quarta-feira, 29 de março de 2023

Uma democracia vingativa?

Todos somos democratas e todos somos vingadores. Como não devolver em grande estilo a ofensa infligida pelos inimigos?

Mas, eis o dilema, como conciliar o hábito milenar e bíblico do “olho por olho e dente por dente” com um regime de governo baseado no enfrentamento impessoal? No combate competitivo entre ideais e programas?

Democracia significa mudança. É algo paradoxal porque, durante milênios, as realezas permaneciam atadas à imobilidade das dinastias. Nesses regimes, discordar significava rebelar-se, trair – essa madrinha da “armação”, que justifica a vingança como vacina contra as diferenças políticas.

Em regimes democráticos, porém, o governo é programado para mudar. Neles, a mudança faz parte do cerne do tão apregoado estado democrático de direito. O estado de direito pressupõe a mudança por meio eleitoral naquilo que seria uma disputa livre e honesta, balizada por normas aceitas pelos concorrentes.

A democracia tem como base um pressuposto inflexível: o fato de que não deve haver desconfiança sobre a legitimidade de quem disputa o pleito. De fato, o espírito da monarquia é a imobilidade e o da democracia, a rotatividade do e no poder. Por isso as normas da competição devem ser, tal como os competidores, livres de obstáculos legais.

Parece simples, mas não é.

Se existe suspeita de ilegitimidade de um candidato, todo o jogo pode ser suspeito. Se, na pior hipótese, o candidato for julgado e aprisionado – ou seja: posto fora do mundo –, o isolamento o transforma imediatamente num Conde de Monte Cristo, num vingador.

A vingança que Lula 3 ressuscitou é algo rotineiro. Na vida diária, ela equivale à obrigatoriedade da devolução de um bom-dia. No nível dos valores, o ato de vingar – como mostrou Marcel Mauss no seu Ensaio sobre a Dádiva e Marcos Milner ampliou numa exemplar tese de doutorado – é uma retribuição compulsiva.

Se temos coragem para tudo, menos a de negar o pedido de um amigo, se a lei só deve ser aplicada aos inimigos e o crime depende de quem o cometeu; se os inimigos vivem de “armações”, como diziam os bolsonaristas, e Lula 3 reafirma, então, como não prometer vingança a quem nos levou para a cadeia e hoje é obrigado a nos encarar como dono do poder?

O presidente Lula não é uma pessoa comum. Ninguém sem excepcionalidade chega à presidência três vezes. Luiz Inácio é uma pessoa extraordinária. Mas, e esse é o ponto, com toda a sua notável experiência republicana e populista, ele não deixou de se curvar diante da força dos velhos costumes. E a vingança que revive o Conde de Monte Cristo faz parte de uma esquecida e pouco discutida ética de reciprocidade. 

Roberto DaMatta, o autor deste artigo, é antropólogo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.03.23

Nenhum comentário: