sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Enfraquecimento da Lei da Ficha Limpa é retrocesso

Lula deve vetar mudança que dilui poder da legislação criada para coibir a influência de criminosos na política

Congresso Nacional, em Brasília — Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

Com todas as atenções voltadas para o julgamento da tentativa de golpe de Estado no Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso aproveitou para enfraquecer a Lei da Ficha Limpa, em benefício de políticos condenados pela Justiça. Por 50 votos a 24, o Senado referendou o texto, já aprovado pela Câmara, reduzindo a eficácia da lei. Pela nova regra, os oito anos de inelegibilidade impostos a políticos ficha-suja passam a ser contados a partir de sua condenação por tribunal ou órgão colegiado — e não mais do final do cumprimento da pena.

Também foi estabelecido o limite de 12 anos para o tempo que o político ficha-suja ficará proibido de disputar cargos eletivos. O novo texto ainda determina que, para a punição valer em casos de atos de improbidade, será preciso comprovar o dolo. E amplia de quatro para seis meses o período de desincompatibilização de candidatos oriundos de Ministério Público, Defensoria Pública, Forças Armadas e polícia. Todas essas medidas são nocivas. É sintomático que o projeto tenha tramitado em regime de urgência, sem passar por comissões nem ser discutido em audiências públicas.

De acordo com os defensores das mudanças, a intenção é limitar ao máximo de oito anos o afastamento de políticos das urnas. “Está no texto da lei: oito anos. Não pode ser nove, nem 20”, disse o presidente do senado, Davi Alcolumbre (União-AP), ao votar a favor. Na prática, o Legislativo restringiu ao mínimo o poder de dissuasão da lei sobre políticos condenados pela maioria dos crimes comuns.

Tome-se o caso do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, cassado em 2016 por quebra de decoro, pois mentiu à CPI da Petrobras em 2015, ao garantir que não tinha contas bancárias secretas na Suíça. Sua inelegibilidade, pelas regras anteriores, se estenderia até os anos 2040. Com o enfraquecimento da lei, ele tem chance de se candidatar já nas eleições do ano que vem (o projeto aprovado pelo Senado foi apresentado à Câmara pela deputada fluminense Dani Cunha, do União, filha de Eduardo Cunha). Entre dezenas de outros beneficiados, estão também os ex-governadores Anthony Garotinho (RJ) e José Roberto Arruda (DF).

A Lei da Ficha Limpa resultou de uma proposta de iniciativa popular que coletou mais de 1,6 milhão de assinaturas. Sempre esteve na mira dos políticos. Sua constitucionalidade foi garantida pelo STF em 2012 e, cinco anos depois, a Corte decidiu que os oito anos de inelegibilidade seriam contados a partir do final do cumprimento da pena recebida na sentença que enquadra o político na Lei da Ficha Limpa. Foi uma decisão correta, pois não faz sentido que a segunda punição, de caráter eleitoral, seja absorvida pela sentença que serviu de base ao enquadramento do condenado.

É certo que a mudança aprovada pelo Congresso não se aplica a condenados por crimes hediondos ou graves, como lavagem de dinheiro ou tráfico de drogas. Mas isso não atenua o erro do Parlamento. É fundamental que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vete as mudanças na íntegra. É o mínimo que a população exige para que a política não se transforme em porto seguro para criminosos condenados.

Editorial d'O Globo, em 05.09.25

Momento decisivo para a direita liberal

A democracia brasileira precisa de uma direita liberal inequivocamente democrática

Brasil não é quinta nem quintal

Há quem alimente a expectativa de que, condenado Bolsonaro, a direita democrática ressurja com autonomia em relação ao ex-presidente. Tomara, mas os fatos até aqui não apontam nessa direção.

Razões para marcar com clareza a diferença com o bolsonarismo jamais faltaram. Faltou, sim, coragem. Nem sempre foi assim. No passado, liberais-conservadores assumiram riscos que a prudência convencional não recomendava. Em 1968, Djalma Marinho, deputado federal pela Arena, presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, se recusou a colocar em votação a autorização para que Márcio Moreira Alves, deputado federal do MDB, fosse cassado pelos militares. Marinho – não o neto, hoje líder da oposição no Senado, mas o avô – arriscou seu futuro político. Não evitou a decretação do AI-5, mas ganhou a autoridade moral que distingue as grandes figuras públicas.

Nenhum dos quatro governadores de direita que postulam a condição de substituto de Bolsonaro parece ser feito desse material. São políticos adaptativos, que se movem por cálculos eleitorais de curto prazo. Nada de surpreendente, no panorama geral da política brasileira. Mesmo o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que tem estofo e trajetória suficientes para se colocar um degrau acima, prefere adotar pose não “beliscosa”, neologismo recém-criado por seu insuperável colega Romeu Zema, governador de Minas Gerais. A rigor, a questão não é ser ou não belicoso, mas, sim, minimamente congruente: quem se diz democrata não pode prometer indulto a quem tramou para subverter a democracia.

O conservadorismo liberal hoje no Brasil opera segundo uma premissa falaciosa: Lula seria pior que Bolsonaro, no máximo igual a ele, o que serve de justificativa para a proximidade com o ex-presidente com vistas a derrotar o atual. Quem se diz democrata não pode sustentar essa premissa. Nunca fui petista ou lulista, mas os fatos desmontam a falácia: Lula sempre se submeteu ao resultado nas várias eleições que perdeu (uma para o governo de São Paulo e três para a Presidência da República); jamais buscou fazer das Forças Armadas um instrumento para se perpetuar no poder; respeitou o limite de uma reeleição consecutiva, quando tinha apoio suficiente para emendar a Constituição e eleger-se pela terceira vez consecutiva; nunca instigou potência estrangeira a prejudicar o Brasil para salvar a própria pele.

Sei que o argumento para não romper com Bolsonaro é racional. Faz sentido não brigar com um líder que comanda um partido digital de alto teor destrutivo e forte influência sobre o voto de pelo menos 20% do eleitorado. A mesma racionalidade, porém, leva à conclusão de que o custo da servidão ao bolsonarismo é crescente. Financiado pelo pai e estimulado por acólitos da extrema direita, Eduardo Bolsonaro prestou um favor a Lula. Ao que tudo indica, seu exílio voluntário nos Estados Unidos entrará para os anais como um dos maiores erros políticos da história brasileira dos últimos 40 anos.

O filho 03 do ex-presidente parece disposto a levar sua aventura às últimas consequências. Continua a instigar a escalada do ataque estadunidense à soberania nacional para alcançar um de dois objetivos: uma anistia, arrancada a fórceps, que permita ao pai concorrer à Presidência em 2026, hipótese improvável, que significaria fazer vistas grossas à trama golpista capitaneada por Bolsonaro, concedendo ampla, geral e irrestrita impunidade a ele e seus liderados; ou uma intervenção estrangeira no processo eleitoral para distorcê-lo ou deslegitimá-lo. Tanto um como outro objetivo representam a continuação da tentativa de golpe de Estado frustrada anteriormente.

Desgastada pela associação com o regime autoritário, a direita no Brasil levou mais de 30 anos para ser competitiva nas eleições presidenciais pelo voto direto. Entre 1985 e 2018, salvo pela eleição e breve presidência de Collor, ela foi ator coadjuvante nas disputas pelo Palácio do Planalto. Em 2019, chegou à Presidência em democracia, sob o comando de um mau ex-militar, notório agitador de quartéis, e parlamentar do baixo clero, inexpressivo em tudo, exceto pela linguagem chula e agressiva na defesa da ditadura e de torturadores.

Bolsonaro deu à direita o que até então lhe faltara: votos numa eleição que é essencialmente plebiscitária. Mas submeteu-a a uma chantagem. Por pensar e agir exclusivamente como chefe absoluto de um clã familiar que não leva em consideração a não ser os seus próprios interesses, ameaça castigar quem não se submeta aos seus desejos e desígnios. Sabendo-se irremediavelmente condenado pelos crimes que cometeu, só lhe interessa agora salvar a si mesmo, não importa o preço para o País nem para o futuro da direita no pós-Bolsonaro.

A democracia brasileira precisa de uma direita liberal inequivocamente democrática. Ela vive agora um momento decisivo, que a marcará pelo futuro previsível. Terá a coragem necessária para romper com o bolsonarismo e se erguer à altura dessa oportunidade histórica?

Sergio Fausto, o autor deste artigo, é o Diretor-Geral da Fundação FHC e membro do Gacint-USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.09.25

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Honorários bilionários na AGU

É preciso acabar com o repasse de pagamentos feitos por partes vencidas em processos a advogados públicos

Riscos justificam honorários de sucumbência no setor privado; no público, o Estado já financia o trabalho e servidores têm estabilidade

Fachada da Advocacia-Geral da União, em Brasília (DF) - Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Num país com renda média do trabalho na casa dos R$ 3.400 mensais e teto do funcionalismo de R$ exatos R$ 46.366, é inconcebível que carreiras do sistema de Justiça usem manobras legais para obter remunerações que, por vezes, chegam aos seis dígitos.

O exemplo escandaloso mais recente se dá na Advocacia-Geral da União (AGU). Em janeiro deste ano, pouco mais de 12 mil membros do órgão receberam R$ 1,7 bilhão referente a honorários de sucumbência. Em julho, foram mais R$ 2,3 bilhões. Somando-se os demais meses, esses advogados públicos receberam um total de R$ 5 bilhões no período.

A média dos repasses em julho ficou em R$ 192 mil por servidor beneficiado, sendo que quase metade do grupo ganhou valores próximos a R$ 310 mil —caso do ministro Jorge Messias, chefe da AGU, com R$ 307,9 mil.

Honorários de sucumbência, valores pagos pela parte perdedora num processo à parte vencedora, fazem sentido no setor privado, dados os riscos assumidos por advogados e escritórios.

No setor público, constituem uma insensatez que atenta contra a moralidade administrativa, pois o Estado já financia toda a estrutura necessária ao trabalho, sem contar a estabilidade e os benefícios do funcionalismo.

Honorários de sucumbência para advogados da AGU e procuradores da Procuradoria-Geral Federal, da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e do Banco Central foram instituídos por uma lei de 2016, que foi validada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Isso não torna a prática aceitável nem torna o dinheiro público bem empregado. As verbas poderiam ser usadas em áreas prioritárias, em vez de turbinar a conta bancária de servidores.

Os pagamentos são realizados pelo Conselho Curador dos Honorários Advocatícios (CCAH), uma entidade de natureza privada, cujos conselheiros também são beneficiados pelos recursos. De 2017 a 2014, o CCHA recebeu R$ 15,8 bilhões da União.

Tais honorários de sucumbência podem criar incentivos nefastos, ao fazer com que profissionais do serviço público direcionem atenção a processos que tragam maior retorno financeiro.

