sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Pós-democracia: O fim de uma ordem mundial?

Hoje, parece que a democracia deixou de ser a força motriz do desenvolvimento político que foi durante o último meio século. Há sinais de que isso é evidente.

Cédula de votação primária presidencial, Santiago, Chile, 29 de junho de 2025.  (Crédito: Cristobal Venegas) 

A ordem mundial estabelecida ao final da Segunda Guerra Mundial concebia a democracia como a forma ideal de governo, baseada em três ideias fundamentais: eleição popular de autoridades por meio de eleições livres, competitivas, igualitárias e secretas; a separação de poderes; e a expansão dos direitos humanos no âmbito do Estado de Direito. Tudo isso, além disso, ocorreu em um contexto de crescente reconhecimento do pluralismo.

Esse panorama consolidou-se no contexto da "terceira onda" teorizada por Samuel Huntington, que abrange os processos democratizantes ocorridos nas duas décadas que separam os do sul da Europa e os do leste. O fracasso do comunismo, do militarismo desenvolvimentista e de vários modelos de regimes sultanistas era evidente, e quase todos os países latino-americanos se viram imersos nesse movimento. Restaram apenas casos desviantes, como Cuba , mas a maioria aparentemente seguiu o caminho da chamada consolidação democrática.

O sucesso dessa transformação no final do século passado traduziu-se em um novo impulso na ciência política e em uma agenda para a "qualidade da democracia", que consiste em mensurar seu comportamento de acordo com abordagens teóricas pioneiras e desenvolvidas por, entre outros, Guillermo O'Donnell e Leonardo Morlino. Isso levou a avanços significativos na análise da democracia com base na avaliação de seus componentes. A Freedom House, a The Economist Intelligence Unit, a Fundação Bertelsmann, a International IDEA e o Projeto V-DEM foram os agentes mais proeminentes na condução desses estudos.

A reviravolta global provocada pela pandemia exacerbou os sintomas de fadiga que vários países, em diferentes níveis do arcabouço democrático, vinham experimentando. A desconfiança nas instituições, o descaso pela democracia e a crise de representação política, evidentes em partidos fragmentados e voláteis, com uma identidade reduzida e turva, eram evidentes. Isso também foi articulado pela centralidade de líderes inexperientes, empurrados para a arena política por consultores de comunicação especializados. Além disso, na maioria dos países latino-americanos, os fracos resultados no combate à insegurança pública e à corrupção desacreditaram ainda mais a política.

Esse cenário foi completado por uma sociedade transformada pela revolução digital exponencial: o crescente individualismo, a articulação de diferentes identidades nas redes sociais emergentes (que romperam com as formas anteriores de interação social), novos mecanismos de informação e comunicação que alcançavam as pessoas de forma personalizada, imediata e viral, e o domínio da pós-verdade (com a presença de formas de manipulação da realidade). Tratou-se, em suma, da consolidação de uma "sociedade da fadiga", segundo Byung-Chul Han, que explorou o estado da "sociedade líquida", conforme teorizado por Zygmunt Bauman, para o qual ele havia defendido a sociedade de consumo.

Hoje, parece que a democracia deixou de ser a força motriz do desenvolvimento político que foi durante o último meio século. Nada sugere que o inegável consenso estabelecido se mantenha. Os sinais são claros

Além disso, o mundo é movido por conglomerados tecnológicos em constante crescimento, com escala financeira sem precedentes. Eles agem em conjunto com a alienação dos seres humanos, desenvolvendo novas formas de ação coletiva incompatíveis com a forma como a democracia, agora desarticulada, evoluiu ao longo de décadas, e abrindo caminho para um cenário pós-democrático incomum e incerto, onde a polarização emocional se mostra um instrumento eficaz.

Dentro da ambiguidade do termo, e em meio ao desmantelamento do multilateralismo como caminho para uma ordem mundial minimamente operacional, três fenômenos estão emergindo, aos quais agora se soma a disrupção provocada pela inteligência artificial (IA).

A primeira delas refere-se à capacidade autodestrutiva que sempre foi considerada inerente à democracia. Há atores internos cujo comportamento é desleal, ou mesmo "semileal", como denunciou Juan Linz. Um exemplo é Vladimir Putin, que já foi presidente graças ao voto popular, mas imediatamente começou a corroer o credo democrático, esmagando a oposição e tomando todas as alavancas do poder. O chavismo, Daniel Ortega e Nayib Bukele fizeram o mesmo , com resultados devastadores para seus países.

A segunda diz respeito ao caminho perigoso trilhado por Donald Trump e seus doze seguidores na Europa e na América Latina. Seu comportamento mina os direitos humanos ao bloquear políticas de inclusão, diversidade e igualdade, e ao criar bodes expiatórios para desabafar a ira de uma população seduzida por múltiplas formas de manipulação da realidade. A retórica nacionalista, bem como os ataques à mídia independente, a intelectuais e a grupos de oposição, minam qualquer estrutura de consideração e respeito ao pluralismo.

Em terceiro lugar, há o modelo chinês de inegável sucesso econômico e enorme transformação social, impulsionado pela urbanização e pela elevação dos padrões educacionais e de saúde. Assim, o autoritarismo chinês tornou-se um estímulo à manutenção de formas antidemocráticas em outros países.

Por sua vez, a IA está se mostrando uma ferramenta disruptiva que impacta drasticamente a desinformação e fomenta o conhecimento das preferências das pessoas, tornando a participação política convencional obsoleta. Não será surpresa, portanto, que a forma como os eleitores vão regularmente às urnas seja imediatamente substituída, assim como a forma como elegem seus representantes.

A pós-democracia, em suma, representa um espaço incerto que responde aos desafios da sociedade digital, ao mesmo tempo em que é consequência do cerco histórico sofrido pela democracia representativa e de suas falhas em enfrentar os problemas dos cidadãos e atender às suas demandas.

Manuel Alcántara Sáez, cientista politico, para o EL PAÍS. Publicado originalmente em 05.08.25

Brasil convoca chefe diplomático dos EUA em Brasília após ameaça da embaixada a aliados de Moraes

O Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, convocou nesta sexta-feira (8/8) o encarregado de negócios da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, Gabriel Escobar, para uma reunião na sede da pasta, em Brasília.

Na ausência de um embaixador no Brasil, Gabriel Escobar é o encarrego pela Embaixada dos EUA em Brasília (Crédito,Umeys Sulejman/Anadolu Agency via Getty Images)

A convocação aconteceu após a Embaixada dos Estados Unidos fazer uma postagem nas redes sociais chamando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes de "principal arquiteto da censura e perseguição contra (Jair) Bolsonaro e seus apoiadores".

O texto ainda alerta que integrantes do Judiciário e de outras esferas "estão avisados para não apoiar nem facilitar" a conduta do magistrado, acrescentando que Washington "monitora a situação de perto".

A convocação de Escobar foi confirmada pela assessoria de imprensa da Embaixada à BBC News Brasil.

"O encarregado de Negócios da Embaixada e Consulados dos EUA, Gabriel Escobar, se reuniu hoje com representantes do Ministério das Relações Exteriores. A Embaixada não divulga conteúdo de reuniões privadas", diz a assessoria.

Escobar é o atual principal representante do governo dos EUA no Brasil, já que o presidente americano ainda não nomeou um embaixador para atuar em Brasília.

A convocação é uma medida séria em relações internacionais e uma demonstração de desagrado com a outra nação.

A publicação no perfil da Embaixada dos EUA é uma reprodução de uma postagem feita na quarta-feira (6/8) pelo subsecretário de Diplomacia Pública dos Estados Unidos, Darren Beattie, e acontece na mesma semana em que Moraes determinou a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

"Suas flagrantes violações de direitos humanos resultaram em sanções pela Lei Magnitsky, determinadas pelo presidente Trump", diz a postagem.

Em julho, os EUA já haviam incluído o ministro na lista de sancionados pela Lei Magnitsky, bloqueando ativos e proibindo sua entrada no país por alegadas violações de direitos humanos.

Alguns dias antes da postagem da embaixada, o Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental, órgão que coordena a política externa norte-americana para as Américas, também havia se manifestado.

"O juiz Moraes, agora um violador de direitos humanos sancionado pelos EUA, continua a usar as instituições brasileiras para silenciar a oposição e ameaçar a democracia. Impor ainda mais restrições à capacidade de Jair Bolsonaro de se defender em público não é um serviço público. Deixem Bolsonaro falar!", disse o órgão em nota.

A prisão domiciliar de Jair Bolsonaro

O ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo julgado no STF por tentativa de golpe de Estado. Portanto, ele ainda não foi condenado nesse processo.

A prisão domiciliar determinada por Moraes ocorre porque o ex-presidente teria descumprido medidas estabelecidas anteriormente.

Em 17 de julho, Moraes impôs uma série de medidas cautelares ao ex-presidente, entre elas o uso de tornozeleira eletrônica, recolhimento domiciliar noturno e proibição de usar redes sociais, direta ou indiretamente.

Segundo Moraes, haveria indícios de que ele estaria praticando ao menos três crimes: coação no curso de processo legal; obstrução de investigação; e atentado à soberania.

Quatro dias depois, em 21 de julho, a Primeira Turma do STF referendou a decisão e reforçou que a proibição de uso das redes se estendia também à veiculação de áudios, vídeos ou transcrições de entrevistas em perfis de terceiros.

Moraes esclareceu que entrevistas e discursos públicos usados como "material pré-fabricado" para alimentar redes sociais por meio de aliados também seriam considerados descumprimento da ordem judicial.

Na decisão da prisão assinada em 4 de agosto, o magistrado afirma que Bolsonaro violou as restrições definidas em 17 de julho, quando foi obrigado a usar tornozeleira eletrônica e ficou proibido de utilizar redes sociais, direta ou indiretamente.

De acordo com Moraes, o ex-presidente seguiu se comunicando com o público por meio de aliados e familiares.

O ministro destacou a divulgação de vídeos e áudios feitos por Bolsonaro, durante os atos realizados no domingo (4/8), publicados nas redes por seus filhos e apoiadores. Para Moraes, o conteúdo reforça uma tentativa de obstruir a Justiça e pressionar o STF.

No documento, Moraes especifica que a prisão deve ser cumprida integralmente no endereço residencial de Bolsonaro. Qualquer saída de casa deve ser previamente comunicada, solicitada e autorizada.

Na quinta-feira (7/8), Moraes autorizou Bolsonaro a receber visitas de aliados políticos.

Segundo a decisão, enquanto estiver em regime de prisão domiciliar, Bolsonaro deve obedecer às seguintes medidas:

Proibição de receber visitas, com exceção de seus advogados e pessoas previamente autorizadas pelo STF, entre elas a ex-primeira dama Michele Bolsonaro e a filha do casal;

Os visitantes autorizados estão proibidos de utilizar celular, tirar fotos ou gravar imagens;

Proibição de uso de celular, diretamente ou por intermédio de terceiros.

Além disso, outras medidas cautelares, que já estavam em vigor, foram mantidas e devem continuar a ser cumpridas no regime de prisão domiciliar, segundo o STF. São elas:

Proibição de manter contatos com embaixadores ou quaisquer autoridades estrangeiras;

Proibição de aproximação e acesso a embaixadas e consulados de países estrangeiros;

Proibição de manter contatos com os demais réus e investigados nas ações penais da trama golpista, inclusive por intermédio de terceiros. Todos os réus e investigados também foram proibidos de visitar Bolsonaro;

Proibição de uso de redes sociais, diretamente ou por intermédio de terceiros.

