sábado, 13 de maio de 2023

Lula está atrapalhando o governo

Em menos de cinco meses no cargo, o petista destratou o agronegócio, desrespeitou o BC e desmoralizou decisões do Congresso. Assim fica mais difícil arranjar apoio ao governo

É ocioso esperar que o sr. Lula da Silva desça do palanque e, enfim, saia do “modo eleição” e entre em “modo governo”, vale dizer, que fale e aja com um tanto mais de responsabilidade. Se isso acontecesse, estar-se-ia diante de um fenômeno tão espantoso como o nascer do Sol a oeste. Mas o presidente da República poderia ao menos tentar conter a sua natureza de eterno candidato e se comportar como o chefe de Estado e de governo que carrega sobre os ombros o peso de conduzir um país com 215 milhões de habitantes e problemas extremamente complexos a serem resolvidos. Se não por vontade genuína, por interesse político. Lula precisa conquistar apoios na sociedade e articular uma base congressual sólida que hoje, definitivamente, ele não tem.

Boquirroto, desagregador e por vezes arrogante, Lula tem se comportado como se tivesse vencido a eleição por uma margem confortável de votos. Não que o placar final do pleito importe para sua legitimidade no cargo – afinal, ganhar por diferença de um voto ou de 10 milhões de votos é rigorosamente a mesma coisa. A questão é que Lula é incapaz de compreender que, para governar bem o Brasil, precisa, necessariamente, conquistar o apoio de parcela significativa da sociedade que não faz parte do seu cercadinho ideológico e que só votou no petista para evitar a tragédia que seria a reeleição de Jair Bolsonaro.

O presidente, no entanto, tem agido no sentido de repelir os cidadãos que não se ajoelham no altar da seita que ele lidera, não de atraí-los para um esforço nacional de construção de um discurso de pacificação e de um plano de governo mais moderado e responsável, que seja capaz de recolocar o País nos trilhos do crescimento sustentável e, assim, melhorar as condições de vida da população, sobretudo dos brasileiros que dependem diretamente da ação do Estado para ter uma vida digna.

Num único dia, a quinta-feira passada, a matraca de Lula atacou as privatizações, classificando como “sacanagem” a privatização da Eletrobras, e o agronegócio, chamando de “fascistas” os produtores rurais que não lhe nutrem simpatia. Não são expressões dignas de um presidente da República. Os sabujos petistas podem argumentar que o antecessor de Lula, Jair Bolsonaro, fazia muito pior. Mas, ora vejam, onde está o Lula que, na campanha eleitoral, se apresentou como a antítese da truculência bolsonarista, na tal “frente ampla pela democracia”?

A natureza, já se vê, é implacável. Lula não sabe, e a esta altura não vai aprender mais, como se comportar fora do palanque e longe dos comícios. Tudo o que faz, cada palavra raivosa que pronuncia, tem propósitos eleitoreiros. Na sua eterna disputa por votos, trata como inimigos todos os que ousam não ser vassalos de seu projeto de poder. Nessa conta entram desde os congressistas que aprovaram matérias que Lula despreza até o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, que faz valer a autonomia do BC, prevista em lei, para resistir às estocadas petistas contra a prudente política monetária.

Com esse tipo de atitude leviana, Lula se torna o principal responsável pelas agruras por que tem passado o governo nesses meses iniciais. Até o momento, o presidente parece empenhado em fazer um balanço reverso, elencar tudo o que foi feito no País enquanto o PT não esteve no governo e simplesmente destruir. Assim é com a privatização da Eletrobras, com a autonomia do BC, com a Lei das Estatais e até, pasme o leitor, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, sob risco de virar letra morta se o projeto de arcabouço fiscal do governo for aprovado tal como foi apresentado.

Não será animado pelo espírito de revanche que Lula fará deste o “mandato da sua vida”, como não se cansa de dizer. Se quiser arregimentar apoio de quem não reza pela cartilha carcomida do lulopetismo, Lula faria muito bem se falasse menos. Para um país cansado de tanta parolagem irresponsável, que nada produz além de barulho e divisão, seria um alívio.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 13.05.23

Zelensky se encontra em Roma com o Papa, Mattarella e Meloni

O encontro com o Pontífice busca revigorar o plano de paz que o Vaticano vem tentando ativar entre a Rússia e a Ucrânia há algum tempo

O presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, cumprimenta a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, neste sábado, no Palácio Chigi, em Roma. (Alberto Pizzoli, AFP)

O presidente da Ucrânia, Volodímir Zelenski , desembarcou em Roma nesta manhã, primeira parada de uma pequena turnê europeia que o levará à Bélgica no domingo. O líder ucraniano reuniu-se pelas 12h00 com o Presidente da República, Sergio Mattarella. "É uma visita importante para a nossa vitória", afirmou assim que chegou à capital italiana. Uma afirmação que contrasta com a ideia que ele planeja no contexto daquele que seria seu terceiro encontro do dia no Vaticano com o Papa Francisco. A Santa Sé, disse o próprio Pontífice, há meses trabalha em uma missão de paz para chegar a um acordo que ponha fim à escalada de violência. O problema, segundo o ministro das Relações Exteriores do Vaticano, Paul Gallagher, é que ainda não parece ter chegado a hora.

Zelenski, em seu habitual traje verde militar, foi recebido no aeroporto de Ciampino pelo vice-presidente do governo e ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani . Foi então conduzido ao hotel onde está alojado (Parque des Princes) e posteriormente transferido para o Palácio do Quirinal, onde foi recebido por Mattarella e cantou o hino nacional ucraniano com a mão no peito. O chefe de Estado italiano sempre foi um atlantista convicto, um ferrenho defensor da posição da Ucrânia neste conflito e da necessidade de prestar apoio através da força militar da NATO. “É uma honra recebê-lo em Roma. Eu pedi para poder encontrá-lo novamente após nosso colóquio anos atrás nesta condição diferente. Estamos totalmente ao seu lado."

Após o encontro com Mattarella, Zelenski se reunirá com a primeira-ministra Giorgia Meloni. É a segunda vez que os dois dirigentes se encontram - a primeira foi em Kiev - e têm a oportunidade de mostrar a sua plena sintonia. Meloni, aliás, é hoje um dos maiores defensores do envio de armas à Ucrânia para promover a vitória contra a Rússia. Ou, pelo menos, como ele sempre aponta, para permitir que ocorra uma negociação em condições de igualdade.

No final da aparição conjunta de Meloni e Zelenski, o líder ucraniano deveria se encontrar com o Papa Francisco no Vaticano. O encontro ocorre em meio à missão de paz do Vaticano para a Ucrânia, anunciada pelo pontífice no voo de volta de sua recente viagem à Hungria, e cujos detalhes ainda não são conhecidos, embora uma fonte do Vaticano tenha dito à mídia russa que o encontro "não está diretamente relacionado" a ela e que Zelensky solicitou o encontro com Francisco "há apenas alguns dias".

Será a primeira entre os dois desde o início da guerra, embora já se conheçam porque Francisco recebeu Zelensky em audiência no dia 8 de fevereiro de 2020 e já naquela ocasião falaram sobre "a situação humanitária e a busca pela paz" no contexto do conflito que, desde 2014, continua a assolar a Ucrânia.

A capital italiana está blindada, com mil agentes mobilizados, uma zona de exclusão aérea e várias equipes de atiradores localizadas nas áreas por onde Zelenski passará. O impressionante aparato de segurança, que inclui rígidos controles nas estações de trem e aeroportos da capital, inclui unidades antiterror, cães farejadores e esquadrões antibomba. "E também serão feitos controles subterrâneos, com vistorias nas redes de esgoto", informou a sede da Polícia.

Daniel Verdu, o autor deste artigo, é jornalista. Nasceu em Barcelona em 1980. Aprendeu seu ofício na seção Local Madrid de El País. Passou pelas áreas de Cultura e Reportagem, de onde também foi enviado para vários ataques islâmicos na França ou para Fukushima. Hoje é correspondente em Roma e no Vaticano. Toda segunda-feira ele assina uma coluna sobre os ritos do 'calcio'. Publicado originalmente no EL PAÍS,em 13.05.23

O terremoto político chileno, um alarme para o Brasil de Lula

Em um país ainda dominado pelo atraso cultural, pelo racismo que se recusa a morrer e pela miséria, o perigo de reproduzir a dinâmica chilena tornou-se real.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, no dia 1º de janeiro durante a posse de Lula em Brasília. (Ricardo Moraes - Reuters)

O Brasil de Lula recebeu com preocupação a notícia de que no Chile a extrema direita se tornou a força dirigente do país, o que Rocío Montes descreveu neste jornal como um “terremoto político”. Isso significa que a nova Constituição, que deveria suplantar a de Augusto Pinochet, será dominada pelas forças de direita, destruindo as ilusões da esquerda progressista.