A reforma administrativa em gestação na Câmara dos Deputados poderá promover alterações em fundos privados de advogados públicos, entre outras medidas para conter supersalários. Há grande risco, porém, de que lobbies e corporativismo detenham a empreitada.

De todo modo, é imperativo abrir caminho para eliminar essa prática nada republicana que atenta contra o erário.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 03.09.25 (edição impressa) / editoriais@grupofolha.com.br

Acordo por anistia a golpistas é pornográfico

Urdida nos subterrâneos do Congresso, uma eventual impunidade para os acusados de tramar um golpe de Estado ora em julgamento no STF é juridicamente teratológica e moralmente inaceitável

O julgamento da Ação Penal (AP) 2.668 mal havia começado quando, a alguns passos do Supremo Tribunal Federal (STF), caciques partidários e autoridades do Congresso, aos quais se juntou o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, já articulavam um pornográfico acordo político para aprovar um projeto de lei de anistia. O contraste é gritante: enquanto o STF exercia seu dever de julgar suspeitos de atentar contra a ordem constitucional democrática, a elite política do País trabalhava para neutralizar a eventual punição dos que vierem a ser condenados por trair o pacto republicano. Anistiá-los não é só uma iniciativa juridicamente teratológica – é moralmente inaceitável.

A monstruosidade desse conchavo salta aos olhos. Admitir a constitucionalidade de uma anistia para réus acusados de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, entre outros crimes, implica admitir que a Constituição conteria um dispositivo de autodestruição. Ademais, cogitar de anistia, a essa altura, é um artifício político para livrar Jair Bolsonaro e seus corréus, civis e militares, das consequências penais de seus atos. Talvez a única centelha de sensatez nessa articulação toda, não que seja aceitável, tenha partido do presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre, que defendeu que uma eventual anistia não pode contemplar o ex-presidente.

Mas antes o problema fosse apenas técnico. É, sobretudo, político e moral. Há evidências em profusão de que Bolsonaro e sua grei tramaram para permanecer no poder à revelia da vontade popular e em flagrante violação da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. O 8 de Janeiro foi a culminação visível de uma conspiração muito mais ampla contra a democracia. Por isso, a sofreguidão pela anistia não visa à proteção dos idiotas úteis que tomaram Brasília à força naquele fatídico dia, mas sim dos mentores do golpe, cujos nomes figuram no topo da política e das Forças Armadas, sabe-se lá por quais interesses. Seja como for, trata-se de um pacto espúrio para manter impunes os que ousaram tentar matar a política como único meio civilizado de concertação dos múltiplos interesses em disputa numa sociedade livre.

Não é a primeira vez que o Brasil se depara com movimento desse jaez. Só no período republicano, cerca de 40 anistias foram aprovadas, quase sempre com o propósito de livrar a cara de militares e políticos envolvidos em insurreições. O resultado foi invariavelmente nefasto para o País. Ao invés de fortalecer a democracia e ensejar a “pacificação da sociedade”, como apregoam os modernos arautos da impunidade, as anistias sistemáticas só serviram de incentivo para novas aventuras golpistas. A História demonstra que cada perdão fomentou a ruptura seguinte. Definitivamente, não é isso o que a Nação deseja, como atestam as pesquisas de opinião.

Até a anistia de 1979, “ampla, geral e irrestrita”, frequentemente invocada pelos bolsonaristas como precedente, ilustra a armadilha. Negociada nos estertores da ditadura militar, a Lei 6.683 serviu como instrumento de transição necessário àquela época, mas ao custo de blindar torturadores, assassinos e contumazes violadores das liberdades individuais. Até hoje o País convive com a impunidade de crimes hediondos cometidos em nome do Estado, mantendo feridas abertas e uma memória histórica inconclusa. O que naquele contexto foi tratado como uma espécie de “mal necessário” se converteu, à luz da experiência, em mal permanente. É esse legado infame que alguns pretendem ressuscitar agora, a pretexto de uma “tradição”.

Se é de tradição que se trata, a cogitação de uma anistia aos golpistas mostra a facilidade com que a elite política condescende com quem mina o império da lei, amesquinha os valores republicanos e faz pouco-caso dos direitos humanos, além de transmitir a mensagem de que, em momentos de crise, sempre haverá brechas para acomodações subterrâneas. Esse tempo precisa passar. Chega. O Brasil que almeja por um futuro mais desenvolvido, justo e próspero para todos tem de encerrar esse ciclo de uma vez por todas.

O julgamento dos golpistas ora em curso no STF é essa inflexão histórica. É a ocasião de afirmar, em termos inequívocos, que a democracia brasileira não admite mais que se passe a mão na cabeça de seus algozes – sejam fardados ou paisanos.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Pulo, em 04.09.25

Congresso Nacional, a casa de tolerância do próximo golpe

Tudo fora das quatro linhas da Constituição

(Crédito: BRENO ESAKI/METRÓPOLES @BrenoEsakifoto)

Em um bordel, tolera-se tudo ou quase tudo. É como no Congresso, este que temos, onde a direita (leia-se: os partidos genéricos do Centrão) e a extrema-direita contam, hoje, com a maioria dos deputados federais e senadores. Ou o curso muda ou o Congresso a ser eleito no próximo ano será definitivamente pior.

Ali, o dinheiro corre solto, sem o mínimo de transparência, para alimentar tenebrosas transações. Dinheiro público, do Orçamento da União, que parlamentares, líderes de partidos e os presidentes da Câmara e do Senado administram para garantir a renovação dos seus mandatos, pagar despesas particulares e ficar mais ricos.

Ali também brotam, germinam e florescem as mais absurdas ideias às quais se dá os nomes de projetos de lei, decretos e propostas de emenda à Constituição. Muitas das ideias acabam por vingar, alcançando seus objetivos e fazendo mal ao país. A Constituição de 1988 está sendo reescrita a um ritmo alucinante.

Uma dessas ideias apenas espera a melhor hora para ser reapresentada. É a que subtrai ao Supremo Tribunal Federal o poder de investigar qualquer parlamentar suspeito de crime à revelia dos seus pares. Buscas em gabinetes? Só com permissão da Câmara ou do Senado. Prender parlamentares? Nunca mais.

O Congresso, agora, quer o poder de demitir diretor do Banco Central que não cumpra “adequadamente suas funções” ou “fira os interesses nacionais”. Adequadamente, como? Por “interesses nacionais”, entenda-se o quê? Não se sabe. Ver-se-á na hora de votar e a depender da composição momentânea do plenário.

Legisla-se no Congresso de acordo com a ocasião, e não importa o que a maioria dos brasileiros pense. A maioria, por exemplo, pensa que o Brasil foi alvo de uma tentativa de golpe para anular o resultado da eleição presidencial de 2022 que deu a vitória a Lula; e é contra o eventual retorno de Bolsonaro à vida pública.

Pela primeira vez em nossa história, um ex-presidente da República e militares acusados de golpe estão sendo julgados e poderão ser condenados e presos. Mas, e daí? O Congresso parece pronto para votar uma anistia ampla, geral e irrestrita que os beneficie. Isso é flagrantemente contra a Constituição. E daí?

Deputados e senadores sabem de antemão que a anistia, se aprovada, será derrubada pelo Supremo Tribunal Federal.Mas, quando nada, a direita (Centrão) e a extrema direita bolsonarista ganharão mais um discurso para impulsionar seu possível candidato a presidente em 2026, Tarcísio de Freitas.

O próprio Tarcísio despiu a máscara de bom moço e pôs-se à frente das tropas bárbaras que defendem a anistia e que não temem afrontar a Justiça. Tarcísio não tem votos para se eleger. Nenhum nome da direita tem. Então, ele precisa agradar a extrema-direita na esperança de herdar os votos de Bolsonaro. Simples assim.

A casa de tolerância que se tornou o Congresso deixará suas digitais em mais uma tentativa de golpe

Ricardo Noblat, o autor deste comentário, é jornalista, editor do Blog do Noblat. Publicado no  https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/, em 04.09.25

Processo penal no regime militar e aos atos do 8 de Janeiro

Tem sido assunto frequente e recorrente na imprensa brasileira a veiculação de opiniões de que os terroristas do 8 de Janeiro têm sido submetidos a um processo penal de exceção e que seus direitos humanos têm sido violados pela Suprema Corte. 


Manifestação em defesa da anistia dos condenados pelo 8 de janeiro ( Crédito: Joédson Alves/Agência Brasil ).

Com o propósito de demonstrar cabalmente o absurdo e o disparate dessa percepção, é interessante fazer um cotejamento comparativo entre o verdadeiro processo penal de exceção que vigorava durante a ditadura militar tão exaltada pelos aludidos terroristas e o processo penal balizado pelos ditames da Constituição ao qual estão sendo submetidos os citados golpistas.

Na ditadura militar de 1964 a 1985, principalmente no período de vigência do Ato Institucional número 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, vigorou no Brasil o verdadeiro direito penal do inimigo. A tortura era institucionalizada, e não havia Habeas Corpus para acusados de crimes contra a segurança nacional. As pessoas eram detidas, mesmo as que não eram participantes da luta armada das organizações da extrema esquerda da época, e torturadas e assassinadas como se fossem.

A Justiça Militar julgava os civis que fossem acusados por crimes contra a segurança nacional, e o acesso dos advogados aos acusados era praticamente impossível. Era inexistente o direito à ampla defesa e ao contraditório, e as sentenças eram exaradas com base em depoimentos e confissões obtidos sob tortura. Muitos dos detidos nessa época, quer tivessem vínculo efetivo com a luta armada ou não, foram assassinados ou desaparecidos em virtude dos suplícios a que foram submetidos nas masmorras dos cárceres da Oban, do DOI-Codi e dos serviços secretos das três armas.

Outra característica desses processos é que os réus eram processados e condenados com base nos antes mencionados depoimentos e confissões obtidos sob tortura ainda na fase do inquérito policial, procedimento de caráter inquisitorial, no âmbito do qual não há direito de defesa nem contraditório, antes mesmo de se tornarem réus nas ações penais. Da mesma forma, as denúncias elaboradas pelo Ministério Público na época eram embasadas nos mesmos depoimentos e confissões obtidos sob tortura.

O AI-5 foi um instrumento tão autoritário e ilegítimo que determinava que atos do presidente da República (PR) não poderiam ser objeto de apreciação judicial. O presidente também tinha o poder de confiscar bens, demitir sumariamente servidores públicos, isto é, demitir sem dar o direito de defesa, cassar os direitos políticos de cidadãos por dez anos, poder para intervir nos estados e municípios de forma discricionária, violando o pacto federativo e a autonomia política dos entes subnacionais, alegando ameaça à segurança nacional, entre outras barbaridades. Ou seja, era um regime cuja institucionalidade era totalmente antidemocrática, autocrática, no qual a separação de poderes, a federação, os direitos e garantias individuais eram letra morta, e o governo militar ilegítimo da época praticava o terrorismo de Estado.

