quinta-feira, 9 de março de 2023

Joias: Bolsonaro deu ordem para que diamantes apreendidos fossem cadastrados como acervo privad

 ‘Estadão’ apurou que, enquanto avião da FAB seguia para retirar joias em Guarulhos, houve solicitação para incluir dados dos itens apreendidos como “acervo privado”, ou seja, para posse de Bolsonaro

Jair Bolsonaro e Michelle; segundo ele, joias iriam para acervo da Presidência.

No mesmo dia em que Jair Bolsonaro determinou que um militar pegasse um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) em Brasília e fosse até Guarulhos para retirar as joias de diamantes apreendidas pela Receita Federal, o gabinete do ex-presidente solicitou que os itens avaliados em até R$ 16,5 milhões e que seriam dados a Michelle Bolsonaro fossem cadastrados no sistema federal como “acervo privado”.

O objetivo era claro: o presente era para a então primeira-dama e Bolsonaro queria as joias para si.

Os dados dos itens que entraram ilegalmente no País, uma caixa com relógio, caneta e outros itens de ouro, já estavam cadastrados no sistema do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica. Faltava cadastrar as joias apreendidas, como revelou o Estadão na última sexta-feira, 03. Conforme os planos de Bolsonaro, os diamantes deveriam ser retiradas da alfândega de Guarulhos naquele mesmo dia. Era uma quinta-feira, 29 de dezembro de 2022. Faltavam apenas dois dias para o encerramento de seu mandato. No dia 30, Bolsonaro e Michelle pegariam um avião com destino aos Estados Unidos. Dentro do Palácio do Planalto, a ordem era, portanto, adiantar o cadastro das joias que ainda estavam retidas nos cofres da Receita.

O Estadão apurou que o pedido de cadastramento partiu da Chefia de Ajudância de Ordens da Presidência, que era comandada pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid. Não cabia a Cid fazer esse cadastramento, mas ao Gabinete Adjunto de Documentação Histórica.

O fato revela a intenção clara de Bolsonaro em ficar com o bem, e não em repassá-lo para o acervo público da Presidência da República, o que significaria manter as joias sob o controle do Estado. A retirada das joias acabou não ocorrendo, devido à resistência do auditor-fiscal da Receita em Guarulhos, Marco Antônio Lopes Santanna, que negou a entrega das joias.

O Palácio do Planalto não confirmou se os dados referentes às joias permanecem no sistema do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica. Há informações de que esses poderiam ter sido retirados do sistema, depois de frustrada a tentativa final do presidente.

O portal G1 informou que, diante do fracasso da operação, a funcionária responsável pelo Departamento de Documentação Histórica excluiu os ofícios do registro oficial no dia 3 de janeiro deste ano, já na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O portal informa que a Polícia Federal tenta recuperar os ofícios excluídos e deve interrogar a funcionária responsável pelos registros – que, segundo investigadores, estaria apenas cumprindo ordens que vinham do gabinete da Presidência da República.

O caso está sendo investigado pela PF e o Ministério Público Federal. A partir do material recebido, os procuradores vão definir os próximos passos. Não há prazo para a conclusão dessa análise. O procedimento tramita em sigilo na Procuradoria em Guarulhos.

Adriana Fernandes e André Borges, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 09.03.23, as 19h51

A muamba de Bolsonaro

Almirantes, generais, um tenente-coronel e outros fardados no imbróglio do segredo das jóias


Colar e brincos de diamante, no valor de R$ 16,5 milhões, doados pela Arábia - @Pimenta13Br

O caso das joias presenteadas a Bolsonaro pela Arábia Saudita, trazidas na moita para o Brasil, está recheado de estrelas —nas fardas que seus protagonistas usam ou usavam até havia pouco.

O regalo milionário foi entregue ao então ministro das Minas e Energia de Bolsonaro, Bento Albuquerque, ex-almirante de esquadra. Almirante de esquadra é o segundo posto mais alto da Marinha, com quatro estrelas e uma poderosa âncora na insígnia. As joias viajaram de Riad a Guarulhos na mochila do guarda-marinha Marcos André Soeiro. Guarda-marinha é um aluno da Escola Naval prestes a se tornar segundo tenente.

Apreendida a muamba pela Receita Federal, apressou-se liberá-la o contra-almirante José Roberto Bueno Junior. Um contra-almirante tem duas estrelas e, idem, uma âncora na insígnia, mas isso não comoveu a Receita. Entrou em ação o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro. Um tenente-coronel está a dois passos do generalato, e Cid ainda tem o privilégio de usar Glostora no cabelo e farda com gravata-borboleta. Pois voltou de mãos abanando. Outro encarregado de peitar a Receita foi Jairo Moreira da Silva, primeiro-sargento da Marinha. Debalde.

Dois elementos da própria Receita instruídos por Bolsonaro para resolver o problema também se frustraram. Mas ganharam cargos fictícios nas embaixadas de Paris e Dubai, em atos assinados pelo ex-general e vice-presidente Hamilton Mourão na ausência de Bolsonaro, que fugira para a Flórida a dois dias do fim do mandato. Dia este em que um jato da FAB, com gasolina paga por você, foi de Brasília a Guarulhos com o fim exclusivo de desbloquear a batota —igualmente em vão. E Michelle Bolsonaro, cujos colo, orelhas, pescoço e braços ostentariam as joias, vem sendo municiada sobre o que dizer pelo ex-general Braga Netto.

Está certo. Pelo artigo 142, as Forças Armadas se destinam à defesa da Pátria.

Ruy Castro, o autor deste artigo, é Jornalista e Escritor. Membro da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 08.03.23



quarta-feira, 8 de março de 2023

Bolsonaro recebeu, conferiu e está com joias de 2º pacote ilegal que valem no mínimo R$ 400 mil

Ex-presidente recebeu o estojo com relógio, caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário no Palácio da Alvorada; ajudante de ordens de Bolsonaro disse ao ‘Estadão’ que estojo está com Bolsonaro, no ‘acervo privado’ dele

O presidente Jair Bolsonaro recebeu pessoalmente o segundo pacote de joias da Arábia Saudita que chegou ao Brasil pelas mãos da comitiva do então ministro de Minas e Energia (MME), Bento Albuquerque. No estojo estavam relógio com pulseira em couro, par de abotoaduras, caneta rosa gold, anel e um masbaha (uma espécie de rosário islâmico) rose gold, todos da marca suíça Chopard. O site da loja vende peças similares que juntam somam, no mínimo, R$ 400 mil.

Ao Estadão, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ajudante de ordens e “faz-tudo” do ex-presidente, disse que o estojo está com Bolsonaro, no “acervo privado” dele. A entrada das peças no Brasil sem declarar à Receita e a apropriação pelo presidente estão irregulares. O entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU) é que os ex-presidentes só podem ficar com lembranças de “caráter personalíssimo” como roupas e perfumes.

CGU e Comissão de Ética da Presidência vão investigar caso das joias de Bolsonaro e Michelle

Segundo pacote de joias árabes

Coronel Cid confirma que joias estão no acervo privado do ex-presidente Jair Bolsonaro

O Estadão teve acesso a documentos oficiais que comprovam que o pacote foi entregue no Palácio da Alvorada, residência oficial dos presidentes da República. O recibo indicando que Bolsonaro recebeu as joias de diamantes foi assinado pelo funcionário Rodrigo Carlos do Santos às 15 horas e 50 minutos do dia 29 de novembro de 2022. O papel da Documentação Histórica do Palácio do Planalto traz um item no qual questiona se o item foi visualizado por Bolsonaro. A resposta: “sim”.

Recibo do 2º presente de joias árabes entregues ao ex-presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada Foto: Redação

Recibo do 2º presente de joias árabes entregues ao ex-presidente Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, parte 2 Foto: Redação

Bolsonaro requisitou as joias faltando um mês para encerrar seu mandato e deixar o Brasil rumo aos Estados Unidos, onde se refugiou desde 30 de dezembro, quando perdeu a eleição para o seu rival Luiz Inácio Lula da Silva.

Antes, as joias ficaram por mais de um ano nos cofres do Ministério de Minas e Energia. Elas chegaram ao Brasil trazidas pelo então ministro Bento Albuquerque em outubro de 2021. Ele não declarou o ingresso do estojo, o que pela legislação é um crime. No mesmo voo, estava o assessor do ministro com outro estojo da marca Chopard, contendo um colar, um par de brincos, relógio e anel estimados em 3 milhões de euros (R$ 16,5 milhões). Essas últimas peças, porém, foram apreendidas pela Receita Federal quando o assessor do ministro também tentou entrar com elas ilegalmente no País, como revelou o Estadão.

Bolsonaro almoçou na Embaixada da Arábia Saudita, no Brasil, no mesmo dia em que Bento Albuquerque recebia presentes na Arábia Saudita Foto: Alan Santos/PR

Os documentos contrariam a versão de Bolsonaro, que no último sábado, 04, após evento nos Estados Unidos, disse que não pediu nem recebeu qualquer tipo de presente em joias do governo da Arábia Saudita. “Estou sendo crucificado no Brasil por um presente que não pedi e nem recebi. Vi em alguns jornais de forma maldosa dizendo que eu tentei trazer joias ilegais para o Brasil. Não existe isso”.

À CNN Brasil, Bolsonaro repetiu a mesma versão. “Estou sendo acusado de um presente que eu não pedi, nem recebi. Não existe qualquer ilegalidade da minha parte. Nunca pratiquei ilegalidade. Veja o meu cartão corporativo pessoal. Nunca saquei, nem paguei nenhum centavo nesse cartão.”