O mundo político do Brasil que pretende derrotar, com a volta de Lula ao poder, o desastroso golpe de extrema direita de Bolsonaro vai ter que se olhar no espelho da surpresa chilena para não cair nos mesmos erros. A possibilidade de o Lula ressuscitado, uma espécie de Sansão bíblico para derrotar o Golias da direita, cair nos erros da esquerda chilena não é apenas uma quimera. É um medo legítimo que começa a se incrustar na ainda turbulenta política pós-bolsonarista.

Os primeiros sintomas começaram a aparecer dias atrás, quando Lula se dedicou de corpo e alma à política externa, viajando nos primeiros 120 dias de mandato para 11 países, entre eles Argentina, Estados Unidos, China, Egito, Emirados Árabes, Portugal , Espanha, Inglaterra, além de quem já tem programa para visitar. E é que enquanto Lula se exibia como um líder mundial, capaz até de acabar com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia , no Congresso, onde se acumula a verdadeira política local, seu governo ainda não conseguiu aprovar um único projeto de lei.

A grande preocupação das forças progressistas de um país gravemente ferido em seus valores democráticos até ontem, ainda atordoado por políticas extremistas e neofascistas no mandato anterior, é que o novo governo, considerado de centro-esquerda, não consiga tornar-se protagonista de um Congresso no qual o bolsonarismo conseguiu se enraizar e até dominá-lo.

Enquanto Lula é aplaudido no exterior, onde ainda mantém o prestígio que seus dois governos anteriores lhe deram, no Brasil começam a se temer que suas excursões planetárias deixem espaço para que o Congresso, onde se joga a verdadeira política, reforce um direito ala que cresceu e se animou com Bolsonaro. Uma direita não golpista, mas que começa a se tornar um muro que impede o novo Executivo de implementar sua nova política de abertura democrática e reformas de fundo.

Não é mais uma questão da presença ou não de Bolsonaro. É a direita e a extrema-direita propriamente dita que fazem o partido num Congresso que se apresenta como um muro difícil de derrubar pelo novo governo reformista.

Tão encorajados estão os timoneiros do Parlamento e do Senado que até agora não permitiram que o novo Gabinete aprovasse uma única de suas reformas. E já se fala em mais um passo, vislumbrando uma possível mudança de regime, dando vida a um verdadeiro parlamentarismo com um primeiro-ministro. E tudo isso dominado pelos três grandes grupos de pressão dentro do Congresso, como os evangélicos, o grupo das armas e o grupo dos fazendeiros, que nos quatro anos de gestão extremista de Bolsonaro não só cresceram como se fortaleceram politicamente. São eles que começam a distribuir as cartas da nova política.

Lula vai ter que entender que o Brasil de hoje, principalmente do pós-bolsonarismo, que não saiu embora seu líder esteja sob a lupa da justiça, é muito diferente daquele que presidiu nos últimos oito anos e fez parte dos governos de sua colega de partido, Dilma Rousseff.

É verdade que Lula teve a intuição desta vez de concorrer às eleições apoiado não apenas por seu partido, o PT, cercado por forças do centro e até da direita moderada, que foi o que lhe deu a vitória, ainda que estreita. A receita deu certo e ele conseguiu arrastar às urnas a seu favor muitos que não queriam voltar a votar em Bolsonaro, mas também não queriam votar na esquerda de Lula.

E nesse jogo de balanças políticas, que foi uma novidade para o Brasil, principalmente depois do desaparecimento da social-democracia, do PSDB, que durante anos foi a balança contra a extrema direita.

O perigo que ameaça o Brasil hoje, que pode ser espelhado na surpresa chilena, é que a extrema direita, já despojada das estridências vulgares do bolsonarismo, pode estar mais inserida no Congresso do que o próprio Lula pensava.

E aí está a grande incógnita: até que ponto a direita não golpista, eu diria menos deselegante, machista e até o nazismo de Bolsonaro, já tem assento no Parlamento e nos governos regionais e locais. Uma direita sem os resquícios extravagantes do incapaz e histriônico Bolsonaro, amigo íntimo de Trump, mas disposta a não deixar espaço para o retorno de uma esquerda que chamam de comunista.

Num Brasil ainda dominado pelo atraso cultural, pelo racismo que se recusa a morrer, por milhões de pessoas ainda pobres e semi-analfabetas, que pouco se comovem com os gritos de democracia e os valores da modernidade e que preferem dar ouvidos aos slogan ambíguo da extrema direita de Deus, Pátria e Família como escudo e defesa, o perigo de imitar o Chile tornou-se real.

Que o Lula continue viajando. É importante que o mundo sinta com as mãos que o Brasil do atraso e das tentações dos golpes militares morreu nas urnas. Mas não se esqueça, ao mesmo tempo, que os demônios do atraso e da direita política e moral ressuscitados pelo bolsonarismo vulgar ainda não foram enterrados. Fique vivo como um lobo em pele de cordeiro.

Juan Arias, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 09.05.23

Ministério Público peruano pede 35 anos de prisão para ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski pelo 'caso Odebrecht'

Economista é acusado de lavagem de dinheiro e de formar esquema corrupto para arrecadar 12 milhões de dólares da construtora brasileira

O ex-presidente peruano Pedro Pablo Kuczynski, no momento de sua prisão em 2019. (Luka Gonzales - AFP)

Em um país como o Peru, onde a maioria dos dirigentes tem o fatídico destino de acabar atrás das grades, na época Pedro Pablo Kuczynski tentou usar seu histórico de trabalho como garantia de sua honra. “Eles destruíram a reputação de um homem que trabalhou por 60 anos (...) ser emitido contra ele. O economista tinha pedido demissão da Presidência da República há um ano, mas estava sob investigação desde 2017 pelo suposto crime de lavagem de dinheiro em prejuízo do Estado. Segundo a tese tributária, o PPK, como é coloquialmente conhecido, favoreceu a construtora brasileira Odebrechte às suas empresas associadas à concessão de diversas obras em troca de propinas milionárias que arrecadou através de serviços de consultoria e assessoria, quando foi ministro da Economia e Finanças durante o mandato de Alejandro Toledo entre 2001 e 2006 .

Por fim, PPK foi colocado em prisão domiciliar, medida que cumpriu até julho de 2022, quando o Judiciário a modificou por aparência com restrições. Em todos esses anos, à medida que o caso avançava, PPK ganhou as manchetes por seu estado de saúde. Em 2019, um marca-passo foi colocado por insuficiência cardíaca. No ano seguinte foi transferido para uma clínica de sinusite crônica e em 2022 foi internado por pneumonia. Na ocasião, sua filha, Alexandra Kuczynski, implorou à justiça peruana pela humanidade, alegando que um enfermo, com mais de 80 anos, não poderia fugir. “Ele não será capaz de sobreviver a uma prisão. Seria uma sentença de morte", afirmou.

A Promotoria da Equipe Especial no caso Lava Jato no Peru pediu nesta sexta-feira a pena de 35 anos de prisão para o ex-líder do grupo político Peruanos Por el Kambio por lavagem de dinheiro com a agravante de ter formado uma suposta organização criminosa que teria recebido mais de 12 milhões de dólares da Odebrecht. O empresário chileno e sócio do PPK Gerardo Sepúlveda também foi incluído na acusação fiscal, para quem também se pede 35 anos. Para a secretária e braço direito do PPK, Gloria Kisic, foi pedida 23 anos, enquanto para seu motorista José Luis Bernaola, 11 anos e seis meses.

Julio Midolo, advogado do economista que governou o Peru entre 2016 e o ​​primeiro trimestre de 2018, afirmou que seu cliente recebeu a notícia com tranquilidade e que tem certeza de que se sairá bem. “O Sr. Pedro Pablo Kuczynski está ciente da informação. Ele está bastante calmo e confia que vamos provar sua total inocência ao final de tudo isso. A linha de defesa é a mesma que propusemos desde o início (…) Eles não têm nenhuma prova que determine lavagem de dinheiro”, indicou Midolo.

Jorge Barata, ex-diretor da Odebrecht, afirmou ter contribuído com dinheiro para a campanha presidencial do PPK em 2011. Fato que o ex-presidente negou reiteradamente. Por outro lado, em 2021 foi denunciado constitucionalmente por ter indultado o ex-presidente Alberto Fujimor i em 2017 , mas o processo foi arquivado. A última coisa que se sabia sobre o PPK foi em fevereiro passado, quando ele se pronunciou sobre os protestos enfrentados pelo atual governo. "Todo esse caos destruiu a maioria dos partidos políticos no Peru (...) deve haver uma explicação para que apareçamos como um país civilizado, não um país de massacres", disse novamente sem perder a honra.