Para garantir o cumprimento da proibição do uso dos aparelhos celulares e a prisão domiciliar, o ministro Alexandre de Moraes determinou a busca e apreensão de quaisquer celulares que estivessem em posse de Jair Bolsonaro.

Leandro Prazeres, jornalista, de Brasília-DF para a BBC News Brasil, em 08.08.25

‘Me sinto pronto’, diz Eduardo Leite sobre plano de disputar o Planalto

Em entrevista ao PlatôBR, o governador do Rio Grande do Sul defendeu a necessidade de o país superar a polarização e o ódio na política. Ele também apontou como urgente a adoção de medidas para ajustar as contas públicas

Eduardo Leite, Governador do Rio Grande do Sul (Foto: Daniel Medeiros/PlatôBR)

Eduardo Leite se diz pronto para ser candidato ao Palácio do Planalto. E já tem o discurso equalizado: quer ser o caminho alternativo à polarização entre o petismo e o bolsonarismo e resgatar nos brasileiros um “sentimento de esperança” no lugar “da raiva e do rancor”.

Recém-filiado ao PSD, o governador gaúcho também tem na ponta da língua um argumento talhado para reivindicar prioridade em relação a seus concorrentes na centro-direita, em especial Tarcísio de Freitas (Republicanos), que nos bastidores é apontado como a opção predileta do comandante de seu novo partido, Gilberto Kassab: para além de lembrar que o governador de São Paulo pode buscar mais um mandato no Palácio dos Bandeirantes para “seguir semeando novos projetos” e consolidar seus feitos, ele promete que, se chegar ao Planalto, uma de suas prioridades será trabalhar pelo fim da reeleição. Sustenta que quer apenas um mandato – seria o suficiente, diz, para fazer o que pretende.

“O recado é o seguinte: me ajudem a fazer as reformas, me ajudem a colocar o país nos eixos e não se preocupem com a próxima eleição porque não serei candidato”, disse em entrevista exclusiva ao PlatôBR nesta quarta-feira, 6 (leia aqui).

Nas entrelinhas, é um discurso para assegurar aos demais pretendentes, em especial aqueles que correm na mesma raia, como Tarcísio, que não precisarão esperar tanto tempo na fila caso topem abrir mão da candidatura em 2026. Eduardo Leite, que diz ter como referências na política Fernando Henrique Cardoso e Barack Obama, ainda tem aparecido modestamente nas pesquisas de intenção de voto no primeiro turno (menos de cinco pontos percentuais), mas acredita que pode avançar. Em cenários de segundo turno, ele chega a empatar tecnicamente até com o presidente Lula.

Se repete incansavelmente o discurso de que o Brasil precisa superar a polarização, o governador também insiste em outra necessidade premente: ajustar as contas públicas, sob pena de a máquina parar. “Nós temos um déficit monumental nas contas públicas, projeções futuras de falta de dinheiro para pagar o custeio básico da máquina pública. Não é faltar dinheiro para investir. Vai faltar dinheiro para pagar os serviços para a população”, afirma, em tom grave.

Eis a entrevista:

O senhor se vê como candidato a presidente da República?

Eu participei das prévias do PSDB lá atrás, então acho que já demonstrei que tenho disposição, energia e me sinto pronto para exercer essa função. Agora, uma candidatura à Presidência não é uma decisão só nossa. Eu, sim, me sinto pronto, disposto e com energia, mas a gente tem que construir isso dentro do partido. Eu defendo que o Brasil possa superar esse momento de polarização e que a gente saia desse clima bélico de hoje, que tenta sempre tachar quem pensa diferente de alguém mal-intencionado. É preciso sair da discussão sobre as pessoas e passar a discutir os problemas. E se eu defendo esse movimento de despolarização, eu tenho responsabilidade com ele, inclusive para liderar esse movimento. Acho que, a partir do segundo semestre, com a retomada dos trabalhos legislativos, teremos um momento de tensionamento, especialmente em função de episódios relacionados ao ex-presidente (Jair) Bolsonaro e das questões das tarifas. Mas imagino que, mais perto do final do ano, a gente tenha um cenário mais claro do ponto de vista do tabuleiro eleitoral e, assim, possamos definir melhor as candidaturas. Mas, sim, eu me disponho. Me interessa e quero ajudar o país a sair dessa difícil situação em que está, inclusive me tornando candidato a presidente.

O presidente de seu partido, Gilberto Kassab, é secretário de Tarcísio de Freitas, do Republicanos, outro nome colocado como pré-candidato ao Planalto. No próprio PSD tem ainda governador do Paraná, Ratinho Júnior, que também é apontado como interessado na disputa. Como o senhor entende que Kassab vai lidar com isso?

O presidente Kassab tem sido muito habilidoso e competente na condução do partido, e também muito firme em posições relacionadas ao país. Acho que o que ele construiu no PSD foi fruto de uma articulação que reuniu nomes verdadeiramente interessados em oferecer alternativas para o Brasil. Ao me movimentar para o PSD, eu estou justamente dizendo isso: “Olha, não contem comigo para dividir”. Se eu quisesse simplesmente ser candidato a qualquer custo, de qualquer jeito, para atender a uma aspiração pessoal, eu ficaria onde estava e provavelmente teria candidatura garantida. Mas não é sobre atender à minha aspiração. O político naturalmente também tem a aspiração de ascender. Eu fui prefeito, fui governador, e ser presidente da República será uma honra. Mas, antes da minha aspiração como político, vem a minha aspiração como brasileiro, e como brasileiro eu não quero mais ver o país se engalfinhando em conflitos. O governador Ratinho é um bom governador, tem habilidade e faz um governo correto no Paraná, com bons resultados. O governador Tarcísio também tem talento para a gestão e entrega bons resultados em São Paulo, modernizando a máquina pública. Temos convergências e divergências, e uma delas é justamente o posicionamento em relação ao ex-presidente Bolsonaro. Essa é uma diferença que nós temos. Eu não apoiei Bolsonaro, não sou apoiador dele, assim como não sou apoiador de Lula. Isso me dá mais independência para ajudar o país a superar o quadro de polarização. Mas a definição vai se dar mais à frente. Nós vamos ter que discutir projeto. Não é só sobre ganhar a eleição. É sobre viabilizar um projeto de país. Que projeto é esse, quais são as prioridades? O país precisa modernizar a máquina pública, precisa fazer reformas. Nós temos um déficit monumental nas contas públicas, projeções futuras de falta de dinheiro para pagar o custeio básico da máquina pública. Não é faltar dinheiro para investir. Vai faltar dinheiro para pagar os serviços para a população. É isso o que o próprio governo reconhece em seus relatórios. Qual é a agenda para superar isso? A gente vai ter que promover uma união em torno de um projeto. E tendo uma união em torno de um projeto, a gente vai identificar quem melhor pode liderar esse projeto na hora certa.

O senhor fala muito em convergências e divergências com o governo Lula. Seu novo partido está na base do governo e, ao mesmo tempo, na oposição. Qual é a sua postura em relação a isso?

Eu me posiciono como oposição ao governo Lula. Oposição no sentido de divergência de ideias, não para inviabilizar o governo. Discordo da forma como o país é conduzido. As manifestações do presidente Lula relacionadas aos Estados Unidos, por exemplo, são, na minha visão, absolutamente equivocadas. Elas abrem um cenário de instabilidade e prejudicam relações com um parceiro tão importante e histórico como os Estados Unidos. Por isso, me coloco como oposição. Mas insisto: sou, antes de tudo, governador de um estado que faz parte de uma federação e que tem um presidente da República. O povo me escolheu, e o presidente Lula governa também para os gaúchos e brasileiros do meu estado. Nós temos coincidência de público, mesmo que sejamos oposição, e precisamos trabalhar juntos. Sou muito republicano nisso e minha tarefa não é buscar inviabilizar governos. O PSD, em 2022, não teve candidato à Presidência. Até fui convidado a migrar para o PSD naquela oportunidade, mas achei que não era oportuno às vésperas da eleição. Não tendo candidatura própria, grupos do partido escolheram um lado ou o outro. Agora, em 2026, acho que teremos a oportunidade de ter candidatura própria do PSD, algo que o presidente Kassab mira e busca. Se houver necessidade de composição em torno de um projeto de superação da polarização. Pode ser que não tenha, mas é muito provável que haja.

O senhor entende que o PSD, pelo tamanho que ganhou, merece a cabeça de chapa?

Eu entendo que sim, chegou a hora. Acho que houve uma articulação correta ao longo do tempo. Muitos do PSDB migraram para o PSD, como eu, por enxergar não apenas uma agenda correta para o país, mas uma forma de fazer política. Porque na política não é só o que fazer, é também como fazer. Numa democracia, a política é instrumento fundamental para arbitrar diferenças. Se você despreza a política, cria um ambiente de atritos, como temos visto, que inviabiliza políticas públicas. Então, o “o quê” e o “como” são igualmente importantes. E acho que o PSD reúne pessoas que têm apreço pela política bem feita, não a de concessão de benefícios, mas a que promove consensos mínimos críticos para o país avançar.

E, nessa equação, como resolver o fator Tarcísio de Freitas? Nos bastidores, há quem diga que o presidente do seu partido tem certo pendor pela candidatura de Tarcísio. Como resolver isso?

O governador de São Paulo sempre será um presidenciável, seja quem for. É possível que seja um nome, mas ele ainda está no primeiro mandato, no seu primeiro cargo eletivo. É razoável pensar que queira continuar. Eu sou governador reeleito e sei que boa parte do que colhemos agora foi plantado no primeiro governo. Ele terá a oportunidade, se reeleito, de colher o que plantou e seguir semeando novos projetos. Mas o contexto político pode desenhar outro caminho. E eu também ouço dos analistas que nada é garantido. O governador de São Paulo vai ser sempre um presidenciável. É um estado que tem quatro vezes a população do Rio Grande do Sul, grande força econômica e, naturalmente, concentra a cobertura dos veículos de comunicação. A cobertura jornalística sobre São Paulo é imensamente maior do que a dos outros estados. Nós, lá no Sul, ficamos gritando para mostrar: “Olha, botamos as contas em dia, reduzimos indicadores de criminalidade, retomamos capacidade de investimento”. Tem um monte de coisa boa que a gente fez, mas conseguimos entrar nas notícias nacionais apenas em notas menores. Já em São Paulo, qualquer coisa que se faça é mega, é grande, é gigante, e isso ocupa muito mais espaço. Então é natural que seja sempre um nome que desponte.

O senhor declarou que encarou com desânimo a prisão domiciliar do ex-presidente Bolsonaro. O senhor é contra a prisão?