Foi o próprio ex-ministro de Bolsonaro quem revelou que as joias eram para o ex-presidente. Em entrevista ao Estadão, Bento Albuquerque contou detalhes. Disse que ele e sua comitiva estavam deixando a Arábia Saudita, onde participaram de um evento representando Bolsonaro, quando um representante do regime os encontrou no hotel e entregou dois pacotes. Segundo ele, o conjunto de brilhantes avaliado em R$ 16,5 milhões era um presente para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. O outro pacote era para o presidente. “Isso era um presente. Como era uma joia, a joia não era para o presidente Bolsonaro, né... deveria ser para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. E o relógio e essas coisas, que nós vimos depois, deveria ser para o presidente, como dois embrulhos”, disse ao jornal.

Estojo com relógio com pulseira em couro, par de abotoaduras, caneta rosa gold, anel e um masbaha rose gold, todos da marca suíça Chopard Foto: REPRODUÇÃO TV GLOBO

Ao desembarcar em São Paulo, a comitiva pegou um voo para Brasília e trouxe o segundo estojo, sem passar pela alfândega, como o próprio ex-ministro admitiu na entrevista ao Estadão. “Quando nós chegamos em Brasília, nós abrimos o outro pacote, que tinha relógio... era uma caixa de relógio... não sei se... tinham mais algumas coisas, e era um presente. Então, o que nós fizemos? Nós pegamos, fizemos um documento, encaminhamos para a Receita Federal ou para o Serviço de Patrimônio da União... não sei, quem fez isso foi o gabinete (do MME). E foi isso”, afirmou.

Ministro Bento Albuquerque admite que ele e sua comitiva entraram com segunda caixa no Brasil sem declarar à Receita Federal

Investigação

A Controladoria-Geral da União (CGU) instaurar ontem uma investigação para apurar o caso. Segundo a CGU, órgão do governo federal responsável pela defesa do patrimônio público, transparência e combate à corrupção, a medida foi tomada “em razão da complexidade da apuração, já que envolve autoridades e servidores de órgãos diferentes”. O caso também passou a ser apurado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal, em São Paulo.

O inquérito aberto pela Polícia Federal vai correr em sigilo na Delegacia Especializada de Combate a Crimes Fazendários da superintendência da corporação em São Paulo. Os investigadores têm 30 dias para concluir a apuração. Umas das primeiras medidas deverá ser o depoimento de integrantes da comitiva que trouxe as joias da Arábia Saudita.

Outro lado

O advogado Frederick Wassef, que representa o ex-presidente, declarou que Jair Bolsonaro, “agindo dentro da lei, declarou oficialmente, os bens de caráter personalíssimo recebidos em viagens, não existindo qualquer irregularidade em suas condutas”.

“De acordo com a Lei Nº 8394/1991 (FCM) e a sua regulamentação, por meio do Decreto Nº 4344/2002 (FHC), complementados pelo Acordão Nº 2255/2016 (TCU), entre outras leis e decretos, todos os atos e fatos relacionados ao Presidente Bolsonaro - ao contrário do que vem sendo divulgado pela grande mídia - estão em conformidade com a lei”, afirmou a defesa, por meio de nota.

“Estão tirando certas informações de contexto, gerando mal-entendido e confusão para o público. Como jamais existiu qualquer escândalo ou um único caso de corrupção durante os 4 (quatro) anos de governo Bolsonaro, buscam hoje, a qualquer custo, criar diversas narrativas que não correspondem a verdade, em verdadeira perseguição política ao Presidente Bolsonaro.”

Adriana Fernandes, André Borges e Tácio Lorran, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 07.03.23, às 21h21

Caso das joias afeta volta de Bolsonaro ao Brasil e planos do PL para Michelle

Flávio anuncia e logo depois recua sobre data de volta do pai ao Brasil; partido adia evento para promover ex-primeira-dama

Flávio Bolsonaro anunciou, mas depois recuou sobre volta do pai em 15 de março. (Foto: Adriano Machado/Reuters)

A revelação feita pelo Estadão de que o governo Jair Bolsonaro (PL) tentou trazer ilegalmente para o País um conjunto de joias avaliadas em € 3 milhões, o equivalente a R$ 16,5 milhões, freou a estratégia do PL traçada para projetar a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, levou o ex-presidente a estender sua permanência nos Estados Unidos e deixou até os aliados mais leais apreensivos com a repercussão do caso.

A avaliação de aliados próximos ao clã Bolsonaro e de parlamentares do PL ouvidos pela reportagem é de que o tema tem “materialidade” e desgasta o capital político do ex-presidente. Bolsonaristas consideram também que as explicações de Bolsonaro não convenceram.

O PL tinha planejado para hoje um evento de posse para Michelle no PL Mulher. A ideia era aproveitar a data do Dia Internacional da Mulher, mas a repercussão negativa do caso levou o partido a adiar a cerimônia preparada para dar visibilidade à ex-primeira-dama. O PL diz que o evento de posse está “em organização” e que a data ainda será definida. Michelle já despacha na sede da sigla e está montando sua equipe.

(Joias de três milhões de euros doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País.

Diamantes: Governo Bolsonaro fez 8 tentativas para ex-presidente ficar com joias de R$ 16,5 milhões

Joias apreendidas em 2021; itens no valor de R$ 16,5 milhões foram presente do regime saudita para o casal Bolsonaro.

Ministério da Justiça aciona PF para investigar joias de diamantes de Michelle e Bolsonaro)

Recuo

Ontem o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) anunciou nas redes sociais que o pai retornaria ao Brasil no próximo dia 15, mas recuou e apagou a mensagem pouco tempo depois. “Acabou a espera! Bolsonaro vem aí! No dia 15 de março, o nosso Johnny Bravo volta para o Brasil. Já pode pendurar a bandeira verde e amarela e vestir as cores do nosso país. Juntos, vamos fazer uma oposição forte e responsável, pelo bem do nosso Brasil. Deus, pátria e família!”, escreveu o filho mais velho de Bolsonaro.

O recuo veio em seguida: “Peço desculpas pela postagem anterior, deve ser a saudade grande! Na verdade, a data de retorno do nosso líder @jairbolsonaro no dia 15/março era provável, mas não confirmada ainda. Assim que houver uma data definitiva, ele mesmo divulgará, tá ok!.”, escreveu Flávio.

A ideia original era mobilizar as redes bolsonaristas para reunir uma multidão no Aeroporto de Brasília para recepcionar o ex-presidente na próxima semana.

Comunicação

O caso das joias veio à tona no momento em que Bolsonaro montava uma equipe de comunicação para assessorá-lo no Brasil. O grupo será comandado pelo ex-secretário Fabio Wajngarten.

Procurado, ele disse que “não há relação da escolha da data de retorno (de Bolsonaro ao País) e o caso das joias”. “O presidente vai voltar ao Brasil até o final do mês para liderar uma oposição robusta e defender suas bandeiras, como respeito à propriedade privada, costumes e liberdade.”

Pedro Venceslau, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 08.03.23

‘Vai doer no bolso’, avisa Tebet a quem pagar salário menor a mulher na mesma função

Segundo ministra do Planejamento, além de projeto de lei que iguala remunerações, governo deve investir em fiscalização e campanhas informativas

Ministra, ainda durante a campanha eleitoral, impôs como uma das condições para apoiar Lula a apresentação de projeto de lei igualando salários.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Entrevista com Simone Tebet, Ministra do Planejamento

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresentará hoje projeto de lei que aumenta a multa para empresa que pagar salário diferente a homem e mulher na mesma função. Segundo a ministra do Planejamento, Simone Tebet, a obrigação de igualdade salarial já está prevista na legislação brasileira, mas a penalidade para quem a descumpre é irrisória, o que acaba sendo um estímulo a maus empregadores.

Diferença de remuneração entre homens e mulheres chega a 22%

A ministra, que no ano passado impôs como uma das condições para apoiar Lula justamente a apresentação de projeto de lei igualando salários, disse que a medida será o pontapé de uma série de ações contra a desigualdade salarial, que inclui fiscalização e campanhas informativas. “Paralelo a isso também vamos nos colocar à disposição de grandes setores para que eles sejam nossos parceiros”, afirmou à Rádio Eldorado. Veja abaixo alguns trechos da entrevista, cuja íntegra deve ir ao ar nesta quarta-feira, a partir das 17 horas.

A legislação brasileira já prevê igualdade salarial de homens e mulheres. Por que então é necessário novo projeto de lei para isso?

A CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), há 80 anos, já dizia que um homem e uma mulher com o mesmo cargo, a mesma função, o mesmo perfil, tinham que ganhar salário igual. Só que, como não havia nenhuma pena, nenhuma punição, ela virou uma letra morta. Em 1988, a bancada do batom (formada por 26 parlamentares) conseguiu colocar pela primeira vez no texto da Constituição que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Então a Constituição, por si só, já valeria para dizer que, se homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações e a mulher está exercendo a mesma função do homem, se ela tem a mesma capacidade, o mesmo grau de escolaridade, ela já tem que ganhar salário igual. Mas isso também foi insuficiente.

Quando veio a reforma trabalhista em 2017, a bancada feminina (do Congresso) conseguiu dar um avanço. Só que aí, para nossa surpresa, nós vimos que o texto apresentado e aprovado na reforma acabava estimulando os empregadores a pagar pra ver. Ou melhor, não pagar porque a multa que foi colocada era tão irrisória que, se o empresário fosse pego na infração, ele preferia após anos pagando menores salários pagar essa multa. Porque, pasmem, a multa hoje é de até 50% do maior benefício da Previdência Social, ou seja até cinco salários mínimos, um pouco menos que isso. Então o mau empregador, aquele de má-fé, fala: ‘Bom, é melhor eu infringir a lei porque, se eu receber uma multa, ela é muito pequena considerando a diferença salarial que eu vou pagar por um ano, por dois anos ou por mais tempo.