Renzo Gomes Vega, o autor deste artigo, é Jornalista e escritor. Escreveu para os meios de comunicação peruanos 'El Comercio', 'La República', o semanário 'Hildebrandt en sus Trece' e 'Salud con Lupa'. Fundador da revista digital 'Sudor'. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 13.05.23

Guerreiro Ramos, pioneiro nos estudos do racismo no Brasil

Novo livro reúne textos inéditos de sociólogo negro. Pensador que teve trajetória marcada pelo Golpe de 1964 defendia a necessidade de descolonizar o conhecimento e, assim, também as relações étnico-raciais no Brasil.

Não foram poucas as controvérsias protagonizadas, em vida, pelo sociólogo e político Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), no âmbito das discussões étnicas no país. Negro, ele chegou a ser chamado de "preto racista" e comumente era visto como alguém que debochava do tema; em relatório produzido pelo regime militar, ao qual ele teve acesso em 1965, foi definido como "mulato metido a sociólogo". 

Lançamento da editora Zahar, o livro Negro Sou ajuda a compreender a importância de sua visão para o entendimento da questão racial no Brasil. Trata-se de uma seleção de textos sobre a temática, escritos entre 1949 e 1973, muitos deles inéditos em livro, que abordam o assunto. De forma pioneira — mas que, aos olhos de hoje, podem soar racistas. Principalmente por conta de uma ideia presente de que o Brasil vivia uma democracia racial.

"Negro Sou" reúne textos escritos entre 1949 e 1973

"[Esses textos] têm de ser entendidos dentro do jogo político do Guerreiro”, explica à DW Brasil o historiador e sociólogo Muryatan Santana Barbosa, professor na Universidade Federal do ABC e organizador do livro recém-lançado. "O que se pretendia era construir um pacto da democracia racial que enfrentasse o racismo realmente existente."

Conforme explana Barbosa na própria introdução do livro, primeiramente é preciso interpretar essa visão de "democracia racial” sem anacronismos. Naquele contexto, em que havia segregação racial explícita nos Estados Unidos, apartheid na África do Sul e outros exemplos do tipo pelo mundo, o racismo existente no Brasil era entendido como algo menos rígido. "Ou seja, apesar de haver discriminação e preconceito, a visão é de que no Brasil não haveria ódios raciais. Guerreiro deve ser entendido nesse contexto", escreve o historiador.

Racismo estrutural

O outro aspecto é que um dos pilares da teoria sociológica de Guerreiro Ramos, em sua proposta de criar um projeto nacional, era a necessidade de descolonizar o conhecimento e, assim, também as relações étnico-raciais no Brasil. Nesse sentido, como aponta Santana no texto que consta do livro, Ramos foi pioneiro "na percepção de que o ‘problema racial' seria parte da reprodução de uma lógica colonial no país […] tanto em relação ao negro quanto em relação ao branco".

Atualizando para a visão e a terminologia contemporâneas, ele foi o precursor daquilo que hoje se entende como "racismo estrutural”. "Nesse sentido, negros, brancos e ‘brancoides', no Brasil, eram todos vítimas da condição colonial que por aqui se instalou", comenta à DW Brasil o sociólogo e engenheiro Ariston Azevêdo, autor do projeto de extensão Vida e Obra do Sociólogo Alberto Guerreiro Ramos e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Ele explica que, na teoria de Ramos, o negro acabou marginalizado na sociedade brasileira por conta, de um lado, da "mentalidade colonial” e, de outro, "o modo subserviente […] como o Brasil se integra ao mundo moderno eurocêntrico”. "Assim, para compreensão da sociedade brasileira, haveríamos de partir dessas características, pois elas nos foram estruturantes”, diz ele.

Ramos defendia que a condição do negro só melhoraria se o Brasil saneasse a situação colonial, alterando a própria estrutura social. "A principal contribuição de Guerreiro Ramos para essa questão está nessa vinculação direta entre nossa situação colonial e o problema de relações raciais que aqui instituímos desde séculos. Nesse sentido, ele foi, de fato, pioneiro", argumenta Azevêdo.

"Poderíamos, sim, entendê-lo como um precursor dessa problemática do racismo estrutural", afirma Santana. "Depende do que entendemos por racismo estrutural, qual estrutura do racismo de que estamos falando."

"Guerreiro Ramos foi bastante pioneiro na interpretação do racismo como uma consequência da relação que se estabeleceu e entre povos conquistadores e conquistados", enfatiza o pesquisador.

Cassado pela ditadura

Nascido em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, Alberto Guerreiro Ramos graduou-se em ciências pela antiga Faculdade Nacional de Filosofia, do Rio de Janeiro, em 1942. No ano seguinte, bacharelou-se em Direito, também no Rio. Como professor, atuou no Instituto Superior de Estudos Brasileiros e nos cursos promovidos pelo Departamento Administrativo do Serviço Público.

"Ele pertenceu à primeira geração de sociólogos do Brasil", comenta em vídeo divulgado no YouTube da Universidade Federal de São Carlos o sociólogo Alan Caldas, cuja tese de doutorado, defendida na instituição, foi sobre a obra de Ramos. "Como homem negro vivendo no pós-abolição, sua vida foi uma espécie de improviso jazzístico: foi poeta, ensaísta, crítico literário, servidor público, assessor do presidente Getúlio Vargas, intelectual orgânico de um dos principais movimentos negros do Brasil, o Teatro Experimental do Negro. […] Foi ensaísta e articulista político e também deputado federal."

Para os especialistas em sua obra, a carreira de Ramos como um pensador influente no Brasil acabou interrompida pelo golpe militar de 1964. Da primeira leva de políticos cassados pelo regime ditatorial, ele acabou se radicando nos Estados Unidos, onde lecionou na University of Southern California.

E aí, o seu projeto sociológico ficou em segundo plano, frente àquele que era principalmente desenvolvido pelos intelectuais da Universidade de São Paulo. "Quando ele retornou ao Brasil, no início dos anos 1980, tudo havia mudado. O protagonismo da sociologia e ciência política praticados no Rio de Janeiro foi obliterado totalmente pela sociologia e ciência política da USP”, pontua Azevêdo. "Aliás, é bom lembrar que, desde o início dos anos 1950, Guerreiro Ramos sempre se posicionou contra a sociologia acadêmica da USP, em especial àquela protagonizada por Florestan Fernandes."

Para Ramos, era uma questão que opunha os produtores de uma legítima sociologia brasileiro aos, em sua visão, consumidores de uma sociologia estrangeira enlatada.

Para Azevêdo, isso foi um dos pontos que fez de Guerreiro Ramos um sociólogo esquecido - vítima de um "proposital esquecimento", em suas palavras. Além de sua "conexão a uma tradição de homens de ação, pensadores não vinculados a instituições universitárias".

"Em minha opinião, o esquecimento de Guerreiro Ramos se deve mais ao projeto de nação e de ciências sociais que ele abraçou do que à cor de sua pele”, acrescenta Azevêdo. "Obviamente que sua negritude incomodava a brancos e a ‘brancos' entre aspas, afinal somos um país racista. Por diversas vezes sofreu enxovalhos públicos de seus desafetos. Mas, ao fim e ao cabo, eram suas ideias e suas posições políticas que causavam mais incômodos, tanto à direita quanto à esquerda."

Santana ressalta que outro motivo para esse esquecimento foi o fato de que Ramos "foi um defensor de um nacionalismo brasileiro, um projeto nacional brasileiro, e isso fico ufora de moda por um tempo". "O fato de ele ser negro pode ter alguma importância, mas acho que é uma questão menor”, argumenta. "Ele era um autor bastante polêmico e isso trouxe animosidades também à sua época, e pode ter insuflado um racismo contra ele, mesmo que velado."

Edison Veiga, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 13.05.23 

(NR: o editor deste blog conheceu, pessoalmente,  Guerreiro Ramos quando Deputado Federal em Brasília - DF, no ano legislativo de 1963. Um parlamentar combativo, um orador inflamado, um homem cordial. Teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos logo começo do regime militar, em 1964.)

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Presidencialismo de confusão

As chances de uma relação produtiva entre governo e Congresso, dentro dos limites do sistema político-partidário do País, ainda existem

Um dos temas da análise política hoje é a formação da base do governo no Congresso. Aliás, esse é um tema permanente em nossa democracia e já foi objeto de estudo específico, resultando dele o conceito de presidencialismo de coalizão. 

Desde quando formulado pelo cientista político Sérgio Abranches, em 1988, a relação governo com o Congresso já passou por inúmeras controvérsias, do mensalão ao orçamento secreto.

Na aparência, ao menos, é um problema insolúvel. O governo precisa formar uma coalizão de partidos para realizar seus objetivos, dando em troca cargos e recursos.

Um obstáculo para contentar esta coalizão é o fato de que os partidos não são estruturados em torno de um programa político claro. Em muitos casos, sobretudo agora, tornaram-se partidos após a fusão de forças diferentes. Oferecer um cargo a um determinado partido nem sempre significa alinhamento, porque muitos setores e indivíduos dentro do próprio partido não se sentem contemplados.

Da mesma forma, a distribuição de recursos por meio de emendas parlamentares é uma tarefa difícil. O orçamento secreto resolveu o problema, mas criou outros muito maiores. Por meio dele, os deputados eram contemplados pessoalmente e destinavam o dinheiro com liberdade. O resultado foi não só uma dispersão perdulária, como também um atentado à Constituição, pela falta de transparência.

Existe um outro fator importante neste presidencialismo de coalizão: o fator simbólico, no sentido de que, além de cargos e dinheiro, os congressistas exigem atenção do próprio presidente. Nos termos da situação confusa brasileira, o caminho ideal era não somente sistematizar o encontro com parlamentares, mas também tentar definir um caminho mais produtivo para a distribuição de cargos e verbas.

Os cargos deveriam ser distribuídos, mas com uma condição: a de que o novo ocupante tivesse alguma intimidade com o tema. De um modo geral, esse quesito é desprezado sob o argumento – um pouco onipotente – de que o quadro político se adapta a qualquer situação.

Da mesma forma, o uso das emendas parlamentares não deveria ser pulverizado. Se todo esse dinheiro fosse de alguma forma articulado com os gastos dos programas nacionais do governo, a eficácia seria muito maior. Neste caso, governo e Congresso investiriam na mesma direção, conseguindo muito mais qualidade no gasto.

Interessante acentuar que, mesmo em condições ideais de distribuição de cargos e recursos, além da corte aos congressistas, o governo tem limites claros. Mesmo com a formação ideal de uma base, o Congresso não funciona como uma página em branco na qual o governo pode inscrever qualquer roteiro.

Ninguém mais do que Bolsonaro abriu mão dos recursos colocando-os, em grande parte, nas mãos dos presidentes da Câmara e do Senado, por meio do orçamento secreto. No entanto, Bolsonaro jamais conseguiu avançar sua pauta comportamental no Congresso. Havia uma barreira intransponível.

Isso não significa que uma pauta comportamental simetricamente oposta à de Bolsonaro consiga abrir caminho, sobretudo agora, com a nova composição. Significa apenas que existem limites e que o Congresso, ainda que não defina com clareza, acaba funcionando como uma espécie de baliza.

A situação do governo atual parece que pode esbarrar também em alguns limites. Mesmo distribuindo cargos e recursos, há temas que se tornam tabus. Um deles é reverter processos como o Marco do Saneamento ou a privatização da Eletrobras. Aparentemente, os limites impostos à pauta comportamental de Bolsonaro podem surgir, agora, como limites a projetos reestatizantes na economia.

Não se sabe claramente qual o peso que os deputados deram ao conteúdo do decreto sobre o Marco do Saneamento ao derrotá-lo na Câmara. O que pesou mais: a tendência a fortalecer as estatais ou o fato de um decreto ter alterado o trabalho de todos os parlamentares?

Ainda há um tempo para decantar essas decisões de uma legislatura que apenas começa. Naturalmente que a forma de decreto teve um peso na rejeição. Mas o conteúdo estatizante, a julgar pelo resultados das urnas, pode viver o mesmo drama que a pauta comportamental de Bolsonaro viveu no passado.

Ainda é muito cedo para cravar uma interpretação sobre o futuro. As dificuldades de trabalhar com os partidos tornaram-se mais ásperas depois que alguns deles se fundiram. O costume do orçamento secreto, no qual cada um usava o dinheiro das emendas como queria, ainda é uma herança maldita.

O que parece, no entanto, mais promissor é exatamente o leque dos grandes projetos econômicos, como o arcabouço fiscal e a reforma tributária. Neste campo, pode haver algumas divergências, mas o impulso geral é o de resolver logo para que o País volte a crescer.

As chances de uma relação produtiva entre governo e Congresso, dentro dos limites do sistema político-partidário do País, ainda existem. Caberá ao governo localizar exatamente onde é possível avançar e onde quebrar a cabeça representa apenas um desgaste inútil. Apesar de muito confusa, existe uma correlação de forças e não se deve nunca deixar de analisá-la com cuidado.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.05.23

'Narcopentecostalismo': traficantes evangélicos usam religião na briga por territórios no Rio

Os traficantes que dominam as favelas de Parada de Lucas, Vigário Geral e outras três comunidades na Zona Norte do Rio de Janeiro elegeram referências bíblicas como seus principais símbolos.

Território foi batizado de 'Complexo de Israel' pelo chefe do grupo criminososo, segundo a polícia Reprodução Twitter)

A facção se autodenomina “Tropa de Arão” — uma figura cristã, irmão de Moisés. A estrela de David foi espalhada em muros e bandeiras nas entradas das favelas, e está até em um neon no alto de uma caixa d’água na comunidade de Cidade Alta.

O território foi batizado, segundo a polícia, de “Complexo de Israel” pelo chefe da Tropa — uma referência à “terra prometida” para o “povo de Deus” na Bíblia.

O grupo criminoso comandava inicialmente o tráfico em Parada de Lucas e estendeu seu domínio para as comunidades vizinhas. Hoje, a Tropa controla o tráfico nas favelas de Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral, de acordo com a polícia e centros de pesquisa em segurança pública.

O Complexo de Israel é emblemático de um fenômeno que alguns pesquisadores têm chamado de “narcopentecostalismo” — não apenas o surgimento de traficantes que se declaram evangélicos, mas a forma como isso influencia a atuação das facções na disputa por territórios no Rio de Janeiro.

“O termo neopentecostalismo tem sido empregado por diversos pesquisadores que analisam o fenômeno de narcotraficantes que assumem, de forma explícita e aberta, religiões neopentecostais, inclusive em suas atividades criminosas”, explica a cientista política Kristina Hinz, pesquisadora do Laboratório de Análise da Violência da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e doutoranda na Free University, de Berlim.

Ou seja, além da conversão pessoal, a religião também tem um papel estratégico para manutenção do poder e na disputa por territórios, segundo os pesquisadores.

A comunidade evangélica tradicional rejeita fortemente a ideia de que um traficante possa ser evangélico.

“Um pastor sério não vai aceitar que uma coisa que é ilegal na lei humana e imoral seja associada a cristo”, diz o pastor Carlos Alberto, que atua há 17 anos como pastor na favela da Cidade de Deus e antes era, ele próprio, traficante. “O pastor tem que mostrar para a pessoa que ela pode se arrepender, mas para ser aceito como evangélico ela tem que largar tudo que é contrário aos princípios bíblicos, morais e éticos.”

No entanto, os traficantes considerados parte do neopentecostalismo não só se declaram membros na religião, mas de fato têm uma vida religiosa, apontam pesquisadores.

O líder do tráfico no Complexo de Israel é alvo, por exemplo, de 20 mandados de prisão por homicídio, tortura, tráfico, roubos e ocultação de cadáver. Ao mesmo tempo, ele se declara evangélico, espalhou referências religiosas pela região e tem amigos pastores, aponta a polícia.

“São traficantes que ao mesmo tempo participam da ‘vida do crime’ e da vida religiosa evangélica, indo a cultos, pagando o dízimo e até mesmo pagando por apresentações de artistas gospel na comunidade”, afirma Kristina Hinz.

Essa influência de religiões sobre as dinâmicas de poder do tráfico sempre existiu, dizem pesquisadores, e não é algo particular ao protestantismo. Mas a conversão de traficantes ao pentecostalismo é um fenômeno que tem características próprias, em um país que caminha para ter maioria evangélica na próxima década.

Pesquisa feita pelo Datafolha em 2020 aponta que 31% da população era evangélica, com católicos compondo 50% (Getty Images)

Mais evangélicos — como o Brasil

Nos últimos 30 anos, a sociedade brasileira tem se tornado mais evangélica como um todo — segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de evangélicos subiu 61% entre 2000 e 2010.

Dados de 2020 de pesquisa feita pelo instituto Datafolha apontam que 31% da população era evangélica nesta data, com católicos compondo 50%.

Se o crescimento continuar no ritmo atual, em 2030 os evangélicos chegarão a 40% da população, segundo uma projeção do pesquisador José Eustáquio Diniz Alves, doutor em Demografia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Para a população das favelas, as igrejas pentecostais passaram a ter uma importância significativa. As redes evangélicas oferecem segurança e apoio material, espiritual e psicológico para os moradores, aponta a pesquisadora Christina Vital Cunha em Oração de Traficante: uma etnografia.

Foi neste contexto que se deu a aproximação dos traficantes desta religião, diz o sociólogo Doriam Borges, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

“Essa conversão ocorreu tanto pelo fato de parte dos traficantes terem nascido em lares evangélicos ou por terem familiares religiosos, bem como por estarem internados no socioeducativo ou em prisões e terem sido alvo dos projetos missionários evangélicos nessas instituições”, explica.

Traficantes usam símbolos até em coletes à prova de bala (Reprodução Twitter)

Manutenção do poder

Nesta união do tráfico com a religião, doutrinas neopentecostais se misturam às estruturas de poder das facções.

Em muitos locais, como no Complexo de Israel, por exemplo, ela é “decisiva para a governança e a manutenção do poder de grupos criminosos”, diz Kristina Hinz.

“A apropriação pelo tráfico da gramática de guerra reconhecida nas favelas e empregada por algumas igrejas neopentecostais proporciona uma narrativa de legitimidade religiosa para a expansão violenta do território”, afirma a pesquisadora.

A pesquisadora afirma que, na competição pelo mercado de venda de drogas, a adaptação de uma linguagem e de símbolos familiares para a população permite que os traficantes apresentem “confrontos armados com grupos concorrentes de tráfico de drogas como ‘guerra espiritual’ ou mesmo como uma ‘guerra santa’ contra demônios e inimigos religiosos”.

O chefe do tráfico no Complexo de Israel é também um dos líderes do Terceiro Comando Puro (TCP), segundo a polícia.

O TCP é hoje o terceiro maior grupo armado do Rio, atrás das milícias e do Comando Vermelho (CV), de acordo com o estudo Mapa dos Grupos Armados do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O complexo faz parte do território do TCP, que é um rival histórico do CV. Na disputa por territórios, o TCP fez alianças com milícias, apontam as pesquisas de Hinz e Borges.

Os especialistas afirmam ainda que as estrelas de David no Complexo de Israel ou a pichação “Jesus é o dono do lugar” em um terreiro de umbanda destruído por traficantes são mais do que símbolos religiosos.

São uma “forma de delimitar espaços de poder e de domínio do tráfico nos territórios”, como aponta Hinz.

“Quando esses traficantes evangélicos ordenam o fechamento de terreiros, além do racismo e intolerância religiosa, estão demonstrando seu poder, força e domínio no território. Ou seja, esse grupo de traficantes utiliza a gramática evangélica como instrumento de dominação da população residente nas favelas.”

No entanto, Vital Cunha pontua que nem sempre o fato de um traficante ser evangélico resulta na retirada de santos católicos ou na perseguição de religiões de matriz africana.

Ela descreve em sua pesquisa casos em que os próprios moradores fazem esse tipo de constrangimento e intolerância.

A favela de Cidade Alta é uma das dominadas pelo TCP 9Reprodução Twitter)

Rejeição dos evangélicos

Se a linguagem religiosa é familiar para a população, a rejeição da ideia de que traficantes possam ser de fato cristãos é muito forte na comunidade evangélica mais tradicional, como explica a pastora e pesquisadora Viviane Costa, autora de Traficantes Evangélicos.

Alguém que vive do crime, nessa visão, não cumpriria os “requisitos de uma verdadeira conversão”, diz ela.

Para muitos cristãos, “ser evangélico” não significa só aderir às crenças da religião, mas ter atos e um estilo de vida de acordo com certos preceitos, explica o sociólogo Diogo Silva Corrêa, autor do livro Anjos de Fuzil, resultado de sua pesquisa sobre as relações entre o crime e a religião na Cidade de Deus, favela na Zona Oeste do Rio.

Ou seja, para alguém ser evangélico, não basta acreditar, é preciso viver de uma certa forma — a ideia de um criminoso evangélico seria, portanto, inaceitável.

"Se a pessoa não procurar mudar, não tem como se intitular cristão — e isso vale para todos, para o adúltero, para o brigão, para quem tem vício, não só para o traficante", diz à BBC o pastor Carlos Alberto, de uma igreja neopentecostal na Cidade de Deus.

"Durante muito tempo, os evangélicos foram respeitados justamente porque não existia aquela coisa de ser 'não praticante', como os católicos, o crente era até considerado chato, cafona", diz ele.

Os pastores coniventes com o tráfico são uma minoria, defende ele, mas é algo problemático porque é uma minoria que "tem forte influência sobre o rebanho".

"O pastor sabe que é errado, mas alguns aceitam por causa dos benefícios, o traficante paga por uma cruzada (evento religioso aberto), faz uma reforma na igreja", diz ele. "É uma visão errada de que Deus vai transformar uma maldição em benção, um dinheiro maldito em algo positivo."

"Mas é algo que faz a igreja perder credibilidade", diz ele. "Se você percebe que o traficante quer proteção, quer usar a religião como um amuleto, mas não quer largar o crime, não pode se associar."

"Como você vai ficar conivente quando a lei do tráfico é muito rígida, é olho por olho, não existe compaixão?", diz.

Carlos Alberto afirma que o processo de aceitar pessoas que só querem os benefícios de se dizer religioso mas não mudam de vida é algo que acontece também no meio artístico, no futebol, no meio empresarial e na política.

"Pastores que aceitam aparecer com certos políticos, que são coniventes com certas práticas, não me representam."

No entanto, Viviane Costa explica que, conforme mais e mais brasileiros se tornam protestantes, a conversão nos moldes “mais tradicionais” é menos comum — e pessoas se consideram evangélicas mesmo que não se comportem de acordo.

Ela lembra do fenômeno das celebridades evangélicas citado por Carlos Alberto. “Mesmo alguns políticos e celebridades que se declaram cristãos reformados não seriam considerados verdadeiramente evangélicos levando em conta a expectativa mais tradicional”, diz.

“Fui bastante criticada por falar em ‘traficantes evangélicos’, mas não fui eu que os nomeei como evangélicos — é assim que o fenômeno é conhecido e como eles próprios se identificam”, diz Costa. “O livro é o resultado de uma pesquisa, e como pesquisadora eu estou descrevendo um fenômeno, não fazendo uma análise teológica se a pessoa realmente é convertida.”

O TCP é conhecido pelos desaparecimentos de pessoas que se opõem à facção, de acordo com a polícia.

Desde antes da criação do Complexo de Israel, moradores relatam à imprensa desaparecimentos de familiares e amigos em favelas dominadas pela facção.

Muitas não procuram a polícia nem relatam oficialmente os desaparecimentos por medo, segundo observadores de centros de pesquisa sobre violência.

Em alguns lugares, no entanto, alguns traficantes evangélicos têm um grande respeito por pastores de igrejas nas favelas que dizem não aos grupos armados, diz Costa.

“São considerados verdadeiros homens santos, porque realmente aderiram ao caminho correto”, afirma.

Vital Cunha, uma das primeiras pesquisadoras a estudar o tema, descreve em seu trabalho como notou a aproximação de traficantes e pastores em busca de proteção espiritual.

Na favela do Acari e de Santa Marta, descreve ela em seu trabalho, o rádio de comunicação dos traficantes apitava todos os dias às 5h30 com uma oração do chefe do tráfico.

Ele falava ao mesmo tempo com Deus, pedindo proteção, e dava orientação, pedindo para os subordinados matarem menos e dizendo para os líderes comunitários cuidarem das pessoas.

Domínio da 'tropa de Arão' começou na favela Parada de Lucas (Reprodução Twitter)

'Narcoreligião'

A pesquisadora Viviane Costa, no entanto, é contra falar em “narcopentecostalismo”. Ela diz que isso passaria a ideia de que a religião só passou a ser um fator importante na dinâmica de poder do tráfico com o surgimento dos traficantes evangélicos.

Na realidade, diz ela, “a religião está presente na dinâmica do tráfico desde a sua gênese". Ela defende que o mais correto seria falar em "narcoreligião".

Nas décadas de 1980 e 1990, as facções do narcotráfico eram amplamente associadas a religiões afro-brasileiras como o candomblé e a umbanda, diz Doriam Borges.

Isso foi, inclusive, retratado no cinema: a passagem no filme Cidade de Deus em que o traficante muda de nome após ter o corpo fechado em um ritual religioso é uma das mais conhecidas.

“Dadinho é o c*, meu nome é Zé Pequeno!”, diz o personagem, antes de atirar em outra pessoa.

Os traficantes construíam murais e altares em seus territórios, destaca Costa.

“Em alguns casos, quando um traficante derrubava um chefe do tráfico ou quando ia conquistar um outro território, a divindade do traficante que tinha sido derrotada também abria lugar para a divindade do que assumia. Ou seja, o elemento religioso já fazia parte da dinâmica de poder.”

Reportagens do jornal O Globo na década de 1990 descrevem casos de imagens de entidades e de santos decapitadas durante disputadas armadas — algo que acontecia pela mão dos traficantes rivais e também da polícia.

O preconceito contra as religiões afro-brasileiras já era presente desde então, explica Borges.

“As religiões afro brasileiras, desde suas origens, têm sido estigmatizadas. E os traficantes vinculados a essas religiões eram os personagens perfeitos usados pela sociedade e pelo Estado, em especial as polícias, para a vinculação desse grupo com o Diabo, com o mal.”

Segundo o pesquisador, esses símbolos religiosos eram frequentemente destruídos durante as operações policiais.

Em Oração de Traficante, Vital Cunha descreve como as pinturas de santos e entidades do candomblé passaram lentamente a ser substituídas por trechos bíblicos na favela de Acari, no Rio de Janeiro, onde ela passou mais de uma década fazendo pesquisa.

Ou seja, a dinâmica religiosa, que já existia, passou a ser modificada para incorporar a cultura neopentecostal que surgia.

Hoje, a criação do Complexo de Israel é exemplo dos contornos que essa relação entre tráfico e religião assumiu, diz Kristina Hinz.

Exemplo, aliás, que é copiado por outros traficantes: segundo a Polícia Civil, o chefe do tráfico de uma favela em Madureira, na Zona Norte do Rio, pretende tomar os territórios de rivais para criar uma grande área sob seu domínio que chamaria “Complexo de Jerusalém”.

Letícia Mori, de S. Paulo par a BBC News, em 12.05,23

quarta-feira, 10 de maio de 2023

A fortuna americana da família Cid, Metrópoles exclusivo

Irmão do tenente-coronel Mauro Cesar Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, comprou mansão de R$ 8,5 milhões nos EUA

Nos últimos anos, ele fez outras aquisições milionárias, incluindo uma casa na Flórida

Alguns dos negócios foram registrados em nome de um trust familiar, o “Cid Family Trust”

Daniel Cid operou “milícia digital” contra as eleições e disseminou fake news

Polícia Federal investiga transações financeiras do clã no exterior

Quando decolou com Jair Bolsonaro rumo aos Estados Unidos, em 30 de dezembro de 2022, o então ajudante de ordens do presidente, tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, já tinha planos de esticar sua temporada em terras americanas para além de Orlando, na Flórida.

Como ele próprio contou à Polícia Federal em 5 de abril, em depoimento ao qual o Metrópoles teve acesso, a partir do último dia de dezembro Cid saiu de férias, cruzou o país e foi visitar familiares na Califórnia.

O tenente-coronel do Exército, hoje preso, precisava descansar. Já investigado em diversas frentes, por distribuição de fake news, vazamento de documentos sigilosos para tumultuar o processo eleitoral e pela suspeita de operar um caixa paralelo no Planalto que servia à família Bolsonaro, ele havia tido um mês de dezembro frenético. Esteve empenhado na tentativa frustrada de resgate das joias presidenciais retidas pela Receita no aeroporto de Guarulhos e no esforço para fraudar comprovantes de vacinas, o que acabaria resultando na operação que o levou à cadeia, meses depois, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

O faz-tudo de Bolsonaro não detalhou para os policiais o restante de sua programação nos Estados Unidos, mas seu roteiro lança luz sobre um rol de propriedades milionárias compradas e registradas em nome de sua família nos últimos anos em solo americano.

A começar pelo endereço principal que seria visitado na viagem à Califórnia, uma mansão de US$ 1,7 milhão (nada menos que R$ 8,5 milhões) onde vive seu irmão, Daniel Cid, um outro personagem do clã que também que já caiu na malha da Polícia Federal e do STF por envolvimento na difusão de fake news em favor de interesses bolsonaristas.

A mansão e o “trust”

A mansão está registrada oficialmente como propriedade de um trust de nome sugestivo: “Cid Family Trust”.

A propriedade tem um grande jardim e vista para as colinas que cercam a cidade. A paisagem estonteante foi registrada pela filha de Mauro Cid em um post publicado nas redes sociais em 13 de janeiro deste ano.

No ordenamento jurídico americano, trusts são um instrumento legal que permite a proprietários de bens, sejam eles fundos de investimento ou imóveis, deixarem a tutela do patrimônio a cargo de pessoas de confiança (daí vem o nome, em inglês), que ficam a cargo de administrá-lo.

Trata-se de um modelo bastante usado, por exemplo, para blindar patrimônios de eventuais problemas judiciais e garantir sua transferência futura para quem o proprietário original indicar. Os donos reais, as pessoas físicas, não aparecem nos registros oficiais — foi preciso cruzar os dados com outras fontes para descobrir que Daniel está ligado aos negócios.

Os trusts também são uma forma de obter benefícios fiscais e, ao mesmo tempo, um recurso que figuras conhecidas da política brasileira, como o notório Eduardo Cunha, já utilizaram para garantir mais privacidade — e menos transparência, por óbvio — para suas transações.

No caso em questão, a mansão registrada em nome da Cid Family Trust fica em Temecula, cidade vinícola encravada no sul da Califórnia, a cerca de 130 quilômetros de Los Angeles.

A mansão faz parte de investimentos feitos pela família Cid nos últimos anos / Reprodução

Cruzamento de dados aponta elo entre Daniel Cid e o Cid Family Trust / Reprodução

Cinematográfica, a propriedade (veja acima galeria de fotos) foi registrada em nome do trust em 2019. Tem 438 metros quadrados de área, com cinco quartos, quatro salas e uma confortável área de lazer que inclui piscina e fireplace. Em dois documentos americanos, junto ao nome do trust aparece também o nome do irmão do tenente-coronel que era ajudante de ordens de Jair Bolsonaro.


Mais propriedades

Pelo menos desde o ano de 2019, o trust da família Cid passou a ser dono, ainda, de outra casa, menor, avaliada em R$ 2,2 milhões e localizada na mesma cidade. Antes, o imóvel estava em nome de Daniel, como pessoa física. O irmão do tenente-coronel também aparece ligado a um terceiro imóvel em Temecula, vendido recentemente por ele pelo equivalente a R$ 3,3 milhões.

Segundo os registros oficiais do condado de Riverside, onde fica Temecula, foi no mês de março do primeiro ano do governo Bolsonaro que o principal bem, a mansão, foi posto em nome do trust.

Ainda em Temecula, na Califórnia, o Cid Family Trust tem esta outra casa, avaliada em R$ 2,2 milhões / Reprodução

Atravessando a América, em Miami, o irmão de Mauro Cid comprou outro imóvel, em 2020 / Reprodução


A casa comprada na Flórida fica dentro de um condomínio fechado, o Doral Isles Martinique / Reprodução

No site oficial do governo de Miami Dade, o bem está avaliado em cerca de R$ 2 milhões / Reprodução

A casa tem 4 quartos, em dois andares, e está registrada no nome do irmão do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro / Reprodução

A propriedade teve uma valorização considerável nos últimos anos. Sites especializados estimam que, atualmente, ela valha mais de US$ 2,2 milhões — algo próximo a R$ 11 milhões.

A aquisição mais recente de Daniel Cid é uma casa em Miami, na Flórida: uma unidade no Doral Isles Martinique. Segundo os serviços de pesquisa imobiliária, o imóvel foi comprado em agosto de 2020. No site oficial do governo de Miami Dade, o bem está avaliado em cerca de R$ 2 milhões e registrado fora do trust, em nome do próprio irmão do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. São quatro quartos, em dois andares, dentro de um condomínio privativo da cidade.

Nos Estados Unidos, o irmão de Mauro Cid fez, nos últimos anos, uma série de movimentações — inclusive financeiras e societárias — que chamam atenção.

Daniel Cid

O irmão “nerd” e a milícia digital

Até o ano passado, Daniel era apenas mais um brasileiro vidrado em tecnologia que fez carreira no setor de segurança digital na Califórnia. Quando começou a lançar mão das habilidades para ajudar Jair Bolsonaro na tentativa de fraudar as eleições e a disseminar mentiras sobre a pandemia de Covid-19, no entanto, ele entrou no radar da polícia e do STF.

Daniel Cid foi o criador e administrador do “brasileiros.social”, uma página virtual hospedada fora dos servidores tradicionais e ilustrada com a bandeira do Brasil. Foi nesse mesmo site que foi parar uma cópia de um inquérito sigiloso da PF alardeado em uma “live” pelo ex-presidente — na companhia do tenente-coronel Cid — para supostamente “provar” a manipulação do sistema eleitoral, segundo a delegada federal Denisse Ribeiro. O caso virou um inquérito que ainda tramita no Supremo.

O irmão de Mauro Cid chegou a ser ouvido pela PF. E confessou, à época, que “já realizou o procedimento de colocar no ar link relacionados a arquivos em formato PDF a pedido do seu irmão Mauro Cid, umas 5 ou 6 vezes”.

Em depoimento à PF, Daniel disse ter ajudado o irmão "subindo" documentos na internet. O pedido teria sido feito pelo próprio ajudante de ordens de Bolsonaro.

