sexta-feira, 12 de maio de 2023

Presidencialismo de confusão

As chances de uma relação produtiva entre governo e Congresso, dentro dos limites do sistema político-partidário do País, ainda existem

Um dos temas da análise política hoje é a formação da base do governo no Congresso. Aliás, esse é um tema permanente em nossa democracia e já foi objeto de estudo específico, resultando dele o conceito de presidencialismo de coalizão. 

Desde quando formulado pelo cientista político Sérgio Abranches, em 1988, a relação governo com o Congresso já passou por inúmeras controvérsias, do mensalão ao orçamento secreto.

Na aparência, ao menos, é um problema insolúvel. O governo precisa formar uma coalizão de partidos para realizar seus objetivos, dando em troca cargos e recursos.

Um obstáculo para contentar esta coalizão é o fato de que os partidos não são estruturados em torno de um programa político claro. Em muitos casos, sobretudo agora, tornaram-se partidos após a fusão de forças diferentes. Oferecer um cargo a um determinado partido nem sempre significa alinhamento, porque muitos setores e indivíduos dentro do próprio partido não se sentem contemplados.

Da mesma forma, a distribuição de recursos por meio de emendas parlamentares é uma tarefa difícil. O orçamento secreto resolveu o problema, mas criou outros muito maiores. Por meio dele, os deputados eram contemplados pessoalmente e destinavam o dinheiro com liberdade. O resultado foi não só uma dispersão perdulária, como também um atentado à Constituição, pela falta de transparência.

Existe um outro fator importante neste presidencialismo de coalizão: o fator simbólico, no sentido de que, além de cargos e dinheiro, os congressistas exigem atenção do próprio presidente. Nos termos da situação confusa brasileira, o caminho ideal era não somente sistematizar o encontro com parlamentares, mas também tentar definir um caminho mais produtivo para a distribuição de cargos e verbas.

Os cargos deveriam ser distribuídos, mas com uma condição: a de que o novo ocupante tivesse alguma intimidade com o tema. De um modo geral, esse quesito é desprezado sob o argumento – um pouco onipotente – de que o quadro político se adapta a qualquer situação.

Da mesma forma, o uso das emendas parlamentares não deveria ser pulverizado. Se todo esse dinheiro fosse de alguma forma articulado com os gastos dos programas nacionais do governo, a eficácia seria muito maior. Neste caso, governo e Congresso investiriam na mesma direção, conseguindo muito mais qualidade no gasto.

Interessante acentuar que, mesmo em condições ideais de distribuição de cargos e recursos, além da corte aos congressistas, o governo tem limites claros. Mesmo com a formação ideal de uma base, o Congresso não funciona como uma página em branco na qual o governo pode inscrever qualquer roteiro.

Ninguém mais do que Bolsonaro abriu mão dos recursos colocando-os, em grande parte, nas mãos dos presidentes da Câmara e do Senado, por meio do orçamento secreto. No entanto, Bolsonaro jamais conseguiu avançar sua pauta comportamental no Congresso. Havia uma barreira intransponível.

Isso não significa que uma pauta comportamental simetricamente oposta à de Bolsonaro consiga abrir caminho, sobretudo agora, com a nova composição. Significa apenas que existem limites e que o Congresso, ainda que não defina com clareza, acaba funcionando como uma espécie de baliza.

A situação do governo atual parece que pode esbarrar também em alguns limites. Mesmo distribuindo cargos e recursos, há temas que se tornam tabus. Um deles é reverter processos como o Marco do Saneamento ou a privatização da Eletrobras. Aparentemente, os limites impostos à pauta comportamental de Bolsonaro podem surgir, agora, como limites a projetos reestatizantes na economia.

Não se sabe claramente qual o peso que os deputados deram ao conteúdo do decreto sobre o Marco do Saneamento ao derrotá-lo na Câmara. O que pesou mais: a tendência a fortalecer as estatais ou o fato de um decreto ter alterado o trabalho de todos os parlamentares?

Ainda há um tempo para decantar essas decisões de uma legislatura que apenas começa. Naturalmente que a forma de decreto teve um peso na rejeição. Mas o conteúdo estatizante, a julgar pelo resultados das urnas, pode viver o mesmo drama que a pauta comportamental de Bolsonaro viveu no passado.

Ainda é muito cedo para cravar uma interpretação sobre o futuro. As dificuldades de trabalhar com os partidos tornaram-se mais ásperas depois que alguns deles se fundiram. O costume do orçamento secreto, no qual cada um usava o dinheiro das emendas como queria, ainda é uma herança maldita.

O que parece, no entanto, mais promissor é exatamente o leque dos grandes projetos econômicos, como o arcabouço fiscal e a reforma tributária. Neste campo, pode haver algumas divergências, mas o impulso geral é o de resolver logo para que o País volte a crescer.

As chances de uma relação produtiva entre governo e Congresso, dentro dos limites do sistema político-partidário do País, ainda existem. Caberá ao governo localizar exatamente onde é possível avançar e onde quebrar a cabeça representa apenas um desgaste inútil. Apesar de muito confusa, existe uma correlação de forças e não se deve nunca deixar de analisá-la com cuidado.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.05.23

Nenhum comentário: