sexta-feira, 31 de março de 2023

Com Bolsonaro vem a bagunça

A volta do ex-presidente restabelece o caos na política. Bolsonaristas e lulopetistas prosperam nessa confusão, com que o País perde. Espera-se que a oposição civilizada se apresente

O ex-presidente Jair Bolsonaro desembarcou ontem em Brasília trazendo na bagagem o caos. É espantoso que um político tão desqualificado como ele seja tido por seu partido como grande líder. Sem estatura intelectual e moral para nenhum cargo público nem para nenhum debate sério sobre os rumos do País, Bolsonaro pretende ser o catalisador da oposição ao petista Lula da Silva. Para Lula, por sua vez, a volta de Bolsonaro à ribalta é um presente valioso, porque coloca em segundo plano os muitos problemas de seu governo e ressuscita o cenário de confronto que o petista soube tão bem capitalizar na campanha eleitoral do ano passado. Ou seja, é uma situação de ganha-ganha para Bolsonaro e para Lula. Só o País perde.

Sendo agente do caos, Bolsonaro não tem nenhuma pretensão de oferecer uma visão alternativa à de Lula. Seu objetivo é apenas atrapalhar o máximo que puder, disseminando desinformação e promovendo o que há de pior na política nacional. Os pequenos bolsonaros eleitos para o Congresso não estão ali para propor nada nem para negociar nada: à imagem e semelhança de seu guru, pretendem testar os limites da decência e, com isso, amealhar ainda mais votos de eleitores desencantados com a democracia.

Eis por que cabe à direita democrática desvincular-se de Bolsonaro e oferecer ao País uma alternativa competente e moralmente correta de oposição ao governo petista. É preciso impedir não apenas que Lula da Silva cumpra suas ameaças de arruinar as bases da estabilidade econômica do País, como também que, na esteira desse provável desastre, Bolsonaro (ou alguém tão desqualificado quanto ele) se apresente como alternativa eleitoralmente viável.

O fato é que a volta de Bolsonaro tende a drenar as energias do País para temas tão divisionistas quanto irrelevantes para os destinos nacionais, como questões identitárias e culturais. A índole destrutiva de Bolsonaro, marca maior de seu tormentoso mandato, decerto seguirá produzindo efeitos nocivos para além de seus dias no poder, ainda que o ex-presidente venha a ser declarado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral – cenário que se descortina como altamente provável.

Para o bem do Brasil, este jornal espera que nem Lula nem os representantes dessa direita civilizada, que começaram a se reorganizar concluída a eleição, se deixem pautar pelas diatribes de Bolsonaro e, menos ainda, que lhe deem a brasa e o combustível para que ele incendeie o País. É tudo o que Bolsonaro quer para se manter relevante na política nacional. Tido e havido como “mau militar”, Bolsonaro se forjou como político em meio à confusão. A normalidade institucional do País não lhe faz bem.

Em relação a Lula, há pouca esperança para um comportamento magnânimo diante da oposição irracional que Bolsonaro representa. Petistas e bolsonaristas são representantes de forças políticas que se retroalimentam do medo e do ódio que nutrem uma pela outra. Lula sabe que o adversário ideal dele e do PT é e será a extrema direita. Se hoje o presidente encontra tempo para bater boca em público com um senador, é improvável que ignore olimpicamente seu adversário na eleição passada e faça o que tem de fazer pelo Brasil.

Bolsonaro, por sua vez, sabe que seu grande triunfo na política decorreu da exploração do antipetismo que anima grande parte do eleitorado. A ascensão de uma direita conservadora, não reacionária, democrática e republicana que possa antagonizar com o PT o levaria de volta a um lugar que ele conhece muito bem: a obscuridade. Justamente por isso, Bolsonaro volta agora ao País contando com uma parcela da sociedade eletrizada e dispersa para, a um só tempo, manter viva a guerra particular que trava contra Lula e impedir a ascensão de novas lideranças políticas à direita capazes de reduzi-lo a um mero acidente da história.

A esperança de um país menos tumultuado e mais concentrado em uma agenda de reconstrução e pacificação nacional recai sobre os ombros dos genuínos democratas, tanto à direita como à esquerda.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 31.03.23

Democracias não prestam vênia a ditaduras

Ausência de celebração militar do aniversário do golpe de 64 é retorno à normalidade institucional. Homenagens oficiais do governo Bolsonaro à ditadura eram insubmissão à Constituição

Durante os quatro anos do governo de Jair Bolsonaro, as Forças Armadas comemoraram o golpe de 31 de março de 1964. A orientação para os quartéis celebrarem a data foi um pedido do presidente Bolsonaro, cuja carreira política sempre se valeu do discurso de saudosismo da ditadura militar. Agora, com o governo de Lula da Silva, retorna-se à normalidade institucional. Não haverá nenhuma homenagem oficial à instauração do regime militar.

O tema é importante e merece ser bem compreendido. Não cabe, num Estado Democrático de Direito, realizar homenagens oficiais a períodos ditatoriais, nos quais, entre outros abusos, liberdades fundamentais e direitos políticos foram negados. Nenhuma instituição pública – cuja razão de existir remete, em última análise, ao princípio democrático – tem legitimidade para celebrar golpe militar.

Por isso, foi um passo importante quando, no governo de Fernando Henrique Cardoso, pôs-se fim, nos quartéis, à Ordem do Dia referente à celebração do golpe de 1964. A medida não tinha nenhuma dimensão de vingança ou mesmo de humilhação dos militares. A existência das Forças Armadas está prevista na Constituição, tendo, portanto, o seu lugar no Estado Democrático de Direito. O que não tem cabimento no regime democrático é o envolvimento dos militares em questões políticas. As Forças Armadas estão plenamente submetidas ao poder civil.

A abstenção do Estado de toda e qualquer homenagem ao golpe militar não tem a pretensão de reescrever a história nem de moldar a compreensão da população sobre os fatos passados. A história não pertence ao poder estatal. No ambiente de liberdade próprio de um regime democrático, cada um tem o direito de realizar sua avaliação sobre os fatos políticos pretéritos, o que não significa, por óbvio, afirmar que todas as opiniões têm o mesmo peso. Não dá para negar, por exemplo, que houve censura e tortura durante o regime militar. É tarefa da sociedade, de modo muito concreto dos historiadores, debruçar-se sobre as fontes históricas, de forma a propiciar, com o tempo, um conhecimento cada vez mais acurado sobre o período, o que inclui reconhecer matizes, sombras e também dúvidas.

É preciso advertir, no entanto, que a celebração do golpe militar de 1964 no governo Bolsonaro foi mais do que uma disputa sobre um tema histórico, o que, como se disse acima, é, por si só, um grave equívoco. Não cabe ao Estado escrever a história. Não cabe ao governante de plantão aproveitar-se do aparato estatal para difundir suas versões sobre a história. Na determinação de Jair Bolsonaro para que as Forças Armadas celebrassem o 31 de março, o grande tema em questão não era o que ocorreu em 1964, e sim a rejeição das escolhas feitas pela sociedade brasileira em 1988, com a promulgação da Constituição. Mais do que negacionismo a respeito da história nacional, havia uma insubmissão à ordem jurídica vigente.

Eis o grande problema das celebrações do golpe militar durante o governo Bolsonaro: elas eram uma declaração de afronta ao Estado Democrático de Direito. Ao louvar a ditadura e ao homenagear torturador, Jair Bolsonaro estava, na realidade, desprezando a Constituição de 1988; em concreto, fustigava o livre funcionamento do Congresso e do Judiciário. E ainda transmitia a mensagem subliminar de que, a depender das circunstâncias, as Forças Armadas poderiam ser convocadas para tutelar o poder civil. Ora, tudo isso é rigorosamente inconstitucional.

Mesmo que, por hipótese, tudo isso ficasse “apenas” no plano simbólico, já seria gravíssimo. Constitui evidente abuso de poder valer-se de uma data do calendário nacional para instigar as Forças Armadas contra o regime constitucional. Mas, como se verificou nos ataques ao sistema eleitoral e nos atos do 8 de Janeiro, essa afronta à Constituição não ficou no plano das ideias. Produziu danos concretos.

A não celebração do 31 de março de 1964 é, portanto, um modo de defender e promover o efetivo respeito à Constituição de 1988. Democracias não prestam vênia, nem por um dia, a ditaduras.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 31.03.23

quinta-feira, 30 de março de 2023

Bolsonaro volta em dívida

O ex-presidente pode até fazer muito barulho no seu retorno ao Brasil. Mas tem muito o que explicar. Não adianta fazer cortina de fumaça. 

Ao aterrissar em Brasília hoje, depois de três meses fora do Brasil, o expresidente Jair Bolsonaro deve trazer, em sua bagagem, uma miríade de explicações para tentar se livrar das acusações graves que recaem sobre ele nos escândalos das joias árabes, fatos que têm sido revelados numa série de reportagens pelo Estadão desde o dia 3 de março.

Pesam sobre o ex-presidente casos graves, como ocultação de bens milionários que deveriam, conforme determinam a lei e o Tribunal de Contas da União, ser incorporados como bens do Estado brasileiro, e não joias de diamantes para se esconder dentro das instalações de uma fazenda de um amigo e seguidor, o ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet, em Brasília.

Todas as evidências, como apontam diversos juristas notáveis, indicam para, no mínimo, crime de peculato, que acontece quando um agente público – neste caso, o presidente – se vale do cargo que ocupa para ficar com bens que são da população, e não de seus cofres secretos.

Entre todos os atos ilegais, porém, saltam aos olhos as digitais que Bolsonaro deixou em suas tentativas de sacar ilegalmente, da alfândega de Guarulhos, o conjunto de joias de diamantes avaliado em cerca de R$ 16,5 milhões. As joias foram apreendidas pela Receita Federal.

O episódio está carregado de provas, envolvendo desde ligações telefônicas entre Bolsonaro e o então chefe da Receita Federal, Julio Cesar Gomes Vieira, até a ordem direta do então presidente ao seu assistente pessoal, o tenente-coronel Mauro Cid, para que enviasse um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) até Guarulhos e, por meio de um militar, tentasse obter as joias, um dia antes de partir para os Estados Unidos, em 30 de dezembro.

Não há o que refutar. Há documentos oficiais que comprovam a operação. Há o nome do presidente registrado, informando que aquilo ocorreu a seu pedido. O próprio tenente-coronel Mauro Cid já disse a quem quiser ouvir: a ordem para retirar as joias do aeroporto partiu de Bolsonaro. Cid tem afirmado, ainda, que nem teria outra forma de saber da existência do pacote milionário, senão pela boca do próprio presidente.

São essas apenas algumas das informações que Bolsonaro terá de dar, isso sem contar em novas frentes de investigação, que pretendem esmiuçar os negócios que seu governo firmou com os árabes em seus quatro anos de governo. Tudo indica que há muito mais por vir, além do que está retido hoje em dezenas de caixas escondidas dentro da fazenda de Piquet.

Adriana Fernandes, a autora deste artigo, é Repórter Especial de Economia d'O Estado de S. Paulo, em Brasília. Publicado originalmente em 29.03.23.

Os ‘socos na boca’ que Lula tem levado

Os planos de governo de Lula enfrentam dificuldades com a realidade

Mike Tyson tinha um soco formidável e uma perfeita definição do que é estratégia: “Todo mundo tem um plano até levar um soco na boca”. Supondo que Lula tenha como plano transformar o Brasil segundo suas visões políticas, já levou vários socos na boca. Em outras palavras, nenhum plano resiste ao primeiro contato com a realidade. É o que está acontecendo com os planos do presidente.

Promessas de campanha não cabem no Orçamento. Não cabem na nova constelação de poder no sistema de governo, com a ampliação das prerrogativas do Congresso. Não cabem num ambiente político de polarização calcificada e enorme oposição social ao governo do PT.

O cerne do plano de Lula é bem evidente. Trata-se de poder expandir sem muitos limites os gastos públicos esperando que tragam progresso para o País. Enquanto ele, árbitro e negociador máximo, acomoda no “gogó” interesses diversos e antagonismos que vão surgindo pelo caminho. Se deu certo antes, vai dar certo agora.

Ocorre que a realidade mudou nos últimos 20 anos talvez além da capacidade de compreensão do presidente. O Brasil tem produtividade e competitividade (fora o agro) estagnadas há décadas. E, na média dos últimos dez anos, exibe crescimento pífio com dívida pública maior. As previsões para o crescimento neste ano são, no fundo, mais do mesmo.

Instinto e experiência política dizem a Lula que sua popularidade vai se deteriorar rapidamente – portanto, sua capacidade de lidar com o Congresso –, se não apresentar resultados econômicos convincentes com muita brevidade. Daí a ânsia em martelar uma redução da taxa Selic, entendida por Lula como única condição agravante imediata da economia.

De fato, as taxas de juros são perversas no Brasil, mas por outro motivo. Elas são altíssimas no curto prazo, mas também no longo. O que traduz expectativas baixas e percepção de risco alta por parte dos agentes econômicos.

Quebrar esse “ferrolho” (que é, em parte, profecia que se autocumpre) exigiria de Lula brutal adaptação de seu plano – é o que implica a definição de

Tyson. Seria aceitar regras rígidas e impopulares de limite de crescimento de gastos e renunciar a exceções da regra – o contrário do que vem tentando.

Lula acha que os socos que está levando na boca vêm do presidente do BC e do presidente da Câmara. Na verdade, está sendo golpeado pela realidade de ele mesmo mandar menos, e ter dificuldades severas de coordenação política num país enfrentando desafios profundos que ele mal consegue entender.

O pior do nocaute é não saber de onde vem. 

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista e Apresentador do Programa WW da CNN - Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.03.23

Os presos e os direitos humanos

Os presos ‘cautelares’ presumem-se inocentes, e como tal devem ser tratados, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral

A Constituição Federal e o Direito Internacional dos Direitos Humanos – notadamente as Regras de Nelson Mandela (Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos) – revelam o direito que assiste ao preso (a qualquer preso) de ser tratado com absoluta humanidade e incondicional respeito à sua dignidade.

No Estado Democrático de Direito, fundado nos valores da cidadania e da dignidade da pessoa humana, o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade.

Os presos “cautelares” presumem-se inocentes, e como tal devem ser tratados, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. Isso significa, no que diz respeito ao alojamento, por exemplo, que as celas e ou os locais destinados ao descanso noturno não devem ser ocupados por mais de um recluso. Se, por razões especiais, tais como excesso temporário de população prisional, for necessário que a administração prisional central adote exceções a essa regra, deve-se evitar que dois reclusos sejam alojados numa mesma cela ou local. Os locais destinados aos reclusos, especialmente os dormitórios, devem satisfazer rigorosamente as exigências de higiene e saúde, consideradas as condições climatéricas e, especialmente, a cubicagem de ar disponível, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação.

A administração deve fornecer a cada recluso, a horas determinadas, alimentação de qualidade, de valor nutritivo adequado à saúde e à robustez física, bem preparada e servida. E todos os reclusos devem ter a possibilidade de se prover com água potável – sempre que necessário.

Todos esses preceitos são de observância e aplicação obrigatória pelo Estado, a quem incumbe o dever, imposto por todas as leis da República e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, de executar, materialmente, essa normativa. Isso sob pena de violação dos direitos humanos – e acrescente-se que apenas o Estado viola direitos humanos; a pessoa natural comete infração penal.

Nada justifica que o Estado possa impor ao preso tratamento afrontoso a essas regras mínimas. Se o fizer, perde toda a sua legitimidade – legitimidade vista aqui, sociologicamente, como autoridade natural. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, a CIDH, já decidiu mais de uma vez, presente contencioso jushumanista, que a execução penal no Brasil é uma tortura.

O encarcerado conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade. Assim, o preso não poderá sair a hora que quiser para tomar um sorvete, à noite; isso não implica, todavia, que ele possa ser alojado num local inadequado para o ser humano, tampouco que fique privado de alimentar-se adequadamente, de beber água potável, de tomar banho quente, de dormir condignamente – em cela separada. Isso é “pedir muito”? Não! É o cumprimento, rigoroso, pelo Estado das regras por ele sancionadas, homenageando e realizando os direitos humanos (direitos humanos que foram pioneiramente escritos no capítulo 25, versículos 1 a 3, do livro de Deuteronômio, há quase 4 mil anos).

O que se pretende, no limite, é tão somente a aplicação das leis da República aos presos – uma resposta estatal corretíssima, exemplar, pedagógica e profilática.

Quando se apura, se processa e se pune, visa-se, como sempre se diz, à aplicação – normalmente adjetivada de “rigorosa”, “exemplar” – das leis. Essa via, entretanto, tem mão dupla: este rigor exemplar tem de valer também contra o Estado, incidindo, no ponto, o postulado da superioridade ética estatal (Raul Eugênio Zaffaroni).

Ao operador jurídico incumbe o dever de trabalhar para diminuir o gap abissal existente entre o ser (o mundo concreto da vida, a vida vivida) e o dever ser (o mundo abstrato, normativo, a vida pensada). Isso tem de ser feito mediante o uso de todos os mecanismos jurídicos disponíveis, obviando, assim, ameaça ou lesão a direito.

A suposta – e inadmissível – impossibilidade do cumprimento das regras punitivas pelo Estado é conducente à imposição de “medidas cautelares diversas da prisão”. Nos casos de crimes graves, cometidos com alta agressividade – “periculosidade” – contra a pessoa, havendo necessidade comprovada de encarceramento, poder-se-á fazer o acionamento da “remição especial”, conforme tenho articulado em livros, artigos e cursos. Analogicamente, por inafastável imposição sistemática – e o sistema do ordenamento jurídico é uma ordem, e não um caos –, invoca-se o que foi assentado pelo Supremo Tribunal Federal (Tema 423): “Cumprimento de pena em regime menos gravoso ante a falta de vagas em estabelecimento penitenciário adequado”. 

Alexandre Langaro, o autor deste artigo, é Advogado. Estudou no New York Criminal Procedure Law. É Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB - RS. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.03.23

Comissão de Anistia é política de Estado

Fruto da lei, a Comissão de Anistia não pode ser desvirtuada pelo Executivo. Com Bolsonaro, colegiado negou direitos constitucionais; sob Lula, inventaram ‘anistia política coletiva’

Está prevista para hoje a primeira sessão da Comissão de Anistia com a nova composição do colegiado, definida pelo governo Lula. O objetivo imediato é fazer a revisão dos processos avaliados nos últimos dois governos, especialmente no de Jair Bolsonaro, quando a grande maioria dos pedidos foi rejeitada. Entre 2019 e 2022, dos 4.285 processos julgados pela Comissão, 4.081 (95%) foram indeferidos, segundo levantamento do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

É fundamental realizar esse trabalho de revisão, uma vez que, no governo Bolsonaro, a Comissão de Anistia foi totalmente desvirtuada, com integrantes que rejeitavam a própria finalidade do colegiado. Basta ver que, para Jair Bolsonaro, as atrocidades da ditadura militar não deveriam ser indenizadas, e sim homenageadas.

De fato, o bolsonarismo distorce até mesmo as questões mais básicas. O trabalho da Comissão de Anistia não é a realização de uma política de governo, como se dependesse das idiossincrasias do governante de plantão. O colegiado vem cumprir uma política de Estado, definida na própria Constituição de 1988, que concedeu “anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares” e determinou a correspondente reparação econômica. É dever do Estado, portanto, indenizar todos aqueles que, por razões políticas, foram perseguidos pelo poder estatal.

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi editada a Medida Provisória (MP) 65/2002, depois convertida pelo Congresso na Lei 10.559/2002, que regulamentou os direitos constitucionais dos anistiados políticos. A Comissão de Anistia, que entre seus membros conta com um representante do Ministério da Defesa e um das pessoas anistiadas, é fruto dessa regulamentação. Assim, quando desvirtua o funcionamento do colegiado, o governo descumpre a Constituição, ao negar efetividade a direitos previstos no texto constitucional.

A vinculação da Comissão de Anistia com a Constituição e com a Lei 10.559/2002 explicita que o trabalho do colegiado não tem natureza política, não devendo depender de orientações político-ideológicas. Trata-se de tarefa técnica, de análise das provas, para comprovar a alegada perseguição política, assessorando o Executivo federal na concessão das indenizações.

Em razão da necessária conformidade com a lei, a Comissão de Anistia não deve fazer criações interpretativas, seja para negar direitos, seja para estendê-los além do que o legislador previu. Por exemplo, o novo Regimento Interno da Comissão de Anistia, publicado em 23 de março, prevê a possibilidade de um requerimento coletivo de anistia política, criando uma “declaração de anistia política coletiva” para “associações, entidades da sociedade civil e sindicatos representantes de trabalhadores, estudantes, camponeses, povos indígenas, população LGBTQIA+, comunidades quilombolas e outros segmentos, grupos ou movimentos sociais que foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”.

A Constituição e a Lei 10.559/2002 são inequívocas: os anistiados são pessoas físicas. A pretendida ampliação a coletivos, por meio de decreto, desrespeita o que o Congresso estabeleceu. Se o governo federal pretende indenizar associações e entidades, deve antes propor ao Poder Legislativo. A razão para tal exigência é cristalina: a Comissão de Anistia cumpre uma política de Estado, e não de governo. Alterar sua sistemática exige lei.

Outro aspecto que merece ser lembrado, especialmente depois de duas décadas de existência da Comissão de Anistia, é a necessidade de finalizar o trabalho de reparação dos anistiados políticos. O Estado tem o dever de analisar com presteza os casos pendentes, dando o devido encaminhamento. Eternizar essa tarefa, como se não tivesse fim, seria também uma forma de descumprir a Constituição.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.03.23

quarta-feira, 29 de março de 2023

Uma democracia vingativa?

Todos somos democratas e todos somos vingadores. Como não devolver em grande estilo a ofensa infligida pelos inimigos?

Mas, eis o dilema, como conciliar o hábito milenar e bíblico do “olho por olho e dente por dente” com um regime de governo baseado no enfrentamento impessoal? No combate competitivo entre ideais e programas?

Democracia significa mudança. É algo paradoxal porque, durante milênios, as realezas permaneciam atadas à imobilidade das dinastias. Nesses regimes, discordar significava rebelar-se, trair – essa madrinha da “armação”, que justifica a vingança como vacina contra as diferenças políticas.

Em regimes democráticos, porém, o governo é programado para mudar. Neles, a mudança faz parte do cerne do tão apregoado estado democrático de direito. O estado de direito pressupõe a mudança por meio eleitoral naquilo que seria uma disputa livre e honesta, balizada por normas aceitas pelos concorrentes.

A democracia tem como base um pressuposto inflexível: o fato de que não deve haver desconfiança sobre a legitimidade de quem disputa o pleito. De fato, o espírito da monarquia é a imobilidade e o da democracia, a rotatividade do e no poder. Por isso as normas da competição devem ser, tal como os competidores, livres de obstáculos legais.

Parece simples, mas não é.

Se existe suspeita de ilegitimidade de um candidato, todo o jogo pode ser suspeito. Se, na pior hipótese, o candidato for julgado e aprisionado – ou seja: posto fora do mundo –, o isolamento o transforma imediatamente num Conde de Monte Cristo, num vingador.

A vingança que Lula 3 ressuscitou é algo rotineiro. Na vida diária, ela equivale à obrigatoriedade da devolução de um bom-dia. No nível dos valores, o ato de vingar – como mostrou Marcel Mauss no seu Ensaio sobre a Dádiva e Marcos Milner ampliou numa exemplar tese de doutorado – é uma retribuição compulsiva.

Se temos coragem para tudo, menos a de negar o pedido de um amigo, se a lei só deve ser aplicada aos inimigos e o crime depende de quem o cometeu; se os inimigos vivem de “armações”, como diziam os bolsonaristas, e Lula 3 reafirma, então, como não prometer vingança a quem nos levou para a cadeia e hoje é obrigado a nos encarar como dono do poder?

O presidente Lula não é uma pessoa comum. Ninguém sem excepcionalidade chega à presidência três vezes. Luiz Inácio é uma pessoa extraordinária. Mas, e esse é o ponto, com toda a sua notável experiência republicana e populista, ele não deixou de se curvar diante da força dos velhos costumes. E a vingança que revive o Conde de Monte Cristo faz parte de uma esquecida e pouco discutida ética de reciprocidade. 

Roberto DaMatta, o autor deste artigo, é antropólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.03.23

A volta de Bolsonaro e o 31 de Março

A República precisa de uma data para opor aos herdeiros das ditaduras o valor da democracia

Fingindo-se de morto, Stalin olha fixo os soldados que retiram seu caixão do Kremlin. A cena abre o poema Os herdeiros de Stalin, de Ievguêni Ievtuchenko. O texto apareceu no Pravda, em 1962, e se tornou símbolo do Degelo, a política de desestalinização de Nikita Kruchev. No Brasil, Haroldo de Campos traduziu assim seus versos finais: “Enquanto neste mundo houver herdeiros de Stalin, para mim,/no mausoléu,/Stalin ainda resiste”.

O poeta tinha razão. Não basta retirar o caixão do mausoléu. Stalin tem herdeiros. A Rússia de Putin retomou o culto ao vozhd, ao líder, e levou seus sonhos imperiais à Ucrânia. Uma nação é também feita de símbolos e heranças. E memória.

Foi para apaziguar os ânimos e desarmar os espíritos que o almirante Mauro César Rodrigues, o brigadeiro Mauro Gandra e o general Zenildo Lucena decidiram, em 1995, acabar com a nota conjunta sobre o 31 de Março de 1964. Desfeita a URSS, o anticomunista como forma de coesão e identidade se enfraquecera. Além disso, a data dividia o Brasil. E as Forças Armadas devem ser fator de união e não de conflito. Não se comemora vitória sobre brasileiros. Caxias ensinara isso ao vencer os farrapos.

Jair Bolsonaro escolheu a dedo a data de sua volta ao País. Ele e seus generais retiraram do caixão a comemoração oficial sobre o golpe porque a Nova República se esqueceu dos herdeiros do AI-5. Ela suprimiu a data, mas nada pôs no lugar; não procurou um feito das armas nacionais para opor ao 31 de Março como símbolo da Constituição.

Em As Formas Elementares da Vida Religiosa, Émile Durkheim diz que “na base de todo sistema de crenças e de todos os cultos deve, necessariamente, haver certo número de representações fundamentais e atitudes rituais”. Datas, símbolos e rituais não são frivolidades. A dimensão simbólica penetra a vida social. Jaques Le Goff mostra que se tornar senhor da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos e dos indivíduos que dominam as sociedades históricas.

Na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, além de seus patronos, só Mascarenhas de Morais, o comandante da Força Expedicionária Brasileira, tem ali o retrato sem ter chefiado a escola. Isso mostra um caminho à República: retirar o 21 de fevereiro do esquecimento que lhe dedica o mundo civil.

A data da vitória de Monte Castelo é um símbolo de união nacional e da luta contra o nazifascismo. Eis um feito das armas que se deve lembrar para afirmar a liberdade e a democracia como valores fundamentais. A República não deve esquecê-lo. E não é porque os herdeiros do AI-5 ou os de Stalin podem um dia voltar. É porque, na verdade, eles nunca foram embora.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é Repórter Especial d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 29.03.23

Bolsonaro recebeu e guardou 3º estojo de joias em fazenda de Nelson Piquet

Valor do presente, que inclui um relógio Rolex de ouro branco cravejado de diamantes, supera os R$ 500 mil.

Estojo de joias é composto por peças em ouro branco e diamantes

O ex-presidente Jair Bolsonaro guardou presentes recebidos durante seu mandato em uma propriedade do ex-piloto de Fórmula 1 e seu amigo Nelson Piquet, em Brasília. Para a chamada Fazenda Piquet, localizada no Lago Sul – uma das regiões mais valorizadas da capital federal –, foi encaminhado um terceiro estojo de joias que ficou em posse de Bolsonaro após o fim do mandato, conforme revelado na noite de anteontem pelo Estadão.

O pacote com os presentes em ouro branco e diamantes também foi dado pela Arábia Saudita. O estojo inclui um relógio da marca Rolex – avaliado em R$ 364 mil – uma caneta da marca Chopard, abotoaduras, um anel e uma masbaha – um tipo de rosário árabe. O valor de todos os bens passa de R$ 500 mil. Já são três presentes dados ao ex-presidente pelo regime saudita.

O primeiro estojo de joias, como também revelou o Estadão, era destinado à primeiradama Michelle Bolsonaro. O governo Bolsonaro tentou entrar ilegalmente no País com colar, anel, relógio e par de brincos de diamantes avaliados em R$ 16,5 milhões, mas a caixa com as joias foi apreendida pela Receita. O segundo presente – relógio, par de abotoaduras, caneta, anel e masbaha – todos da marca Chopard e avaliados em R$ 800 mil – foram devolvidos pela defesa de Bolsonaro ao poder público, por ordem do Tribunal de Contas da União (TCU).

A reportagem apurou que o último conjunto, diferentemente das outras duas caixas, foi recebido em mãos pelo próprio ex-presidente, quando esteve com sua comitiva em viagem oficial a Doha, no Catar, e em Riad, na Arábia Saudita, entre 28 e 30 de outubro de 2019.

VALOR. Como ocorreu com a segunda caixa, a terceira está entre os bens guardados na Fazenda Piquet. Para lá, Bolsonaro mandou joias, enquanto itens como cartas e livros foram despachados para o Arquivo Nacional e a Biblioteca Nacional, no Rio. Esses pertences receberam o entendimento de que seriam do Estado brasileiro, ao passo que as joias foram tratadas como bens pessoais.

A propriedade de Piquet – escolhida para abrigar pertences que Bolsonaro não queria entregar para a União – recebeu dezenas de caixas. O material alocado na propriedade do amigo e apoiador do ex-presidente saiu pelas garagens privativas dos Palácios do Planalto e da Alvorada – este residência oficial da Presidência.

A data inicial para envio das caixas foi registrada no dia 7 de dezembro de 2022, quando Bolsonaro começou a organizar a sua saída dos palácios, após a derrota na eleição para o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar do pedido ter ocorrido nesta data, houve atraso na remessa, e os itens só seriam encaminhados à casa de Piquet no dia 20 de dezembro, uma terça-feira, às 9h.

Faltavam apenas 11 dias para o fim do mandato de Bolsonaro. Na semana seguinte, o presidente mandaria um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) ao Aeroporto de Guarulhos, para tentar resgatar a caixa de joias com diamantes para Michelle apreendidas pela Receita, como seu próprio ministro Bento Albuquerque afirmou ao Estadão.

A reportagem procurou Piquet para questioná-lo sobre os motivos de guardar, em sua propriedade, os bens que Bolsonaro alega que são dele, apesar deste entendimento contrariar a lei e o que determinou o TCU em 2016. Não houve resposta. Piquet é um cabo eleitoral ativo de Bolsonaro.

Em novembro do ano passado, um mês antes de alocar os presentes do então presidente, o ex-piloto brasileiro participou das manifestações contra a derrota Bolsonaro. O tricampeão de F1 chegou a fazer uma doação de R$ 501 mil para a campanha de Bolsonaro, em agosto de 2022.

Na semana passada, Piquet foi condenado a pagar uma indenização de R$ 5 milhões por falas racistas e homofóbicas dirigidas ao piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton, da Mercedes, durante entrevista a um canal do YouTube. Cabe recurso.

NA MIRA. O terceiro estojo entrou na mira de parlamentares, que procuraram o TCU para cobrar que Bolsonaro entregue o conjunto. Parlamentares do PSOL pediram o confisco das joias. “Solicitamos que este Tribunal adote as medidas cabíveis para restituição dos bens ora citados e a eventual responsabilização do ex-presidente Jair Bolsonaro”, diz o pedido de duas congressistas do partido.

Em 2019 Presentes foram recebidos por Bolsonaro em mãos quando esteve com comitiva em viagem a Riad

A defesa de Bolsonaro já chegou a sustentar a tese de que os presentes seriam bens pessoais e que poderiam ser incorporados ao acervo privado. Ao se manifestar sobre os presentes, o advogado do ex-presidente Bolsonaro, Frederick Wassef, declarou que Bolsonaro, “agindo dentro da lei, declarou oficialmente, os bens de caráter personalíssimo recebidos em viagens, não existindo qualquer irregularidade em suas condutas”. Procurada, a defesa do ex-presidente não respondeu sobre a terceira caixa.

Bolsonaro disse que deve voltar ao Brasil amanhã, às 7h30, para “trabalhar com o Partido Liberal” e “fazer política”. A expectativa é que preste esclarecimentos sobre as joias que recebeu irregularmente e as que tentou receber. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal investigam o caso. 

André Borges e Adriana Fernandes, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 29.03.23

A ética não é só para os outros

Pretensão de Bolsonaro de embolsar presentes caros revela compreensão distorcida da função pública

Não é questão de condenar por antecipação nem de julgar sem provas. Mas o que foi revelado até o momento é suficiente para afirmar: Jair Bolsonaro achou que o exercício da Presidência da República dava ensejo para ele deixar o Palácio do Planalto com mais bens do que quando ele lá chegou. Até agora, foram revelados três lotes de presentes caríssimos que ele pretendia incorporar ao seu patrimônio pessoal. Os casos exigem investigação cuidadosa. Há presentes de valores vultosos, que destoam das práticas habituais da cortesia diplomática, o que pode eventualmente representar algum tipo de contrapartida, com implicações penais ainda mais graves.

Avaliado em cerca de R$ 16,5 milhões, o primeiro lote de joias de ouro e diamantes foi barrado pela Receita Federal quando entrava no País na mala de um assessor, sem qualquer tipo de declaração. O caso foi revelado pelo Estadão, que mostrou o empenho de Jair Bolsonaro, até o final do mandato, para tentar liberar e, aparentemente, ficar com esses bens.

O segundo lote de presentes, com joias e armas avaliadas em cerca de R$ 500 mil, foi integrado ao acervo pessoal de Jair Bolsonaro. No entanto, depois de o caso vir à tona, a Justiça determinou a devolução dos bens. No dia 24 de março, a defesa de Bolsonaro entregou essas joias e armas dadas por autoridades sauditas em uma viagem oficial.

Agora, o Estadão revelou a existência de um terceiro pacote de joias dadas ao presidente da República pelo regime da Arábia Saudita em outubro de 2019. Num primeiro momento, os presentes ficaram no acervo privado do presidente da República. No entanto, em junho de 2022, Bolsonaro solicitou que as joias fossem encaminhadas ao seu gabinete, ficando sob sua guarda. Estima-se que o lote valha, no mínimo, cerca de R$ 500 mil.

Tal como dispõe o Decreto 4.344/2002, todos os presentes recebidos pelo presidente da República em cerimônias de troca de presentes, audiências com chefes de Estado e de governo, visitas oficiais ou viagens ao exterior devem ser incorporados ao patrimônio da União, com exceção dos itens de natureza personalíssima (medalhas personalizadas e grã-colar) ou de consumo direto (bonés, camisetas, gravata, chinelo, perfumes, entre outros). Em julgamento de 2016, corroborando os termos do Decreto, o Tribunal de Contas da União (TCU) classificou como grave irregularidade a incorporação de presentes recebidos em função do cargo ao acervo pessoal do presidente da República.

A moralidade pública não pode ser um slogan que se exige apenas do lado contrário. A lei tem de ser cumprida e os indícios, investigados até o fim, até porque a devolução das joias por si só não modifica eventual tipificação penal de corrupção.

A coisa pública merece muito mais respeito. Mesmo que seja “apenas” incorporação indevida, o que ainda não foi comprovado, é um escândalo alguém achar que pode levar para casa presentes de R$ 500 mil recebidos no exercício de uma função pública. Tem algo de muitíssimo errado quando cargo público se torna ocasião de enriquecimento pessoal. •

Editorial / Notas e Informações. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.03.23

Volta de Bolsonaro vai criar muita confusão

Será um bom teste de popularidade para ele

Bolsonaro fala em seminário em Miami, nos EUA 03/02/2023Bolsonaro fala em seminário em Miami, nos EUA 03/02/2023 CHANDAN KHANNA / AFP

O guru da extrema direita mundial, Steve Bannon, disse em entrevista à Folha de S.Paulo que a questão das joias não tem a menor importância, e Bolsonaro continua da mesma maneira. Eles vivem no mundo deles, dos seguidores fiéis nas redes sociais, e realmente conseguem neutralizar muitas coisas; é um fato. E Lula perdeu muito apoio porque as redes sociais começaram a trabalhar com muito afinco e frequência contra ele e a favor de Bolsonaro. Portanto, a adequação da chegada de Bolsonaro não importa muito para esse pessoal, tanto que estão programando motociata, desfile em carro aberto e outras manifestações. Vamos ver qual é a capacidade de mobilização deles. Será um bom teste para ver se Bolsonaro conseguiu reunir manifestantes como quando estava no auge da popularidade.

Outra questão é saber se ele tem algum risco de ser preso chegando ao Brasil. É pouco provável, mas pode aparecer um juiz de primeira instância que mande prendê-lo. As acusações são muitas, mas os processos estão muito no começo, pois ele tinha imunidade até janeiro. Ainda não há possibilidade de haver algo concreto, a menos que haja alguma descoberta e se diga que a presença dele coloque em risco as investigações, ou tenha algum risco de ele influir na PF. As lambanças que andou fazendo não afetam a militância. Ele está ferido de morte com os que não são bolsonaristas, não extremistas e o preferiram ao PT. Esse grupo, que é forte está desembarcando dele, mas não embarca no PT. Está embarcando na direita tradicional – Tarcisio de Freitas, Zema. A militância extravagante, agressiva e radical continua com ele, mas é minoritária. Assim como é minoritária a esquerda que apoia Lula. O centro continua majoritário e incapaz de produzir um candidato, uma alternativa a essa polarização. Acho que a volta de Bolsonaro é um fato político relevante, que causará muita confusão , mesmo sendo minoritário.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O Globo on line, em 29.03.23, às 14h5

terça-feira, 28 de março de 2023

Que Lula é este?

Trata-se de um personagem muito diferente, tanto na ação quanto no pensamento

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) participa da cerimônia de posse do novo presidente do Superior Tribunal Militar (STM), Francisco Joseli Camelo, na sede do tribunal em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress

A incerteza permeou o universo político durante a campanha eleitoral: como será Luiz Inácio da Silva de novo na Presidência, tantos anos e inúmeros percalços depois? Agora, com menos de três meses de governo, a indagação já encontra resposta nas análises de políticos de diversos espectros.

É um Lula com faca nos dentes, afetado pela idade, pela influência do entorno menos qualificado que aquele de 2003 e, sobretudo, pelo ressentimento decorrente das acusações, das condenações, da prisão, das perdas pessoais. No estado de espírito do tempo atual conta também o fator volta por cima no estímulo a instintos primitivos.

O diagnóstico é comum a variadas correntes. Sejam de esquerda, de direita, do centro que aderiu pelas circunstâncias do desastre bolsonarista, façam parte do governo atual ou tenham integrado administrações petistas anteriores. Todos esses enxergam um personagem muito diferente tanto na ação quanto no pensamento.

Um Lula que parece não ter compreendido a passagem do tempo, não ter incorporado no escopo das avaliações das condições objetivas no mundo, no país, na economia, na sociedade em que antes a direita não se dava direito à voz e hoje surge fortalecida sem medo de dizer seu nome, ocupando espaço.

Pois estamos diante dessa nova realidade que ele e seus adeptos mais aguerridos insistem em negar. Negacionismo não é de esquerda nem de direita. É prerrogativa da teimosia vã, algo do qual a civilidade e o desenvolvimento precisam fugir se a meta é o bem-estar social.

Coisa que no ranking da ONU se traduz como índice de felicidade. Nele, perdemos 11 pontos, mas podemos nos recuperar dando atenção aos melhores valores da boa convivência no exercício da governança, em prol de um país que se relacione melhor consigo mesmo. E não tenha dúvida sobre a condução que Lula dará ao Brasil, com os olhos no amanhã. O rancor é mau companheiro e péssimo conselheiro.

Dora Kramer, a autora deste artigo, é Jornalista e Escritora. Publicado originalmente na Folha de S, Paulo, em 28.03.23

O ressentimento e suas armadilhas

Perto de completar três meses no cargo, há muito a fazer e muitas dificuldades a superar, e as falas recentes de Lula só atrapalham

Causa estranheza ouvir palavras de rancor, ressentimento, ódio ditas por alguém que prometia pacificar a nação dividida. A habilidade política, o senso de oportunidade, a capacidade de diálogo, que ajudaram a formar sua imagem popular e a assegurar-lhe três decisivas vitórias eleitorais, parecem ter-se afastado do presidente Lula. Sua insinuação de que a Operação Lava Jato foi orquestrada em conjunto com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos para destruir empreiteiras brasileiras, novos ataques ao presidente do Banco Central, um palavrão ao se referir ao ex-juiz e hoje senador Sergio Moro e, em especial, uma nova referência ao mesmo Moro sugerem certa perda de rumo.

Sem provas, Lula disse que a operação da Polícia Federal (PF) que descobriu um plano de uma organização criminosa para atacar autoridades de diferentes instâncias foi “mais uma armação de Moro”. De governantes responsáveis se espera comportamento morigerado – além de sensato e sábio, por óbvio. Nada disso se viu. Aliados falaram em tiro no pé. Se não foi tanto, foi o bastante para dar voz a um ex-juiz cujas decisões foram revistas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e um político medíocre, mas esperto o suficiente para descobrir uma rara oportunidade de aparecer.

Moro, como outras figuras públicas, fazia parte de uma lista de autoridades que o PCC pretendia assassinar. A razão de sua inclusão na lista seria sua atuação na remoção do principal líder do PCC, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, para um presídio federal. Esse fato foi usado na campanha eleitoral do ano passado pelo candidato Jair Bolsonaro e citado num vídeo divulgado pelo ex-juiz Sergio Moro.

Em entrevista publicada pelo Estadão em 30 de outubro do ano passado, o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, do Ministério Público (MP) do Estado de São Paulo, mostrou que o governo Bolsonaro nada teve que ver com a transferência de Marcola. O pedido para a transferência, lembrou Gakiya – este, sim, jurado de morte pelo PCC –, foi feito por ele em novembro de 2018, antes, portanto, do início do governo Bolsonaro, e deferido pela Justiça em 9 de fevereiro de 2019. “Não há nem poderia haver nenhuma ingerência do governo federal, seja através do presidente Bolsonaro, seja através do ministro Moro, nessa remoção, até porque não lhes cumpria fazê-lo. Por isso, é mentirosa a afirmação do Moro de que após dois meses de governo eles ‘determinaram’ a remoção do Marcola para o sistema federal”, disse. Já a referência à atual ação da PF como “armação” Gakiya considerou uma ofensa a ele e ao MP.

O fato é que Moro, Gakiya e outras autoridades estavam na lista do PCC. E a Polícia Federal agiu com competência no caso. Ao fazer acusações sem provas contra o ex-juiz Moro – responsável por mantê-lo na prisão por 580 dias –, Lula também desmentiu seu ministro da Justiça, Flávio Dino, e desautorizou uma importante ação policial de seu governo. Esse gesto exigiu do vice-presidente Geraldo Alckmin uma declaração para repor as coisas no lugar. “O governo Lula não se curvará diante de ameaças criminosas”, afirmou Alckmin, que cumprimentou os responsáveis pela ação policial.

Perto de completar três meses no cargo, o presidente Lula tem o que comemorar. Vem autorizando e estimulando a reestruturação e o fortalecimento de instituições e programas com que precisa marcar sua gestão. Órgãos que atuam em áreas como proteção ambiental, direitos humanos, igualdade racial, cultura e apoio à população carente vão retomando o papel que Bolsonaro tentou destruir. O relançamento do Bolsa Família em novas bases, do Mais Médicos e do Minha Casa Minha Vida é exemplo prático de sua ação.

Há muito a fazer e muitas dificuldades a superar, e suas falas recentes só atrapalham. Não se trata de tentar conquistar os operadores do mercado financeiro. O fato de que 98% desses operadores disseram em pesquisa Genial/Quaest ser contra a política econômica do governo – antes de ela ser detalhada – mostra que essa é uma fatia que jamais será conquistada por Lula. Nem Lula precisa dela.

Mas a atividade econômica derrapa, a inflação persiste, os investimentos privados estão à espera de sinais positivos, os investimentos públicos continuam a definhar sob a pressão de uma estrutura fiscal disfuncional. E o Congresso, dominado por uma oposição de perfil nitidamente direitista, agora enfrenta um conflito entre as direções de suas duas Casas, sinalizando dificuldades adicionais para a tramitação já previsivelmente complicada de projetos de interesse do Executivo. Desnecessário lembrar a urgência do programa fiscal e da reforma tributária.

É preciso instilar confiança na maioria da população. É preciso desbolsonarizar o aparelho do Estado, reduzir as tensões políticas que persistem na sociedade e oferecer um plano de ação voltado para as necessidades do País de médio e de longo prazos. Criar armadilhas para si mesmo, como Lula parece ter feito nos últimos dias, não ajuda seu governo nem o País.

Jorge J. Okubaro, o autor deste artigo, é Jornalista. Autor, ainda, entre outros do livro "O Súdito (Banzai Massateru! - Editora Terceiro Nome). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 28.03.23

Investigação da PF sobre joias da Arábia Saudita fecha cerco a Bolsonaro

Investigadores que atuam no caso apontam que o ex-presidente deve ser indiciado por peculato.

Bolsonaro e as joias apreendidas pela Receita (Arquivo)

A investigação da Polícia Federal sobre as joias trazidas ilegalmente da Arábia Saudita pelo antigo governo está fechando o cerco contra Jair Bolsonaro. 

Outros envolvidos na entrada das joias de maneira ilegal para o Brasil, como o ex-ministro Bento Albuquerque e o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o coronel Mauro Cid, também têm grande chances de serem indiciados.

O crime de peculato acontece quando qualquer funcionário público, o que inclui o presidente da República, usa do cargo para ter a posse de um bem público, se apropriando ou desviando esse bem, para benefício próprio ou de um terceiro. Esse tipo de crime está descrito no artigo 312 do Código Penal e prevê pena de prisão de dois a 12 anos, além de multa.

A PF chegou a negar à defesa de Bolsonaro acesso aos documentos do caso, sob o argumento de que ele não era investigado, mas voltou atrás e abriu os autos para seu advogado. Investigadores relataram à coluna que Jair Bolsonaro será ouvido.

Em relação a Michelle Bolsonaro, a tendência hoje é a de que a ex-primeira-dama não seja convocada para depor. O ex-ministro Bento Albuquerque disse a funcionários da Receita Federal que o conjunto com colar e joias de diamantes avaliado em R$ 16,5 milhões interceptado pelo fisco seria para ela. Michelle tem afirmado que não sabia sobre as peças até o caso ser revelado.

Bela Megale, a autora deste artigo, é repórter de O Globo nas áreas de investigações criminais, bastidores do poder e vida política de Brasília. Publicado originalmente em 28.03.23

Caso joias: itens recebidos por Bolsonaro da Arábia Saudita já somam aproximadamente R$ 18 milhões

Ex-presidente ganhou pelos menos três relógios, um cordão de diamantes, um par de brincos, dois conjuntos de abotoaduras e dois rosários árabes chamados 'masbaha'

Joias recebidas por Jair Bolsonaro da Arábia Saudita (Arte O Globo)

As viagens do ex-presidente Jair Bolsonaro e de integrantes de seu governo para a Arábia Saudita resultaram em um pequeno tesouro. Até o momento, já foram identificados três pacotes com joias doadas pelo governo árabe à comitiva presidencial, e o valor total dos presentes chega a aproximadamente R$ 18 milhões. Na relação, há pelo menos três relógios, um cordão de diamantes, um par de brincos, dois conjuntos de abotoaduras e dois rosários árabes chamados “masbaha”, todos cravejados com pedras preciosas.

A peça de maior valor é um colar de diamantes da marca Chopard, que seria um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. O item faz parte de um conjunto que tem ainda um par de brincos, um anel e um relógio, todos cravejados com brilhantes. As joias, avaliadas em 3 milhões de euros (R$ 16,5 milhões),foram recebidas pelo então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, em outubro de 2021, e retidas pela Receita Federal no no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, no retorno da comitiva ao Brasil, por não terem sido devidamente declaradas. A legislação brasileira obriga declarar qualquer bem avaliado em mais de mil dólares (pouco mais de R$ 5 mil) na chegada ao país. Após a apreensão, o ex-presidente tentou reaver o material em pelo menos quatro ocasiões, escalando na missão militares e diferentes ministérios.

Veja presentes declarados do ex-presidente Jair Bolsonaro

Miniatura de um capacete antigo de samurai. Presente do ex-primeiro-ministro Shinzo Abe na posse. Valor: R$ 20.000 — Foto: Divulgação

Escultura confeccionada em metal do passarinho Alvéola-amarela, nativo do Catar. Valor: R$ 130,65 — Foto: Divulgação

No segundo estojo, que estava com o ex-presidente e foi devolvido por seus advogados na última sexta-feira após determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), estavam uma caneta, um anel, um relógio, um par de abotoaduras e um rosário. Do conjunto, o relógio também da marca Chopard se destaca, sendo avaliado em aproximadamente R$ 800 mil. O item de colecionador, do modelo L.U.C. Tourbillon Qualité Fleurier Fairmined, só teve 25 unidades produzidas. Com caixa de ouro maciço e fundo em safira, ele tem ainda uma pulseira de crocodilo costurada à mão. O segundo kit de joias era composto por uma caneta, um anel, abotoaduras e um rosário, todos em ouro, com estimativa de custar pelo menos R$ 1 milhão.

Já o terceiro pacote, que ainda estaria com o ex-presidente segundo informações do jornal O Estado de S. Paulo, tem itens avaliados em R$ 500 mil. Só um relógio, da marca Rolex, é vendido em sites por preços a partir de R$ 364 mil. O conjunto tem ainda uma caneta da marca Chopard prateada, com pedras encrustadas; um par de abotoaduras em ouro branco ornada com um brilhante no centro e rodeado por diamantes; um anel em ouro branco com diamantes com corte longo e retangular, chamado no exterior de "baguette"; uma "masbaha" de ouro branco com pingentes cravejados em brilhantes.

As peças teriam sido entregues em mãos para Bolsonaro. O ex-presidente, de acordo com o jornal, foi presentado durante viagem oficial a Riade, na Arábia Saudita, entre os dias 28 e 30 de outubro de 2019. Na ocasião, Bolsonaro participou de um almoço oferecido pelo rei saudita Salma Bin Abdulaziz Al Saud.

De acordo com o jornal, os itens do que compõem a caixa de joias foram especificados, um a um, no formulário de encaminhamento de presentes para o presidente. Nele há um campo para incluir a informação se "houve intermediário no trâmite". A resposta que consta no documento é "não". Em 6 de junho do ano passado, Bolsonaro solicitou o conjunto de joias para ficar com ele. Por determinação do ex-presidente, dois dias depois os itens foram encaminhados para seu gabinete. Nesta data os registros oficiais informam que as peças de luxo estavam "sob a guarda do Presidente da República.

Publicado originalmente por O Globo, em 28.03.23

Blindar Lula de si mesmo

A imprensa petista faz malabarismo para explicar a fala irresponsável de Lula e deixa de lado o mais importante, a ameaça do crime organizado ao Estado


Senador Sergio Moro, alvo de fala irresponsável de Lula. (Montagem com fotos de Cristiano Mariz/Agência O Globo)

Lula quer “foder” o Moro. E quer nomear para o Supremo Tribunal Federal (STF) seu advogado privado, que conseguiu tornar suspeito o juiz que o condenou. Vive assombrado pelo passado, que tem mais peso para ele no momento que o futuro.

É risível o malabarismo que a imprensa petista vem fazendo para tentar explicar a fala irresponsável dele sugerindo uma armação da Polícia Federal para favorecer o senador Sergio Moro no inquérito que investiga a trama de uma facção criminosa contra funcionários do Judiciário brasileiro.

As mais aloucadas teorias conspiratórias surgem para tentar mudar o rumo da história, enquanto o verdadeiro problema é deixado de lado: a grave ameaça do crime organizado contra o Estado brasileiro.

Ao minimizar a existência de tal complô, com a intenção de não valorizar a atuação de Moro no combate à corrupção e ao crime organizado, a esquerda deixa de lado a segurança nacional para proteger a segurança pessoal de Lula, que já não pode ser deixado sozinho para seus improvisos. Sugerem que terceirize o embate com Moro e Bolsonaro, uma maneira de blindá-lo.

Outra tentativa de desmoralizar o ex-juiz Moro é tachá-lo de direitista. Ora, alguém tem dúvida disso? Se tinha, quando Moro apareceu na campanha presidencial ao lado de Bolsonaro como seu assessor num debate, depois de tê-lo acusado de tentar interferir na Polícia Federal para salvar seus filhos e apaniguados, já era possível constatar que preferia Bolsonaro a Lula. Ajudou, assim, a alimentar a narrativa de que Lula era um inocente que perseguia por questões políticas.

Embora Lula não tenha sido inocentado por nenhum outro juiz, suas condenações foram anuladas por questões técnicas ou prescreveram. Porém, a esta altura, a narrativa de que Lula cometeu atos de corrupção é uma verdade para grande número de eleitores, que o rejeitaram nas urnas. Atacar Moro por ser de direita é a mesma coisa que atacar Lula por ser de esquerda.

É bom que os petistas não esqueçam que, por mais extravagante que pareça, boa parte dos brasileiros teme que Lula nos leve a um governo comunista. Uma reunião de Moro em Buenos Aires — com líderes da direita latino-americana, como os ex-presidentes Mauricio Macri (Argentina), Felipe Calderón (México), Jorge Quiroga (Bolívia), a deputada espanhola Cayetana Álvarez de Toledo, além de Juliana Awada e Gerardo Bongiovanni — foi publicada por sites petistas como uma prova de que Moro é um extremista de direita.

Difícil classificar a maioria desses dirigentes de “extremistas”, mas é fácil classificar de extrema esquerda alguns ditadores com quem Lula costuma posar, como Daniel Ortega, da Nicarágua, Nicolás Maduro, da Venezuela, ou Miguel Díaz-Canel, de Cuba. Agindo assim, a imprensa esquerdista que não tem pudor em apoiar qualquer atitude de Lula, mesmo quando erra (erra?), está apenas criando espaço para que Moro volte a ser um candidato potencial da direita brasileira, que hoje não se constrange em se identificar com essa tendência política.

Esquecer que Lula e o PT não têm mais a hegemonia política, e que precisam, tanto no Congresso quanto na opinião pública, do apoio do centro político para governar e vencer a direita, é erro grosseiro. Chico Buarque, que não pode ser acusado de ser antipetista, disse certa vez que o governo deveria ter um ministro do “vai dar merda”. Toda vez que o governo inventasse uma “genialidade”, esse ministro advertiria. Seria uma versão moderna do servo que seguia junto aos imperadores romanos lembrando-os de que eram mortais, mesmo depois de vitórias apoteóticas — não foi o caso em 2022.

Lula precisa de quem o proteja de si mesmo, da certeza de que é infalível, de quem tenha condição de discordar dele. Ao que parece, já não há Paloccis ou Dirceus no Palácio do Planalto. Há Paulo Coelho no Twitter. Será ouvido? Todo “salvador da pátria” está convencido de que tem a solução para todas as questões. Bolsonaro demitia os que se atreviam a contestá-lo, até que o silêncio fosse total. Lula não precisa demitir ninguém, pois quem ousa contestá-lo?

Merval Pereira, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O Globo, em 28.03.23

segunda-feira, 27 de março de 2023

Lula quer o monopólio da condição de vítima

Lula acusou Moro daquilo que ele próprio sempre fez

Lula e Dilma e o então marqueteiro João Santana, que trabalhou para o dois

“O político Lula, depois que se tornou presidente, sempre que esteve em situação de vítima saiu lucrando.”

Foi o que declarou o então marqueteiro dele, João Santana, em 2006, à Folha de S.Paulo, ao explicar a conquista do segundo mandato do petista com a teoria da figura dupla que ele encarna: o “fortão” humilde que virou poderoso e o “fraquinho” sob ataque das elites: “Quando Lula é atacado, o povão pensa que é um ato das elites para derrubar o homem do povo que está lá. ‘Só porque ele é pobre’, pensam. Nesse caso, vira o bom e frágil ‘fraquinho’ que precisa ser amparado e protegido”.

Lula nunca deixou de explorar esse papel, nem mesmo após ter enchido os cofres do seu instituto e de sua empresa de palestras com doações e pagamentos milionários feitos pelas empreiteiras de elite envolvidas no petrolão, duas das quais (Odebrecht e OAS) proporcionaram mordomias de que ele usufruiu pelo menos 111 vezes no sítio de Atibaia, que tinha a mesma cozinha do triplex do Guarujá, os pedalinhos com nomes dos netos e o barco com seu nome e de sua então esposa, entregue na propriedade sob encomenda. A Odebrecht ainda doou R$ 4 milhões ao instituto e pagou R$ 2,8 milhões à empresa, que também recebeu R$ 1,9 milhão da OAS; R$ 1,9 milhão da Andrade Gutierrez; R$ 1,4 milhão da Camargo Corrêa; R$ 1,1 milhão da Queiroz Galvão; e R$ 357 mil da UTC Engenharia.

Mas Lula foi amparado e protegido por advogados de elite e manobras jurídicas de ministros do STF que levaram à prescrição dos casos dos imóveis, de modo que suas relações financeiras e imobiliárias com empresários que faturavam contratos públicos bilionários nos governos do PT, inclusive no esquema de corrupção na Petrobras, não lhe deixaram pendências na esfera judicial, apesar do desgaste moral de sua imagem; apenas o ódio e o desejo de vingança contra uma “elite” muito específica, encarnada por Sérgio Moro, o ex-juiz que teria tentado derrubar o “homem do povo” que “chegou lá”.

Questionado sobre os planos do PCC para sequestrar o atual senador, que, na cadeia, ele só pensava em “foder” para se “vingar”, como confessara dois dias antes, Lula afirmou, por um motivo simples, que “é visível que é uma armação do Moro”: o presidente sabe, há pelo menos 17 anos, da força eleitoral da condição de vítima e não admite que logo Moro a assuma em seu lugar; então abstraiu a facção criminosa e acusou o senador de ter feito o que Lula sempre fez: forjar essa condição, para obter lucros políticos.

Haja amparo e proteção para o bom e frágil “fraquinho”. •

Felipe Moura Brasil, o autor deste artigo, é Jornalista. Apresentador do programa "Arena" na CNN Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 27.03.23

A questão democrática

O PT e o presidente Lula deveriam escolher entre o que entendem por autodeterminação dos povos e o princípio dos direitos humanos

Uma atitude ou concepção democrática não se caracteriza apenas pela negação de um caso particular de autoritarismo, como ocorreu com a frente democrática apoiada pelo então candidato Lula e o PT. O fato de o hoje presidente e de seu partido criticarem – com razão, aliás – as posições de Bolsonaro, que claramente afrontou o regime democrático com a contestação das urnas eletrônicas, o enfrentamento com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e as tentativas golpistas não os torna democratas por si sós. Razões eleitorais são insuficientes, se não vierem acompanhadas de esclarecimentos necessários sobre o que bem entendem por democracia.

O presidente Lula e parte de seu partido, pois há outras que começam a se demarcar, sempre tiveram uma afinidade eletiva com ditaduras de esquerda, compactuando com seu desrespeito aos direitos humanos, às regras democráticas e o uso sistemático da violência. Condenações, se as há, são sempre fracas, se não coniventes, como se observa recentemente com o ditador Ortega, da Nicarágua, cujo poder é exercido sem nenhuma limitação. Nem a Igreja Católica é mais respeitada, e é objeto de perseguição. A Venezuela de Maduro e, antes, de Chávez, levada por eles à miséria, à emigração e à riqueza de poucos, foi e é sempre tratada com tolerância e compreensão. Isso para não falar da já longeva ditadura cubana. O que isso significa? O direito de a esquerda no poder oprimir seu próprio povo em nome do socialismo ou do comunismo?

O argumento apresentado é o de que esses países têm direito à autodeterminação, não devendo haver, aqui, nenhuma ingerência externa. Ou seja, o que esses governantes fazem com o seu próprio povo seria assunto exclusivo deles. Ora, se esse argumento é válido, deveria servir também para as ditaduras de direita, pois também elas teriam direito a usarem da violência contra os seus. Nesta linha de raciocínio, o fascismo e o nazismo não deveriam ser tampouco condenados, visto que essas nações assim se autodeterminaram, inclusive ganhando eleições. O fato de Hitler ter eliminado milhões de judeus, poloneses, ciganos, homossexuais, comunistas, social-democratas, entre outros, deveria ser, então, compreendido sob a ótica da autodeterminação dos povos?

Logo, o PT e o seu presidente deveriam escolher entre o que entendem por autodeterminação dos povos e o princípio dos direitos humanos, pois este está alicerçado numa concepção universal, cuja validade se situa acima das fronteiras territoriais e estatais. O partido defender o direito das minorias, por exemplo, resulta de uma posição universal, contra discriminações e perseguições, venham de onde vierem, no Brasil e alhures. Das duas, uma: ou a democracia é um princípio universal e os direitos humanos valem para todos, sem nenhuma distinção de esquerda ou de direita, ou os particulares Estados nacionais estão autorizados a fazerem qualquer coisa com seus respectivos povos.

A atitude petista em relação à invasão da Ucrânia é outra faceta da mesma moeda. Lula tem reiteradas vezes sustentado uma suposta igualdade entre as partes, como se o invasor e o invadido, o atacante e o atacado devessem ser dignos da mesma consideração. Isso seria equivalente a considerar em igualdade de condições o estuprador e a sua vítima, devendo o promotor e o juiz estabelecerem um diálogo entre eles, numa mútua compreensão. Não deveria haver condenação e julgamento?

Daí se seguiria, então, a não condenação da Rússia por seus atos. Além de o Brasil não ter força diplomática e militar para pretender se postular como um mediador, há, aqui, uma condescendência com atitudes autoritárias, que se traduzem pelo fato de um país – no caso, a Rússia – simplesmente desconsiderar a Ucrânia como se não fosse nem devesse ser um Estado independente. Seria “russo”, governado, em sua peculiar linguagem, por “nazistas”. Imaginem se geopoliticamente a moda pega. Seria a completa desestruturação de todo o equilíbrio geopolítico construído a duras penas após a 2.ª Guerra Mundial e, agora, a perigo.

Durante os diferentes governos petistas, essas ambivalências e contradições sempre estiveram presentes, e foram escamoteadas das mais diferentes maneiras. O dito orçamento participativo, autointitulado de democracia direta para corrigir os “defeitos” da democracia representativa, foi outra farsa para enraizar o PT nos setores mais carentes da população, tornando-os uma mera clientela política. As ditas “assembleias” eram totalmente controladas pelo partido, com presença massiva dos seus membros, no melhor procedimento stalinista e castrista. Foi uma “experiência” vendida para incautos.

Ocorre que, hoje, a situação se tornou ainda mais aguda, considerando que o atual governo é posterior à experiência bolsonarista da extrema direita no poder. Qualquer ambiguidade ou tergiversação sobre o significado da democracia, em sua validade universal, pode ter consequências nefastas. •

Denis Lerrer Rosenfield , o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Publicado originalmente em 27.03.23

Lula, o BC e o padrão Dilma

Ainda sem explicar como cuidará das contas públicas, o Presidente retomar o padrão de comportamento da companheira Rousssef ao pretender dar ordens ao Banco Central.

Uma nova etapa de crescimento, emprego e prosperidade vai começar depois de cem dias de mandato, prometeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, até agora mais ocupado em falar, reacender conflitos e tentar recompor programas abandonados ou degradados, como o Mais Médicos e o Bolsa Família. Declarou superados os livros de Economia e defendeu a criação de “uma nova mentalidade sobre a razão de a gente governar”, mas sem apresentar um plano de governo e um esquema de sustentação das contas públicas. Além disso, o presidente nem sequer explicou essa “nova mentalidade”, contentando-se com a defesa de alguns tipos de gastos, como aqueles destinados à área da saúde. Mas foi adiante e, confirmando o desprezo aos livros de Economia, propôs uma estranha reforma conceitual – excluir esse dispêndio da categoria de gasto. Nesses manuais, custeio e investimento são diferentes tipos de despesas – ou de gastos. A pregação reformista se completou com ataques ao presidente do Banco Central (BC), à política de juros e à autonomia da instituição, uma característica observada nas maiores economias capitalistas.

Apesar do apoio de alguns ministros, de líderes do PT, de pelegos sindicais e também de uma parte do empresariado, o presidente foi derrotado no primeiro grande confronto com o BC. O Copom, Comitê de Política Monetária, anunciou na quarta-feira, dia 22, a manutenção da taxa básica de juros em 13,75% e, além disso, declarou a disposição de voltar a elevá-la se piorarem as perspectivas de inflação.

Pode-se discutir se os juros em vigor no Brasil são exagerados ou razoáveis, mas na quarta-feira essa questão se tornou secundária. Havia motivos para o BC reafirmar sua autonomia e, com isso, valorizar a ordem legal contestada pelo presidente da República e por vários de seus companheiros. Os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet, diferenciaram-se, nesse momento, como defensores desse ordenamento.

Empenhados no debate sobre juros, analistas do mercado e dos meios de comunicação nem sempre deram ênfase à questão institucional, especialmente importante, e muitos parecem ter esquecido o desastre do governo Dilma Rousseff, quando o BC foi submisso ao Executivo. Desde a primeira redução de juros, no trimestre final de 2011, até abril de 2013, quando se tornou inevitável enfrentar o surto inflacionário, o governo tolerou a alta de preços e a autoridade monetária se desmoralizou perante os políticos e o mercado.

Se os analistas houvessem dado mais ênfase a esse episódio, teriam ficado mais claros o despropósito e os perigos dos novos ataques à autonomia do BC. Além disso, teria sido ressaltada a semelhança entre o discurso do presidente Lula e os critérios da presidente Dilma Rousseff e de alguns de seus auxiliares mais influentes. Teria ficado mais visível, enfim, o risco de retomada, no terceiro governo Lula, do caminho seguido até a catástrofe econômica de 2015-2016. Lula mencionou, há poucos dias, “o grau de destruição ao qual o País foi submetido nesses últimos seis anos”, como se fosse possível desconhecer, ou relevar, a desordem criada antes disso pela companheira Rousseff.

Mas a manutenção de juros, já esperada antes das manifestações de Lula, é mais que uma resposta ao seu destempero. Razões técnicas são enumeradas em nota do BC. O texto menciona a elevação de juros no exterior, a piora das expectativas de inflação desde a última reunião do Copom e “a incerteza sobre o arcabouço fiscal”. Essa incerteza, lembram os autores da nota, se estende às expectativas em relação à dívida pública. Mesmo sem os ataques presidenciais, haveria razões para uma decisão conservadora. Mas a referência à incerteza fiscal torna-se especialmente importante, agora, quando um governo iniciante é cobrado sobre seus planos para as contas oficiais.

No Brasil, muito mais do que na maior parte dos países de renda média, a questão fiscal é relevante. Não se trata apenas de oferecer segurança a financiadores do Tesouro e a investidores. A solidez das contas públicas é importante para o sistema financeiro, para a evolução dos preços e para o bem-estar das famílias, em especial das pobres, supostamente beneficiadas pela gastança livre defendida pelo presidente.

O presidente Lula deve explicações sobre como pretende administrar as contas da União e, portanto, sobre a evolução provável da dívida pública. As informações levadas ao Congresso pelo ministro da Fazenda foram bem avaliadas por parlamentares, mas ninguém pode dizer, ainda, se essas ideias serão sacramentadas pelo presidente. Ele mesmo reforçou as dúvidas, ao deixar para depois da viagem à China a apresentação oficial do tal arcabouço. Há motivos de inquietação, tanto pelas falas presidenciais sobre responsabilidade social versus responsabilidade fiscal, quanto pelas bobagens sobre a noção de gasto. Sem autoridade sobre o BC, o presidente Lula tem poder, no entanto, sobre o ministro da Fazenda e o Tesouro. Isso basta, agora, para justificar sérias preocupações. •

Ainda sem explicar como cuidará das contas públicas, o presidente retoma o padrão da companheira Rousseff ao pretender dar ordens ao BC

Rolf Kuntz, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 26.03.23

Bolsonaro não pode ficar impune

Ex-presidente cometeu inúmeros crimes eleitorais e deve pagar por isso, seja qual for a composição da Justiça Eleitoral; sua absolvição será o mesmo que chancelar o vale-tudo eleitoral

Há rumores de que a mudança de composição do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com a aposentadoria do ministro Ricardo Lewandowski neste semestre, poderia favorecer o ex-presidente Jair Bolsonaro, que responde a várias ações na Justiça Eleitoral. O tema é sério, afetando não apenas a autoridade do Judiciário, mas o próprio funcionamento do regime democrático. A vigência da lei e, consequentemente, a sua aplicação não podem depender da composição específica de um tribunal.

É incontestável que Jair Bolsonaro cometeu crimes eleitorais e deve, portanto, ser punido por seus atos, a começar pela decretação de sua inelegibilidade. Além de ter descumprido as limitações legais próprias do período eleitoral no uso dos recursos públicos – valeu-se sem nenhum pudor da máquina pública em benefício próprio –, Jair Bolsonaro pôs em marcha a maior campanha de difamação da história contra o sistema eleitoral brasileiro. Essa campanha, que incluiu até mesmo o uso da posição de chefe de Estado para desautorizar o regime democrático nacional perante embaixadores estrangeiros, desembocou, entre outros danos, na resistência inédita de milhares de brasileiros ao resultado das eleições e nos atos do 8 de Janeiro. Também há indícios fortes de uso de órgãos de Estado, como a Polícia Rodoviária Federal, para fins eleitorais.

Em 2021, por muito menos, o TSE cassou o mandato do deputado estadual eleito pelo Paraná, em 2018, Fernando Francischini. A Corte entendeu que houve abuso do cargo público – na época, Francischini era deputado federal – por difundir, em benefício próprio, desinformação contra as urnas eletrônicas.

Em respeito à legislação brasileira e à jurisprudência do próprio tribunal, o TSE tem o dever de tornar inelegível Jair Bolsonaro. E deve-se acrescentar outro motivo, não menos importante: em respeito à moralidade pública e ao regime democrático. Há no caso uma questão primária de exemplaridade. Se depois de Jair Bolsonaro ter usado o mais alto posto da República em benefício próprio e contra as regras do sistema eleitoral a Justiça não tornálo inelegível, sendo-lhe permitido continuar disputando eleições, tal impunidade será a desautorização extrema da Justiça Eleitoral. Além de dizer com todas as letras que o crime compensa, o TSE não terá nenhuma autoridade para aplicar a pena de inelegibilidade a mais ninguém. Significaria pôr, em um só ato, o manto da impunidade no mais alto estágio, alcançando todos os casos.

Por isso, respeitar a lei e a jurisprudência, sem tolerâncias seletivas com Jair Bolsonaro, é respeitar e defender a própria Justiça. Do mesmo modo que atacou o sistema eleitoral, o bolsonarismo vem ameaçando e atacando, de longa data, o Poder Judiciário. Agora, com o andamento dos processos contra Jair Bolsonaro no âmbito eleitoral, são patentes as tentativas de seus seguidores para desautorizar de antemão a Justiça Eleitoral, qualificando-a de política e parcial.

A melhor resposta a mais essa manobra é a aplicação serena da lei, sem atentar para o nome que consta na capa dos autos do processo. Tornar inelegível Jair Bolsonaro não é uma retribuição da Justiça pelos seus quatro anos de governo, tampouco uma espécie de contra-ataque do Judiciário contra os devaneios de um chefe do Executivo federal. O tema é mais simples e linear, menos conturbado e controvertido. É apenas a vigência do princípio basilar da República, a igualdade de todos perante a lei. Assim como qualquer outro brasileiro, Jair Bolsonaro não merece tratamento especial. A lei também vale para ex-presidentes da República, por mais populares que sejam.

É muito salutar, também como mensagem para os que ocupam agora cargos nas diversas esferas estatais, em concreto no Executivo federal, que nenhum abuso no exercício do poder público fique impune. O País precisa desse mínimo civilizatório. A lei deve prevalecer sempre, seja qual for a coloração ideológica do investigado ou a composição do tribunal. Jair Bolsonaro não é mito nem mártir. É um cidadão, que, como todos os outros, deve responder por seus atos.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.03.23

A realidade empareda Lula

Ante a queda de aprovação, Lula hesita entre medidas para resgatar a popularidade, mas fugazes e deletérias, e medidas impopulares, mas que viabilizariam sustentabilidade do governo

Ante a queda de aprovação, Lula hesita entre resgatar a popularidade e governar.

Segundo pesquisa Ipec divulgada dia 19, 41% dos brasileiros consideram o governo Lula da Silva bom ou ótimo; 30%, regular; e 24%, ruim ou péssimo. Correligionários otimistas, como o ministro da Justiça, Flávio Dino, consideram a fatura “muito positiva”. A comparação é com o governo Jair Bolsonaro, que no terceiro mês tinha os mesmos 24% de reprovação, mas só 34% de aprovação.

A realidade começa a dar as caras quando se compara a popularidade de Lula 3 com os índices maiores dos inícios de Lula 1 e 2, e mesmo de Dilma Rousseff. Mas o choque da realidade não vem do contraste com 2003, nem mesmo com os célebres oitenta e tantos por cento de aprovação de 2010, mas sim com 2023 mesmo, mais exatamente janeiro, quando o Ipec registrou 55% de aprovação e 21% de rejeição. Em dois meses, a aprovação líquida despencou de 34 para 17 pontos porcentuais.

Quedas no início do governo são normais, mas essa magnitude impressiona. Primeiro, pelos presentes políticos recebidos por Lula: do eleitorado, o voto útil ou convicto de adversários históricos atemorizados com um Bolsonaro 2; do Congresso, uma “licença para gastar” de R$ 200 bilhões; e dos antípodas bolsonaristas, a barbárie do 8 de Janeiro e o escândalo das joias da coroa árabe.

Mas ainda mais notável é que a queda usual – em dimensões inusuais – não se explica pelas razões usuais. É regra número 1 do manual presidencialista que início de governo serve para aproveitar a força conferida pela vitória eleitoral para avançar medidas impopulares que garantirão a governabilidade e, se tudo der certo, trarão bons resultados para apresentar quando chegar a época de eleições.

Foi assim em 2003, quando Lula desagradou às bases petistas adotando os parâmetros fiscais do governo FHC, cedendo posições a partidos aliados e aprovando uma modesta, mas importante, reforma da Previdência dos servidores públicos. Agora, a racionalidade exigiria avançar na aprovação de um novo marco fiscal que permitiria ao governo domesticar a inflação e navegar com juros mais baixos. Mas isso exige aceitar a realidade: que sem um freio de arrumação robusto não haverá investimentos privados e arrecadação para financiar ambiciosos projetos sociais; que a mera oferta mercantil de cargos de segundo escalão não lhe dará bases parlamentares sustentáveis; e que a oposição à ideologia lulopetista abarca muito mais gente que os espantalhos, tanto os de sempre, os “ricos”, como os novos, os “fascistas” bolsonaristas. Lula e o PT tentam reescrever a história, mas o povo não a esqueceu: o gosto amargo das tragédias do mensalão, do petrolão e da recessão segue na boca de todos.

Não faltam vozes no governo sensíveis aos imperativos da realidade, a começar pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e dois ministros emblemáticos da chamada “frente ampla”, Simone Tebet, do Planejamento, e Geraldo Alckmin, da Indústria. Mas tampouco falta o coro vociferante dos velhos próceres lulopetistas.

O problema é que Lula parece atordoado nessa cacofonia. Proverbialmente hábil na arte da composição, ele parece capturado pela hesitação. É sinal de que a realidade bate à porta. Lula é pródigo em embriagar as massas com promessas demagógicas. Nos palanques, ele mesmo condescende a uma ou duas doses a mais. Mas, na cadeira presidencial, ele sabe que há limites. Chamar gasto de “investimento” não mudará a realidade de que o Orçamento é um só e dinheiro não dá em árvore. A indulgência aos excessos ambicionados pela militância petista porá um fim precoce a uma festa já limitada em recursos. A ressaca será duradoura e mais dura em 2026.

Mas Lula vacila. De vez em quando salta da cadeira presidencial, gesticula e vocifera como se estivesse no palanque. As claques vão à loucura. Mas o Brasil que trabalha e produz continua a sentir as pressões da inflação e ver as previsões do PIB encolherem no horizonte; o Brasil que tem fome continua com fome; e o Brasil que vota continua a ampliar sua desconfiança. A seguir assim, Lula 3 está se condenando a corroborar a célebre máxima de Marx sacada no retorno do bonapartismo ao poder: “A história se repete primeiro como tragédia, e, depois, como farsa”.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 26.03.23