sábado, 13 de maio de 2023

O terremoto político chileno, um alarme para o Brasil de Lula

Em um país ainda dominado pelo atraso cultural, pelo racismo que se recusa a morrer e pela miséria, o perigo de reproduzir a dinâmica chilena tornou-se real.

O presidente do Chile, Gabriel Boric, no dia 1º de janeiro durante a posse de Lula em Brasília. (Ricardo Moraes - Reuters)

O Brasil de Lula recebeu com preocupação a notícia de que no Chile a extrema direita se tornou a força dirigente do país, o que Rocío Montes descreveu neste jornal como um “terremoto político”. Isso significa que a nova Constituição, que deveria suplantar a de Augusto Pinochet, será dominada pelas forças de direita, destruindo as ilusões da esquerda progressista.

O mundo político do Brasil que pretende derrotar, com a volta de Lula ao poder, o desastroso golpe de extrema direita de Bolsonaro vai ter que se olhar no espelho da surpresa chilena para não cair nos mesmos erros. A possibilidade de o Lula ressuscitado, uma espécie de Sansão bíblico para derrotar o Golias da direita, cair nos erros da esquerda chilena não é apenas uma quimera. É um medo legítimo que começa a se incrustar na ainda turbulenta política pós-bolsonarista.

Os primeiros sintomas começaram a aparecer dias atrás, quando Lula se dedicou de corpo e alma à política externa, viajando nos primeiros 120 dias de mandato para 11 países, entre eles Argentina, Estados Unidos, China, Egito, Emirados Árabes, Portugal , Espanha, Inglaterra, além de quem já tem programa para visitar. E é que enquanto Lula se exibia como um líder mundial, capaz até de acabar com a guerra entre a Rússia e a Ucrânia , no Congresso, onde se acumula a verdadeira política local, seu governo ainda não conseguiu aprovar um único projeto de lei.

A grande preocupação das forças progressistas de um país gravemente ferido em seus valores democráticos até ontem, ainda atordoado por políticas extremistas e neofascistas no mandato anterior, é que o novo governo, considerado de centro-esquerda, não consiga tornar-se protagonista de um Congresso no qual o bolsonarismo conseguiu se enraizar e até dominá-lo.

Enquanto Lula é aplaudido no exterior, onde ainda mantém o prestígio que seus dois governos anteriores lhe deram, no Brasil começam a se temer que suas excursões planetárias deixem espaço para que o Congresso, onde se joga a verdadeira política, reforce um direito ala que cresceu e se animou com Bolsonaro. Uma direita não golpista, mas que começa a se tornar um muro que impede o novo Executivo de implementar sua nova política de abertura democrática e reformas de fundo.

Não é mais uma questão da presença ou não de Bolsonaro. É a direita e a extrema-direita propriamente dita que fazem o partido num Congresso que se apresenta como um muro difícil de derrubar pelo novo governo reformista.

Tão encorajados estão os timoneiros do Parlamento e do Senado que até agora não permitiram que o novo Gabinete aprovasse uma única de suas reformas. E já se fala em mais um passo, vislumbrando uma possível mudança de regime, dando vida a um verdadeiro parlamentarismo com um primeiro-ministro. E tudo isso dominado pelos três grandes grupos de pressão dentro do Congresso, como os evangélicos, o grupo das armas e o grupo dos fazendeiros, que nos quatro anos de gestão extremista de Bolsonaro não só cresceram como se fortaleceram politicamente. São eles que começam a distribuir as cartas da nova política.

Lula vai ter que entender que o Brasil de hoje, principalmente do pós-bolsonarismo, que não saiu embora seu líder esteja sob a lupa da justiça, é muito diferente daquele que presidiu nos últimos oito anos e fez parte dos governos de sua colega de partido, Dilma Rousseff.

É verdade que Lula teve a intuição desta vez de concorrer às eleições apoiado não apenas por seu partido, o PT, cercado por forças do centro e até da direita moderada, que foi o que lhe deu a vitória, ainda que estreita. A receita deu certo e ele conseguiu arrastar às urnas a seu favor muitos que não queriam voltar a votar em Bolsonaro, mas também não queriam votar na esquerda de Lula.

E nesse jogo de balanças políticas, que foi uma novidade para o Brasil, principalmente depois do desaparecimento da social-democracia, do PSDB, que durante anos foi a balança contra a extrema direita.

O perigo que ameaça o Brasil hoje, que pode ser espelhado na surpresa chilena, é que a extrema direita, já despojada das estridências vulgares do bolsonarismo, pode estar mais inserida no Congresso do que o próprio Lula pensava.

E aí está a grande incógnita: até que ponto a direita não golpista, eu diria menos deselegante, machista e até o nazismo de Bolsonaro, já tem assento no Parlamento e nos governos regionais e locais. Uma direita sem os resquícios extravagantes do incapaz e histriônico Bolsonaro, amigo íntimo de Trump, mas disposta a não deixar espaço para o retorno de uma esquerda que chamam de comunista.

Num Brasil ainda dominado pelo atraso cultural, pelo racismo que se recusa a morrer, por milhões de pessoas ainda pobres e semi-analfabetas, que pouco se comovem com os gritos de democracia e os valores da modernidade e que preferem dar ouvidos aos slogan ambíguo da extrema direita de Deus, Pátria e Família como escudo e defesa, o perigo de imitar o Chile tornou-se real.

Que o Lula continue viajando. É importante que o mundo sinta com as mãos que o Brasil do atraso e das tentações dos golpes militares morreu nas urnas. Mas não se esqueça, ao mesmo tempo, que os demônios do atraso e da direita política e moral ressuscitados pelo bolsonarismo vulgar ainda não foram enterrados. Fique vivo como um lobo em pele de cordeiro.

Juan Arias, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 09.05.23

Nenhum comentário: