Parece ser consenso: nunca houve uma legislatura tão disforme e despreparada
Eleitora finaliza votação na urna eletrônica em Benfica, na Zona Norte do Rio — Foto: Custodio Coimbra / Agência O Globo
Não deveria ser surpresa os aspones das redes sociais escreverem leis apresentadas por deputados bolsonaristas — como se denuncia. Tampouco a mesma bancada do capitão se colocar contra a punição de quem sexualiza crianças atrás de monetização — como acontece. O problema não se encontra num poder controlado por baixos instintos. Está em como o espaço vazio foi ocupado sem resistência.
Atire a primeira pedra quem se lembrar do nome do deputado em que votou em 2022.
Parece ser consenso: nunca houve uma legislatura tão disforme e despreparada, movida a vinténs e de costas para a solução dos problemas brasileiros. Cada novo projeto saído da lavra dos parlamentares revela a discordância entre o que se pensa como futuro coletivo e o interesse privado de seus autores. Basta o exemplo do aumento de número de deputados bancado pelo presidente da casa, Hugo Motta. Com a ajuda do PT velho de guerra.
É de perguntar: a cara do Brasil é o deputado Sóstenes Cavalcante ou esse é o retrato da pátria adormecida, anestesiada e esquecida pela maioria que se afastou da política?
Em 1988, ano da Constituinte, com o Brasil disposto a escrever seu destino, houve mobilização entre vários setores de olho na eleição de membros do Parlamento. O país vinha da vitória da reconquista da democracia, da luta contra o arbítrio da ditadura civil-militar. Havia a crença de que a política fosse o caminho para superar o atávico subdesenvolvimento e a desigualdade aprofundada pelo regime extinto.
Vídeos pela internet exibem caravanas de diferentes grupos da sociedade levando ao Congresso suas reivindicações — de indígenas a mulheres, de artistas a garimpeiros e ainda profissionais liberais. No outro lado da bancada, deputados como Florestan Fernandes, um dos pais da sociologia moderna brasileira, ou o senador Afonso Arinos, um liberal letrado. Nem tudo era vista do mar, porque lá estava o deputado Roberto Cardoso Alves, o santo guerreiro do Centrão, discípulo cínico do dístico do “é dando que se recebe”. Aqui não se discute religião.
Isso faz parte do Brasil. Demoramos a abolir a escravatura pelos interesses dos fazendeiros, como demos as costas por quase cem anos à novidade da Revolução Industrial. Não se espante ao saber que — hoje, em 2025! — cada dólar de café exportado aos Estados Unidos gera a eles US$ 43 em valor agregado. É uma valorização de 4.200%!
Daí que parte da sociedade mobilizada sugere sair das reclamações em posts indignados para a organização — ou reação. Começam a circular convocatórias para que cidadãos de áreas diversas se candidatem a cargos eletivos no próximo ano. A ideia é disputar voto em suas áreas de influência e atuação, a partir de compromissos claros com a modernização e a higienização da atividade parlamentar.
Ocorreu algo semelhante em 1988, e não parece ser difícil repetir a conquista, dado que a Constituição aprovada, mesmo com seus defeitos, levou o Brasil a completar 40 anos de democracia, a despeito de dois impeachments e uma boa dúzia de escândalos.
Na base da polarização atual, se encontra o desencanto com a política escandido pela interdição de Dilma Rousseff e a malversação comandada pelo PT. Queira ou não, a esquerda representada pelo partido trazia no embalo a organização de diversas forças, muitas delas estandartes importantes para a sociedade.
A descoberta dos roubos na Petrobras, as caixinhas e coberturas afastaram da política formadores de opinião e deixaram sem discurso aqueles eleitores do PT incapazes de adotar o cinismo de resultados — algo que ocorreu às pencas com intelectuais ligados ao partido.
À debacle produzida pelo PT, se somam a contundência com que temas incômodos são vetados pelas redes sociais — à esquerda e à direita, vale dizer. Diria que a lacração começou com o marketing político pós-ditadura e com a rejeição de pautas polêmicas capazes de afugentar eleitores —mas isso é tema para outra coluna. Com o receio de não ganhar, adotou-se a hipocrisia eleitoral pautada pelo bom senso das pesquisas de opinião.
Pintada a política como algo sujo, decadente e reacionário. Tal discurso resultou no afastamento de setores que fariam a diferença, de personalidades capazes de encarar o contravapor dos amantes de emendas e dos office boys das big techs.
Para o Brasil de Adoniran Barbosa e Guimarães Rosa, que soube derrubar duas ditaduras, reencontrar a História não deve ser tarefa impossível.
Miguel de Almeida, o autor deste artigo, é editor e diretor de cinema. Publicado originalmente n' O Globo, em 25.08.25
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