Julgamento do 8 de Janeiro é bem diferente

Já os terroristas do 8 de Janeiro estão sendo julgados por um processo penal democrático fundamentado nas garantias processuais penais estabelecidas pela Constituição, que foi promulgada por uma assembleia Nacional Constituinte eleita diretamente pelo povo, ao contrário do AI-5, imposto e outorgado à sociedade brasileira de forma totalmente autoritária e ilegítima pelo Conselho de Segurança Nacional naquele famigerado 13 de dezembro de 1968.

Aos acusados de tentar instituir novamente o regime do AI-5 no Brasil em 8 de janeiro de 2023, estão sendo assegurados a esses réus as garantias processuais penais constitucionais do promotor natural, do juiz natural, da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal entre outras. Inclusive merece destaque a transparência da realização do julgamento, em que pode se constatar que os advogados dos réus tiveram todas as condições de realizar seu trabalho exercendo a ampla defesa dos seus clientes.

O resultado do trabalho meticuloso de investigação da Polícia Federal, que demorou dois anos e meio para ser concluído, serviu de subsídio para a formulação da denúncia minuciosa e judiciosa elaborada pelo procurador-geral da República (PGR), a qual individualizou apropriadamente a conduta de cada acusado, tendo sido aceita pela 1ª turma do Supremo Tribunal Federal (STF), foro apropriado para a realização do processo e julgamento da causa.

A respeito da competência de o STF julgar as causas do 8 de janeiro houve também certa controvérsia. Entretanto, efetivamente a competência é do Supremo, tendo em vista que o artigo 43 do seu Regimento Interno (RISTF) atribui ao presidente do Tribunal, quando a infração à lei penal ocorrer na sede ou dependência do Tribunal, a competência de instaurar inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição.

Concentração de julgamentos no STF

Neste último caso, a causa jurídica em questão, além de ter se constituído na destruição das dependências do Supremo Tribunal, abrange também deputados federais, como é o caso de Ramagem, e outros membros do Congresso implicados nos atos de 8 de janeiro. Devido a isso, e considerando os princípios da conexão e continência previstos nos artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal, os réus pessoas comuns foram atraídos para serem julgados pelo STF juntamente com os parlamentares citados cujo julgamento nas infrações penais comuns é competência constitucional originária do Pretório Excelso, evitando a dispersão do processo por instâncias judiciais diferentes.

Cabe também lembrar, como bem registra Patrick Luiz Martins Freitas Silva no artigo “A competência do STF para julgar atos do 8 de Janeiro alcança cidadãos comuns?“, publicado nesta Conjur, que a “a Súmula 704 da corte buscou pacificar a questão, afirmando que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. (…) — Inq 2.688, relatora ministra Cármen Lúcia, red.p/ o ac. ministro Gilmar Mendes, 2ª T, j. 2-12-2014, DJE 29 de 12-2-2015”.

Idoneidade e licitude do processo

Além disso, o RISTF atribui ao seu presidente a autoridade para escolher o relator do inquérito. A propósito, o STF, como guardião da Constituição, e instância máxima do controle de constitucionalidade brasileiro, declarou constitucional o referido artigo 43 do RISTF no âmbito da ADPF 572.

Lembrando, como complemento, que o STF decidiu em março de 2025, por 7 a 4 no plenário físico, que as autoridades mantêm a prerrogativa de foro mesmo após deixarem os altos cargos públicos que ocupavam. Outro detalhe é que no final de 2023 houve modificação no Regimento Interno do Pretório Excelso no sentido de que as ações penais voltariam a ser competência das turmas. Logo, o que fica caracterizada é a total, completa, absoluta, integral idoneidade e licitude de todo o processo de julgamento dos terroristas/golpistas do 8 de Janeiro pela Corte Suprema brasileira.

Inclusive o tratamento concedido pelo relator do caso, o ministro Moraes, ao principal réu, o ex-presidente entre 2019 e 2022, foi extremamente condescendente e benevolente, tendo em vista que o ex mandatário não foi preso preventivamente em algumas ocasiões em que tal decretação da prisão cautelar teria sido pertinente. Entre essas ocasiões, destaca-se quando, em pleno Carnaval de 2024, o ex-presidente se refugiou na embaixada da Hungria, caracterizando uma situação em que, acintosamente, estava procurando se evadir para evitar as consequências da aplicação da lei penal, o que constitui motivo idôneo para a decretação da prisão cautelar.

Outra ocasião foi quando o réu confessou abertamente em entrevista que estava financiando as atividades ilegais de seu filho deputado nos Estados Unidos, atividades essas que constituíam ações de coação no curso do processo e de obstrução à Justiça, ambas as ações ensejadoras de decretação da prisão preventiva respectiva pela autoridade judicial competente àquele que estava financiando tais atividades ilegais.

Proteção da ordem econômica

Além das justas causas para a decretação da prisão cautelar do referido réu relatadas precedentemente, há também a necessidade de proteger a ordem econômica do país quando esta for objeto de sabotagem por parte do réu (outra hipótese legal para justificar a determinação da prisão preventiva), ordem econômica essa atingida pelo estabelecimento pelo governo americano de tarifas elevadíssimas sobre os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos como represália, retaliação pelo julgamento justo a que está sendo submetido aquele que quase instituiu uma nova ditadura fascista no Brasil.


Para esse fato, contribuiu decisivamente a ação do deputado federal filho do réu, para a qual o referido réu declarou expressamente que está financiando essa ação do filho nos Estados Unidos visando a promover a sabotagem ao Brasil. No entanto, a prisão cautelar deste réu só foi decretada recentemente, devido ao fato de que transgrediu as cautelares que haviam sido a ele determinadas pelo relator do processo, ao participar remotamente de comício cujo motivo de realização era, exatamente, pedir a anistia para aqueles que desejaram implantar no Brasil novamente a maldita ditadura militar fascista da extrema-direita das Forças Armadas que, desgraçadamente, durou a eternidade de 21 anos no Brasil.


Lembrando que todo o processo golpista teve início de forma mais intensa desde que a vitória do presidente Lula em 30 de outubro de 2022 foi confirmada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com os acampamentos nas portas dos quartéis pedindo a volta da ditadura militar e da tortura e o desrespeito à decisão popular expressa na eleição, o bloqueio das estradas pelo agronegócio simpatizante da extrema direita fascista, os atos terroristas executados em Brasília no dia da diplomação do presidente Lula em 12 de dezembro de 2022, com a invasão e depredação do prédio da Polícia Federal na Asa Norte, a tentativa de atentado a bomba no Aeroporto de Brasília na véspera do Natal de 2022, culminando com a tentativa frustrada de golpe de 8 de Janeiro. Isto sem falar na utilização criminosa da Polícia Rodoviária Federal para impedir que os eleitores do Nordeste votassem no segundo turno, e a compra de votos despudorada com dinheiro público que ocorreu nos últimos dez dias de outubro de 2022, com a utilização também criminosa da máquina administrativa almejando a reeleição do então incumbente.

Dosimetria das penas

Agora abordando a questão da dosimetria das penas infligidas aos réus, o que ocorre é que as elevadas penas cominadas àqueles que promoveram a tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito, de realização de golpe de Estado e os outros graves delitos de que são acusados os réus, são de responsabilidade não dos julgadores que aplicam a lei, mas sim do Legislativo que instituiu essas penas, aprovando a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, bem como do próprio ex-presidente da República que sancionou a lei.

As penas são longas porque os crimes cometidos são muito graves, penas com duração alta mesmo se considerando as penas mínimas para os delitos de que se trata. Como os crimes foram cometidos em concurso de pessoas/autores, as penas vão se somando/acumulando resultando numa pena total bastante alta, tendo visto que são cinco os crimes de que os réus estão sendo acusados (abolição violenta do Estado democrático de direito; golpe de Estado; dano qualificado; deterioração de patrimônio tombado; associação criminosa).

O que alguns advogados de defesa estão argumentando, de forma apropriada a meu juízo, é que o STF poderia promover a absorção de um crime menos grave por outro mais grave, sendo que a gravidade do crime seria mensurada pela severidade da pena atribuída a cada um dos delitos. Esse conceito jurídico penal da absorção ocorreria quando a prática de um crime menos grave fosse meio necessário ou fase de preparação para a execução de outro crime mais grave, tendo em vista serem esses tipos penais semelhantes. Por exemplo, seria a situação dos crimes de Abolição violenta do Estado democrático de direito e de golpe de Estado. Como o primeiro está de certa forma contido no segundo, em vez de sancionar o réu pelos dois delitos, puni-lo apenas pelo mais grave, seria razoável, o que acarretaria um apenamento de menor duração. Isso, penso eu, seria admissível.

Não obstante, o Ministério Público ofereceu a centenas de envolvidos o acordo de não persecução penal naqueles casos em que a pena determinada foi de até quatro anos de prisão, pelo qual os réus do 8 de janeiro, caso aceitassem frequentar um curso sobre democracia, não usassem redes sociais por dois anos, e os que tivessem recursos pagassem uma multa de R$ 5 mil ficariam livres da condenação criminal. Cerca de metade aceitou cumprir esse acordo, a outra metade optou por continuar encarcerada. Ou seja, ficaram presos porque quiseram. Na época da ditadura militar, principalmente depois da decretação do AI-5, não eram oferecidos acordos como esses aos acusados que, ao contrário de agora, eram assassinados e trucidados nos porões da ditadura militar tão exaltada pelos fascistas.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou que um acordo foi oferecido a dois terços dos golpistas de 8 de Janeiro para que não precisassem cumprir a pena na prisão. Segundo o ministro, entretanto, mais da metade recusou ou não respondeu à proposta oferecida pela Procuradoria-Geral da República (PGR).

A conclusão a que se chega é que os atuais terroristas tiveram um julgamento bem mais justo e civilizado sob as regras da Constituição do que os “terroristas” do passado tiveram quando o que vigorava era o Estado de exceção do AI-5. A eles não eram oferecidos acordos de não persecução penal, e sim era oferecida a possibilidade de morrer depois de muita tortura, ou no pau de arara ou na cadeira do dragão. Enquanto isso, aos golpistas de 8 de Janeiro foi assegurada a rigorosa observância do mandamento constitucional contido no artigo 5º, inciso III, que reza que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”

Carlos Frederico Alverga, o autor deste artigo, é economista graduado na UFRJ, especialista em administração pública pelo Cipad/FGV e em Direito do Trabalho e Crise Econômica pela Universidade de Castilla La Mancha (Espanha) e mestre em Ciência Política pela UnB. Publicado originalmente pela revista eletrônica Consultor Jurídico, em 04.09.25

Por que qualquer anistia para golpistas é inconstitucional

O Parlamento quer criar uma crise institucional. Visivelmente. Uma crise se cria quando, deliberadamente, um Parlamento aprova uma lei que sabe de antemão ser inconstitucional e, assim, proporcionar um desgaste ao Supremo Tribunal encarregado da fiscalização da constitucionalidade das leis.