Daniel Cid: o irmão de Mauro Cid mora com a família na Califórnia. Ele é programador de internet, já vendeu startup e trabalhou para grandes empresas do setor, nos EUA / Reprodução


Daniel gerenciou uma página usada por Bolsonaro para replicar fake news / Reprodução

Jair Bolsonaro fez discurso sem respaldo científico, embasado em material hospedado em site de irmão de Mauro Cid / Reprodução

Em depoimento à PF, Daniel disse ter ajudado o irmão "subindo" documentos na internet. O pedido teria sido feito pelo próprio ajudante de ordens de Bolsonaro / Reprodução

Para quem pesquisa na internet, há inúmeras outras menções relacionando posts de Bolsonaro com documentos publicados no site de Daniel, como em 15 de janeiro de 2021, quando uma corrente virtual do ex-presidente no aplicativo Telegram publicou um arquivo PDF atrelado a um texto: “Estudos clínicos demonstram que o tratamento precoce do Covid funcionam (sic!)”. Ou seja, vários posts bombásticos com possíveis mentiras propagadas por Bolsonaro tinham como fundamento documentos manuseados por Daniel.

Daniel Cid foge do perfil usual de parentes de assessores da família Bolsonaro flagrados pelas autoridades brasileiras em supostos esquemas das chamadas “rachadinhas”. Já trabalhou em grandes empresas de tecnologia. Em 2017, vendeu uma startup chamada Sucuri para a hospedeira e criadora de websites GoDaddy. O valor da negociação não é público.

Empresa em paraíso fiscal

No ano seguinte, em 2018, veio a eleição presidencial brasileira. Ainda na transição, em 28 de novembro, Mauro Cid foi nomeado para o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, o GSI. Pouco depois, em 13 de dezembro, ele já assumia o posto de ajudante de ordens do então futuro mandatário.

Foi logo após esse período que o irmão do então ajudante de ordens fez Daniel outra mudança na engenharia de seus negócios. Em setembro de 2020, ele transferiu uma empresa que tinha na Califórnia, a CleanBrowsing, para Delaware, conhecido como um paraíso fiscal dentro dos Estados Unidos, como mostrou, em novembro do ano passado, o jornalista Lúcio de Castro.

Embora seja regida pela legislação de Delaware, o escritório de administração da firma fica no estado do Texas. Nos sites de busca, no endereço declarado aparece apenas uma agência postal.

Mudanças como essa podem acontecer por questões tributárias, mas, invariavelmente, deixam mais restritas as informações financeiras da companhia, facilitando, eventualmente, a incorporação de dinheiro de fonte incerta nos negócios.

As investigações

Dentre as várias investigações que incluem direta ou indiretamente o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, algumas envolvem lavagem de dinheiro, como o Metrópoles mostrou em janeiro, em reportagem que acabou resultando no cancelamento da nomeação de Mauro Cid para o comando de um batalhão de forças especiais com sede em Goiânia e na queda do então comandante do Exército.

Mensagens encontradas pela PF no celular do tenente-coronel revelam remessas de dinheiro para o exterior. Os investigadores pretendem recorrer a acordos de cooperação com as autoridades americanas para avançar sobre essas transações. Eles também tentarão obter dados sobre a conta bancária que Mauro Cid mantinha na Flórida, de onde podem ter saído os 35 mil dólares encontrados na casa dele em Brasília, na semana passada.

O pai dos irmãos Cid, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, é amigo antigo de Bolsonaro e foi nomeado no governo passado para chefiar o escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos, a Apex, em Miami. Recebia, no posto, um polpudo salário em dólares. Colega de turma de Bolsonaro na academia de formação de oficiais, Lourena Cid perdeu o cargo no início do mandato de Lula.

O Metrópoles tentou contato com Daniel Cid e com advogados do tenente-coronel Mauro Cesar Cid, mas até o momento não houve resposta.

Arthur Guimarães, o autor, é repórter investigativo do saite Metrópoles. Publicado originalmente em 10.05.23 

STF conclui julgamento e derruba indulto concedido por Bolsonaro a Daniel Silveira

Tribunal decidiu, por oito votos a dois, que medida configurou 'desvio de finalidade'

O então presidente Jair Bolsonaro entrega a Daniel Silveira cópia do indulto concedidoO então presidente Jair Bolsonaro entrega a Daniel Silveira cópia do indulto concedido Cristiano Mariz/Agência O Globo/27-04-2022

O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou nesta quarta-feira que foi inconstitucional o decreto de indulto individual concedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB) em abril de 2022. A decisão foi tomada por oito votos a dois. Prevaleceu o voto da presidente do STF, ministra Rosa Weber, que foi relatora do caso e considerou que a medida editada por Bolsonaro representou um "desvio de finalidade".

E agora? Saiba o que acontece com Daniel Silveira após derrubada do indulto concedido por Bolsonaro

Após quatro sessões, o julgamento foi concluído nesta quarta com os votos dos minitros Luiz Fux e Gilmar Mendes, que seguiram a posição de Rosa Weber. Na semana passada, a maioria já havia sido garantida com os votos de Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. A divergência ficou por conta dos ministros André Mendonça e Nunes Marques, indicados por Bolsonaro.

Parlamentar foi preso por descumprimento de medidas cautelares determinadas pelo STF, após se tornar réu por manifestações antidemocráticas

Em abril do ano passado, Daniel Silveira foi condenado pelo STF a oito anos e nove meses de prisão após dar declarações contra os integrantes da Corte e as instituições democráticas. Na ocasião, o ministro Alexandre de Moraes determinou a perda do mandato político de Silveira e aplicação de multa de 35 dias de cinco salários mínimos, o equivalente a R$ 192 mil.

O anúncio da graça presidencial foi feito por Bolsonaro em uma transmissão ao vivo menos de 24 horas após a conclusão do julgamento no STF. Minutos depois, o texto foi publicado em edição extra do Diário Oficial da União (DOU).

Com a derrubada do indulto concedido, volta a valer a pena determinada pela Corte. O cumprimento desta sanção, no entanto, não é imediato e somente deverá se dar após o julgamento, pelo STF, dos segundos embargos de declaração, um tipo de recurso contra a condenação.

Apesar disso, Silveira está preso preventivamente desde fevereiro, mas por descumprir medidas cautelares impostas pelo STF. A prisão preventiva serve para garantir o andamento do processo e é diferente do cumprimento da pena.

'Peça vulgar'

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes afirmou que, por trás do decreto de Bolsonaro, havia "uma peça vulgar de puro proselitismo político" que validava os atos de Silveira.

— Não é preciso ter grande imaginação para ver que por trás da pomposa invocação de uma competência privativa do poder Executivo para perdoar a pena do ex-parlamentar há uma peça vulgar de puro proselitismo político, cujo efeito prático é o de validar expedientes subversivos praticados pelo agraciado em detrimento do funcionamento de instituições centrais da democracia.

Luiz Fux afirmou que crimes contra o Estado Democrático de Direito não podem ser objeto de anistia.

— Entendo que crime contra o Estado Democrático de Direito é um crime político e impassível de anistia, porquanto o Estado Democrático de Direito é uma cláusula pétrea que nem mesmo o Congresso Nacional, através de uma emenda, pode suprimi-la.

Histórico de prisões

O ex-deputado foi preso pela primeira vez, por determinação de Moraes, em fevereiro de 2021, após ter divulgado um vídeo no qual proferia ataques e ofensas aos ministros da corte. Um mês depois, o ministro concedeu prisão domiciliar a Silveira.

Em junho daquele ano, no entanto, Moraes apontou violações do monitoramento eletrônico e voltou a determinar a prisão. Em novembro, o ministro revogou a prisão e ordenou medidas cautelares, que estavam valendo até fevereiro, quando houve nova prisão.

Daniel Gullino, de Brasília - DF para O Globo, em 10.05.23.

O relógio de Lula

Ignorando o eleitor que votou nele apenas para impedir a reeleição de Bolsonaro e desrespeitando decisões soberanas do Congresso, o presidente quer fazer o Brasil voltar no tempo

O petista Lula da Silva parece não ter entendido por que foi eleito presidente da República. Ao tentar reverter no tapetão a privatização da Eletrobras, pouco depois de ter buscado, por decreto, destruir o Marco do Saneamento para favorecer estatais ineficientes do setor, Lula desrespeita ao mesmo tempo o Congresso e os muitos eleitores que nele votaram não por simpatizarem com a embolorada agenda lulopetista, mas apenas para impedir que Jair Bolsonaro se reelegesse.

No discurso, Lula da Silva se opõe às privatizações porque as considera “um crime de lesa-pátria”, como classificou o caso da Eletrobras, “um patrimônio deste país”, segundo disse. Na prática, contudo, muitas estatais servem como cabide de emprego para arregimentar apoio político, fundamental para um governo incompetente na articulação com o Congresso, e de quebra para acomodar sindicalistas companheiros. Por isso, quanto mais estatais, melhor para os estatólatras.