Agora esse projeto de lei que o presidente da República vai apresentar hoje ao Brasil, que vai para o Congresso Nacional, fala realmente em impor essa obrigatoriedade de igualdade salarial fazendo doer no bolso, aumentando a multa e estabelecendo regras.

Como vocês pretendem lidar com as resistências no Congresso Nacional e como fazer para fiscalizar isso dentro das empresas?

Nós já enfrentamos isso na reforma trabalhista. Depois de 2017, a bancada feminina avançou num projeto que foi aprovado na Câmara e no Senado e estabelecia multa de até cinco vezes a diferença salarial. Então, hipoteticamente, uma mulher que trabalhou um ano e ganhou R$ 200 a menos que um homem multiplicaria R$ 200 por 12 meses e receberia uma multa de até cinco vezes esse total. Claro que o juiz ia ver se era caso de reincidência ou não para aplicar uma multa. Então era um projeto razoável, mas lamentavelmente o então presidente da República (Jair Bolsonaro) o recebeu e pediu para voltar ao Congresso. Eu acho que foi o único projeto em que Câmara e Senado aprovam, vai para o Executivo e depois é devolvido. O presidente poderia vetar o projeto, mas não teve a coragem de assumir esse risco porque ele ficaria mal com as mulheres brasileiras.

O argumento foi de que não era emenda de redação que havia sido feita no Senado, que era emenda de mérito, portanto precisava voltar para a Câmara. Isso é verdade, mas tinha sido negociado, como já aconteceu com outros projetos. Enfim, isso agora é passado e estou muito otimista porque é a primeira vez que sai realmente de forma enfática da boca de um presidente da República que esse é um projeto prioritário de seu governo.

Levando em conta que 40% dos trabalhadores estão hoje no mercado informal no Brasil, que outras frentes podem ser usadas para que essa outra parcela da população também seja protegida?

Esse é o primeiro passo de inúmeros. Eu me lembro que em 2015 foi a mesma discussão sobre a lei do feminicídio. Diziam: “Ah, mas já existe o homicídio doloso, então se a mulher é morta por um companheiro ele já vai responder pelo crime de homicídio”. E nós: “Não. Nós queremos deixar claro que ela está sendo morta não por qualquer outra situação banal, ela está sendo morta por um companheiro ou ex-companheiro pelo simples fato de ser mulher. Aí caracterizar como lei do feminicídio nessa também violência política e aumentar a pena para isso vai fazer com que os homens pensem duas vezes, dez vezes antes cometer uma violência contra mulher”.

Isso fez toda a diferença, até para que a gente tivesse um raio X da realidade dos feminicídios no Brasil. Então a lei é o primeiro de inúmeros passos. Vai doer no bolso, tem que doer no bolso. Paralelo a isso nós vamos fiscalizar. Paralelo a isso nós vamos fazer campanha informativa. Paralelo a isso vamos nos colocar à disposição de grandes setores para que eles também sejam nossos parceiros.

Como o Brasil está em relação à desigualdade salarial no mundo?

Esse é um desafio do mundo, não é só do Brasil. Mas no Brasil a diferença salarial entre homem e mulher é maior do que na média dos países evoluídos, nos países emergentes. Quando a mulher é solteira, a diferença salarial tende a ser menor. Quando a mulher é casada, a diferença salarial tende a ser maior. Quando a mulher tem filhos, a diferença salarial é maior ainda. Essa é uma triste realidade: ao ter esse cuidado maior com a família, com os filhos, a mulher é penalizada por isso. Olha que loucura.

Mas um estudo feito pela Organização Internacional do Trabalho em 2018/ 2019 mostra que, se todos os países do mundo pagassem salários iguais para homens e mulheres, o PIB mundial cresceria 26%. Por quê? Primeiro porque você distribui a renda. Segundo porque essa trabalhadora é uma grande consumidora. Ela não guarda, ela não tem condições de fazer poupança. Com exceção de presidentes, de CEOs de grandes empresas, a grande massa das trabalhadoras vai correr para o supermercado, para o comércio, ela vai comprar material escolar para o seu filho, vai pagar um exame de saúde. Isso faz com que o dinheiro circule na economia e todo mundo ganha.

O Estado acaba arrecadando mais sem aumentar impostos. Isso vai para as áreas da saúde, da educação, da segurança pública, de investimentos. O comércio ganha com isso, o setor de serviços ganha com isso. Além de tudo é uma questão de justiça social. Nós, mulheres, somos iguais aos homens, ponto. Ninguém é melhor do que ninguém e nós temos que lutar por igualdade.

Qual sua expectativa para apreciação do projeto pelo Congresso? As conversas com os setores produtivos já começaram?

A apresentação do projeto é o pontapé, mas nós não vamos começar do nada. A gente já conversou com esses setores na reforma trabalhista e dentro desse outro projeto. Nós vamos ter debates, vai passar pelas duas Casas do Congresso. Eu não vou ser mais realista do que o rei. Eu sei como funciona o Congresso e sei que esse projeto não vai ser aprovado em um mês ou dois meses. Mas, se a gente fechar o ano e na pior das hipóteses puder estar em 8 de março do ano que vem com esse texto sancionado pelo presidente da República, será um marco sem precedentes no avanço de políticas públicas voltadas às mulheres.

Não vou comparar esse avanço com leis relacionadas à violência contra mulher, porque acho que são duas questões muito distintas, não dá para hierarquizar. Porque só nós sabemos enquanto mulheres o quanto doem a violência doméstica, a violência física, a violência psicológica, o estupro, os abusos sexuais, os assédios, a violência moral e mesmo a violência política. Não estou querendo comparar, mas, deixando de lado esses projetos que foram grandes avanços e já olhando pelo lado da autonomia financeira e do direito à justiça social, esse projeto uma vez aprovado sem dúvida nenhuma será um marco, um divisor de águas porque ele vem com critérios que permitem que não vire uma letra morta, que o juiz lá no caso concreto possa arbitrar, possa punir realmente empresas que comprovadamente paguem salários inferiores à mulher por pura discriminação.

Entrevista concedida a Luciana Garbin e Carolina Ercolin para O Estado de S. Paulo. Publicada originalmente em 08.03.23

Gás natural, energias eólica e solar no Maranhão

Gás natural: aqui temos de falar sobre a ENEVA. É mais um dos grandes projetos instalados no Maranhão que ainda não disse a que veio, tal como a Alumar, Vale, Suzano, Polo da Soja em Balsas e adjacências, Base de Alcântara, que assombram e prometem, mas entregam pouco ou quase nada.  

São empreendimentos intensivos de capital que visam o lucro (esta é a regra básica do capital) e se lixam para a pobreza de nossa população. Claro que são importantes, porém, não obstante a implantação de todos eles, a população maranhense tem ficado mais pobre. Esse é o dado oficial de nossa realidade.

Cresce a capacidade de geração de  energia eólica instalada no Maranhão.

Há poucos dias, escrevi sobre o petróleo da margem equatorial brasileira sugerindo que o governo abra o diálogo com a sociedade sobre essa questão pelo risco de se perder a biodiversidade existente na região.

Não pode ser um assunto privativo de governo. Envolve questões que vão além de parâmetros oficiais e atacam os interesses dos povos originários. Hoje, vamos iniciar um diálogo sobre energias limpas, entre elas, o gás, a solar e a eólica. 

Energia eólica: o Maranhão precisa avançar em competividade (426MW) porque está atrás da produção do Piauí (6.490MW), do Ceará (6.279MW) e do Rio Grande do Norte (14.431MW), pelo simples fato de não ter feito até agora a regularização fundiária e o licenciamento ambiental prévio das áreas de grande potencial de geração desse tipo de energia, com o que atrairá investidores.

Energia solar: De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética o território maranhense destaca-se entre os mais promissores em relação à geração de energia fotovoltaica. Nada obstante, ainda engatinha em relação a outros estados.  A Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica aponta que a geração de energia solar no Ceará proporcionou, de 2012 para cá, a atração de R$ 1,9 bilhão em investimentos, arrecadação de ICMS de R$ 518,9 milhões e mais de 11,9 mil empregos, para ficar só neste exemplo. 

Em crescimento acelerado no Brasil, e em razão da alta incidência de insolação diária e radiação, o ideal seria pensar em projetos referenciados e como parte de políticas públicas, como, por exemplo, implantá-la em prédios públicos estaduais e estimular as fazendas solares, potencializando o desenvolvimento da carcinicultura e psicultura, claro, com utilização de tecnologia de placas solares nacionalizadas. 

Gás natural: aqui temos de falar sobre a ENEVA. É mais um dos grandes projetos instalados no Maranhão que ainda não disse a que veio, tal como a Alumar, Vale, Suzano, Polo da Soja em Balsas e adjacências, Base de Alcântara, que assombram e prometem, mas entregam pouco ou quase nada.  São empreendimentos intensivos de capital que visam o lucro (esta é a regra básica do capital) e se lixam para a pobreza de nossa população. Claro que são importantes, porém, não obstante a implantação de todos eles, a população maranhense tem ficado mais pobre. Esse é o dado oficial de nossa realidade.