O meu desânimo não é simplesmente por uma prisão ou não, é pelo contexto todo. O país elegeu cinco presidentes desde a redemocratização. Desses cinco presidentes eleitos, apenas um — Fernando Henrique (Cardoso) — não foi nem preso nem sofreu impeachment. Todos os outros ou sofreram impeachment ou foram presos, ou as duas coisas, como foi o caso do ex-presidente Collor. É muito triste isso. Não tem como ficarmos felizes, como brasileiros, vendo o país vivenciar algo assim. Também me preocupa o contexto da decisão do ministro Alexandre de Moraes. Vamos lá: até vi algumas pessoas que trouxeram minha declaração quando o presidente Lula foi preso, porque Lula foi preso num contexto de decisão de órgão colegiado. O processo passou pela primeira instância, segunda instância (TRF-4), depois por órgão colegiado no STF. A Justiça cumpriu toda uma jornada para chegar àquela decisão. Não é o que aconteceu agora. A jornada do processo do presidente Bolsonaro ainda está acontecendo. Depois do inquérito da Polícia Federal, da denúncia da Procuradoria-Geral da República e da instrução com depoimentos e provas, haverá o voto do relator (ministro Alexandre de Moraes) e aí vai para um órgão colegiado decidir sobre a condenação ou não. Pelo que observamos, e não tive acesso às milhares de páginas do processo, parece que há indícios de uma trama para ruptura institucional ou golpe. Se houver esse conjunto probatório, vai ter o voto, possivelmente pela condenação, e será apreciado por um órgão colegiado formado por ministros indicados por diferentes presidentes e chancelados pelo Congresso Nacional. Mas, nesta prisão especificamente, estamos falando de decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, bastante criticada por juristas e especialistas, porque é de difícil cumprimento. É complexo proibir que um ex-presidente, figura política relevante, use redes sociais próprias ou de terceiros. Até então, com tornozeleira, ele podia sair. Se alguém o gravar num mercado, por exemplo, e ele disser algo que seja interpretado como uso de rede social de terceiro… É uma decisão ruim, equivocada, que criou a condição para a prisão domiciliar. Quero deixar claro: não é uma crítica sobre Bolsonaro ser preso ou não no curso normal do processo. Se for condenado, que cumpra a pena. Mas prisão domiciliar por causa de manifestação em rede social, dentro desse contexto específico, é algo complexo e, na minha visão, um equívoco.

O senhor considera exagerada a decisão?

Como disse, a prisão domiciliar é sustentada por decisão anterior que proibia Bolsonaro de se manifestar em redes próprias ou de terceiros. Essa decisão é que considero equivocada, porque criou algo de difícil cumprimento. É quase impossível impedir que uma figura política tão relevante, com movimento político em torno de si, não se manifeste de qualquer forma. No momento em que botar o pé na rua, alguém vai filmar e perguntar algo. Ele vai ignorar? É difícil. Por isso, acho que aquela decisão foi equivocada e gerou, naturalmente, uma medida cautelar também equivocada. Mas insisto: isso não significa dizer que Bolsonaro não deva ser preso se, no processo regular, ficar provada uma trama de ruptura institucional. Nesse caso, que seja julgado por órgão colegiado, como entendo que deveria ser no pleno do STF (embora a estrutura interna direcione para uma das turmas). O importante é que haja decisão colegiada. Todos podemos falhar… Jornalistas, políticos, juízes. A forma de reduzir riscos é justamente ter um processo com vários elos: investigação pela PF, denúncia do MPF e decisão colegiada na Suprema Corte.

Falta moderação e comedimento na cena política brasileira hoje? Isso também vale para o Judiciário?

Acho que a política tem sido exercida de uma forma que nosso sistema eleitoral acaba favorecendo. Não existe sistema infalível, mas o nosso modelo proporcional em lista aberta estimula posturas radicais. Um candidato a deputado, por exemplo, pode ser odiado por 95% da população e ainda assim se eleger, se conquistar 1% ou 2% de votos. Isso é suficiente. Por isso defendo o voto distrital. Ele estimula a moderação, porque o candidato precisa agradar a uma média do distrito, não apenas a um segmento. Também melhora o accountability, ou seja, a possibilidade de o eleitor saber quem representa seu distrito e cobrar diretamente. No sistema atual, o voto é disperso e muitas vezes acaba elegendo alguém em quem o eleitor não votou. Acho melhor o distrital misto, como na Alemanha, que mantém vagas por lista fechada para garantir representação de segmentos — mulheres, etnias, orientações sexuais, crenças religiosas. Isso tempera a composição do Parlamento. Hoje vemos desprezo pela política e um jogo individualista. Os partidos perderam força, e, mesmo com a cláusula de barreira, a lógica de emendas parlamentares e financiamento estimula atuações individuais. Com a política fragilizada, o Judiciário é mais acionado, pois o Parlamento emperra a discussão de temas críticos. Como a Constituição é abrangente, tudo acaba indo parar no STF.

Sua gestão no Rio Grande do Sul foi marcada por reformas e também pela enchente de 2024. Como isso reforça seu nome para o cenário nacional?

Acho que minha trajetória me proporcionou ser testado em momentos muito difíceis. Comecei o mandato com uma crise fiscal violenta: o estado não conseguia pagar salários no fim do mês, atrasava fornecedores, não tinha capacidade de investimento e os serviços públicos se deterioravam. Não conseguíamos repor servidores em áreas críticas, como segurança pública e inteligência do governo. Somos o único estado em que a contribuição de servidores civis e militares é igual. Os outros estados seguiram o modelo nacional, com contribuições diferentes para servidores civis e militares. Nós fizemos uma reforma administrativa profunda, que limitou e restringiu o benefício de vantagens temporais para servidores de todos os poderes, incluindo a vedação a esse tipo de vantagem. Privatizamos as companhias estaduais de saneamento, de energia e de gás. Foi um programa muito forte e robusto de reforma da máquina pública. O resultado é visto hoje nos indicadores. Na segurança pública, por exemplo, tivemos redução de mais de 50% nos homicídios, quase 80% nos roubos a pedestres e quase 90% dos roubos de veículos. Somos o estado com menos roubos de celulares no Brasil, segundo dados oficiais. O estado saiu de 2% para 10% de capacidade de investimento no ano passado. É verdade que, nesse período, contamos com o acordo com a União que suspendeu o pagamento da dívida para viabilizar investimentos. Mas no ano anterior já tínhamos alcançado 6% ou 7% de capacidade de investimento. Triplicamos antes mesmo desse fôlego extra. Vale lembrar que, quando assumi, o estado também não estava pagando a dívida, mas, mesmo assim, não conseguia investir. Hoje, deixamos de pagar a dívida para direcionar recursos a um fundo de reconstrução, e alcançamos 10% de capacidade de investimento. Essa experiência de lidar com crises — estiagens, pandemia, enchente em 2024 — nos dá muito aprendizado para enfrentar situações difíceis. E está claro que o Brasil terá situações difíceis pela frente, exigindo coordenação política e priorização de uma agenda de transformação do gasto público. 

Qual é a sua maior referência na política?

Nacionalmente, eu diria que é o presidente Fernando Henrique, alguém que, com serenidade, conduziu o país mesmo sofrendo muitos ataques. É importante lembrar: o PT, que hoje fala tanto sobre o golpe do impeachment da Dilma e sobre democracia, nos anos 1990 tentava incendiar o cenário político contra Fernando Henrique. Era campanha de “Fora FHC” para todos os lados. Esse cenário belicoso vem de longe, com uma forma de fazer política contestadora e raivosa. Em alguma medida, o que o bolsonarismo fez contra o PT tem conexão com o que o PT fez com outros. Mas não acho que devemos responder da mesma forma. Internacionalmente, das figuras políticas mais recentes, cito Barack Obama. Assisto a vídeos da época em que ele era presidente e dá saudade de ver a liderança americana exercida com serenidade, respeito e convencimento por meio de uma agenda de avanços civilizatórios, e não por imposição do medo.

O senhor fala em necessidade de ajuste das contas públicas, mas sabemos que isso não dá voto. Se sua candidatura se confirmar, que plataforma adotaria? E, na hipótese de chegar ao Planalto, quais seriam suas primeiras medidas?

A candidatura é, antes de tudo, o momento de validar uma agenda para o país. A eleição deve aproveitar esse momento para angariar apoio a uma visão macro de governo, mesmo sem entrar em todos os detalhes de um plano de gestão. O que realmente impulsiona uma campanha é despertar um sentimento. A chave é captar o sentimento das pessoas. Na polarização, os polos acionam medo, raiva, ódio, sentimentos que mobilizam, mas não constroem. E isso tem sido exitoso eleitoralmente: um lado tentando destruir o PT, o outro tentando destruir Bolsonaro. Mas a partir disso não se construiu algo novo para o país. Se for para despertar um sentimento, que seja de esperança. Que as pessoas votem com confiança no futuro do Brasil, e não com rancor. Em 2022, muita gente votou mais contra alguém do que a favor de um projeto. Quero que o eleitor leve seus melhores sentimentos para a urna. Se for candidato, quero dizer a quem votou no Bolsonaro que entendo sua dor: indignação com corrupção, incômodo com a atuação do Judiciário em certos assuntos. Mas também não posso desprezar a dor de quem vota no PT por valorizar diversidade, políticas sociais e atenção aos mais vulneráveis. Não são coisas incompatíveis. É possível combater a corrupção, modernizar o país, abrir a economia, equilibrar as contas e, ao mesmo tempo, ser socialmente sensível, olhar as camadas mais vulneráveis e respeitar a diversidade em todas as dimensões. Não apenas a da orientação sexual, mas a diversidade religiosa, ideológica, de gênero, de tantas formas de ser do nosso povo, e conciliar as coisas, e não ficar dividindo o país.

E quais seriam suas primeiras medidas?

Eu sei que a pauta fiscal não seduz eleitoralmente, mas precisa estar entre as primeiras medidas. Talvez a primeira, se não tiver sido aprovada até lá, seja justamente encaminhar o fim da reeleição. O país está tão polarizado que, se elegermos um “terceiro caminho”, os polos vão querer derrubá-lo para voltar ao poder, então têm que buscar atrapalhar o presidente. Então, se tiver essa oportunidade, a primeira coisa que vou encaminhar é acabar efetivamente com a reeleição. Porque é sobre resolver os problemas do país e não sobre viabilizar outro mandato.

Isso é um sinal para o Tarcísio, não? O senhor há pouco disse que Tarcísio tem mais quatro anos, e poderia portanto seguir mais um pouco como governador…

Não só para o Tarcísio, mas para qualquer outro. O recado é o seguinte: me ajudem a fazer as reformas, me ajudem a colocar o país nos eixos e não se preocupem com a próxima eleição porque não serei candidato. Eu quero é poder endereçar as soluções de curto prazo para o país e superar essa polarização. Então, essa é uma das primeira medidas, além das reformas que vão ter que ser feitas, na Previdência novamente, a (reforma) administrativa, que ajudem o país a recuperar o equilíbrio das contas.

Em 2022, o senhor sofreu ataques homofóbicos na campanha e, na posse, teve o gesto de levar seu namorado à cerimônia. O senhor sente algum tipo de preconceito?

Claro que há manifestações preconceituosas o tempo todo. Já orientei minha equipe jurídica: não passa nada. Qualquer ataque homofóbico em rede social deve ser responsabilizado. Não defendo censura, mas sim responsabilização. Há os ataques mais frontais e há os que não são verbalizados, mas estão no ambiente. Existem muitos preconceitos no país: contra mulheres, por religião, por raça. Não vou dizer que este (preconceito) que sinto e percebo em relação à minha orientação sexual seja maior ou mais grave que esses outros, porque não considero que seja. Eu tenho uma série de outros privilégios, como costumam chamar, de ser um homem branco, de família de classe média. Isso não me permite equiparar o preconceito que eu sofro com o de outros, inclusive homossexuais, que por pertencerem a outras minorias são ainda mais segregados e vítimas de preconceito, às vezes até de agressão. Acho que é sobre nós empurrarmos a sociedade na direção correta. Rupturas são sempre traumáticas, e traumas nunca são bons. Quando decidi falar publicamente sobre minha orientação sexual e me recusei a criar um personagem para convencer que era algo que não era, e fiz questão de levar o Thales, estava tentando ajudar, dar alguma colaboração, como tantas outras pessoas dão tanta ou mais colaboração, por respeito à diversidade. É um processo de evolução de todos nós. Quando eu falei que eu era homossexual, perguntaram para o Bolsonaro sobre isso e ele disse: “Tudo bem, mas eu não quero que imponha sua forma de ser aos outros”. Eu não estou dizendo para ninguém ser gay. Estou dizendo que eu sou. E que respeitem, que respeitem a mim e tantas outras pessoas, sejam elas o que elas quiserem ser. Se a gente tentar destruir as pessoas pelo que elas são, não é do ponto do vista civilizatório, humano, o correto e a nossa energia vai para algo que não constrói absolumente nada. O que na vida dos brasileiros está melhorando por causa desse enfrentamento?

O governo Lula está errando na resposta ao tarifaço imposto por Donald Trump?

É muito claro que a responsabilidade desse tarifaço vem dos Bolsonaro. Não tem como dizer que não. Eles mesmo avocam essa responsabilidade. Mas não dá pra negar que o presidente Lula, com as suas declarações, sempre, recorrentemente, com o sentimento antiamericano e criticando e atacando o dólar, cria um ambiente desfavorável para essa relação. Eu espero que isso traga algum aprendizado ao presidente Lula, no sentido de ser mais pragmático. O Canadá foi fortemente agredido na sua soberania. Quer agressão maior à soberania do que dizer para um país que ele deve se tornar o 51º estado americano? Isso é, de fato, enfrentar a soberania de um país, e o Canadá reagiu com firmeza, sem ser grosseiro, sem atacar de volta, mas firmemente defendendo a sua soberania, com pragmatismo, bom senso e equilíbrio. Aqui, ser firme na defesa da soberania nacional não é atacar de volta os Estados Unidos. Temos uma relação histórica com os americanos e isso deve ser preservado.

O senhor vê solução?

A situação está muito nebulosa, infelizmente, porque depende muito de gestos de muitas pessoas. Mas eu espero que sim, porque o presidente Trump já disse que está disposto a falar com o presidente Lula quando ele quiser. Então, não é hora de o presidente Lula dizer que não quer conversar. Vai lá e vai conversar. Se fosse eu, já tinha ligado há muito tempo. Aliás, se fosse eu já tinha buscado o presidente americano logo depois que ele foi eleito, que tomou posse, para termos essas relações bem estabelecidas. E, se fosse eu, não faria discursos contra os americanos, como o presidente Lula faz. Mas se aconteceu um episódio como esse, imediatamente tem que procurar. Não é hora de vaidade, (de dizer) “olha, sou muito importante aqui, então não vou ligar, ele que me procure”… E o outro, que se acha mais importante, então não vai procurar também, e não vai conversar. O que que é isso? Tem que ser muito sereno. Claro que tem que ter cautela, tem que ter cuidados, é claro que tem riscos, mas tem que ter senso de urgência. Tem empresas brasileiras que podem sucumbir completamente. A gente precisa superar esse quadro imediatamente.

Entrevista de Eduardo Leite, Governador do Rio Grande do Sul, a Rafaela Rosa e Rodrigo Rangel para o PLATÔBR. Publicada originalmente em 07.08.25.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Eduardo Bolsonaro diz que trabalha por mais sanções de Trump e que pode passar décadas “exilado”

“Ou tenho 100% de vitória, ou 100% de derrota. Ou saio vitorioso e volto a ter uma atividade política no Brasil ou vou viver aqui décadas em exílio”, disse Eduardo Bolsonaro em entrevista a Bela Megale, de O Globo

O deputado federal Eduardo Bolsoaro em entrevista à coluna por videoconferência — Foto: Bela Megale/ O GLOBO

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) disse que continua a atuar nos Estados Unidos pelo aumento das sanções contra o Brasil após seu pai, Jair Bolsonaro, ter a prisão domiciliar decretada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.

Em entrevista à coluna, (de Bela Megale n'O Globo) o parlamentar falou que só deixará os EUA se conseguir provocar a saída de Moraes do STF. Disse ainda que não vai renunciar ao seu mandato e que enviará um ofício à Câmara se colocando como alvo de "perseguições".

O deputado também falou do plano de ser candidato à Presidência da República se tiver o apoio do pai e reforçou os elogios a Trump sobre o tarifaço imposto ao Brasil, afirmando que "há um sacrifício a ser feito". Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Hoje começa o tarifaço imposto por Trump. Um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostrou que o PIB brasileiro pode ter um impacto negativo de R$ 19 bilhões e que as exportações brasileiras podem cair US$ 54 bilhões. Vale a pena o Brasil pagar esse preço em nome da anistia do presidente Bolsonaro?

- O presidente Trump colocou que essa era uma questão envolvendo a perseguição a Jair Bolsonaro, seus familiares e apoiadores. Ele apontou para uma crise institucional. Para resolver essa crise, a gente tem que dar uma sinalização aos americanos. A melhor maneira, na minha sugestão, é a anistia ampla, geral e irrestrita. Isso colocaria o Brasil numa boa condição na mesa de negociações junto ao governo dos EUA. Não sou eu que levo a mensagem que sou responsável por essas tarifas, mas sim o conjunto da obra feito no Brasil que é liderado pelo ministro Alexandre de Moraes.

O senhor chegou a fazer alguma gestão junto ao governo dos EUA para tentar reverter ou amenizar esse tarifaço?

- A gente leva um pouco dessa perspectiva econômica, mas não me sinto na posição de desautorizar o Trump. Entendo que ele é muito mais qualificado do que eu para escolher quais armas utilizar nessa briga, até porque tem uma carreira de muito êxito empresarial, é um excelente negociador. Mesmo como político, ele tem tido sucesso em 100% das empreitadas em que exigiu um bom resultado para os Estados Unidos. Dou graças a Deus que ele voltou suas atenções para o Brasil. Acho que tem valido a pena.

O senhor não recebeu queixas do agronegócio, que é um dos mais prejudicados pela medida, ou críticas de outros segmentos por sua atuação nos EUA?

- Até agora nenhum fazendeiro ou produtor agrícola me ligou para dizer que eu deveria parar com as minhas ações. Pelo contrário. Tenho recebido parabéns e tido muito apoio nas redes sociais. As pessoas entendem que há um sacrifício a ser feito e que o pior mal é essa ditadura de toga comandada pelo ministro Alexandre de Moraes. Confesso que antes disso tudo acontecer, eu e (o ex-apresentador de Jovem Pan) Paulo Figueiredo, que tem me acompanhado nessas reuniões, assumimos o risco de talvez até, momentaneamente, aumentar o prestígio do Lula, aumentar a sua popularidade. Mas o que a gente viu, de acordo com as pesquisas, foi uma oscilação do Lula. E a gente tem certeza que, quando o resultado definitivo vier, com a anistia, isso vai ser revertido a nosso favor em termos de popularidade. Mas isso daí é secundário. Nosso cálculo não é eleitoral.

O senhor trabalha para que os EUA aumentem as sanções sobre o Brasil após a prisão domiciliar de Bolsonaro?

- Trabalho sim, neste sentido. Estou levando a prisão ao conhecimento das autoridades americanas e a gente espera que haja uma reação. Não é da tradição do governo Trump receber essa dobrada de aposta do Alexandre de Moraes e nada fazer. O que eles vão fazer, eu não sei. Não sei se isso vai passar pela mesa do Trump ou pelo secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio. Espero que haja uma reação nos próximos momentos.

Vê chances dos presidentes da Câmara, Hugo Motta, e do Senado, Davi Alcolumbre, serem incluídos em algum tipo de sanção por parte do governo americano?

- Uma vez que não é pautado o impeachment do ministro Alexandre de Moraes no Senado, uma vez que o presidente da Câmara não pauta uma anistia, eles estão entrando no radar das autoridades americanas. As pessoas que estão em posição de poder têm responsabilidades e estão sendo observadas pelas autoridades americanas. Todos eles estão no radar.

Pensa em retornar ao Brasil ou teme ser preso?

- Se eu retornar, sei que vou ser preso. Primeiramente, tenho que tirar o Alexandre de Moraes dessa equação, anular ele, isolá-lo. A gente tem que aprovar uma anistia para que alcance todos os perseguidos por Moraes. Os meus planos aqui são: ou tenho 100% de vitória, ou 100% de derrota. Ou saio vitorioso e volto a ter uma atividade política no Brasil, ou vou viver aqui décadas em exílio. É o que eu estou assumindo, estou aceitando esse risco, porque eu acho que vale a pena.

Qual tipo de visto ou autorização do governo americano o senhor possui que lhe permite ficar por tanto tempo nos EUA?

- Não vou entrar nos detalhes, para me proteger a mim e minha família. O que posso dizer é que eu e minha família temos condição de ficar legalmente aqui nos EUA durante um bom tempo. Meu visto é algo que não me preocupa.

Como pretende manter seu mandato como deputado federal vivendo no exterior?

- Estou rascunhando um ofício para mandar para o presidente da Câmara, Hugo Motta, sobre a impossibilidade de eu retornar ao Brasil, devido a uma clara perseguição. Vou apresentar e, se eles decidirem por não reconhecer os meus argumentos, será mais uma demonstração de que eu sou vítima desse sistema. Posso garantir que eu não vou renunciar. Se for necessário, se alguém for tomar alguma medida para que eu perca o mandato, vai ser aí do Brasil, vai ser do STF ou do Congresso. Acho, inclusive, que existe margem para, por exemplo, ser acatada a sugestão de mudança de regimento para eu possa fazer as votações por meio eletrônico.

Quais os seus planos para 2026? Com Bolsonaro inelegível, gostaria de concorrer à Presidência?

- Essa é uma decisão que passa pelo presidente Bolsonaro. Mas, antes, tenho que ter sucesso nessa questão de resgate da normalidade democrática no Brasil e no isolamento do Alexandre de Moraes, na anistia, em todas essas pautas. Porque isso daria tranquilidade para eu voltar ao Brasil sem ser preso. Se, nesse cenário, Jair Bolsonaro quiser me apoiar, eu sairia candidato a presidente da República.

O senhor chegou a fazer críticas públicas a expoentes da direita como o governador Tarcísio de Freitas e o deputado Nikolas Ferreira. Como está a relação com eles?

- Eu conversei com o Nikolas por uma chamada de telefone intermediada pelo Paulo Figueiredo. Prefiro nem falar muito para não dar mais pano pra manga. Não é o foco. O foco aqui é o Alexandre de Moraes e combater essa crise institucional.

E sobre o Tarcísio?

- Com relação ao Tarcísio, cada um tire suas conclusões. O Tarcísio ainda acredita numa estratégia de diálogo, de colocar panos quentes e ver se consegue extrair alguma benesse disso. Eu não acredito, porque foi infrutífero no passado. O caso mais notório é aquela cartinha do (Michel) Temer, sugerida pelo ex-presidente depois do 7 de setembro (de 2021) onde, teoricamente, dizem, havia um acordo. Não sei, porque eu não participei. Mas, esse acordo não foi respeitado. O Moraes dobrou a aposta e continuou perseguindo. Por que eu vou sentar com um cara desse? Por isso que eu tenho sido muito ácido na minha crítica ao Moraes, colocando ele na prateleira de um psicopata. Não coloco nessa mesma prateleira os outros ministros do STF. Acredito que existe um caminho onde dá para resgatar a normalidade do Brasil, em que pese haver diversas discordâncias em decisões dos ministros, mas que dá para garantir uma normalidade mínima apenas tirando Moraes do tribunal.

O senhor vê alguma chance de diálogo com o STF? Já existiu alguma tentativa de construir pontes?

- Vejo espaço para isso. Nos bastidores, tem gente falando a todo momento. Isso nunca parou. Agora está um pouquinho mais complicado, porque eu estou aqui nos EUA e não posso ir ao Brasil. E várias autoridades brasileiras não podem vir para cá. Mas se deixarem o Congresso votar uma anistia, eu tenho certeza que passa. Mais de 300 deputados federais já colocaram sua assinatura em apoio ao requerimento de urgência do projeto de lei. Se isso ocorrer, eu tenho certeza que o Brasil pode até entrar numa boa mesa de negociação para reduzir as tarifas impostas pelo governo dos EUA. Não quero destruir o STF. Eu não quero queimar a floresta inteira. Eu não quero acabar com tudo. Estou utilizando um passo a passo para pressionar as autoridades a recobrar a consciência.

A pesquisa do Datafolha apontou que 61% dos eleitores dizem que não votariam em um candidato que prometesse livrar de qualquer pena Jair Bolsonaro e seus aliados acusados de planejar um golpe contra a democracia e os condenados pelo 8 de janeiro. Mas, nos EUA, o senhor apresenta essa pauta aos americanos como se fosse uma unanimidade nacional.

- Não confio em nada do Datafolha, tá? Mas, independentemente disso, é uma questão de justiça, não é uma questão de você fazer uma pesquisa popular. Se eu estivesse tão impopular assim, minhas redes não estariam crescendo tanto. Ganho 100 mil seguidores a cada dois, três dias. Há pouco tempo, eu tinha 6,4 milhões de seguidores no Instagram. Agora estou com 6,8 milhões. E isso de um tempinho antes da Lei Magnitsky para cá. Acho que a gente está no caminho certo.

Seu último salário como deputado foi recebido em março. Como se mantém nos EUA com sua família?

- Não dependo só do meu salário. Como não tem dinheiro público vindo para mim, então eu não tenho mais o que publicizar nesse sentido. Aceito discutir publicamente só dinheiro público.

O STF considerou o envio de R$ 2 milhões feito pelo ex-presidente ao senhor como um indício concreto de que haveria uma articulação para interferir na atuação do Supremo. O senhor recebeu esses R$ 2 milhões de Bolsonaro?

- Ele fez uma transferência para mim de R$ 2 milhões e isso não é crime nenhum. Ele desejava ajudar o filho num momento depois de meses aqui em exílio, nos EUA. O último salário que eu recebi pela Câmara foi em março. Falar que isso é um financiamento de uma atividade ilícita? Qual atividade ilícita? Se eu estou fazendo alguma coisa errada aqui é com o respaldo das autoridades americanas. É incoerente Moraes querer me colocar no inquérito e não colocar, por exemplo, Marco Rubio e o presidente Trump.

Quem são seus interlocutores na Casa Branca?

- Falar dessas pessoas não é conveniente, elas podem acabar sendo expostas. Sei que vai ter gente que vai querer queimar a ponte. O que eu posso comentar é aquilo que já é público, como as reuniões com os parlamentares como María Elvira Salazar, Richard McCormick e Chris Smith. Com o (ex-estrategista político de Trump) Steve Bannon, eu posso falar, porque fui ao programa dele algumas vezes de maneira virtual e, uma vez, pelo menos, presencialmente. Bannon não está dentro do governo, mas conhece todo mundo. Já participou do primeiro mandato de Trump, da sua estratégia eleitoral de 2016. Ele vive nesse meio político, conhece as pessoas, sabe dos temperamentos, sabe como falar com cada um e tem ajudado bastante dentro desse nível de soft power.

Com que frequência o senhor vai à Casa Branca?

- Desde que eu estou aqui, quase toda semana. Posso falar isso tranquilamente.

Bela Megale, Jornalista, obteve e editou esta entrevista exclusiva para O Globo, onde atua cobrindo as áreas de investigações criminais, bastidores do poder e a vida política de Brasília. Publicado originalmente em 06.08.25.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Lei Magnitsky contra Moraes é busca por impunidade de 'aliados próximos' de Trump, diz ONG americana

Aprovada durante o governo de Barack Obama, em 2012, a Lei Magnitsky foi criada para punir autoridades russas envolvidas na morte do advogado Sergei Magnitsky, que denunciou um esquema de corrupção estatal e morreu sob custódia em Moscou

O ex-presidente Jair Bolsonaro (R), sentado ao lado de seu advogado Celso Villardi (L), depõe perante o juiz Alexandre de Moraes durante uma sessão de julgamento do Supremo Tribunal Federal que julga a participação dos acusados da tentativa de golpe de Estado em janeiro de 2023, em Brasília, 10 de junho de 2025. (Getty Images).

A sanção ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes pela Lei Global Magnitsky, anunciada nesta quarta-feira (30/07) pelo governo americano serviu "principalmente para destacar a busca do governo de Donald Trump pela impunidade de aliados políticos."

A afirmação é da Humans Rights First, organização sediada nos Estados Unidos de proteção de direitos humanos criada em 1978.

O governo americano justificou a medida afirmando que o ministro seria responsável por "uma campanha opressiva de censura, detenções arbitrárias que violam os direitos humanos e processos politizados, inclusive contra o ex-presidente Jair Bolsonaro".

"As sanções contra Moraes parecem se basear, pelo menos em parte, na visão contestada de que brasileiros investigados ou processados por ações relacionadas ao ataque de janeiro de 2023 às instituições governamentais brasileiras estão, na verdade, sendo detidos arbitrariamente por liberdade de expressão", diz a organização, em nota publicada em seu site.

Bolsonaro é réu no processo que tramita no STF por tentativa de golpe de Estado. Está usando tornozeleira eletrônica e está impedido de usar redes sociais.

Para a ONG, especializada na Lei Magnitsky, a preocupação americana com o processo de Bolsonaro seria mais crível "se fosse evidente em outros contextos, ou acompanhada de ações para lidar com abusos muito mais graves contra repórteres do que os alegados." Destacou, por exemplo, a crescente crise de jornalistas que são mortos por seu trabalho, tanto na América Latina quanto pelo Oriente Médio.

A ONG diz que essa foi a primeira aplicação da lei nesta gestão de Trump. "E esta primeira ação parece ter como objetivo mais acabar com a responsabilização do que em promovê-la", diz Adam Keith, diretor sênior de responsabilização da Human Rights First.

Ele destacou que no primeiro mandato de Trump e no do sucessor, Joe Biden, a lei tinha sido usada para promover responsabilização por corrupção no Congo, por execuções extrajudiciais cometidas por forças de segurança em Bangladesh e pela condenação de ativistas de direitos humanos na Rússia à prisão por décadas.

"O anúncio não continha qualquer indício de apoio à responsabilização pelo ataque de 2023 às instituições democráticas do Brasil — o que não é surpresa, já que o presidente Trump deixou claro que está disposto a iniciar uma guerra comercial e outras medidas extremas para proteger o ex-presidente Jair Bolsonaro do escrutínio a esse respeito", disse ele.

Para a ONG, o governo americano está incorporando à política externa dos EUA a noção de que qualquer esforço de responsabilização que afete aliados políticos de Trump deve ser descreditado e interrompido.

A organização destacou ainda que o Departamento de Estado teria violado a lei ao anunciar nominalmente que negaria a entrada de Moraes nos EUA, já que tradicionalmente as decisões de visto são tidas como sigilosas.

A BBC News Brasil procurou o órgão para que se manifestasse sobre a afirmação. Após a publicação da reportagem, uma fonte do Departamento de Estado afirmou que o órgão não se manifesta publicamente sobre casos individuais de vistos.

Em discurso na sexta-feira (1/8), Moraes comentou a nova sanção contra ele, durante cerimônia de abertura do segundo semestre do Judiciário.

"Esse relator vai ignorar as sanções que foram aplicadas e continuar trabalhando como vem fazendo, tanto no plenário quanto na Primeira Turma, sempre de forma colegiada", afirmou o magistrado.

O ministro comparou a atuação de bolsonaristas para conseguir punições dos EUA ao Brasil e aos presidentes da Câmara e do Senado à prática de "milicianos". E reafirmou que considera que estão sendo cometidos pelo grupo os crimes de coação no curso do processo, obstrução de investigação e atentado à soberania nacional.

O que é a Lei Magnitsky e como ela pode afetar Moraes?

Aprovada durante o governo de Barack Obama, em 2012, a Lei Magnitsky foi criada para punir autoridades russas envolvidas na morte do advogado Sergei Magnitsky, que denunciou um esquema de corrupção estatal e morreu sob custódia em Moscou.

Há três consequências principais para quem é colocado na lista de sancionados pela legislação: proibição de viagem aos EUA, congelamento de bens nos EUA e proibição de qualquer pessoa ou empresa nos EUA de realizar transações econômicas com o indivíduo penalizado. Os efeitos disso no Brasil ainda não são claros.

Moraes já estava impedido de entrar em território americano. O secretário de Estado americano, Marco Rubio, já havia anunciado, em 18 de julho, a revogação do visto do ministro, seus familiares e "aliados" — sem detalhar quem são esses.

O último ponto previsto pela lei, que trata das transações financeiras, é o que costuma causar maiores problemas às pessoas sancionadas pelos EUA, afirmou Natalia Kubesch, advogada da Redress — entidade britânica que ajuda vítimas de tortura e abusos de direitos humanos em diversas partes do mundo — em entrevista à BBC News Brasil.

Para EUA, Moraes é 'juiz ativista' e um 'ator estrangeiro maligno'

O departamento de Estado do governo americano disse na quinta-feira (31/7) que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes é um "juiz ativista" e um "ator estrangeiro maligno" que abusa de sua posição de autoridade para minar a liberdade de expressão de cidadãos americanos.

O governo americano não descartou novas sanções contra brasileiros — mas também não deu nenhum indício concreto sobre novas medidas.

As declarações foram dadas por Tommy Pigott, porta-voz do secretário de Estado Marco Rubio, durante uma entrevista a jornalistas em Washington.

"Em 31 de julho, o secretário Rubio anunciou sanções americanas contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que usou seu cargo para autorizar prisões preventivas arbitrárias e minar a liberdade de expressão", disse Pigott.

"Moraes abusou de sua autoridade ao se engajar em um esforço politicamente motivado para silenciar críticos políticos com a emissão de ordens secretas, obrigando plataformas online — incluindo empresas de mídia social americanas — a banir indivíduos por postarem discursos protegidos [pelo direito à liberdade de expressão]."

Luiz Fernando Toledo, de Londres - UK para a BBC News Brasil, em 01.08.25 (*com informações de Julia Braun e Daniel Gallas).

domingo, 3 de agosto de 2025

Trump, o fora da lei

Seu furor protecionista não ameaça só o livre comércio, mas o Estado de Direito. Judiciário dos EUA tem a chance de restaurar as prerrogativas do Congresso e o respeito à Constituição

A Corte de Apelações do Circuito Federal dos Estados Unidos ouviu na semana passada os argumentos finais sobre a legalidade das tarifas impostas por Donald Trump a pretexto de uma “emergência nacional”. O caso, movido por empresas importadoras e uma coalizão de Estados, é mais que uma disputa tributária: trata-se de um teste decisivo sobre os limites do poder presidencial. E, por extensão, uma batalha sobre o futuro do Estado de Direito no país.

As tarifas fazem parte do infame regime batizado de “Dia da Libertação”, anunciado em abril, que impôs uma alíquota de 10% sobre praticamente todas as importações, com aumentos adicionais para países como Índia (25%) ou Brasil (50%). Para justificar a manobra, o governo recorreu à Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional (Ieepa, na sigla em inglês), criada em 1977 para permitir sanções econômicas em casos de ameaças extraordinárias vindas do exterior. O problema: o déficit comercial americano – invocado como emergência – é tudo, menos extraordinário. Como apontaram os próprios juízes, trata-se de um “fenômeno persistente há meio século”.

Em maio, a Corte de Comércio Internacional já havia concluído que o presidente ultrapassou os limites da Ieepa ao usá-la para redesenhar, unilateralmente, a estrutura tarifária do país. A decisão foi suspensa pela instância superior, que agora analisa o caso. Durante as audiências, o ceticismo foi evidente: “É difícil enxergar como o Congresso teria pretendido dar ao presidente autoridade irrestrita para rasgar a tabela tarifária que levou anos para ser construída”, disse o juiz Timothy Dyk. O argumento do governo – de que o termo “regular importações” implicitamente autoriza a criação indiscriminada de tarifas – é um abuso sem precedentes. Nenhum outro presidente, em mais de quatro décadas de vigência da Ieepa, ousou tanto.

A Constituição é cristalina: compete ao Congresso o poder de legislar sobre tarifas. A delegação dessa prerrogativa ao Executivo, quando ocorre, deve ser explícita, limitada e vinculada a procedimentos específicos. A interpretação maximalista de Trump não apenas atropela o Legislativo, como desafia os fundamentos do sistema de freios e contrapesos. Aí reside o verdadeiro perigo. As tarifas são o sintoma. A doença é o projeto de um Executivo hipertrofiado que reivindica poderes imperiais.

Desde seu primeiro mandato, Trump vem sistematicamente testando os limites institucionais: declarou emergências para construir um muro fronteiriço sem aprovação orçamentária; desafiou o Congresso ao se apropriar da Guarda Nacional da Califórnia; ameaçou juízes e promotores; sugeriu que seu adversário político merecia “pena de morte” – isso sem falar na tentativa de obliterar a transferência de poder, instando manifestantes a invadir o Congresso para impedir a ratificação das urnas em 6 de janeiro de 2021. Em seus atos e palavras, Trump vê as instituições democráticas não como garantias, mas como obstáculos.

O caso das tarifas sintetiza esse ethos autoritário: um presidente que usa poderes de guerra para taxar tênis canadenses e brinquedos alemães, que trata o comércio como instrumento de chantagem e que vê em cada desacordo diplomático uma emergência nacional. E tudo com efeitos econômicos devastadores. Empresas alertam para o aumento de preços e para a desorganização das cadeias de suprimentos. Grupos como a U. S. Chamber of Commerce e a Consumer Technology Association ingressaram na ação denunciando o impacto sobre investimentos, empregos e inflação.

Não se trata, portanto, apenas de uma disputa sobre políticas comerciais. Trata-se de impedir que um presidente transforme o livre comércio – e a própria Constituição – em reféns de seu voluntarismo. Mais cedo ou mais tarde a questão precisará ser solucionada pela Suprema Corte. O desfecho do processo poderá definir os limites do Executivo nos anos por vir. Que a Justiça se recorde de que, numa democracia digna desse nome, o presidente não pode fabricar “emergências” para contornar o Congresso e suspender o império da lei.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de São Paulo, em 03.08.25

Como as Forças Armadas disseram ‘não’, Bolsonaro recorreu aos EUA para o golpe

É assustador que um ex-presidente, um deputado desertor e um imigrante brasileiro estarem por trás desse ataque dos EUA ao Brasil

Jair Bolsonaro com os filhos Flávio, Eduardo e Carlos  Foto: Rafael Carvalho/Gov. de transição

O ex-presidente Jair Bolsonaro e seus filhos não desistem de dar um golpe no Brasil. Como as Forças Armadas não embarcaram na aventura em 2023, eles recorreram a Donald Trump, que é presidente dos Estados Unidos e se acha imperador do mundo, para terminar o serviço. “Cuidado com o andor, porque o santo é de barro”, segundo o ditado. Pois o andor “Deus, Pátria e Família” ruiu e foram todos parar na lama da história.

Eduardo Bolsonaro dizia, sem ruborizar, que “bastava um cabo e um soldado para fechar o Supremo”. Seu pai assumiu a Presidência e escalou, não cabos e soldados, mas sim generais, almirantes e brigadeiros, para lacrar as instituições e a democracia brasileira. As cúpulas militares não caíram na esparrela e, agora, a família põe uma potência estrangeira acima das Forças Armadas. Haja patriotismo!

Fora do Exército, o capitão passou a vida fazendo apologia da ditadura e de mortes de adversários e, como presidente, usou “CPFs” das três forças para o golpe e uma tropa de arruaceiros para acampar nos quartéis e vandalizar os três Poderes. Em vão. E lá se foram os Bolsonaro provocar Trump a jogar seus mísseis contra a soberania, a democracia, indústrias e empregos do Brasil.

A sucessão de absurdos é estarrecedora. Como o presidente de um país...

...Manda uma carta pública ao presidente de outro país exigindo que interrompa “imediatamente” o processo contra um réu por tentativa de golpe? E a soberania? A independência entre Poderes?

...Recorre a uma falsa “emergência” para aplicar uma lei feita para terroristas, organizações criminosas e corruptos contra um ministro do STF?

...Justifica o uso dessa lei com mentiras e ataques à democracia brasileira? A Human Rights Watch e a Transparência Internacional defenderam o Brasil, onde há democracia e o direito à manifestação é livre – desde que não para apologia de crimes e golpes.

...Se mete em questões internas, enquanto atenta contra as leis dos EUA, confronta o Judiciário, nega cidadania a nascidos no país, persegue universidades e estudantes contrários ao genocídio em Gaza, tortura estrangeiros? Quem é Trump para falar de democracia?

...Usa um decreto sem pé nem cabeça para impor o tarifaço ao Brasil, sem argumentos comerciais e citando Bolsonaro e Paulo Figueiredo, neto do último general da ditadura e denunciado na tentativa de golpe?

O mais assustador, porém, é um ex-presidente, um deputado desertor e um imigrante brasileiro estarem por trás desse ataque dos EUA ao Brasil e aos brasileiros. Nada é mais abjeto e detestável do que trair a Pátria. Talvez, só a tortura, que Bolsonaro tanto defende.

Eliane Cantanhêde, a autora deste artigo, é  Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 31.07.25

Por que Trump (e os EUA) podem ter que pagar caro por aumento de tarifas

Em abril, Donald Trump surpreendeu o mundo ao anunciar novas tarifas de importação abrangentes — e suspendeu a maioria delas em meio ao pânico financeiro global resultante.

Donald Trump (Getty Images)

Quatro meses depois, o presidente dos Estados Unidos está promovendo o que ele afirma ser uma série de vitórias, tendo anunciado alguns acordos com parceiros comerciais e imposto tarifas unilateralmente a outros, tudo isso sem a turbulência no mercado financeiro que sua tentativa inicial provocou.

Pelo menos até agora.

Depois de trabalhar para reposicionar os EUA na economia global, Trump agora promete que o país vai colher os frutos das novas receitas, revitalizar a indústria nacional e gerar centenas de bilhões de dólares em investimentos e compras estrangeiras.

Se isso realmente vai acontecer — e se essas ações vão ter consequências negativas —, ainda é uma grande dúvida.

O que está claro até agora, no entanto, é que uma maré que estava virando (suavemente) em relação ao livre comércio, mesmo antes do segundo mandato de Trump, se tornou uma onda que está se espalhando pelo mundo. E embora esteja remodelando o cenário econômico, não deixou o rastro de destruição que alguns poderiam ter previsto — embora, é claro, muitas vezes haja uma defasagem até que o impacto seja totalmente percebido.

Além disso, para muitos países, tudo isso serviu como um alerta — a necessidade de permanecer atento a novas alianças.

Assim, embora o resultado a curto prazo possa ser — na visão de Trump — uma vitória, o impacto sobre seus objetivos gerais é muito menos claro. O mesmo vale para as repercussões a longo prazo, que podem muito bem se revelar bem diferentes para Trump — ou para os EUA que ele vai deixar após seu mandato atual.

O prazo de '90 negócios em 90 dias'

Por todas as razões erradas, o dia 1º de agosto estava marcado na agenda dos formuladores de políticas internacionais. Eles foram avisados de que deveriam chegar a um acordo sobre novos termos comerciais com os EUA até essa data, ou enfrentariam tarifas potencialmente devastadoras.

Embora o assessor comercial da Casa Branca, Peter Navarro, tenha previsto "90 acordos em 90 dias", e Trump tenha oferecido uma perspectiva otimista sobre a conclusão dos acordos, esse prazo sempre pareceu um grande desafio. E foi mesmo.

Quando chegou no fim de julho, Trump havia anunciado apenas cerca de uma dúzia de acordos comerciais — alguns com no máximo uma ou duas páginas, sem as cláusulas detalhadas que eram padrão em negociações anteriores.

O presidente dos EUA, Donald Trump, e o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, celebrando um acordo comercial assinado durante uma reunião na cúpula do G7. (REUTERS/Suzanne Plunkett/Pool)

A tarifa básica de 10% aplicada à maioria dos produtos britânicos causou espanto no início, mas foi um alívio em comparação à taxa de 15% aplicada a outros parceiros comerciais

O Reino Unido foi o primeiro a agir, talvez inevitavelmente. Afinal, o maior pesadelo de Trump é o déficit comercial dos EUA, e o comércio está em equilíbrio quando se trata do Reino Unido.

Embora a tarifa base de 10% aplicada à maioria dos produtos britânicos possa inicialmente ter causado espanto, ela deu uma ideia do que estava por vir — e, no fim das contas, foi um alívio em comparação com a taxa de 15% aplicada a outros parceiros comerciais, como a União Europeia e o Japão, com os quais os EUA têm déficits maiores: US$ 240 bilhões e US$ 70 bilhões, respectivamente, somente no ano passado.

E mesmo esses acordos vieram com condições. Os países que não puderam se comprometer, por exemplo, a comprar mais produtos americanos, muitas vezes enfrentaram tarifas mais altas.

Coreia do Sul, Camboja, Paquistão — à medida que a lista crescia e cartas tarifárias eram enviadas para outros lugares, a maior parte das importações americanas agora é coberta por um acordo ou um decreto presidencial concluído com um breve "obrigado por sua atenção a este assunto".

Capacidade de 'prejudicar' a economia global

Muito foi revelado como resultado disso.

Primeiro, as boas notícias. As negociações dos últimos meses significam que as tarifas mais dolorosas e os alertas de recessão foram evitados.

Os piores temores — em termos de níveis tarifários e possíveis repercussões econômicas (para os EUA e outros países) — não se concretizaram.

Os maiores temores — os alertas de um possível desastre econômico — diminuíram (OHN G MABANGLO/EPA/Shutterstock)

Em segundo lugar, o acordo sobre os termos tarifários, por mais desagradável que fosse, reduziu grande parte da incerteza (utilizada pelo próprio Trump como uma poderosa arma econômica) para o bem — e para o mal.

Para o bem, no sentido de que as empresas podem fazer planos, e investimentos e decisões de contratação que estavam suspensos agora podem ser retomados.

A maioria dos exportadores sabe que tarifas seus produtos enfrentam — e pode descobrir como se adaptar ou repassar o custo aos consumidores.

Essa sensação crescente de certeza gera um clima mais tranquilo nos mercados financeiros, com as ações nos EUA subindo notavelmente.

O presidente dos EUA, Donald Trump, cumprimentando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. (REUTERS/Evelyn Hockstein)

Mas é para o mal, no sentido de que a tarifa típica para vender nos EUA é mais alta do que antes – e mais extrema do que os analistas previram há apenas seis meses.

Trump pode ter enaltecido a dimensão do acordo dos EUA com a União Europeia – mas não se trata dos acordos que derrubavam tarifas e eliminavam barreiras comerciais, como nas décadas anteriores.

Os maiores temores, os alertas de um possível desastre, diminuíram. Mas Ben May, diretor de previsões macroeconômicas globais da Oxford Economics, afirma que as tarifas dos EUA têm o potencial de "prejudicar" a economia global de várias maneiras.

"Elas estão obviamente aumentando os preços nos EUA e reduzindo a renda das famílias", diz ele, acrescentando que as políticas também reduziriam a demanda ao redor do mundo se a maior economia do mundo acabasse importando menos produtos.

Vencedores e perdedores: Alemanha, Índia e China

Não se trata apenas do valor da tarifa, mas da magnitude da relação comercial com os EUA. Assim, embora a Índia possa enfrentar tarifas superiores a 25% sobre suas exportações para os EUA, economistas da Capital Economics estimam que, com a demanda americana representando apenas 2% do Produto Interno Bruto (PIB) indiano, o impacto imediato no crescimento pode ser mínimo.

As notícias não são tão boas para a Alemanha, onde as tarifas de 15% podem reduzir o crescimento deste ano em mais de meio ponto percentual, em comparação ao que era esperado no início do ano.

Isso se deve ao tamanho do seu setor automotivo — o que não ajuda uma economia que pode estar à beira da recessão.

O presidente dos EUA, Donald Trump, mostrando uma tabela de 'tarifas recíprocas'. (Chip Somodevilla/Getty Images)

Enquanto isso, a Índia se tornou a principal fonte de smartphones vendidos nos EUA nos últimos meses, depois que os temores sobre o que poderia acontecer com a China levaram a Apple a transferir sua produção.

Por outro lado, a Índia está ciente de que países como o Vietnã e as Filipinas — que enfrentam tarifas mais baixas ao vender para os EUA — podem se tornar fornecedores relativamente mais atraentes em outros setores.

De modo geral, porém, há um alívio pelo fato de que o impacto, pelo menos, provavelmente será menor do que poderia ter sido. Mas o que já foi decidido aponta para ramificações de longo prazo para os padrões comerciais globais e alianças em outros lugares.

E o elemento de risco introduzido em uma relação de longa data com os EUA deu um impulso adicional à busca do Reino Unido por laços mais fortes com a União Europeia — e obtenção de um acordo comercial com a Índia.

Para muitos países, isso serviu como um alerta — a necessidade de permanecer atento a novas alianças.

Uma ameaça política bastante real para Trump?

À medida que os detalhes são definidos, as implicações para a economia dos EUA também ficam mais claras.

O crescimento no fim da primavera no hemisfério norte foi beneficiado por uma onda de vendas de exportação, já que as empresas se apressaram para evitar tarifas mais altas impostas aos produtos americanos.

Os economistas esperam que o crescimento perca força ao longo do resto do ano.

As tarifas, que aumentaram de uma média de 2% no início do ano para cerca de 17% atualmente, tiveram um impacto notável nas receitas do governo dos EUA — um dos objetivos declarados da política comercial de Trump. Até agora, os impostos de importação arrecadaram mais de US$ 100 bilhões este ano — cerca de 5% da receita federal dos EUA, em comparação com cerca de 2% nos anos anteriores.

O secretário do Tesouro americano, Scott Bessent, disse que espera que a receita tarifária deste ano totalize cerca de US$ 300 bilhões. Para efeito de comparação, os impostos federais sobre a renda geram cerca de US$ 2,5 trilhões por ano.

Os consumidores americanos continuam na linha de frente, e ainda não viram os preços mais altos serem repassados integralmente. Mas, à medida que gigantes do setor de bens de consumo, como Unilever e Adidas, começam a calcular os aumentos de custos envolvidos, um aumento de preços se aproxima — potencialmente o suficiente para adiar o corte de juros desejado por Trump —, e possivelmente reduzir os gastos do consumidor.

Se as tarifas atuais provocarem um realinhamento fundamental, os resultados podem não acabar sendo favoráveis aos EUA (Reuters / Evelyn Hockstein)

As previsões são sempre incertas, é claro, mas isso representa uma ameaça política bastante real para um presidente que prometeu reduzir os preços ao consumidor, e não tomar medidas que os aumentariam.

Trump e outros funcionários da Casa Branca lançaram a ideia de fornecer cheques de reembolso aos americanos de baixa renda — o tipo de eleitor da classe trabalhadora que impulsionou o sucesso político do presidente —, para compensar parte do impacto no bolso do consumidor.

Tal esforço poderia ser complicado, e exigiria a aprovação do Congresso.

É também um reconhecimento tácito de que simplesmente se gabar de novas receitas federais para compensar os gastos atuais e os cortes de impostos, e manter a perspectiva de geração futura de empregos e riqueza no país, é politicamente perigoso para um Partido Republicano que terá que enfrentar os eleitores nas eleições de meio do mandato estaduais e para o Congresso no próximo ano.

Os acordos que ainda precisam ser fechados

Para complicar ainda mais a situação, há muitos lugares onde ainda não se chegou a um acordo – em particular, no Canadá e em Taiwan.

O governo dos EUA ainda não se pronunciou sobre suas decisões para as indústrias farmacêutica e siderúrgica. A questão colossal da China, sujeita a um prazo diferente, continua sem solução.

Trump concordou com uma prorrogação das negociações com o México, outro importante parceiro comercial dos EUA, na manhã de quinta-feira.

Muitos dos acordos firmados foram verbais, e ainda não foram assinados. Além disso, não se sabe se e como as condições vinculadas aos acordos de Trump – mais dinheiro a ser gasto na compra de energia americana ou investido nos EUA – serão realmente cumpridas.

Em alguns casos, líderes estrangeiros negaram a existência das cláusulas enaltecidas pelo presidente.

Quando se trata de avaliar os acordos tarifários entre a Casa Branca e vários países, diz May, "o problema está nos detalhes" — e os detalhes são escassos.

O objetivo geral de Trump — trazer de volta a produção e os empregos para os EUA — pode ter um sucesso muito limitado. (JOHN G MABANGLO/EPA/Shutterstock)

Ficou claro, no entanto, que o mundo recuou do precipício de uma guerra comercial devastadora. Agora, enquanto as nações lidam com um novo conjunto de barreiras comerciais, Trump pretende dar as cartas.

Mas a história nos mostra que seu objetivo geral – trazer de volta a produção e os empregos para os EUA – pode ter um sucesso muito limitado. E os parceiros comerciais de longa data dos EUA, como o Canadá e a União Europeia, podem começar a buscar relações econômicas e políticas que burlem o que eles não consideram mais um aliado econômico confiável.

Trump pode estar se beneficiando da vantagem proporcionada pela posição única dos EUA no centro de uma ordem comercial global que levou mais de meio século para ser estabelecida. No entanto, se as tarifas atuais desencadearem um realinhamento fundamental, os resultados podem não ser favoráveis aos EUA.

Essas questões serão respondidas ao longo de anos, não de semanas ou meses. Enquanto isso, os próprios eleitores de Trump ainda podem ter que arcar com os custos — por meio de preços mais altos, menos opções e crescimento mais lento.

Anthony Zurcher e Dharshini David para a BBC News, em 01.08.25. / Reportagem adicional de Michael Race

'Tarifas e sanções ao Brasil são chantagem', diz Nobel de Economia

"Chantagem". Essa foi a palavra escolhida pelo vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2001, Joseph Stiglitz, para classificar a decisão do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de impor tarifas de 50% sobre produtos brasileiros e as sanções impostas ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes.


Joseph Stiglitz foi economista-chefe do Banco Mundial e ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2001 (Reuters)

"Eu descreveria [essas medidas] como o presidente Lula o fez. São uma chantagem", diz Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial, à BBC News Brasil em entrevista.

O economista tem acompanhado com atenção o aumento das tensões entre o Brasil e os Estados Unidos desde que Trump anunciou, no dia 9 de julho, que adotaria a tarifa adicional para a importação de produtos brasileiros.

Na ocasião, o presidente norte-americano vinculou as tarifas ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no STF por seu suposto envolvimento em uma trama golpista e à atuação do Judiciário brasileiro em relação a empresas americanas de redes sociais, as chamadas "big techs".

Trump também chamou o julgamento de Bolsonaro de "caça às bruxas". O ex-presidente alega ser inocente no processo.

Desde então, o governo brasileiro respondeu às acusações norte-americanas, disse que o país estaria aberto a negociar, mas que não aceitaria interferência estrangeira em questões domésticas.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu declarações afirmando que Trump não teria sido eleito para "imperador do mundo". Suas declarações, no entanto, foram criticadas por membros da oposição que alegaram que o presidente estaria provocando o líder norte-americano.

No início da semana, porém, Stiglitz divulgou uma carta elogiando a postura de Lula diante de Trump.

"Espera-se que outros líderes políticos demonstrem coragem semelhante diante do bullying do país mais poderoso do mundo", disse Stiglitz.

Ainda nesta semana, o governo norte-americano divulgou a ordem executiva que implementa o tarifaço sobre o Brasil a partir do dia 6 de agosto. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos divulgaram uma lista com quase 700 produtos que estariam isentos da tarifa, o que foi visto por alguns analistas como um recuo de Trump.

No mesmo dia, o governo dos Estados Unidos anunciaram sanções financeiras a Alexandre de Moraes, relator do caso de Bolsonaro no STF.

À BBC News Brasil, o economista voltou a elogiar o comportamento de Lula e disse que outros líderes não adotaram uma postura semelhante por conveniência política.

"O que Lula fez não era apenas o único curso de ação possível, mas também o mais estratégico que o Brasil poderia adotar."

Segundo ele, a decisão de não capitular diante da pressão norte-americana, faz sentido estrategicamente porque, para o economista, Trump não respeita acordos.

"Outra coisa que se deve lembrar sobre Trump é que nenhum acordo vale o papel no qual está escrito".

Stiglitz diz que não é possível falar que Trump cedeu ao abrir exceções ao tarifaço brasileiro. Segundo ele, seria preciso entender os mecanismos internos e externos que levaram à sua decisão.

Para o economista, os acordos anunciados por países e blocos, como a União Europeia, com os Estados Unidos dificilmente serão implementados e só foram assinados para que os líderes dos países ameaçados com tarifas pudessem obter uma espécie de "cessar-fogo".

Stiglitz disse ainda que a situação entre Brasil e os Estados Unidos é imprevisível porque, segundo ele, "Trump não conhece limites".

Ainda segundo ele, o presidente norte-americano se empenha tanto na defesa de Bolsonaro por motivos particulares. "O motivo é claro: trata-se de um grupo de pessoas fora da lei".

O economista diz ainda que os supostos ataques dos Estados Unidos ao Brasil deverão empurrar o país cada vez mais para próximo da esfera de influência chinesa.

"Os Estados Unidos fazem de tudo para perder essa nova guerra fria com a China."

Confira os principais trechos da entrevista:

BBC News Brasil - Nos últimos dias, o governo Trump anunciou tarifas sobre produtos brasileiros e sanções contra um ministro do STF, vinculando tudo isso ao processo contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. O governo brasileiro classificou essas medidas como chantagem. Como o senhor descreveria tudo isso?

Joseph Stiglitz - Eu descreveria [essas medidas] como o presidente Lula o fez. São uma chantagem. Eu não acredito que o presidente Trump tenha a autoridade legal para fazer o que está fazendo.