No auge do julgamento dos envolvidos nos atos golpistas, partidos de oposição ligados a um dos réus — o ex-presidente Bolsonaro — articulam a aprovação de anistia para todos os golpistas. Para beneficiar Bolsonaro.

A propalada lei será inconstitucional. Por vários motivos. Em primeiro lugar, há que se rejeitar argumentos (existem muitos divulgados na mídia) de que uma lei de anistia não seria inconstitucional porque a Constituição não proíbe.

Esse parece ser o principal argumento a favor da tese da anistia. Trata-se de uma tese que no direito chamamos de textualista, pela qual “o que a Constituição não proíbe, permite”.  Isto quereria dizer que o legislador, toda vez que a CF não estabelecer o contrário ou não dizer algo sobre o tema, pode aprovar qualquer tipo de lei. Ora, pensar assim é fazer pouco caso da Constituição. É pensar que a CF é uma espécie de simples código. Como se a Constituição fosse uma lei ordinária. Ora, isso está superado desde 1803, com o caso Marbury v. Madison. Elementar.

Um exemplo singelo derruba os argumentos textualistas. Se uma lei proíbe cães no parque, um textualista — que defende a constitucionalidade de uma lei de anistia para os golpistas — por certo responderia que “a lei não proíbe ursos”. Logo, são permitidos. Pior ainda: por certo o textualista dirá que, proibidos cães, o cão-guia do cego está impedido de transitar no parque. Esta é a melhor maneira de se saber o conceito de “interpretação textualista”. A interpretação textualista chumba o causídico ou o aluno no exame de Ordem. Ou na prova do terceiro semestre.

Em segundo lugar, temos o precedente Daniel Silveira. Não era proibido expressamente pela Constituição que o presidente Bolsonaro concedesse indulto. Mas o STF, baseado em forte doutrina e na interpretação sistemática, entendeu que o ato contrariou a Constituição. Percebem?

Nesse precedente (ADPF 964), já se vê a pista da inconstitucionalidade de eventual lei anistiando golpistas. Há uma passagem em que se lê: “Indulto que pretende atentar, insuflar e incentivar a desobediência a decisões do Poder Judiciário é indulto atentatório a uma cláusula pétrea prevista no artigo 60 da CF”. Isto é o que se chama “proibição implícita”. Igualzinha à vedação de ursos. Não precisa ser dito. Está implícita a proibição. Chama-se a isso de hermenêutica da função da lei (Fuller, MacIntyre e Wittgenstein).

Que é proibido anistiar a quem comete crime de golpe de Estado já foi percebido na Argentina, pelos tribunais e pela doutrina (Bidart Campos, por exemplo). Por aqui, setores do direito tentam aplicar uma espécie de “textualismo seletivo”.

Ainda sobre o “precedente Daniel Silveira”, consta no acórdão, no voto do ministro Alexandre de Moraes: “Seria possível o STF aceitar indulto coletivo para todos aqueles que eventualmente vierem a ser condenados pelos atos de 8 de janeiro, atentados contra a própria democracia, contra a própria Constituição?” E a resposta: “Obviamente que não. Isso está implícito na Constituição”.  Aliás, no caso Silveira, o STF usa mais de 40 vezes a tese de que há vedações implícitas na Constituição ao direito de anistia e indulto.

Já no nosso exemplo, parece óbvio que, proibidos cães, ursos não são permitidos. E por quê? Porque onde está escrito cães, leia-se “animais perigosos”. E onde está escrito democracia e Estado Democrático de Direito, leia-se “ninguém pode usar a democracia contra ela mesma”. Nenhuma Constituição admitirá perdão (indulto, anistia) para quem atenta contra o Estado democrático. Tudo porque a Constituição não é um oxímoro. Não dá para “contentar-se de contentamento”. Na poesia dá; no direito, não!

A esquecida Lei 9.140, que se os parlamentares lessem, perceberiam o equívoco da anistia

Explico aqui uma questão esquecida. Foi o próprio parlamento — que agora se mostra hostil e perigosamente conspirador contra o STF e a democracia (lembremos do motim de 36 horas bem recente) — que aprovou uma lei que mostra a diferença entre a anistia de 1979 e eventual anistia de agora. A lei determina (artigos 1º, 2º e 10) que

(1) todos os que lutaram contra a ditadura têm o direito a receber indenização.

(2) portanto, todos os que lutaram contra a ditadura estavam em desobediência civil.

(3) logo, se lutaram contra a ditadura e o parlamento disse, a contrário sensu (afinal, manda indenizar) que a luta foi justa e legal, então deixou também assentado que não havia Estado de Direito.

(4) isto quer dizer que a anistia de 1979 foi feita em situação de não democracia. E foi exatamente por isso que os militares e torturadores foram incluídos.

Eventual anistia de agora ocorre em ambiente totalmente contrário. Porque

(1) Vivemos em democracia e

(2) os candidatos à anistia tentaram derrubar e liquidar a própria democracia.

(3) onde estaria o paralelismo? Em lugar nenhum. A de 1979 nada tem a ver com o que ora se discute em 2025. Nada. O parlamento deveria ler a Lei 9.140/1995. Não se pode comparar ovos com caixa de ovos.

Por tudo isso, é totalmente inconstitucional qualquer tipo de anistia para quem tentou acabar com a democracia. A democracia não é um oximoro. Não se pode pensar que uma democracia faz haraquiri.

Em nome dela — da democracia — não pode ser permitido, sob qualquer hipótese, o perdão ao que tentaram com ela acabar.

O Brasil pagaria um mico para o mundo.

A propósito: Ferrajoli, em visita ao Brasil, considera necessária a punição dos golpistas e correto o agir do STF. Ele é, nada mais e nada menos, que o “pai do garantismo”. Só para registro.

Lenio Luiz Streck, o autor deste artigo, é professor, parecerista, advogado e sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br. Publicado originalmente pela revista eletrónica Consultor Jurídico, em 04.09.25

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

O que está em jogo no julgamento histórico de Bolsonaro

STF decide se ex-presidente e outros sete réus são culpados em trama golpista. Caso atrai holofotes mundiais e rompe com tradição conciliadora pós-ditadura.

Bolsonaro nega que tenha tentado um golpe, e afirma estar sendo perseguido por Alexandre de MoraesFoto: Marco Bello/REUTERS

Poucos momentos no calendário brasileiro evocam o espírito nacionalista como o 7 de Setembro, Dia da Independência. Crianças são estimuladas a celebrar as cores do país e desfiles cívicos e militares tomam as ruas de várias cidades. Em Brasília, tanques passam pela Esplanada dos Ministérios e um militar costuma bater continência para o presidente da República.

Neste ano, as celebrações terão um pano de fundo especial: o julgamento dos acusados de integrarem o núcleo central da trama para dar um golpe de Estado após as eleições de 2022, cuja figura de proa é o ex-presidente e militar reformado Jair Bolsonaro. A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) inicia o julgamento nesta terça-feira (02/09) e reservou sessões para isso até a sexta-feira da próxima semana.

Apoiadores de Bolsonaro organizarão atos no 7 de Setembro em sua defesa, sob o mote de que seria um julgamento injusto, e críticos ao ex-presidente também irão às ruas defendendo sua punição. O país está dividido, com uma leve maioria de apoio ao trabalho do STF e à prisão de Bolsonaro.

Uma pesquisa Datafolha realizada em 29 e 30 de julho apontou que 55% concordavam com as primeiras restrições aplicadas pelo STF contra o ex-presidente, como tornozeleira eletrônica e proibição de sair de casa à noite, enquanto 41% discordavam. O resultado é mais apertado sobre se Bolsonaro deveria ser preso por tentativa de golpe: 48% responderam que sim e 46%, que não, no limite da margem de erro de dois pontos percentuais.

Bolsonaro sai de hospital em Brasília após fazer exames, em 16 de agostoFoto: Mateus Bonomi/Anadolu/picture alliance

O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu que o julgamento traz "algum grau de tensão" ao país, mas o considera importante para encerrar um ciclo. "É imperativo o julgamento, porque o país precisa encerrar o ciclo em que se considerava legítima e aceitável a quebra da legalidade constitucional por não gostar do resultado eleitoral", disse em 25 de agosto.

Nos 50 dias que antecederam o julgamento, Bolsonaro sentiu gradativamente os efeitos de restrições à sua liberdade. Em 18 de julho, teve que instalar uma tornozeleira eletrônica e foi proibido de usar redes sociais, de sair de casa à noite e de se comunicar com investigados e autoridades estrangeiras. Em 4 de agosto, após descumprir a proibição de uso de redes sociais, teve sua prisão domiciliar decretada e seus celulares apreendidos e foi proibido de receber visitas sem autorização judicial.

Essas decisões foram tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes, relator de inquéritos e ações penais relacionadas à tentativa de golpe. A primeira, que decretou as cautelares, foi referendada pela Primeira Turma da corte.

Bolsonaro nega que tenha tentado um golpe e diz estar sendo perseguido por Moraes. Sua defesa afirmou, nas alegações finais, que o ex-presidente em momento algum "praticou qualquer conduta que tivesse por finalidade impedir ou dificultar a posse" deLuiz Inácio Lula da Silva e que ele "sempre defendeu e reafirmou a democracia e o Estado de Direito". Os demais réus também negam ter participado de atividades criminosas.

Como será o julgamento

O presidente da Primeira Turma, ministro Cristiano Zanin, programou sessões nos dias 2, 3, 9, 10 e 12 de setembro para julgar a ação penal sobre o chamado "núcleo crucial" da trama do golpe. Compõem o colegiado Zanin, Moraes, Cármen Lúcia, Flávio Dino e Luiz Fux.

Além de Bolsonaro, há outros sete réus nessa ação penal, sendo quatro militares da reserva de alta patente: Almir Garnier Santos, almirante da reserva da Marinha, Augusto Heleno, general da reserva do Exército e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, Paulo Sérgio Nogueira, general da reserva do Exército e ex-ministro da Defesa, e Walter Braga Netto, general da reserva do Exército e ex-ministro da Casa Civil.

Os demais três réus são Anderson Torres, ex-ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, Alexandre Ramagem, deputado federal (PL-RJ) e ex-diretor geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), e Mauro Cid, tenente-coronel da ativa do Exército e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.

Braga Netto, que foi ministro da Defesa de Bolsonaro e seu candidato a vice em 2022, também é réu na mesma ação penalFoto: EVARISTO SA/AFP

O grupo é acusado de ter cometido cinco crimes em 2022 e 2023: golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, associação criminosa armada, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Apenas Ramagem não responderá ao crimes de dano contra o patrimônio da União e de deterioração de patrimônio tombado.

O julgamento será iniciado com Moraes lendo seu relatório sobre o caso, seguido pela manifestação do procurador-geral da República, Paulo Gonet. Depois, os advogados dos réus apresentam suas sustentações orais, começando pela defesa de Mauro Cid, que firmou um acordo de colaboração premiada. A defesa de Bolsonaro será a quinta a se manifestar.

Por fim, os ministros apresentam seus votos e, caso haja maioria pela condenação, fixam a pena de cada réu. Dependendo da evolução, é possível que o julgamento não seja encerrado no dia 12, e novas sessões seriam marcadas. Também é possível que algum ministro peça vista do processo, com prazo de 90 dias para devolução. Mesmo que haja pedido de vista, a expectativa é que o julgamento termine neste ano.

Brasília terá um contingente extra de policiais durante os dias de julgamento, e cerca de 30 policiais estarão permanentemente de prontidão no STF, inclusive durante a noite. Também foram realizadas varreduras nas casas dos ministros.

O que está em jogo

Sob uma perspectiva histórica, o julgamento será a primeira vez que o sistema de Justiça brasileiro irá processar e, eventualmente, punir um ex-presidente por tentativa de golpe de Estado. Trata-se de uma ruptura com o modelo adotado da última vez em que o Brasil sofreu um golpe de Estado, em 1964, cujos líderes e patrocinadores foram poupados após a redemocratização por uma generosa anistia.

Bolsonaristas e integrantes conservadores do Congresso tentaram fazer avançar um projeto que anistia o ex-presidente e seus apoiadores, mas a empreitada não deslanchou. Segundo a pesquisa Datafolha citada no início deste texto, 55% dos brasileiros são contra uma anistia, enquanto 35% são favoráveis.

O julgamento ocorrerá de forma relativamente célere considerando a complexidade do caso e os padrões do Judiciário brasileiro: dois anos e oito meses após os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, que depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília e balançaram o início do atual governo Lula. .

A maioria da massa de bolsonaristas que participou dos atos golpistas já foi responsabilizada. Foram abertas 1.628 ações penais no STF sobre o caso, e até 12 de agosto 1.190 pessoas haviam sido responsabilizadas pela corte – 638 foram julgadas e condenadas e outras 552 admitiram a prática de crimes menos graves e fizeram acordo com o Ministério Público Federal.

Pesquisa Datafolha aponta que 55% dos brasileiros são contra a anistia a Bolsonaro, mas um percentual menor, 48%, defende sua prisão (Foto: Nelson Almeida/AFP)

O STF também estará sob holofotes internacionais. Bolsonaro integra uma corrente de partidos e movimentos de extrema direita atuantes em diversos países do mundo. Os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília emularam o ataque ao Capitólio de 5 de janeiro de 2021 em Washington DC, quando apoiadores de Donald Trump, então derrotado em sua campanha à reeleição, tentaram impedir a posse de seu sucessor, Joe Biden.

A evolução de ambas as tentativas violentas de subversão da ordem institucional teve caminhos muito distintos até o momento, o que levou a revista britânica The Economist a publicar uma reportagem de capa sustentando que o julgamento de Bolsonaro no Brasil oferece uma lição de "maturidade democrática" aos EUA.

Essa distinção tem sido frisada por Lula, cujo governo está no alvo de Trump. O líder dos EUA anunciou um tarifaço contra o Brasil para, entre outros motivos, pressionar pela suspensão do julgamento de Bolsonaro.

"Se Trump fosse brasileiro e se tivesse feito o que aconteceu no Capitólio, ele também seria julgado, e se ele também tivesse violado a Constituição de acordo com a Justiça, ele também estaria preso", afirmou Lula em uma entrevista à CNN publicada em 17 de julho. O paralelo internacional dá a Lula um discurso de defesa da soberania, mas pode vir a causar mais problemas para o Brasil – é possível que Trump amplie a pressão sobre seu governo caso Bolsonaro seja condenado.

Michelle Bolsonaro em cima de um trio elétrico discursando para pessoas na rua em um protesto; foto do dia 3 de agosto de 2025Michelle Bolsonaro em cima de um trio elétrico discursando para pessoas na rua em um protesto; foto do dia 3 de agosto de 2025

Bolsonaristas consideram que o ex-presidente está sendo perseguido por MoraesFoto: Marx Vasconcelos/REUTERS

Por fim, uma eventual condenação de Bolsonaro acelera a disputa na direita entre pré-candidatos ao Planalto que querem o apoio da base política do ex-presidente, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo)

Bolsonaro já está inelegível até 2030, em função de outros processos julgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas se recusa a apoiar um nome para as eleições de 2026. Essa estratégia é similar ao que fez Lula quando ficou preso de abril de 2018 a novembro de 2019 por corrupção passiva e lavagem de dinheiro na ação penal sobre o triplex no Guarujá, posteriormente anulada pelo STF.

O petista seguiu candidato às eleições de 2018, como forma de aumentar a pressão política pela reversão de seu julgamento, e o PT só declarou que Fernando Haddad seria seu candidato no último dia do prazo eleitoral.

O que acontece se Bolsonaro for condenado

Caso seja considerado culpado pelos crimes dos quais é acusado, Bolsonaro pode receber uma pena máxima de mais de 40 anos de reclusão. A definição de pena leva vários fatores em conta, inclusive a idade do condenado.

Se houver divergência entre os ministros da Primeira Turma sobre a sentença para Bolsonaro, é possível que seus advogados apresentem um recurso chamado embargos infringentes para tentar levar o processo ao plenário da corte, mas há dúvida sobre se isso poderia ser aplicado neste caso.


Casa de Bolsonaro em Brasília, onde ele está em prisão domiciliar desde 4 de agosto (Foto: Eraldo Peres/AP ) Photo/picture alliance

Bolsonaro tem 70 anos e alguns problemas de saúde, parte deles decorrente da facada que levou durante a campanha eleitoral de 2018. Desde que foi colocado em prisão domiciliar, ele tem tido crises de soluço e sintomas de refluxo. Em 16 de agosto, o ex-presidente foi a um hospital para realizar exames, e seu boletim médico apontou um quadro de infecções pulmonares, esofagite e gastrite.

Segundo uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo, ministros do STF avaliam que uma eventual condenação de Bolsonaro à prisão não seria cumprida em um quartel do Exército, pois poderia estimular uma movimentação de seus apoiadores. Outras duas possibilidades são consideradas: uma cela especial no presídio da Papuda, em Brasília, ou uma sala adaptada na Superintendência da Polícia Federal no Distrito Federal – similar ao que ocorreu quando Lula esteve preso em Curitiba.

Se for condenado, a defesa de Bolsonaro deve pedir que ele cumpra a pena em regime domiciliar, citando o precedente do ex-presidente Fernando Collor, que tem 76 anos e foi condenado por um esquema de corrupção na BR Distribuidora. Poucos dias após ser preso, o STF autorizou em 1º de maio que ele cumprisse a pena em casa, após a defesa alegar que ele sofre de doenças graves, que incluem doença de Parkinson, apneia do sono grave e transtorno afetivo bipolar.

Texto de Bruno Lupion. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 01.09.25

Lula abusa de seu poder

Perto de sua última eleição, Lula faz da Presidência um palanque permanente para fazer o que realmente gosta: campanha. Por motivo bem parecido, Bolsonaro foi declarado inelegível

A certeza de que, em 2026, disputará uma eleição presidencial pela última vez em sua longuíssima vida política parece ter dado a Lula da Silva a ilusão de que ganhou um salvo-conduto para abusar da lei e da paciência dos brasileiros. Não ganhou, ao contrário do que ele pensa, mas para o demiurgo petista isso pouco importa, desde que possa agir e falar sem parar de acordo com suas intenções eleitorais. E assim ele tem extrapolado todos os limites aceitáveis ao converter a Presidência da República e os eventos oficiais em palanque permanente e transformar a posição de chefe de Estado em condição privilegiada para fazer o que realmente gosta: campanha eleitoral.

Como não governa, Lula faz comícios, disso já se sabe. Entretanto, o que o País tem visto neste ano é de outra ordem. Na mais recente reunião ministerial, por exemplo, momento em que, em tese, deveria discutir com auxiliares ideias e decisões restritas à esfera de governo, Lula transformou o Palácio do Planalto em arena eleitoral e sua fala de chefe de Estado em discurso de candidato. Citou nominalmente o provável principal adversário capaz de tomar-lhe a reeleição (o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas), como quem coloca o dedo em riste contra um inimigo a enfrentar, e levou seus ministros a vestir bonés com jeito e slogan de caráter eleitoral, convocando os auxiliares a uma tarefa de cunho claramente partidário. Como se sabe, ele e seus sabujos estão empolgados com a linha de conflito adotada pelo governo e pelo PT depois de amargar meses de impopularidade pelo vazio programático que marca o terceiro mandato.

Não foi o único episódio em modo campanha e, infelizmente, não será o último. Não há dia ou evento oficial sem que Lula deixe de fazer referência à sua condição de candidato nas próximas eleições – mesmo quando é para fingir que pode não levar tal ideia adiante, como se não tivesse passado os últimos 40 anos pensando apenas na próxima disputa eleitoral. Não deixou de fazê-lo nem sequer nos meses em que foi um presidiário condenado por corrupção em duas instâncias. Hoje, nos comícios em atos públicos – todos na condição de chefe de governo, convém insistir –, ele invariavelmente ignora abordagens administrativas e a busca efetiva de soluções para os muitos problemas do País, preferindo desancar adversários, repisar o mote patriótico do lulopetismo na campanha, difundir realizações do seu governo como quem reinventou o Brasil e incentivar a militância a aproveitar os bons ventos trazidos pelo tarifaço de Donald Trump.

É o exato contrário do que manda a liturgia do cargo de presidente, mas coerente com quem se enxerga acima do bem, do mal e da lei. Afinal, Lula não parece contente em ser apenas um enviado de Deus, com assim já se definiu, ou comparado a um novo messias, como também já se apresentou diversas vezes. Com alguma frequência perfila-se com grandes heróis da história nacional, de Tiradentes a Getúlio Vargas, de modo a ilustrar o quanto se sente como a personificação do povo e seus anseios. Esse panegírico só serve para mostrar que Lula é mesmo incorrigível, um vício de origem que se agravou com o iminente fim de sua carreira eleitoral. Em outubro de 2026, Lula terá 81 anos e até mesmo os petistas já se preparam para chegar o momento em que precisarão trabalhar sem seu campeão de votos, posto que o chefão passará a ser apenas uma inspiração ou um retrato na parede.