A ENEVA é a maior operadora de gás natural do País e opera a Bacia do Parnaíba desde 2010 (poços em Santo Antônio dos Lopes). Não tem trazido qualquer avanço ao Maranhão pela forma como conduz as coisas, com o aval complacente do Estado. É mínima a contrapartida que oferece ao Estado, uma vez que não cumpre o objetivo principal da sua concessão, que é ofertar gás à GASMAR, para que essa possa distribuir às classes de consumo e assim criar cadeias de renda, emprego e impostos para o Estado.

Da forma que o negócio opera, cabe a empresa distribuidora apenas fazer manutenção de gasodutos, que conduzem gás pra geração de energia pela própria Eneva, energia esta que vai para outros Estados, onde a tributação do ICMS ocorre. Assim, sendo o sócio privado detentor da maioria das ações preferenciais da GASMAR tem ele a maior fatia dos dividendos, nesse cenário. Em resumo, todo o gás que produz é operado pela sua própria termelétrica, resultando em que o ICMS, cobrado no destino, passe ao largo do Tesouro Estadual. Estamos aqui falando de cifras de muitos milhões de reais.

Sabemos que o Maranhão não consome energia da Eneva porque é totalmente atendido por Tucuruí (kwh mais barato), já que o operador nacional do sistema elétrico (ONS) toma tal decisão a partir do menor preço e menor impacto ambiental.  Mas, isso não impede que outras formas de consumo sejam implementadas, como, por exemplo, o gás veicular, que autoridades do Governo do Maranhão propalaram irresponsavelmente aos 4 ventos que estaria em pleno uso até dezembro do ano passado.

A mão forte do Governo precisa exigir da ENEVA que ela produza um pouco mais de gás para atender às classes de consumo residencial, comercial, industrial e veicular. Por que a ENEVA se recusa a fazer isso? Pelo fato de que a tarifa de energia elétrica é bem superior à que ganharia com a venda do gás natural. É verdade, assim como é verdade que não paga a compensação ambiental pelos danos ao meio ambiente, tanto pela perfuração dos poços como para produzir energia elétrica a partir da sua usina termoelétrica. 

Essa decisão impactaria fortemente os recursos do Tesouro Estadual, porque aí sim teríamos direito ao ICMS a ser cobrado dos consumidores. Infelizmente a Eneva quer repetir o mesmo engodo que fez com os governos de Roseana Sarney e Flávio Dino. Não devemos permitir. Estima-se que se parte do gás da Eneva tivesse sido distribuído comercialmente pela Gasmar, habilitada juridicamente para isso, o Estado teia arrecadado cerca de bilhões de reais nesses 10 anos em que ela atua no Maranhão.

Claro que temos a alternativa do GNL (gás natural liquefeito). Soube que a Gasmar trabalha para isso. Mas, para quando e por quê? Se temos gás abundante no Maranhão?

Abdelaziz Aboud Santos, o autor deste artigo, foi Secretário de Estado do Planejamento e Orçamento do Maranhão (Governo Jackson Lago - 2007/09)

terça-feira, 7 de março de 2023

Ex-chefe da Receita foi demitido por Bolsonaro 1 mês após reter joias e 4 negativas de liberá-las

Trinta e sete dias após integrantes do governo Bolsonaro tentarem entrar ilegalmente no País com um conjunto de joias presenteado pelo regime da Arábia Saudita para a então primeira-dama Michelle Bolsonaro, sem declarar na alfândega, o secretário da Receita Federal à época, José Tostes, perdeu o cargo.

José Tostes foi dispensado do comando da Receita 37 dias depois de as joias enviadas a Bolsonaro e Michelle Bolsonaro serem barradas pelo órgão na alfândega de Guarulhos, em São Paulo (Foto: Dida Sampaio/Estadão)

Antes da queda de Tostes, quatro tentativas já tinham ocorrido para tentar entrar com as joias no País. O primeiro ato foi a decisão da comitiva do então ministro de Minas e Energia (MME) Bento Albuquerque de entrar com as joias sem declará-las. Depois, o próprio Albuquerque voltou à área restrita e tentou levar os pacotes, informando que se tratava de presentes para Michelle Bolsonaro. O terceiro ato foi o envio de um ofício do MME ao Ministério de Relações Exteriores (MRE), em 3 de novembro daquele ano, solicitando ajuda. O MRE, por sua vez, pediu informações para saber que providências tomar para liberar as joias.

Auditores da alfândega já monitoravam viagens de Bento Albuquerque antes de apreensão de joias

No lugar de Tostes, o presidente Jair Bolsonaro colocou o auditor fiscal de carreira e especialista em direito tributário Julio Cesar Vieira Gomes, nomeado cinco dias depois para chefiar a Receita. Julio Cesar era pessoa próxima da família Bolsonaro. O decreto de nomeação assinado por Bolsonaro seria publicado no dia 7 de dezembro de 2021. A escolha, porém, já era conhecida anteriormente.

Joias apreendidas em 2021; itens no valor de R$ 16,5 milhões foram presente do regime saudita para o casal Bolsonaro. Foto: Estadão

No dia 3 de dezembro, a informação da troca de comando da Receita foi vazada pela imprensa, no bojo de uma “grande reestruturação” nas secretarias do Ministério da Economia, com a criação de uma Secretaria Especial de Estudos Econômicos e troca de secretários. A estratégia, na prática, era a de esvaziar o impacto da demissão de José Tostes com a notícia de mudanças importantes na equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes. Tostes, que já era servidor aposentado da Receita quando comandava o órgão, era bem avaliado pela área técnica em geral.

Guedes demitiu Tostes, que estava em atrito com a família Bolsonaro, também por conta da nomeação em torno de indicação do corregedor da Receita, um posto que interessava. Tostes foi avisado no dia anterior a esse vazamento de que o presidente queria o seu cargo. No Diário Oficial, a exoneração de Tostes por Bolsonaro foi publicada com a informação de que teria sido “a pedido”.

À frente da Receita, Tostes sempre esteve sob pressão da família do ex-presidente Bolsonaro, em razão das investigações da denúncia da prática de “rachadinha” na Assembleia do Rio de Janeiro contra o seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro.

Guedes acenou para José Tostes com a possibilidade de um cargo na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, e anunciou a criação de outros dois cargos de adido da Receita na Índia e em Bruxelas. O fato, porém, é que Tostes não chegou a assumir o cargo em Paris.

Procurados pela reportagem, Tostes e Guedes não responderam ao pedido de entrevista. Como revelou o Estadão, o novo chefe da Receita escolhido por Bolsonaro, o auditor fiscal Julio Cesar, atuou para que os fiscais do órgão liberassem as joias apreendidas naquele 26 de outubro de 2021. Julio Cesar faria diversas tentativas, sem sucesso. Em 30 de dezembro de 2022, a um dia de acabar o mandato de Bolsonaro, ele foi indicado pelo presidente para assumir um cargo na Embaixada brasileira em Paris, mas o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, reverteu a nomeação no início do governo Lula.

O ofício encaminhado para resgatar as joias apreendidas pela Receita diz que “os bens foram ofertados ao presidente da República pelo reino da Arábia Saudita”. O documento obtido pelo Estadão foi enviado no fim do dia 28 de dezembro de 2022, restando três dias para o fim da gestão Bolsonaro, e é assinado pelo tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ajudante de ordens e “faz-tudo” de Bolsonaro.

O documento 736/2022/GPPR-AJO/GPPR é explícito em “determinar desde já que os bens sejam retirados” pelo primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva por ordem do gabinete de Bolsonaro. O ex-presidente se mudou para os Estados Unidos no dia 30 de dezembro e não passou a faixa para Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O ofício envolve diretamente Bolsonaro nas tratativas para reaver os diamantes. A ordem foi dirigida ao ex-secretário da Receita Federal Julio Cesar Vieria Gomes, que, no mesmo dia, determinou à Superintendência da Receita em São Paulo para que fosse acatada e, as joias, devolvidas.

No dia seguinte, um jatinho da Força Aérea Brasileira (FAB) levou à Base Aérea de Guarulhos, em São Paulo, o primeiro-sargento Jairo Moreira da Silva, com a missão de resgatar as joias de diamantes, avaliadas em 3 milhões de euros, ou R$ 16,5 milhões.

Como revelou o Estadão, o presente dado pelo regime saudita foi apreendido, porque a comitiva tentou entrar de forma ilegal, com o item na mochila do assessor do ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque, em 26 de outubro de 2021. Antes de recorrer ao comando da Receita, o governo Bolsonaro também já tinha acionado o Ministério de Minas e Energia e o Itamaraty.

As pressões sobre a Receita até a demissão de Tostes

1) A entrada ilegal das joias - nada a declarar

No dia 26 de outubro de 2021, o então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque e seu assessor Marcos André Soeiro desembarcaram no Aeroporto de Guarulhos do voo 773, proveniente da Arábia Saudita. O assessor trazia na mochila o estojo com as joias (um colar, um par de brincos, um anel e um relógio) para o casal Bolsonaro, acompanhadas de um certificado de autenticidade da marca Chopard.

Ele fez a primeira tentativa de entrar com as joias ilegalmente no País. O militar optou pela saída “nada a declarar” para deixar a área do aeroporto sem registrar a posse dos bens estimados em R$ 16,5 milhões, infringindo a legislação. A manobra foi frustrada. Os servidores da Receita pediram para conferir a bagagem logo que ele passou pelo raio-X. Com a descoberta, os diamantes foram apreendidos.

2) A carteirada

O ministro e o servidor estavam representando o governo brasileiro na reunião de cúpula “Iniciativa Verde do Oriente Médio”, realizada na capital daquele país.

Com a apreensão das joias, o ministro volta para a área restrita do aeroporto, mesmo após ter passado pela alfândega, o que geralmente não é permitido, e faz a segunda tentativa de entrar com as joias no País. Ele alegou que era um presente para a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. O ex-ministro repetiu a mesma versão ao Estadão, acrescentando que o relógio era para o ex-presidente, em entrevista na sexta-feira, 03.

No ato de apreensão, foi dada ao almirante a opção de declarar que se tratava de um presente de um governo para outro, mas o ministro não aceitou. Se o fizesse, as joias seriam tratadas como propriedade do Estado brasileiro e, seguindo os trâmites burocráticos, poderiam ser liberadas.

3) A pressão sobre a Receita 1

O Ministério das Relações Exteriores é acionado pelo presidente Bolsonaro e pede, no dia 03 de novembro de 2021, à Receita, para que tome “providências necessárias para liberação dos bens retidos”. Neste momento, após reiteradas negativas da Receita, o governo começa a mudar a versão e dizer que as joias eram para o acervo, sem especificar qual.

“Considerando a condição específica do Ministro —representante do Senhor Presidente da República; a inviabilidade de recusa ou devolução imediata de presentes em razão das circunstâncias correntes; e os valores histórico, cultural e artístico dos bens ofertados; faz-se necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”, diz o ofício do Itamaraty ao qual o Estadão teve acesso.

Em resposta, a Receita volta a informar que só seria possível fazer a retirada mediante os procedimentos de praxe nestes casos, com quitação da multa e do imposto devidos.

4) A pressão sobre a Receita 2

No mesmo dia 03 de novembro de 2021, o gabinete do então ministro Bento Albuquerque reforça a pressão sobre a Receita em mais uma tentativa para conseguir colocar as mãos nas joias e entregá-las a Bolsonaro.

Em ofício, pede “liberação e decorrente destinação legal adequada de presentes retidos por esse Órgão”. Em combinação com o Itamaraty, o ex-ministro também passa a usar que a versão que a destinação seria para o acervo, novamente, sem dizer para o qual. A Receita mantém a apreensão.

Adriana Fernandes e André Borges, de Brasília - DF para O Estado de S. Paulo, em 07.03.23.

Encontros e desencontros governamentais

Dia a dia se cava um abismo diante de um governo eivado por contradições. De um lado, iniciativas reparadoras e urgentes; de outro, impressionante volta a um passado nocivo

Os primeiros passos do novo governo federal desenham jornada marcada por acertos notáveis, mas também atravessada por descaminhos inacreditáveis, evidenciando, a rigor, preocupante falta de rumo em direção à gigantesca tarefa de governar o País para todos. Observa-se cenário de desencontros, fragmentações e impasses que atravancam a ação, o que implica prejuízos à retomada da normalidade, um desafio num país que se mostrou profundamente dividido desde as eleições.

Naturalmente, é um alívio testemunhar decisões como a busca de inspiração e fundamentos na bem-sucedida experiência da educação básica do Ceará, com vistas à melhoria da aprendizagem dos nossos jovens. Louvável, também, a prioridade de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), necessidade cabalmente demonstrada durante a pior fase da pandemia da covid-19, seja por sua relevância na travessia, seja pelos problemas gerenciais registrados. Digno de nota, o Brasil ter voltado à cena global como interlocutor e player decisivo em questões como integração regional, comércio internacional e convulsão climática. Vale lembrar o protagonismo na COP27, no Egito, antes mesmo da posse.

De outra sorte, dia a dia vem sendo cavado verdadeiro abismo diante de um governo eivado por contradições, como se estivesse perdido em seu próprio labirinto. De um lado, iniciativas reparadoras e tão urgentes; de outro, impressionante volta a um passado repetidamente nocivo à vida brasileira. É decepcionante que estejamos assistindo novamente à subsunção de empresas públicas a arranjos que menosprezam o profissionalismo. Como não se espantar diante de comportamentos reticentes quanto a uma normatização fiscal efetiva que ancore as expectativas econômicas no País? Surpreendentemente, a autonomia do Banco Central entra na mira de fogo, como se fosse mera letra legal, sem consequências desastrosas. Vale registrar que essas são questões já assimiladas como fundamentos de governanças modernas mundo afora, deixando de constar de receituários que diferenciariam esquerda e direita.

Importante salientar que ruídos e ações desarticulados em nada contribuem para embasar o esforço nacional no enfrentamento das turbulências do atual cenário internacional, marcado pelas disputas entre EUA e China, guerra na Ucrânia, emergência climática, entre outras. Um já perceptível descompasso entre discurso e prática também pode levar ao desperdício de oportunidades preciosas que se colocam diante do Brasil, como a descarbonização da economia, o imperativo da transição energética ou a expansão da demanda por alimentos, além das possibilidades nos terrenos da infraestrutura e da digitalização.

O País precisa reafirmar seu rumo em direção à modernização de suas instituições, o que significa respeito a boas agências regulatórias, a adequados marcos legais, assim como compromisso firme com a segurança jurídica. Além de compromisso com o equilíbrio fiscal e progresso nas inadiáveis reformas estruturantes, alcançando o sistema tributário e as máquinas governativas. Caso contrário, continuaremos prisioneiros de taxas de crescimento medíocres, além de perdermos novas oportunidades para um desenvolvimento socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável.

Nesse sentido, a preliminar mais desafiadora é o próprio governo acertar o passo no rumo certo, evitando a armadilha de caminhos que, no passado, já nos levaram a fracassos retumbantes. Governos podem muito, mas não podem tudo, nem fazer e acontecer, sem medir consequências. Os erros cobram o seu preço. E quem paga a maior parcela da conta são os pobres, com inflação, desemprego e recessão econômica. Ademais, o que fortalece a democracia são os êxitos que alcança e preserva. Nesse sentido, uma governança errática só nos imporia ainda mais desafios. Alerto que o Brasil é parte do ambiente planetário, que vem colecionando exemplos de hostilidades e violentos ataques aos fundamentos democráticos.

Sem dúvida, cabe à liderança arbitrar as diferenças e reger a orquestra alçada ao poder, assim impedindo cenário de disputas internas que virem um “todos contra todos”, o que torna o time disfuncional e produz momentos de constrangimento público que não favorecem a superação das emergências postas. De fato, o líder deve abrir espaço saudável à diversidade de concepções de mundo e às inovações, tendo como princípios o fortalecimento do conjunto e a consecução das finalidades, em vez de fragmentação. Abandonando o biombo de uma diversidade de fachada, deve recusar o lugar de maestro das desavenças, que pode até lhe dar poder fugaz, mas que certamente engessará o conjunto em discórdias autofágicas.

Enfim, num país que mudou muito nas últimas décadas e que não para de se transformar, tudo o que menos precisamos é de um governo que aposta em semear e administrar divergências interna corporis como forma de gestão e exercício de poder, mantendo-se atrapalhado diante de sua inadiável agenda modernizante. O Brasil sabe aonde deseja chegar. Esse desencontro de perspectivas sinaliza erros na largada e, ao persistir, indica perspectivas pouco alvissareiros, logo adiante. Minha torcida é para que o governo escolha como estratégia a coesão político-administrativa que passa pela união da boa política com a boa técnica.

Paulo Hartung, oo autor deste artigo, é economista, Presidente-Executivo Da IBÁ, Membro do Conselho Consultivo do RENOVABR. Foi Governador Do Estado Do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018). Publicado originalmente n'O estado de S. Paulo, em 07.03.23

Guerra na Ucrânia: como o destino de Putin está ligado ao futuro do conflito

Eu frequentemente penso em algo que ouvi na TV estatal russa há três anos.

Na época, os russos estavam sendo incentivados a apoiar mudanças na constituição que permitiriam a Vladimir Putin permanecer no poder por mais 16 anos.

Putin em discurso anual à nação, em fevereiro (Crédito: Shutterstock)

Para convencer o público, o âncora do noticiário retratou Putin como um capitão que conduz o bom navio Rússia através das águas tempestuosas da agitação global.

"A Rússia é um oásis de estabilidade, um porto seguro", disse o âncora. "Se não fosse por Putin, o que seria de nós?"

Em 24 de fevereiro de 2022, o capitão do Kremlin zarpou em uma tempestade criada por ele mesmo e foi em direção ao iceberg.

A invasão da Ucrânia por Vladimir Putin trouxe morte e destruição ao país vizinho da Rússia. Isso resultou em enormes baixas militares para seu próprio país: algumas estimativas colocam o número de soldados russos mortos em dezenas de milhares.

Também houve centenas de milhares de cidadãos russos que foram convocados para o exército, enquanto prisioneiros — incluindo assassinos condenados — foram recrutados para lutar na Ucrânia.

A guerra afetou ainda os preços da energia e dos alimentos em todo o mundo e continua a ameaçar a segurança global.

Todos problemas monumentais como o Titanic.

Então, por que o presidente da Rússia decidira por essa manobra?

Vladimir Putin está no comando da Rússia há mais de 20 anos (Reprodução / Gov. da Rússia)

"No horizonte, estavam as eleições presidenciais russas de 2024", aponta a cientista política Ekaterina Schulmann.

"Dois anos antes dessa votação, [o Kremlin] queria algum acontecimento vitorioso. Em 2022, eles alcançariam seus objetivos. Em 2023, eles colocariam na mente dos russos que eles eram sortudos por ter aquele capitão comandando o navio, não apenas conduzindo em água turbulentas, mas também levando para praias novas e mais ricas. Então, em 2024, as pessoas votariam. Bingo. O que poderia dar errado?"

Muito — se seus planos forem baseados em suposições e erros de cálculo.