A afronta de Lula ao que foi decidido pelo Congresso com relação à Eletrobras e ao setor de saneamento básico não passou despercebida pelas lideranças parlamentares.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, classificou como “preocupante” a fixação do presidente em reverter a privatização da Eletrobras no Supremo Tribunal Federal. À CNN Brasil, Lira afirmou que Lula tem todo o direito de não propor mais privatizações em seu governo, “mas mudar um quadro que já está jogado e definido, e com muitos grupos, muitos países investindo, realmente causa ao Brasil uma preocupação muito forte”. Trata-se de constatação óbvia: mudar as regras do jogo de supetão, sem justificativa outra que não seja a adição petista à máquina estatal, amplia a sensação de que contratos no Brasil não valem o papel em que são escritos.

Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, lembrou que a privatização da Eletrobras “foi algo muito debatido na Câmara e no Senado”, que o novo status da empresa “é uma realidade” e que seria “mais útil ao Brasil” discutir reforma tributária e o novo regime fiscal.

Mas Lula é incapaz de vencer sua natureza autoritária, convenientemente camuflada pelo figurino do democrata que se apresentou como contraponto ao golpismo bolsonarista. Bastaram alguns meses de governo para se perceber que Lula, sem qualquer pudor, quer impor o atraso petista na marra, recorrendo ao Judiciário para tentar desfazer o que foi decidido pelo Congresso, em particular no que diz respeito às estatais. Não foi à toa que o lulopetismo, por meio de seus aliados, ajudou a fazer carga contra a Lei das Estatais, que acabou com a esbórnia das nomeações políticas para essas empresas, justamente em resposta aos escândalos da trevosa era petista.

Ademais, os brasileiros moderados que foram decisivos para a vitória de Lula não votaram para reverter a reforma trabalhista, como ainda acalentam os petistas, nem para enterrar a reforma do ensino médio e, menos ainda, para fazer letra morta da Lei de Responsabilidade Fiscal, como fica claro na proposta de novo regime fiscal.

Passar uma borracha por cima dessas conquistas, é preciso deixar bem claro, é uma agenda histórica do PT e de partidos coligados, não o desejo da maioria dos eleitores que votaram por uma composição do Congresso que claramente não se coaduna com o ímpeto revisionista que anima o Palácio do Planalto.

Lula nem ao menos pode dizer que as “revisões” que ele propõe para marcos legislativos que mal se consolidaram, como é o caso da privatização da Eletrobras, serviriam para melhorar esses projetos, eliminando, por exemplo, muitos “jabutis” que foram aprovados a reboque deles. Quando fala em reverter a privatização da Eletrobras, Lula está movido apenas pelo desejo de desfazer tudo o que foi feito depois da estrepitosa ruína petista, marcada por escândalos de corrupção, por uma brutal recessão e pelo justíssimo impeachment de Dilma Rousseff. Lula quer fazer o relógio do Brasil andar para trás. Cabe ao Supremo dizer a ele que isso não pode.

Editorial /Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, 10.05.23

A derrota de Boric no Chile mostra os limites da esquerda e das escolhas de Lula no Brasil

Petista devia prestar atenção às razões que levaram a extrema direita a vencer eleição no Chile e aos motivos de Macron tratar a memória da resistência francesa como dever cívico


O ainda pré-candidato à presidência Lula foi recebido por Macron para tratar das mudanças climáticas e do futuro da União Europeia e a integração da América Latina Foto: Ricardo Stuckert/PR

Quando Emmanuel Macron decidiu ir na segunda-feira, 8, ao memorial da antiga prisão de Montluc, em Lyon, onde Jean Moulin foi preso e torturado pelos nazistas, o chefe de Estado francês associou a figura do líder da resistência à do historiador Marc Bloch, deportado e morto pelos alemães. “Moulin e Bloch nos dizem que a República francesa não é, por definição, boa ou má; ela é necessária, vital e justa. Tenhamos confiança em nós e no que vai se seguir.”

Moulin foi preso em 21 de junho de 1943. Torturado pela Gestapo, não falou. Morreu quando o levavam para a Alemanha. Acostar Moulin a Bloch na comemoração do fim da guerra na Europa tem uma razão. Macron pretende não ser apenas julgado, mas compreendido.

Bloch acreditava que a ciência histórica se consumava na ética. “A história deve ser verdade; o historiador se realiza como moralista, um justo”, escreveu Jacques Le Goff sobre o autor de Apologia da História. “Ele procura a verdade e a justiça não fora do tempo, mas no tempo.” Compreender, no entanto, nada tem de passividade. A receptividade passiva só nos leva a negar o tempo e, por conseguinte, nossa própria história.

Acossado pelos protestos por ter feito uma reforma da Previdência que julga necessária e justa, Macron governa em uma Europa conflagrada. As disputas políticas se inflamam na França ao mesmo tempo em que Putin retoma os sonhos imperiais russos. O francês enfrenta essa dupla prova. E resiste.

No Brasil, Lula assiste a tudo como se nada tivesse a aprender. A esquerda petista sonhava com um estalido no Brasil como o que convulsionou o Chile. Agora, ao lado de Lula, vê ali o triunfo da extrema direita na eleição para a nova Constituinte, resultado da tentativa de impor ao país um pensamento identitário, como se a antipolítica do estalido fosse força hegemônica e não circunstancial.

A lição de Macron vai além da coragem para resistir. Ela mostra que onde a memória é um dever cívico, a Ucrânia não é mais distante, nem um capricho. Nela cresce a história, que se alimenta da memória para salvar o passado a fim de servir ao presente e ao futuro. A memória torna fácil compreender que o sentido da República é a liberdade. E esta nunca está ao lado de quem se nega a viver os desafios de seu tempo.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é colunista d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 10.05.23.

George Santos, deputado brasileiro nos EUA, é preso acusado de lavagem de dinheiro

Segundo o Departamento de Justiça americano, Santos se apresentou para a audiência em um tribunal de NY e foi colocado ‘sob custódia federal’

O deputado americano George Santos foi preso na manhã desta quarta-feira, 10 (Foto: Andrew Harnik/ AP)

O deputado americano de origem brasileira George Santos foi preso acusado de lavagem de dinheiro e outros crimes federais nesta quarta-feira, 10, antes de uma audiência no tribunal de Nova York.

Santos terá de responder à sete acusações relacionadas à fraude eletrônica, três de lavagem de dinheiro, uma de roubo de fundos públicos e duas por fazer declarações falsas à Câmara dos Deputados, segundo o jornal americano The New York Times.

George Santos: defensor de pautas conservadoras participou de concursos de drag queen no Brasil

A acusação diz que Santos induziu apoiadores a doar para uma empresa sob o falso pretexto de que o dinheiro seria usado para apoiar sua campanha. Em vez disso, diz, ele o usou para despesas pessoais, incluindo roupas de grife de luxo e para pagar seus cartões de crédito.

Santos, que se tornou conhecido por mentir no currículo antes de se eleger deputado por NY no ano passado, tem problemas com a Justiça brasileira, inclusive inquéritos por estelionato tramitando na Justiça do Rio de Janeiro.

Na terça, Santos disse à Associated Press que as acusações eram desconhecidas por ele. “Isso é novidade para mim”, afirmou.

Santos admitiu ter mentido sobre ter ascendência judaica, formação em Wall Street, diploma universitário e um histórico como estrela do vôlei.

O procurador federal, Breon Peace, disse que as acusações “buscam responsabilizar Santos por vários esquemas fraudulentos e deturpações descaradas”.

“Em conjunto, as alegações acusam Santos de agir em repetidas desonestidades e enganos para chegar aos salões do Congresso e enriquecer”, disse Peace.

Republicanos sabiam de mentiras de George Santos, mas fizeram vista grossa, diz jornal

O republicano enfrenta pressão de seus correligionários e eleitores, que já pediram sua renúncia. Em março, o Comitê de Ética da Câmara abriu uma investigação contra o congressista. A comissão vai investigar eventuais atividades ilegais em sua campanha, possíveis violações de leis federais na atuação dele em uma empresa e a denúncia de assédio feita por um assessor que trabalhou em seu gabinete.

A rede de mentiras de George Santos

Entre outras alegações, Santos disse ter diplomas da Universidade de Nova York e do Baruch College, apesar de nenhuma das instituições ter registro de sua frequência. Ele alegou ter trabalhado no Goldman Sachs e no Citigroup, o que também não era verdade.

Ele disse falsamente que era judeu e que seus avós escaparam dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Santos, que se identifica como gay, também não revelou que foi casado com uma mulher por vários anos, terminando em 2019.

(AP, NYT e W.Post). Publicado originalmente no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 10.05.23, às 10h40. Atualização: 10/05/2023 | 11h02