Mas antes que esse momento chegue – infortúnio da militância do PT e alívio de um Brasil que gostaria de ver a política brasileira sem as amarras da polarização entre o lulopetismo e o bolsonarismo –, convém ter cuidado. Recorde-se que o Tribunal Superior Eleitoral tornou Jair Bolsonaro inelegível porque enxergou abuso de poder na reunião do então presidente com embaixadores estrangeiros, em pleno Palácio da Alvorada. À época, Bolsonaro usou o encontro para deslegitimar o sistema eletrônico de votação. Hoje Lula usa as reuniões no Palácio do Planalto para deslegitimar outras coisas: a Presidência que exerce e as leis eleitorais que restringem seus delírios palanqueiros. Não há outro nome a chamar: abuso de poder.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.09.25

sábado, 30 de agosto de 2025

Morre Luis Fernando Verissimo, o cronista que dizia muito com poucas palavras, aos 88 anos

Escritor ficou conhecido por sua precisão em crônicas e criou personagens como o Analista de Bagé, a Velhinha de Taubaté e Ed Mort; releia sua última coluna publicada no ‘Estadão’


Em 17 de agosto de 2025, sua família divulgou a informação de que ele estava internado desde a semana anterior por conta de uma “pneumonia leve que foi piorando”.

Documentário examina sutilezas de Luis Fernando Verissimo: ‘Captar o indizível, os pequenos gestos

A ùltima Crônica de Luís Fernando Veríssimo

Discute-se a melhor maneira de punir o presidente Trump por ter incitado a invasão do Congresso e criado as cenas de caos que os americanos não vão esquecer tão cedo

Por Luis Fernando Verissimo

14/01/2021 | 03h00

Notícia de presente

Discute-se a melhor maneira de punir o presidente Trump por ter incitado a invasão do Congresso e criado as cenas de caos que os americanos não vão esquecer tão cedo. Ele poderia ser processado ou impichado (de novo). Estou escrevendo antes da escolha do castigo. A última notícia que se tem é que Trump estaria trancado no seu quarto na Casa Branca, recusando-se a receber assistentes, amigos e parentes. Do lado de fora da porta, teria se formado uma espécie de comitê que tenta convencê-lo a se entregar ou pelo menos conversar. Trump resiste. A qualquer tentativa de comunicação, ele começa a cantar. Convites para saírem todos dali e irem jogar golfe também são ignorados. Trump só respondeu quando perguntaram se ele precisava de alguma coisa. – Preciso de mais quatro anos de governo.  – Mas o senhor perdeu as eleições.  – Invenção da imprensa sem caráter. Se eu tivesse contado os votos, teria vencido. – O senhor não precisa de mais nada mesmo? Algo para os cabelos? Tintura? Armação?  – Tenho tudo que eu preciso, obrigado. Inclusive a caixinha... – A caixinha? – A caixinha. Com os dois botões. Um dispara foguetes contra a Rússia, o outro dispara foguetes contra o Congresso americano. A revelação de que Trump tem a caixinha dentro do quarto fechado provoca uma correria dentro da Casa Branca. Ele tem a caixinha! Ele tem a caixinha! Ele não tem a caixinha! Alguém viu a caixinha? Perguntam para ele:  – Presidente, o senhor usaria armas nucleares contra a Rússia e o Congresso? – Se me provocarem...  É ESCRITOR, CRONISTA, TRADUTOR, AUTOR DE TEATRO E ROTEIRISTA

O escritor Luis Fernando Verissimo em ambiente de trabalho. Foto de 1995. Foto: Marcos Mendes/Estadão

Os problemas de saúde de Luis Fernando Verissimo

Nos últimos anos, o escritor já havia enfrentado outros problemas de saúde, incluindo uma cirurgia na mandíbula, em novembro de 2020, e um AVC (Acidente Vascular Cerebral) em janeiro de 2021. Este último afetou uma parte cognitiva de seu cérebro, dificultando a ordenação de seus pensamentos, ainda que compreendesse o que se passava ao redor.

Desde então, passava por uma recuperação lenta e gradual e também por alguns fatos inusitados - como a sua maior facilidade para se comunicar em inglês, língua que se tornou fluente por conta da infância nos EUA.

Em 1988, Luis Fernando Verissimo começou seus trabalhos como colaborador do Estadão. Até janeiro de 2021, quando sofreu o AVC, o escritor também foi colunista do jornal.Clique aqui para reler sua coluna mais recente, A Caixinha.

Pouco antes, em dezembro de 2020, foi questionado sobre o vinha lendo nos desafiadores tempos de pandemia. “O melhor livro que li em 2020 foi o de ensaios e estudos sobre Antonio Candido lançado pela editora 34, prova de que existe vida inteligente na Terra.”

Primeira crônica ilustrada da série 'Aventuras da Família Brasil', de Luís Fernando Veríssimo, publicada no Caderno 2 de 6 de novembro de 1988.  Foto: Luís Fernando Veríssimo/Estadão Acervo

Cronista, cartunista, ficcionista, saxofonista, gourmet e torcedor fanático do Internacional, Luis Fernando Verissimo sempre foi uma das raras unanimidades positivas do País.

Autor de mais de 70 livros que já venderam milhões de exemplares (entre eles, os best sellers O Analista de Bagé e A Comédia da Vida Privada) e de personagens emblemáticos (a Velhinha de Taubaté, que criticava a ditadura, o detetive Ed Mort, as Cobras), o filho do escritor Erico Verissimo só começou a escrever aos 30 anos (nasceu em 1936), depois de ter passado por várias escolas de arte e desenho, inacabadas; de ter tentado o comércio “só para reforçar o mau jeito da família”; e de ter passado por uma rápida carreira jornalística, de revisor e colunista de jazz a cronista principal do jornal gaúcho Zero Hora.

Os primeiros livros de Luis Fernando Verissimo

Em 1973, lançou, pela Editora José Olympio, seu primeiro livro, O Popular, com o subtítulo “crônicas, ou coisa parecida”, coletânea de textos editados na imprensa, formato que marcaria boa parte de suas futuras publicações. O primeiro grande sucesso, no entanto, aconteceu com o lançamento de seu quinto livro de crônicas, Ed Mort e Outras Histórias, o primeiro pela Editora L&PM, com a qual trabalharia durante 20 anos. Sátira aos romances policiais, o detetive Ed Mort inspiraria ainda um tira de quadrinhos desenhados por Miguel Paiva e um filme com Paulo Betti no papel título.

Verissimo se tornaria fenômeno de vendas com O Analista de Bagé, lançado em 1981, quando a primeira edição se esgotou em apenas dois dias. O personagem foi originalmente criado para um programa de humor na TV, capitaneado por Jô Soares. Com o projeto engavetado, Verissimo levou-o ao livro, tornando-se uma figura peculiar: psicanalista de formação freudiana ortodoxa, o analista não esconde, porém, seu sotaque e a predileção por costumes típicos da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai e a Argentina. A graça surgia justamente na contradição entre a sofisticação da psicanálise e a “grossura” caricatural do gaúcho da fronteira. O personagem inspirou dois livros de contos, um de quadrinhos (com desenhos de Edgar Vasques) e uma antologia.

A Velhinha de Taubaté, “a única pessoa que ainda acredita no governo”, surgiu dois anos depois, como crítica ao governo militar em seus anos derradeiros. Em pouco tempo, Verissimo cruzou fronteiras, tornou-se colaborador de programas humorísticos de televisão, vistos e ouvidos em todo o Brasil – é o caso das histórias da Comédia da Vida Privada, série de 21 programas (1995-1997), com roteiros de Jorge Furtado e direção de Guel Arraes.

‘Há diferença entre ser humorista e fazer humor’

Sua timidez tornou-se outra característica sempre lembrada, reforçando o valor de seu texto: sim, Verissimo sempre buscou ser engraçado na escrita e não na fala. Na verdade, nunca se julgou um humorista. “Acho que há uma diferença entre ser humorista e fazer humor”, disse, certa vez. “O humorista é o cara que tem uma visão humorística das coisas. O humor é sua maneira de ver e de ser.”

Uma filosofia que se revelou útil durante a dura fase de exceção. Veríssimo conta que, durante a ditadura, ele enviava uma crônica para o jornal deixando sempre uma na gaveta, de reserva. “E não foram poucas as vezes em que saiu a reserva”, comentou, em outra entrevista. “Os censores pareciam achar o cartum algo infantil; então, era mais fácil fazer passar um cartum político que um texto político.”

Autodeclarado um gaúcho desnaturado, por não andar a cavalo, não tomar chimarrão e ter nascido e se criado na cidade, Verissimo sentiu o gosto da felicidade plena no dia 4 de abril de 2008, quando sua filha Fernanda lhe deu a primeira neta, Lucinda, nascida em uma data especial: dia do aniversário do Sport Club Internacional.

O cronista mais popular do Brasil

Em 2020, Elias Thomé Saliba, professor da USP especializado em humor e autor de Raízes do Riso, descreveu o escritor como o cronista mais popular do Brasil, aquele que “diz o que o leitor quer falar, mas não consegue”. “Verissimo ultrapassa o transitório não apenas porque suas crônicas se transformam em livros, mas porque estabeleceu desde o início um pacto humorístico com o leitor.”

“Mais do que qualquer outro, o público que se torna parte do pacto humorístico é aquele que percorre o noticiário sério do jornal ou da revista e torna-se capaz de entender as alusões, ironias e paródias de Verissimo e de seu humor fortemente conectado com os eventos noticiados e, por isso, compreensível apenas naquelas situações”, defendia (leia a análise completa aqui).

Os ‘falsos Verissimos’ da internet

Com a era moderna, muitos dos textos passaram para o meio digital. Em muitos casos, porém, textos que não eram do autor contavam com a assinatura de “Luis Fernando Verissimo”, tentando ganhar credibilidade. Ele se acostumou ao fato. “Fico sem graça de dizer que não é meu. Em outra oportunidade, uma senhora veio me dizer que não gostava tanto dos meus textos, exceto do Quase, que era maravilhoso. O que posso dizer? Melhor não decepcionar. E quando vou a escolas onde os alunos encenam um texto que, na verdade, não é meu?”, relatava ao Estadão em 2016.

Curiosamente, Luis Fernando Verissimo se assumia como um “analfabeto em informática”, que se limitava ao uso de e-mails e Google. Para o restante, recorria aos filhos. Ainda sobre tecnologia, em texto publicado no Estadão em 2019, “Pertenço à geração perdida no tempo”, citava a “farta literatura premonitória” sobre robôs indestrutíveis. “Que eu saiba, ninguém ainda imaginou um roteiro em que os inimigos não sejam grandes robôs blindados, mas os pequenos celulares”.

Verissimo escrevia poucas palavras, mas era extremamente preciso

Em 2016, o escritor foi perguntado: qual a receita para seus textos serem populares e não popularescos? “Não tenho”. Em seguida, atribuía o mérito ao gênero: “Acredito que, antes de mais nada, é ter clareza na escrita. E, como a crônica normalmente não é um texto grande, torna-se acessível a qualquer público”. Ao longo da carreira, Verissimo ficou conhecido não apenas pelos “textos não tão grandes”, mas também por escrever estritamente o necessário, em pouquíssimas palavras, e ainda assim ter muito a dizer.

Para quem tem interesse em se aprofundar um pouco mais pela figura do autor, em 2024, o documentário Verissimo foi lançado. Fugindo do estilo biográfico cronológico, o longa tinha foco maior no cotidiano do escritor, prestes a completar 80 anos de idade à época das filmagens, que acompanhou por 15 dias. Atualmente, está disponível para assistir no streaming Mubi.

Ubiratan Brasil e André Carlos Zorzi, os autores deste texto, são Jornalistas. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.08.25

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

PEC da Blindagem mostra que, no escurinho do sistema, bolsonaristas e Centrão se acertam

No Brasil, desde que a Lava-Jato fez água, não passa um ano sem que brote no Congresso alguma iniciativa destinada a desmontar o aparato de fiscalização e controle do uso dos recursos públicos.

Oposicionistas fazem motim na Câmara contra prisão domiciliar de Bolsonaro — Foto: Cristiano Mariz/Agência O Globo/05/08/2025

Fazer o que bem entende sem ser cobrado ou punido é o sonho de qualquer um. Mas, para deputados, senadores, governadores, prefeitos, presidente da República, juízes ou ministros do Supremo, é uma causa que ganha status de prioridade sempre que o ambiente político permite. No Brasil, desde que a Lava-Jato fez água, não passa um ano sem que brote no Congresso alguma iniciativa destinada a desmontar o aparato de fiscalização e controle do uso dos recursos públicos.

Já tivemos a Emenda Constitucional que impedia a prisão de deputados por crimes que não fossem inafiançáveis, a que garantia a parlamentares acesso irrestrito aos inquéritos sobre eles mesmos, inclusive os protegidos por sigilo, além de um projeto que tornava crime chamar de ladrão políticos condenados por corrupção. Esses não passaram, mas outros viraram lei, como o que liberou advogados de ter de apresentar contratos formais para justificar o recebimento de recursos, ou a emenda que afrouxou a Lei de Improbidade Administrativa e dificultou a punição de autoridades por desvios de conduta.

A ofensiva em curso, o pacote da blindagem, surgiu no gabinete do ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), numa noite tumultuada. Um grupo de deputados invadira o plenário em protesto contra a prisão domiciliar de Bolsonaro e se recusava a devolver a cadeira do atual presidente, Hugo Motta (Republicanos-PB), a menos que se votasse a anistia aos presos do 8 de Janeiro. Revezavam-se na invasão, alternando ataques ao STF com críticas ao “sistema” — que, na narrativa da extrema direita, atua para tirar Bolsonaro do jogo eleitoral.

Foi quando os líderes reunidos no gabinete de Lira perceberam a oportunidade de ressuscitar projetos que tentam emplacar há anos. O primeiro diz que só o próprio Congresso pode autorizar a abertura de investigação sobre parlamentares, até mesmo inquéritos policiais, e o segundo tira do STF o poder de julgá-los, mudando o foro dos processos para instâncias inferiores.

O foco do Centrão é escapar de investigações sobre desvios de recursos de emendas. Mas o argumento apresentado no calor da hora foi que, só quando estiverem livres do Supremo, os deputados e senadores terão coragem de aprovar a anistia aos presos do 8 de Janeiro (o plano original serviria para libertar também Jair Bolsonaro). O líder do PL, Sóstenes Cavalcante, aceitou o acordo, de que Hugo Motta foi apenas informado.

A primeira parte do plano, chamada de PEC das Prerrogativas, virou prioridade na pauta da Câmara ontem. A mudança de foro ainda não se sabe se vinga, mas não porque os parlamentares tenham desistido, e sim porque uma ala teme que ficar nas mãos de juízes de primeira instância possa lhes render ainda mais problemas.

A consequência das mudanças é óbvia: um “liberou geral” para todo tipo de desmando, já que abrir inquéritos contra deputados e senadores ficará praticamente impossível. Também não será surpresa se o crime organizado despejar todo o dinheiro que puder na campanha de 2026 para colocar seus integrantes no Congresso.

A extrema direita, que se diz pela democracia e enche a boca para acusar Lula de bandido, sabe disso, mas finge que não vê. Os deputados de esquerda — que, diante dos microfones, chamam o pacote de salvo-conduto para os golpistas, mas nos corredores admitem que podem ajudar a aprová-lo — também sabem.

Para justificar o empenho pela aprovação dos projetos, Sóstenes repete aos quatro ventos que só tenta proteger os parlamentares das chantagens dos ministros do Supremo. Mas quem está chantageando quem, quando e por que, no entanto, ele não diz.

A única forma de conter essa onda é submeter os parlamentares ao vexame da exposição dos conchavos e à pressão da opinião pública. Foi assim com as últimas tentativas de passar a boiada da impunidade, e é por isso que os dois projetos vêm sendo discutidos a portas fechadas e em segredo. No escurinho do sistema, fronteiras ideológicas deixam de existir, e as causas por que esses guerreiros da democracia dizem lutar simplesmente desaparecem.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é jornalista especializada em politica e economia. Publicado originalmente n'O Globo, em 28.05.25

Eleição de 2026 será uma batalha

Parece ser consenso: nunca houve uma legislatura tão disforme e despreparada

Eleitora finaliza votação na urna eletrônica em Benfica, na Zona Norte do Rio — Foto: Custodio Coimbra / Agência O Globo

Não deveria ser surpresa os aspones das redes sociais escreverem leis apresentadas por deputados bolsonaristas — como se denuncia. Tampouco a mesma bancada do capitão se colocar contra a punição de quem sexualiza crianças atrás de monetização — como acontece. O problema não se encontra num poder controlado por baixos instintos. Está em como o espaço vazio foi ocupado sem resistência.

Atire a primeira pedra quem se lembrar do nome do deputado em que votou em 2022.

Parece ser consenso: nunca houve uma legislatura tão disforme e despreparada, movida a vinténs e de costas para a solução dos problemas brasileiros. Cada novo projeto saído da lavra dos parlamentares revela a discordância entre o que se pensa como futuro coletivo e o interesse privado de seus autores. Basta o exemplo do aumento de número de deputados bancado pelo presidente da casa, Hugo Motta. Com a ajuda do PT velho de guerra.

É de perguntar: a cara do Brasil é o deputado Sóstenes Cavalcante ou esse é o retrato da pátria adormecida, anestesiada e esquecida pela maioria que se afastou da política?

Em 1988, ano da Constituinte, com o Brasil disposto a escrever seu destino, houve mobilização entre vários setores de olho na eleição de membros do Parlamento. O país vinha da vitória da reconquista da democracia, da luta contra o arbítrio da ditadura civil-militar. Havia a crença de que a política fosse o caminho para superar o atávico subdesenvolvimento e a desigualdade aprofundada pelo regime extinto.

Vídeos pela internet exibem caravanas de diferentes grupos da sociedade levando ao Congresso suas reivindicações — de indígenas a mulheres, de artistas a garimpeiros e ainda profissionais liberais. No outro lado da bancada, deputados como Florestan Fernandes, um dos pais da sociologia moderna brasileira, ou o senador Afonso Arinos, um liberal letrado. Nem tudo era vista do mar, porque lá estava o deputado Roberto Cardoso Alves, o santo guerreiro do Centrão, discípulo cínico do dístico do “é dando que se recebe”. Aqui não se discute religião.

Isso faz parte do Brasil. Demoramos a abolir a escravatura pelos interesses dos fazendeiros, como demos as costas por quase cem anos à novidade da Revolução Industrial. Não se espante ao saber que — hoje, em 2025! — cada dólar de café exportado aos Estados Unidos gera a eles US$ 43 em valor agregado. É uma valorização de 4.200%!

Daí que parte da sociedade mobilizada sugere sair das reclamações em posts indignados para a organização — ou reação. Começam a circular convocatórias para que cidadãos de áreas diversas se candidatem a cargos eletivos no próximo ano. A ideia é disputar voto em suas áreas de influência e atuação, a partir de compromissos claros com a modernização e a higienização da atividade parlamentar.

Ocorreu algo semelhante em 1988, e não parece ser difícil repetir a conquista, dado que a Constituição aprovada, mesmo com seus defeitos, levou o Brasil a completar 40 anos de democracia, a despeito de dois impeachments e uma boa dúzia de escândalos.

Na base da polarização atual, se encontra o desencanto com a política escandido pela interdição de Dilma Rousseff e a malversação comandada pelo PT. Queira ou não, a esquerda representada pelo partido trazia no embalo a organização de diversas forças, muitas delas estandartes importantes para a sociedade.

A descoberta dos roubos na Petrobras, as caixinhas e coberturas afastaram da política formadores de opinião e deixaram sem discurso aqueles eleitores do PT incapazes de adotar o cinismo de resultados — algo que ocorreu às pencas com intelectuais ligados ao partido.

À debacle produzida pelo PT, se somam a contundência com que temas incômodos são vetados pelas redes sociais — à esquerda e à direita, vale dizer. Diria que a lacração começou com o marketing político pós-ditadura e com a rejeição de pautas polêmicas capazes de afugentar eleitores —mas isso é tema para outra coluna. Com o receio de não ganhar, adotou-se a hipocrisia eleitoral pautada pelo bom senso das pesquisas de opinião.

Pintada a política como algo sujo, decadente e reacionário. Tal discurso resultou no afastamento de setores que fariam a diferença, de personalidades capazes de encarar o contravapor dos amantes de emendas e dos office boys das big techs.

Para o Brasil de Adoniran Barbosa e Guimarães Rosa, que soube derrubar duas ditaduras, reencontrar a História não deve ser tarefa impossível.

Miguel de Almeida, o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema. Publicado originalmente n' O Globo, em 25.08.25

Brasil na capa da Economist: Julgamento de Bolsonaro 'dá lição aos EUA de maturidade democrática'

O ex-presidente Jair Bolsonaro e o julgamento da ação penal na qual ele é acusado de liderar uma suposta tentativa de golpe de Estado são o foco da capa da revista britânica The Economist desta semana.