O Kremlin esperava que sua "operação militar especial" fosse rápida como um relâmpago. Dentro de semanas, pensava, a Ucrânia estaria de volta à órbita da Rússia.

Mas o presidente Putin subestimou seriamente a capacidade da Ucrânia de resistir e revidar, bem como a determinação das nações ocidentais de apoiar Kiev.

O líder da Rússia ainda não reconheceu, porém, que cometeu um erro ao invadir a Ucrânia. O jogo de Putin é avançar e aumentar as apostas.

O que me leva a duas questões-chave: como Vladimir Putin vê a situação um ano depois e qual será seu próximo passo na Ucrânia?

Nas últimas semanas, ele nos deu algumas pistas.

Em fevereiro, em seu discurso anual à nação, sua fala estava cheia de bile contra o Ocidente. Ele continua a culpar os Estados Unidos e a aliança militar Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) pela guerra na Ucrânia e a retratar a Rússia como uma parte inocente.

Sua decisão de suspender a participação no último tratado de controle de armas nucleares remanescente entre a Rússia e os Estados Unidos, o New Start, mostra que o presidente Putin não tem intenção de se retirar da Ucrânia ou de encerrar seu impasse com o Ocidente.

No dia seguinte ao discurso, em um estádio de futebol de Moscou, Putin dividiu o palco com soldados russos da linha de frente. Em uma manifestação pró-Kremlin altamente coreografada, o presidente Putin disse à multidão que "há batalhas acontecendo agora nas fronteiras históricas [da Rússia]" e elogiou os "corajosos guerreiros" da Rússia.

Conclusão: não espere nenhuma reviravolta partindo de Putin.

Putin participou em fevereiro de evento com a presença de soldados que estiveram na linha de frente da guerra na Ucrânia, mostrando que não planeja recuar do conflito (Reuters)

"Se ele não enfrentar resistência, ele vai até onde puder", analisa Andrei Illarionov, ex-assessor econômico do presidente Putin. "Não há outra maneira de detê-lo além da resistência militar."

É possível negociar a paz com Putin?

“É possível sentar com qualquer um”, continua Illarionov, “mas já temos um histórico de acordos com Putin".

"Ele violou todos os documentos: o acordo sobre a criação da Comunidade de Estados Independentes; o tratado bilateral entre a Rússia e a Ucrânia; o tratado sobre a fronteira internacionalmente reconhecida da Rússia e da Ucrânia; a carta da ONU; a Lei de Helsinque de 1975; o Memorando de Budapeste... E assim por diante. Não há documento que ele não violaria."

Quando se trata de quebrar acordos, as autoridades russas têm por sua vez uma longa lista de ressentimentos contra o Ocidente. No topo dessa lista está a afirmação de Moscou de que o Ocidente quebrou uma promessa feita na década de 1990 de não ampliar a aliança da Otan para o leste.

No entanto, em seus primeiros anos no cargo, Vladimir Putin parecia não ver a Otan como uma ameaça. Em 2000, ele não afastou a possibilidade de a Rússia um dia se tornar membro da organização.

Dois anos depois, perguntado sobre a intenção declarada da Ucrânia de ingressar na Otan, Putin respondeu: "A Ucrânia é um Estado soberano e tem o direito de escolher como garantir sua própria segurança...".

Ele insistiu que a questão não prejudicaria as relações entre Moscou e Kiev.

O Putin de 2023 é um personagem muito diferente. Fervendo de ressentimento com o "Ocidente coletivo", ele se autodenomina líder de uma fortaleza sitiada, repelindo as supostas tentativas dos inimigos da Rússia de destruir seu país.

A partir de seus discursos e comentários — e suas referências a governantes imperiais russos como Pedro, o Grande e Catarina, a Grande — Putin parece acreditar que está destinado a recriar o império russo de alguma forma.

Mas a que custo para a Rússia? Putin já teve uma reputação de trazer estabilidade ao seu país. Isso desapareceu em meio às baixas militares e às sanções econômicas. Centenas de milhares de russos deixaram o país desde o início da guerra, muitos deles jovens, qualificados e educados — uma fuga de cérebros que prejudicará ainda mais a economia da Rússia.

Como resultado da guerra, de repente, há muitos grupos com armas, incluindo grupos militarizados e privados, como o grupo Wagner, de Yevgeny Prigozhin.

As relações com as forças armadas oficiais estão longe de harmoniosas. O conflito entre o Ministério da Defesa russo e o grupo Wagner é um exemplo das disputas internas entre as elites.

A instabilidade somada a um cenário com exércitos privados é um coquetel perigoso.


O editor Konstantin Remchukov tem que a Rússia esteja diante de uma guerra civil

"É provável que a guerra civil cubra a Rússia na próxima década", afirma Konstantin Remchukov, proprietário e editor do jornal Nezavisimaya Gazeta, com sede em Moscou.

"Existem muitos grupos de interesse que entendem que, nessas condições, há uma chance de redistribuir a riqueza."

"A chance real de evitar a guerra civil será se a pessoa certa chegar ao poder imediatamente após Putin. Uma pessoa que tenha autoridade sobre as elites e determinação para isolar aqueles que desejam explorar a situação."

Pergunto a Konstantin se as elites russas estão discutindo quem é o homem ou a mulher certa.

"Silenciosamente. Com as luzes apagadas. Eles discutem isso. Eles terão sua voz."

Putin sabe que essas discussões estão acontecendo?

"Ele sabe. Acho que ele sabe de tudo."

A Rússia sobreviverá, como tem feito por séculos. Já o destino de Vladimir Putin está agora irrevogavelmente ligado ao resultado da guerra na Ucrânia.

Steve Rosenberg, o autor deste artigo, é Editor da BBC em Moscou. Publicado originalmente em português em 07.03.23. ( https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp4yg28v1wwo)

segunda-feira, 6 de março de 2023

‘Não veio um Lula Mandela, veio um Lula anti-Bolsonaro’, diz Tasso Jereissati

Um dos fiadores da aliança que ajudou a eleger o petista no segundo turno, ex-senador tucano critica ‘agressividade’ e ‘linha radical’ da política econômica do governo

Entrevista com Tasso Jereissati, concedida a Pedro Vencelau para O Estado de Paulo

'Eu não esperava que o Lula e sua equipe viessem nessa linha radical de política econômica', diz o ex-senador Tasso Jereissati. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ex-governador do Ceará, foi senador de 2003 a 2010 e de 2015 a 2022. Tucano histórico, comandou o partido duas vezes.

Depois de apoiar publicamente Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno da eleição presidencial do ano passado e atuar como um dos principais interlocutores entre PT e PSDB em diversos momentos da política brasileira, o empresário e agora ex-senador Tasso Jereissati está frustrado com os rumos do Palácio do Planalto.

“Estou muito surpreso. Eu não esperava que o Lula e sua equipe viessem nessa linha radical de política econômica”, afirmou o tucano em entrevista ao Estadão, referindo-se aos embates do governo com o Banco Central. Aos 74 anos, o ex-governador do Ceará e ex-presidente do PSDB não disputou as últimas eleições e hoje tem um assento na Executiva Nacional da legenda.

Como o senhor avalia os primeiros meses do governo Lula no aspecto econômico e esse embate promovido com o Banco Central?

Estou muito surpreso. Eu não esperava que o Lula e sua equipe viessem nessa linha radical de política econômica. Não é radical só pelo fato de ser de esquerda, que tem propostas boas, mas pelas ideias ultrapassadas, vencidas e que já foram testadas. É radical também pelo tom da agressividade. Esse embate com o Banco Central é inteiramente desnecessário. Em relação ao presidente do Banco Central, chegou a ser feito um ataque pessoal. Isso é profundamente prejudicial à economia do País. Por outro lado, o (Fernando) Haddad (ministro da Fazenda) traz alguma moderação. Mas o conjunto traz uma linha agressiva que volta atrás em conquistas de outros governos, do (Michel) Temer e até do Lula.

"Estou muito surpreso. Eu não esperava que o Lula e sua equipe viessem nessa linha radical de política econômica."

Após Lula se eleger com apoio de uma frente ampla no 2º turno, esperava um governo mais amplo também?

Esperava que não só o governo, mas o próprio Lula fosse mais amplo, porque ele já foi. O Lula 1 era muito aberto. Ouvia de um lado, do outro e distinguia. Na maioria das vezes tomava o rumo correto na área econômica. Eu acompanhei isso de perto, especialmente nos três primeiros anos. Lula tinha o (Antonio) Palocci como ministro e uma equipe econômica muito boa, que tinha o Marcos Lisboa, o (Joaquim) Levy e o (Bernard) Appy. Lula tinha uma abertura para uma visão mais ortodoxa da economia maior do que tem hoje.

Acredita que Lula terá dificuldades no Senado com esse perfil de viés mais conservador da Casa?

Qualquer presidente teria de fazer muitas concessões para governar com esse perfil que saiu das eleições de 2022 no Congresso. O Lula me parece que politicamente está fazendo essas concessões. Eu li que boa parte das diretorias executivas dos ministérios não está preenchida. Você falou que o Senado na atual legislatura é conservador, mas eu diria que é mais fisiológico.

Existe um vácuo de lideranças nacionais de oposição no campo do centro. Qual deve ser o papel do PSDB, agora sob a presidência do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite?

