamar o autoritarismo, que já ensaia sua entronização, atuando pelas bordas.

O próprio Norberto Bobbio deu uma receita de democracia: “Repetimos incessantemente que o ABC da democracia consiste no fato de que os dois concorrentes na competição livre para governar o país se considerem não dois inimigos, mas dois adversários, dos quais um reconhece ao outro o direito de estar no governo por um limitado período de tempo após ter vencido as eleições”.

Não é o que acontece aqui. Vários fatores impedem a experiência de uma verdadeira Democracia. O primeiro é a pulverização partidária. Não é possível existam mais de quarenta ideologias, para legitimar a formação de partidos. O que existe no Brasil é o aproveitamento de ineficácia da legislação para que grupelhos se intitulem portadores de uma parcela da vontade nacional e se autodenominem partidos. Com isso, legitima-se o acesso aos nefastos Fundo Partidário e Fundo Eleitoral. Pessoas sobrevivem durante décadas, vivendo às custas do povo que sustenta essa fantasia.

Outra, é o maldição da reeleição. Mal reconhecido pelo próprio primeiro beneficiado por ela, o Presidente Fernando Henrique Cardoso. A partir da implementação da possibilidade de mais um mandato, o primeiro dia do primeiro mandato já é uma articulação com vistas aos próximos quatro, depois de encerrado o primeiro.

Essa chaga acaba com a possibilidade de uma vida democrática digna. Para se reeleger, o candidato à reeleição vende sua alma. O pior é que vende também a alma de quase todos os brasileiros.

O terceiro fator é a ignorância. Um país de analfabetos, não apenas aqueles que não conseguem extrair verbetes da junção de letras. Mas os analfabetos funcionais, que não sabem o que leram, embora possam ler ou pelo menos titubeiem palavras, uma tropeçando na outra.

Há um analfabetismo digital, dos que não conseguiram adentrar à realidade da Quarta Revolução Industrial e vão ficar cada vez mais alienados de tudo o que acontece no Brasil e no mundo.

E a vasta legião dos iletrados. Mesmo os que superaram as barreiras do analfabetismo em sentido estrito, do analfabetismo funcional, do analfabetismo digital, não conseguem ler. E por não lerem, não conseguem pensar com clareza. Não têm discernimento para distinguir o que acontece ou não no seu país e no planeta.

Por isso é que o “fla-flu” do fascismo versus comunismo consegue manter as massas iludidas. Cada qual achando que está protegendo a Nação, sua família, sua descendência, impedindo que tudo caia sob o domínio de Satã, que é o inimigo. Enquanto isso, não se habilita a nova idade, o conjunto dos millenials, os nativos digitais, a se interessarem por política. Pela política da qual não podemos fugir, pois está distante a utopia de uma sociedade tão civilizada, tão humana e tão racional, que prescindisse do monopólio da força entregue a seres humanos que quase nunca sabem servir-se adequadamente dela.

Comunismo e fascismo são rótulos fáceis de se aplicar a quem quer que não pense como a gente. Mas existem muito mais na imaginação fértil e pouco iluminada de quem não quer acordar para a urgência de uma ação firme, coordenada e lúcida, que só pode partir dos verdadeiros donos do poder: os cidadãos.

José Renato Nalini, o autor deste artigo, é Reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e Presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022. Publicado originalmente em      28.02.2021 n'O Estado de São Paulo.  

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