 "O que o Brasil pode ensinar aos EUA" (Crédito, Reprodução/The Economist)

Na publicação, o ex-presidente é retratado com o rosto pintado com as cores do Brasil e com um chapéu igual ao que usava o "viking do Capitólio", um dos apoiadores do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que ficou conhecido por ter participado assim da invasão ao Congresso americano em 6 de janeiro de 2021.

Em suas páginas, a revista traz uma longa reportagem sobre a trajetória política brasileira e a investigação contra Bolsonaro e seus aliados.

Em um segundo texto, com tom opinativo, a Economist discute ainda as diferenças entre a forma como os Estados Unidos lidaram com as ameaças contra a sua democracia, após os ataques ao Capitólio em 2021, e a conduta adotada pelo Brasil nos últimos meses.

Com o título "Brasil oferece aos Estados Unidos uma lição de maturidade democrática", o editorial descreve a condução do processo penal contra Bolsonaro e seus aliados como uma "fantasia da esquerda americana".

"Os Estados Unidos estão se tornando mais corruptos, protecionistas e autoritários — com Donald Trump, esta semana, mexendo com o Federal Reserve (Fed) e ameaçando cidades controladas pelos democratas. Em contraste, mesmo com o governo Trump punindo o Brasil por processar Bolsonaro, o próprio país está determinado a salvaguardar e fortalecer sua democracia", diz a Economist.

A revista britânica descreve ainda Jair Bolsonaro como "polarizador" e o "Trump dos trópicos" e afirma que o ex-presidente brasileiro e "seus aliados, provavelmente, serão considerados culpados" pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Ainda segundo o texto, o plano contra a democracia brasileira pelo qual Bolsonaro é acusado "fracassou por incompetência, e não por intenção".

Bolsonaro e todos os outros acusados negam as acusações. O julgamento está marcado para começar na próxima terça-feira (2/9).

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As similaridades e diferenças apontadas pela revista entre Brasil e Estados Unidos se debruçam especialmente no fato de tanto Bolsonaro quanto o presidente americano Donald Trump terem sido acusados de agir para reverter o resultado de uma eleição, divulgar informações falsas sobre fraude e incitar seus apoiadores a invadirem prédios públicos para impedir a posse de seus adversários políticos.

No caso americano, Trump se tornou réu em ações estaduais e federais por suas ações após sua derrota na eleição presidencial de 2020 para o democrata Joe Biden.

Segundo uma das acusações, ele teria espalhado "mentiras de que houve fraude" e conspirado para mudar ilegalmente a eleição a seu favor, levando eventualmente à invasão da sede do Congresso americano. Trump refutou as alegações.

Quando os casos foram abertos, o republicano já se preparava para ser candidato às eleições de 2024, e os processos não chegaram a ser concluídos antes de ele voltar à Casa Branca no início deste ano, após derrotar a democrata Kamala Harris nas urnas.

Trump não foi acusado de sedição — possibilidade que era a principal ameaça à sua candidatura, já que a 14ª Emenda da Constituição proíbe quem "tiver se envolvido em insurreição ou rebelião" contra o governo de ocupar cargos civis ou militares em gestões federal ou estadual. E como não há instrumento similar à Lei da Ficha Limpa brasileira nos EUA, os indiciamentos não afetaram a campanha do americano.

O atual presidente dos EUA ainda foi julgado pelo Congresso em dois processos de impeachment em 2021, após o fim do seu primeiro mandato, mas foi absolvido pelo Senado americano. O efeito prático de uma condenação naquele momento poderia ser a perda de seus direitos políticos.

Quando Trump assumiu os processos foram extintos, após a Suprema Corte dos Estados Unidos decidir que ex-chefes de Estado têm imunidade absoluta contra processos por ações tomadas oficialmente como presidente durante o mandato.

Logo após sua posse no início deste ano, Trump anunciou sua decisão de perdoar ou atenuar as sentenças de quase 1,6 mil pessoas envolvidas na invasão do Capitólio.

Montagem com fotos da invasão à sede dos Três Poderes em Brasília e a invasão do Capitólio nos EUACrédito,Reuters

Já Bolsonaro foi declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2023 por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros em 2022.

No julgamento previsto para a próxima semana, o ex-presidente brasileiro é acusado de cinco crimes relacionados a um suposto plano de golpe de Estado para impedir Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de assumir o poder após as eleições de 2022.

Entre os crimes imputados ao ex-presidente estão liderança de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

Os dois últimos se referem aos ataques de 8 de janeiro de 2023 contra as sedes dos Três Poderes da República. Na ocasião, milhares de apoiadores radicais de Bolsonaro, insatisfeitos com a eleição e posse do presidente Lula, invadiram e depredaram o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF — em um episódio amplamente comparado ao que aconteceu em 2021 em Washington.

Apoio de Trump a Bolsonaro pode fazer americanos pagarem mais por hambúrguer, diz The Economist

O que o Brasil pode ensinar aos EUA, segundo a Economist

Segundo a Economist, o Brasil é "um caso de teste de como os países se recuperam de uma febre populista".

"Na Polônia, dois anos após a perda do poder do partido Lei e Justiça (PiS), uma coalizão liderada por Donald Tusk, um centrista, está sendo limitada por um novo presidente do PiS. No Reino Unido, o Brexit agora é impopular, mas Nigel Farage, o político que o inspirou, lidera nas pesquisas. Nem mesmo o massacre do Hamas em 7 de outubro de 2023 conseguiu tirar Israel de suas amargas divisões".

Mas, segundo o texto, o país que mais viveu momentos semelhantes ao Brasil é os Estados Unidos. E de acordo com a publicação britânica, as duas nações "parecem estar trocando de lugar".

Para a Economist, o passado recente com uma ditadura militar pode ajudar a explicar porque a reposta às ameaças à democracia em território brasileiro foi mais forte.

"Além disso, a maioria dos brasileiros não tem dúvidas sobre o que Bolsonaro fez. A maioria acredita que ele tentou dar um golpe para se manter no poder", diz a revista, afirmando ainda que mesmo os políticos conservadores do país, que precisarão dos votos dos apoiadores de Bolsonaro para vencer as eleições de 2026, criticam o "estilo político" do ex-presidente.

E, segundo a publicação, esse "reconhecimento abriu a oportunidade de reforma" no Brasil, pois "a maioria dos políticos brasileiros, tanto de esquerda quanto de direita, quer deixar para trás a loucura de Bolsonaro e sua polarização radical".

O papel do STF

Mas segundo a Economist, um dos pontos-chave para uma mudança institucional no país passa pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que é descrito pela revista como "guardião da democracia brasileira".

O editorial afirma que a corte "supervisiona uma gama estonteante de regras, direitos e obrigações" e pode receber casos de grupos que vão de sindicatos a partidos políticos.

O texto cita ainda o caso conhecido como Inquérito das Fake News, aberto pelo STF para investigar notícias falsas e ameaças contra os membros da Corte e seus familiares. Segundo a revista, os próprios magistrados abriram o caso, tornando-se ao mesmo tempo "vítima, promotor e juiz".

"Para lidar com uma carga de trabalho de 114.000 decisões somente em 2024, a maioria das decisões vem de juízes individuais. Há amplo reconhecimento de que juízes não eleitos, com tanto poder, podem corroer a política, bem como salvá-la de golpes. Os próprios juízes veem a necessidade de mudança."

A Economist segue afirmando que "consertar" o STF "será difícil", mas que há mais obstáculos para uma reforma no Brasil, como uma "incontinência fiscal crônica, em particular isenções fiscais descontroladas e aumentos automáticos de gastos" e a polarização nacional.

"Mesmo que as elites queiram mudanças, o Brasil ainda é um país profundamente dividido. Bolsonaro tem apoiadores fanáticos que causarão problemas, especialmente se o tribunal impor uma sentença severa. Reformar o Supremo Tribunal Federal e a Constituição exige que grupos abram mão do poder em prol do bem comum", diz o editorial.

Por isso, tensões seriam inevitáveis. "Mas, ao contrário de seus colegas nos Estados Unidos, muitos dos políticos tradicionais do Brasil, de todos os partidos, querem seguir as regras e progredir por meio de reformas."

Segundo a Economist, essas são as marcas da maturidade política. "Pelo menos temporariamente, o papel do adulto democrático do hemisfério ocidental mudou para o sul."


Edição da Economist desta semana também traz uma longa reportagem sobre a trajetória política brasileira e a investigação contra Bolsonaro e seus aliados. (Crédito: Reprodução / The Economist)

Estratégia de Trump 'sairá pela culatra'

Outro empecilho na trajetória do Brasil apontado é o presidente americano Donald Trump, que como lembra a revista, acusou o STF de uma "caça às bruxas" contra Bolsonaro, impôs tarifas de 50% sobre as importações brasileiras nos EUA e decretou sanções contra o ministro Alexandre de Moraes.

Segundo a Economist, essa interferência "faz lembrar de uma época passada e desagradável, quando os Estados Unidos habitualmente desestabilizavam os países latino-americanos".

Mas, de acordo com a revista, a estratégia de Trump "provavelmente sairá pela culatra".

"Apenas 13% das exportações brasileiras vão para os Estados Unidos, e consistem principalmente de commodities, para as quais novos mercados podem ser encontrados. Os EUA já concederam inúmeras isenções. Até agora, os ataques de Trump apenas fortaleceram a posição de Lula nas pesquisas de opinião e lhe deram uma desculpa para qualquer notícia econômica ruim antes da próxima eleição, em outubro de 2026."

O que a Economist já disse sobre o Brasil

Esta não é a primeira reportagem da britânica Economist sobre o atual momento político brasileiro. Tampouco é a primeira capa dedicada pela publicação ao Brasil.

Em textos anteriores, a revista já tratou da posição do presidente Lula após ser atacado pelo presidente americano Donald Trump e alertou sobre o peso que as taxas anunciadas pelo republicado podem acabar pesando no bolso dos consumidores americanos.

Em 2009, 2013 e 2016, capas da publicação também trataram da situação política e econômica do Brasil.

A primeira capa retratava um momento em que as avaliações sobre a economia brasileira viviam um momento bom, com o título "Brasil decola". Quatro anos depois, em uma referência à reportagem anterior, a manchete da revista questionava se o país havia "estragado tudo", em meio a uma desaceleração do crescimento econômico.

Em 2015, uma outra capa previa um ano seguinte 'desastroso' para o Brasil, em meio ao governo da ex-presidente Dilma Rousseff.

Julia Braun, a autora desta reportagem, é Repórter da BBC Brasil em Londres (UK). Publicada originalmente em 28.08.25