Nós já definimos nossa posição, que é de oposição. Mas não seremos uma oposição, entre aspas, bolsonarista. O PSDB é o único partido que fez oposição ao (Jair) Bolsonaro e agora ao Lula. Foi nesse espaço de centro que trabalhamos a vida inteira. Mas, nos últimos anos, especialmente após a eleição do Bolsonaro, esse espaço desapareceu. Prevaleceram a polarização e um radicalismo gigantescos. Não restou ao eleitor outro caminho a não ser Lula ou Bolsonaro. Nunca acreditamos no Bolsonaro. Sempre fomos contra ele. Votamos no Lula no segundo turno. Mas agora, principalmente em função da política econômica, temos obrigação de ser oposição.

O que significou para o PSDB ter deixado de lançar um candidato próprio à Presidência em 2022?

Nascemos como um partido pequeno, mas de qualidade. O PSDB era reconhecido por ter os melhores quadros do Brasil e ainda intelectuais da academia e economistas. Chegamos à Presidência. Sofremos reveses e cometemos erros após perdermos a eleição para o Lula em 2022. Perdemos espaço para a polarização. Não havia espaço para um discurso de bom senso e equilibrado nas eleições de 2022. Quando apoiei Lula no segundo turno, sofri ataques da direita e do centro. Ou você era uma coisa ou era outra. A expectativa era de que o Lula viesse com a disposição de fazer um governo para todos, mas isso não aconteceu. Estamos vendo um Lula até raivoso em determinados momentos. Ele mesmo falou que era preciso acabar com o nós contra eles. Não veio um Lula Mandela, veio um Lula anti-Bolsonaro.

"Estamos vendo um Lula até raivoso em determinados momentos. Ele mesmo falou que era preciso acabar com o nós contra eles."

Qual a posição do sr. sobre o PL das Fake News?

Essa discussão tomou outro rumo depois do 8 de janeiro. Aquilo que muita gente percebia como uma luta de ódios verbalizada na internet tornou-se fato repugnante, que foi a invasão e depredação da Praça dos Três Poderes. Isso foi estimulado pelas redes sociais. Essa é uma discussão que existe no mundo inteiro. Apesar de urgente, esse debate precisa ser mais aprofundado para se chegar ao mínimo de consenso.

O governo Lula acertou na política de preços dos combustíveis? Foi uma vitória parcial do ministro Fernando Haddad?

Não foi uma vitória nem uma derrota total do Haddad. O que a gente vê são coisas improvisadas e contraditórias. Criaram um imposto novo sobre exportação de petróleo, o que é uma incoerência total para quem diz que está tendo como prioridade a reforma tributária. Um dos pilares da reforma tributária é a desoneração total das exportações. É incentivar as exportações, e não onerar. Ir na direção contrária pode causar uma série de desequilíbrios. Há uma insegurança jurídica muito grande. Ninguém sabe qual será o rumo da economia. Existe uma paralisação dos investimentos. Estão todos esperando para ver o que acontece. Hoje, toda a expectativa do mercado, que tem sido atacado como se fosse um monstro, gira em torno da vida real da economia. A grande esperança é o novo arcabouço fiscal. Se vier algo consistente, isso vai dar um start na economia.

'Discussão sobre fake news tomou outro rumo depois do 8 de janeiro', diz Tasso Jereissati. Foto: André Dusek/Estadão

O MST fez recentemente, na Bahia, as primeiras invasões de áreas produtivas neste terceiro mandato de Lula. Que leitura o sr. faz dessa relação entre o movimento e o governo?

Se isso voltar a acontecer, será a radicalização definitiva não só da política, mas da sociedade brasileira. Isso é levar para o campo uma insegurança que ele já tinha com o governo Lula. O campo, que sustenta as exportações e o crescimento da economia, vai virar um campo de revolta e de enfrentamento com o governo. Espero que isso não aconteça.

O sr. vislumbra que alguma liderança do centro democrático possa ocupar o espaço do bolsonarismo na oposição ao governo Lula?

Nossa expectativa não é ocupar o campo do Bolsonaro, mas do centro. Não temos afinidade com o bolsonarismo radical. Para não ficar só na crítica ao governo Lula, foi um enorme ganho para o País a retomada do discurso sobre meio ambiente. Voltamos a existir lá fora. Deixamos de ser pária. Nisso concordamos inteiramente com a política do Lula. E tem a questão da vacina. Vi com muita alegria o (vice-presidente) Geraldo Alckmin vacinando Lula. Esse espaço do centro estava muito enxertado pelo antipetismo. Nossa expectativa é ocupar a centro-direita e a centro-esquerda.

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.0323

Da corrupção miúda às joias milionárias

Suspeita de que Bolsonaro tentou contrabandear joias reforça o padrão de um político cujo clã, famoso pelas rachadinhas, vê o Estado como repartição a serviço de seus interesses privados


Joias de R$ 16,5 milhões doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País. Foto: Wilton Junior/Estadão

A conjugação virtuosa do senso de dever de servidores da Receita Federal e do esforço de reportagem deste jornal deu ao País mais uma razão para acreditar que raros foram os presidentes que marretaram com tamanha violência os pilares que sustentam esta República como o sr. Jair Messias Bolsonaro.

Na sexta-feira passada, o Estadão revelou que o ex-presidente tentou de tudo, até a undécima hora do mandato, para fazer entrar no País, ilegalmente, um conjunto de joias da grife suíça Chopard avaliado em € 3 milhões, o equivalente a R$ 16,5 milhões. O pacote, contendo colar, brincos, relógio e anel cravejados de diamantes, seria um “presente” oferecido pela ditadura da Arábia Saudita à então primeira-dama, Michelle Bolsonaro, em outubro de 2021.

Ao longo de um ano e dois meses, Bolsonaro tentou liberar essas joias mobilizando nada menos que três Ministérios – Economia, Minas e Energia e Relações Exteriores –, além de outras instituições de Estado. O ex-presidente pressionou a cúpula da Receita Federal, que, para o bem do País, respaldou o comportamento republicano de seus servidores no aeroporto de Guarulhos. Protegidos pela estabilidade constitucional para dizer “não” até mesmo ao presidente da República quando ele quer se desviar da lei, eles confiscaram as joias.

Toda essa frenética movimentação de Bolsonaro para liberar os diamantes reúne fortes indícios de tentativa de contrabando, razão pela qual a Receita não realizou o leilão das joias, que agora servem de prova. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, determinou a instauração de inquérito pela Polícia Federal para apurar esse e outros crimes que possam ter sido cometidos com o objetivo de, ao que tudo indica, levar aquele pequeno tesouro até a família do ex-presidente às escondidas.

Do início ao fim, a jornada dessas joias rumo ao Brasil esteve eivada de mistérios e ilegalidades. Afinal, a que título a ditadura saudita teria sido tão generosa com Bolsonaro? Se o objetivo não era reter para si o presente milionário, por que o ex-presidente, como manda a lei, não determinou que as joias fossem declaradas como patrimônio da União?

Os diamantes poderiam ter passado facilmente pelo controle alfandegário caso fossem declarados como presente de um Estado estrangeiro ao governo brasileiro. Por lei, teriam sido considerados patrimônio da União e seguiriam para o acervo da Presidência sem obstáculos, livre de impostos. Mas há fortes razões para crer que Bolsonaro queria as joias para si, o que implicaria o pagamento de cerca de R$ 12,3 milhões em tributos de importação pessoal.

O pagamento desses tributos, por óbvio, era algo inimaginável em se tratando de alguém como Bolsonaro, que se notabilizou por explorar o Estado como plataforma para o enriquecimento pessoal. A família Bolsonaro, no que concerne à sua vida pública, foi forjada pela corrupção miúda das “rachadinhas”, pelas fraudes na prestação de contas de verbas de gabinete, pela compra de dezenas de imóveis em dinheiro vivo, pelo depósito de cheques suspeitos nas contas de Michelle Bolsonaro, entre tantos outros escândalos. Um possível contrabando milionário seria apenas mais um risco nesse “bingo” de malfeitos.

Para evitar o pagamento dos tributos, as joias foram escondidas na mochila de um assessor do então ministro de Minas e Energia do governo Bolsonaro, o almirante de esquadra Bento Albuquerque, que viajara a Riad para representar o Brasil na cúpula “Iniciativa Verde do Oriente Médio”. A manobra sub-reptícia, no entanto, não resistiu ao raio X e ao espírito público dos servidores da Receita Federal em Guarulhos, que apreenderam o pacote. Prestando-se a um papel indigno de sua patente, Bento Albuquerque ainda tentou pressionar os servidores mencionando que a destinatária daqueles diamantes era a primeira-dama.

De modo paradigmático, esse caso dos diamantes revela como Bolsonaro enxerga a natureza das instituições de Estado, o exercício do poder e a relação com servidores, civis ou militares. Tudo é uma mixórdia a serviço de seus interesses privados.

Espera-se dos responsáveis pela investigação desse caso escabroso o mesmo espírito público que norteou a atuação dos bravos servidores da Receita Federal.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.03.23

domingo, 5 de março de 2023

Ruy Barbosa nunca foi tão necessário

No centenário de sua morte, Ruy Barbosa deve inspirar a luta por um país que, conforme as palavras desse gigante republicano, acredite ‘no poder da razão e da verdade’

Rui Barbosa na  campanha civilista para a Presidência da República

Quis o destino que o centenário da morte do pai maior da República fosse celebrado em meio ao tremor do maior atentado a essa mesma República desde a ditadura. Não há emblema maior do choque entre as forças republicanas e antirrepublicanas que o busto de Ruy Barbosa marretado por vândalos no Supremo Tribunal Federal.

Ruy sentiu nos ombros a ameaça da lei da força contra a força da lei. Além da violência à democracia e ao direito a partir de fora, sofreu na pele sua corrosão por dentro: a Justiça, tardia e parcial; a política, definida por Ruy como “a arte de gerir o Estado segundo princípios definidos, regras morais, leis escritas ou tradições respeitáveis”, abastardada pela “politicalha” – que, para Ruy, é “o envenenamento crônico dos povos negligentes e viciosos pela contaminação de parasitas inexoráveis”.