Muitos comentaristas jurídicos dizem que ele teria uma duvidosa autoridade legal para impor tarifas quando há disputas econômicas. Mas o argumento que ele está usando para impor tarifas contra o Brasil não é econômico. Vocês têm superávit com os Estados Unidos. É justamente o contrário.

Na lógica dele, vocês é que deveriam impor tarifas contra os Estados Unidos. É uma questão política. E o mais surpreendente é que ele está violando o Estado de Direito, como tem feito repetidamente, ao insistir que o Brasil viole o seu Estado de Direito.

O ministro do Supremo [Alexandre de Moraes], pelo que vejo à distância, está agindo totalmente dentro da lei. Sobre o uso da Lei Magnitsky, estudiosos do direito dizem que isso é muito duvidoso. Ninguém jamais teve a intenção de que essa lei fosse usada da forma como está sendo usada.

É um precedente extremamente perigoso quando um líder autoritário nos Estados Unidos diz que vai usar seu poder para interferir no Estado de Direito em outros países.

BBC News Brasil - Ao que tudo indica, Lula parece não ter cedido à pressão dos Estados Unidos, ao menos para interromper o julgamento de Bolsonaro. Nesta semana, o governo americano divulgou uma lista de exceções que exclui 42% das exportações brasileiras dessas novas tarifas. Quem o senhor acha que venceu esse primeiro round desse confronto entre Lula e Trump?

Stiglitz - É preciso dizer que as tarifas prejudicam mais o povo americano do que qualquer outro país. Nós é que pagamos os custos. Trump está prejudicando a economia americana nos fazendo pagar preços mais altos pelo que compramos.

O que eu gostaria de enfatizar é que os Estados Unidos perderam. Essas tarifas são um jogo de perde-perde e o grande perdedor é os Estados Unidos.

Acho que é realmente muito bom que Lula esteja se posicionando assim como a China se posicionou ante este líder autoritário que está tentando destruir o Estado de direito internacional o qual, ironicamente, os Estados Unidos se esforçaram tanto para construir ao longo dos últimos 80 anos.


'Essas tarifas são um jogo de perde-perde e o grande perdedor é os Estados Unidos' (Getty Images)

BBC News Brasil - O que motiva Trump a defender com tanta veemência Jair Bolsonaro?

Stiglitz – O motivo é claro: trata-se de um grupo de pessoas fora da lei. Trump violou a lei na sua insurreição de 6 de janeiro. E foi uma violação terrível da lei em uma das partes mais importantes da democracia que é a transição pacífica de poder.

É por isso que continuo chamando-o de líder autoritário. Ele tentou impedir essa transição pacífica de poder mesmo com o presidente (Joe) Biden tendo recebido 7 milhões de votos a mais. Nem sequer foi uma disputa apertada. Ele não tinha absolutamente nenhuma justificativa.

E então, claro, essa pessoa fora da lei, autoritária e fora da lei, apoia outras pessoas do mesmo tipo. Bolsonaro imitou o 6 de janeiro. Vocês tiveram o 8 de janeiro. Bolsonaro foi ainda mais imprudente, houve uma insurreição ainda pior.

Felizmente, o Brasil está fazendo a coisa certa, e eu parabenizo os tribunais brasileiros por manterem o Estado de Direito. Isso não é uma caça às bruxas.

BBC News Brasil – O senhor elogiou a postura do presidente Lula desde o início desta crise e também escreveu que líderes mundiais deveriam seguir o exemplo dele. Por que eles não o fizeram?

Stiglitz – Alguns o fizeram. O presidente Xi Jinping se posicionou. Mas acho que a maioria deles sucumbiu à abordagem de Trump. A esperança deles era que uma tarifa de 10% não era tão ruim. Eles achavam que isso simplesmente desapareceria.

Acho que eles estavam esperando que o problema passasse. Foi uma atitude politicamente mais fácil. Eles calculam que ceder é mais fácil que lutar, especialmente considerando todos os instrumentos que Trump tem à sua disposição e que ele está usando.

Trump pode fazer qualquer coisa, porque ele é fora da lei. É por isso que eu acho que eles não se posicionaram. E acho que isso é um grande erro.

BBC News Brasil - No Brasil alguns setores argumentam que o comportamento de Lula foi excessivamente combativo e que ele acabou, em vez de ajudar, prejudicando o país. Como o senhor responde a essa crítica?

Stiglitz – Eles estão equivocados. Lula foi muito claro ao dizer que está disposto a negociar. Mas ele disse que não está disposto a negociar a soberania nacional do seu país. Ele não vai comprometer o Estado de Direito do país. E eu o apoio totalmente nisso. Há coisas que você pode negociar, e há outras que são inegociáveis.

Outra coisa que se deve lembrar sobre Trump é que nenhum acordo com ele vale o papel no qual está escrito. Ele assina um acordo e depois o viola. Você cede, capitula, e então ele exigirá mais. Nunca sabemos quando isso vai acabar.

Quando se está lidando com uma figura autoritária e errática, você não pode prever nada. Mas, com base no passado de Trump, acredito que o que Lula fez não era apenas o único curso de ação possível, mas também o mais estratégico que o Brasil poderia adotar.


Bolsonaro e Trump são considerados aliados políticos desde o primeiro mandato do norte-americano (Getty Images)

BBC News Brasil – Outros países e até mesmo a União Europeia assinaram acordos com Trump. Na sua opinião, esses acordos foram bons ou ruins?

Stiglitz – Antes de tudo, como já disse, um acordo com Trump não vale o papel em que está escrito. Canadá e México assinaram um acordo com Trump há cinco anos e ele os rasgou assim que voltou ao poder. Um acordo não é um acordo. No fim das contas, se ele sentir que não é favorável a ele, ele vai rompê-lo.

Não se deve tomar nada do que ele diz ao pé da letra. A maioria desses acordos, eu acredito, não será realmente implementada. Os países fizeram promessas, mas não explicaram como irão cumpri-las.

A Europa não é uma economia centralizada. Os líderes europeus podem gostar de ouvir que as pessoas farão investimentos, mas eles não podem controlar isso.

As pessoas na Europa podem pensar: "Os EUA é um país maluco para se investir". Como podemos ter certeza de que os europeus farão os investimentos que prometeram? São acordos muito estranhos que não significam muita coisa.

BBC News Brasil - Mas se eles não significam muita coisa, qual é o sentido de fechar esses acordos?

Stiglitz – Do ponto de vista das pessoas que fecham o acordo, é uma trégua temporária. Eles assinam um acordo e Trump promete que, por um tempo, não vai impor aquelas tarifas absurdas. Eles, por outro lado, dizem que não vão retaliar e temos uma trégua.

Isso dura até que Trump mude de ideia. Eles prometem que farão investimentos, mas como se monitora isso? Tudo isso fica no ar.

Daqui a dois anos, alguém vai olhar os números e dizer: "Vocês não cumpriram o que prometeram". E aí teremos outra rodada de negociações. E eu presumo que, nesse momento, Trump já será história.

BBC News Brasil - O senhor acredita que a situação entre Brasil e Estados Unidos pode piorar?

Stiglitz - Qualquer coisa é possível com Trump. Ele não conhece limites. As coisas são simplesmente imprevisíveis com ele. O resto do mundo precisa se acostumar com o fato de que estamos em um novo mundo, onde a maior economia do planeta está sob o controle de um líder errático e autoritário.

A boa notícia para o Brasil é que vocês estão comercializando com a Europa e com a China. A China é, na verdade, o maior comerciante do mundo. Em termos de quem tem as cartas na mão, quem tem poder econômico como potência comercial, está claro que é a China.

Os Estados Unidos dizem que essa é uma nova guerra fria com a China, mas parece que os próprios Estados Unidos estão fazendo de tudo para perder essa guerra fria.

BBC News Brasil – Na carta que publicou há alguns dias, o senhor escreveu que Lula se posicionou contra os interesses das grandes empresas de tecnologia, que são apoiadas por Trump. Por quanto tempo um país como o Brasil pode se opor não apenas à maior economia do mundo, mas também a algumas das maiores corporações do planeta?

Stiglitz - Eu acho que a realidade é que o Brasil tem poder para enfrentar essas empresas de tecnologia. O Brasil tem o direito de regulamentar empresas de tecnologia que operam no país, assim como a Europa faz, de maneira compatível com a lei.

A Europa aprovou a Lei de Serviços Digitais para regulamentar conteúdo, prevenir danos digitais. Todo país deveria fazer isso. As empresas de tecnologia têm roubado conteúdo de outras empresas sem compensação. O Brasil tem o direito, e eu diria até a obrigação, de agir quando há esses atos de roubo cometidos pelas empresas de tecnologia.

Uma das boas coisas sobre o Brasil é que vocês têm um alto nível de competência tecnológica. No mundo moderno, não é tão difícil criar suas próprias plataformas. E nem mesmo é tão difícil criar suas próprias empresas de inteligência artificial.

Na minha opinião, o Brasil tem o poder intelectual, político, tecnológico e econômico para fazer isso.

BBC News Brasil – Algumas pessoas dizem que isso pode aproximar ainda mais o Brasil da China. O senhor acredita que isso é uma possibilidade?

Stiglitz – Como acabei de dizer, o que os EUA estão fazendo é forçar todos os países a se diversificarem e se afastarem dos Estados Unidos. E basicamente há, podemos dizer, três grupos de países para os quais os outros estão se voltando: Europa, China e o restante dos mercados emergentes e em desenvolvimento.

Acho que esses três serão os caminhos seguidos não apenas pelo Brasil, mas por todos os demais países. Os EUA estão mostrando que não são um parceiro comercial confiável, nem um parceiro econômico confiável. E quando você não tem um parceiro econômico confiável, você se afasta dele. É simples aritmética.

BBC News Brasil – O senhor questionou a legalidade das tarifas, dizendo que apenas o Congresso poderia impô-las. Até agora, há uma impressão de que o Congresso e a Suprema Corte não impõem limites à atuação do presidente. Neste momento, Trump é imparável?

Stiglitz – Em muitas áreas houve decisões judiciais contra Trump. Elas o desaceleraram, embora não resultaram em uma verdadeira reversão de suas ações.

O Congresso se mostrou submisso a ele. Muitas pessoas acham que as eleições de 2026 serão um marco, porque as coisas não estão indo bem, o crescimento desacelerou, a inflação subiu, ele não cumpriu todas as suas promessas, o apoio dos eleitores é muito fraco. Espera-se que ele perca a liderança em pelo menos uma das casas do Congresso, o que pode enfraquecê-lo.

Minha preocupação é que alguém como Trump, que afirma que não perdeu as eleições de 2020, mesmo tendo perdido por 7 milhões de votos, não reconhecerá essa derrota ou tentará interferir nos resultados das eleições legislativas de 2026 de alguma forma.

Ele é imparável? Espero que não, mas neste momento a resposta não é clara e é por isso que é tão importante que democracias como o Brasil defendam o Estado de Direito.

BBC News Brasil - Como é, para o senhor, viver nos Estados Unidos atualmente?

Stiglitz – Estou na Universidade Columbia, que é uma das universidades que têm sido atacadas de uma forma que viola todos os princípios da liberdade acadêmica. Nossa universidade cedeu, e isso é, obviamente, muito desconfortável, porque os princípios da liberdade acadêmica são muito importantes para mim.

Os ataques à ciência, aos valores do Iluminismo, ao humanismo e aos princípios da verdade têm sido feitos de uma forma que ninguém poderia prever. É obviamente muito desconfortável. Pior que isso, eu nem sei qual palavra usar. Aqueles que leem história sentem calafrios na espinha.

Leandro Prazeres, de Brasília-DF para a BBC News Brasil, em 02.08.25