Ruy viu lucarem com a desordem os demagogos, que, tendo violado as leis, faltado aos deveres, perdido a estima pública, viveram de “romancear revoluções”. “Vejo os depositários da ordem respirarem deliciosamente na agitação, animando-a, promovendo-a, propagando-a, e sinto empolarem-se, cada vez mais acirradas, as paixões políticas. (...) Vejo a política tender de dia em dia mais à subdivisão, ao personalismo, ao espírito de grupo”, escreveu Ruy.

A primeira lição de Ruy – a “mais poderosa máquina cerebral do nosso país”, na definição de Joaquim Nabuco, “a única luz que alumia” nas “trevas que caíram sobre o Brasil”, conforme d. Pedro II – é a lucidez. Mas seu célebre desabafo – “de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus...” – é tanto mais pungente porque nele insuflou não o desânimo, mas a luta.

Uma mente realista não animada pela paixão idealista cai na apatia. Um coração idealista não esclarecido por um olhar realista esvai-se em quimeras. No curriculum vitae de Ruy, realismo e idealismo se fundem. Assim ele o lapidou em sua cripta: “Estremeceu a pátria, viveu no trabalho e não perdeu o ideal”. Sua proverbial polimatia servia a esse ideal: “Creio (...) que o governo do povo pelo povo tem a base da sua legitimidade na cultura da inteligência nacional pelo desenvolvimento nacional do ensino; (...) creio na tribuna sem fúrias e na imprensa sem restrições, porque creio no poder da razão e da verdade; creio na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível das capacidades”.

Pudesse eleger um monumento a si, disse, seria uma ferramenta de trabalho subscrita pelas palavras do apóstolo Paulo: “Trabalhei mais que todos”. Seu labor talhou a abolição da escravatura e a Constituição republicana – o regime federativo, a eleição direta, o habeas corpus, a responsabilidade orçamentária, o controle de constitucionalidade das leis e os direitos sociais.

Forjado o corpo da República, Ruy o animou com o espírito democrático. “A sensação de força, de bravura e eletricidade moral era unânime”, testemunhou Drummond em suas memórias de infância da campanha civilista de Ruy à Presidência da República, que contou com apoio entusiasmado deste jornal, contra a plataforma militarista de Hermes da Fonseca. Ruy, na definição do poeta mineiro, “representou o melhor, o mais puro e desinteressado pensamento do homem da rua, desencantado da engrenagem política montada no país e esperançoso (utopicamente) de erigir um governo civil inspirado na justiça, na liberdade, na representação autêntica, na virtude”. Como profetizou Ruy a um correligionário em sua campanha utópica, sabendo que seria derrotado, “perderemos, mas o princípio da resistência civil se salvará”. Com efeito, disse Drummond, “de 1910 a 1914 o Brasil teve dois presidentes: um de fato e outro de consciência”.

Desde então há duas repúblicas: uma, a da desigualdade, da corrupção, do arbítrio, do populismo e do patrimonialismo; outra, a da consciência cívica, cujo emblema maior é o busto de Ruy Barbosa – que resistiu aos inimigos do Brasil no 8 de Janeiro e que evoca o melhor deste país.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.03.23

Documento no celular, ligação a coronel: a última cartada de Bolsonaro para ficar com os diamantes

‘Estadão’ reconstituiu todos os detalhes da última ação determinada pelo então presidente para tentar reaver as joias enviadas a ele e Michelle Bolsonaro


Portal da Transparência mostra que sargento Jairo Vieira da Silva foi a Guarulhos por ordens do presidente Jair Bolsonaro Foto: Reprodução/Portal da Transparência

Eram 18 horas e 10 minutos daquela quinta-feira, 29 de dezembro de 2022, quando o servidor da Receita Federal, Marco Antônio Lopes Santanna, recebeu uma visita “em caráter de urgência” na Base Aérea de Guarulhos, em São Paulo. Um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) tinha acabado de chegar ao terminal do aeroporto, para “atender demandas do senhor presidente da República”, conforme foi registrado em documento da FAB. Ali, Santanna recebeu o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva.

Jairo tinha uma missão clara e determinada pelo então presidente Jair Bolsonaro. Faltavam apenas dois dias para que o chefe do Executivo deixasse o mais alto posto de comando do País. Como ainda era o presidente, Bolsonaro tratou de agir. Era preciso, de qualquer maneira, retirar as joias de diamantes avaliadas em R$ 16,5 milhões que tinham sido presenteadas pelo regime da Arábia Saudita ao presidente e sua primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

O militar Jairo Moreira da Silva foi direto. Ao encontrar o servidor da Receita no aeroporto, mostrou a tela de seu celular, onde exibia a imagem de um documento direcionado “ao Sr. Julio Cesar”. Tratava-se de Julio Cesar Vieira Gomes, o secretário que comandava a Receita Federal na gestão Bolsonaro. Ao exibir a tela do celular, Jairo dizia que estava ali para retirar “um material” retido na alfândega e que a própria chefia da Receita já deveria ter entrado em contato com a alfândega de Guarulhos. O documento apresentado fazia referência a um “Termo de Retenção de Bens” relacionado a joias.

Joias de três milhões de euros doadas a Michelle Bolsonaro que foram apreendidas pela Receita Federal pela tentativa de entrada ilegal no País Foto: DIV - Wilton Junior/Estadão

Acontece que o servidor Marco Antônio Lopes Santanna não engoliu aquela história. De pronto, esclareceu que não tinha nenhuma informação sobre o assunto e disse a Jairo que não iria entregar nada.

Preocupado, o primeiro-sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva deu início, então, a uma conversa pelo celular com alguém a quem se referia apenas como “coronel”. Na frente de Santanna, sugeria ao auditor-fiscal da Receita que ele conversasse com o seu “coronel”. Santanna, porém, resistiu novamente, e informou que não havia possibilidade de fazer aquele tipo de atendimento pelo telefone.

Jairo voltou a insistir. Disse ao fiscal que iria identificar o nome do responsável da Receita que trataria da liberação no aeroporto. Santanna explicou que o ofício do governo federal exibido no celular não estava direcionado a ele, mas ao chefe da Receita, Julio Cesar Vieira Gomes. O servidor voltou a dizer que não tinha nenhum conhecimento daquela operação e que, por se tratar da tentativa de retirada e incorporação de um bem, o processo teria de ser apresentado, formalmente, por meio de um “Ato de Destinação de Mercadoria”.

O emissário de Bolsonaro, porém, não estava disposto a sair do aeroporto sem as joias e tinha ordens para deixar o local apenas com o estojo na mãos. Jairo exibiu, desta vez, um “Termo de Retenção” emitido pela Receita, na tela de seu celular, mas Santanna segurou a pressão e disse, categoricamente, que não teria como ajudar.

O emissário, então, se exasperou. Disse que chegou àquela hora de Brasília e foi diretamente para a alfândega, porque cumpria uma missão “em caráter de urgência”. O auditor-fiscal pediu, então, que o documento fosse enviado para o e-mail corporativo da alfândega, mas Jairo disse que preferia aguardar orientações, porque o seu “coronel” iria falar com mais alguém.

Foi neste momento que o primeiro-sargento da Marinha comentou a troca de comando na Presidência da República, o que viria a ocorrer em apenas dois dias. Em sua tentativa de convencimento, Jairo disse ao agente da Receita que aquilo tudo fazia parte da troca de governo e que “não pode ter nada do antigo pro próximo, tem que tirar tudo e levar”.

Uma nova ligação tocou no celular do militar. Era Julio Cesar Vieira Gomes, o secretário que comandava a Receita Federal e era alinhado a Jair Bolsonaro. O militar passou o celular para as mãos do auditor-fiscal, dizendo que seu chefe desejava falar com ele. O pedido de liberação das joias foi reforçado por Julio, mas o servidor Marco Antônio Lopes Santanna se manteve inabalável, negou a liberação e pediu que entrassem em contato com o delegado da alfândega de Guarulhos, o auditor Fabiano Coelho. A ligação foi encerrada.

Santanna devolveu o celular a Jairo e pediu ao militar que aguardasse uma resposta do delegado da alfândega de Guarulhos, com o devido Ato de Destinação de Mercadoria, mas voltou a frisar que, mesmo com a apresentação do documento, naquela circunstância, haveria muita dificuldade em acessar as joias.

Jairo aguardou por algum momento, conforme foi orientado pelo servidor, mas logo depois desistiu e deixou o aeroporto, sem retornar ou contatar o auditor-fiscal. Terminava, assim, fracassada, uma das tantas tentativas de Bolsonaro de conseguir as joias.

Os registros oficiais da FAB mostram que o emissário do presidente voltaria a Brasília em um voo comercial, e não mais em uma aeronave da FAB. Caso tivesse conseguido retirar as joias, portanto, os itens entrariam pelo aeroporto de Brasília, fora de área da alfândega, e estariam nas mãos do presidente e de Michelle Bolsonaro.

Dos Estados Unidos, o ex-presidente Bolsonaro negou que tenha conhecimento sobre as joias, diz não saber do que se trata e que nada recebeu. Michelle Bolsonaro foi às redes sociais para ironizar o valor milionário do presente, disse não ter conhecimento dos itens e insultou a imprensa.

As joias seguem apreendidas até hoje no cofre da Receita, em Guarulhos.

Adriana Fernandes e André Borges para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 05.03.23, às 14h20.