terça-feira, 7 de março de 2023

Guerra na Ucrânia: como o destino de Putin está ligado ao futuro do conflito

Eu frequentemente penso em algo que ouvi na TV estatal russa há três anos.

Na época, os russos estavam sendo incentivados a apoiar mudanças na constituição que permitiriam a Vladimir Putin permanecer no poder por mais 16 anos.

Putin em discurso anual à nação, em fevereiro (Crédito: Shutterstock)

Para convencer o público, o âncora do noticiário retratou Putin como um capitão que conduz o bom navio Rússia através das águas tempestuosas da agitação global.

"A Rússia é um oásis de estabilidade, um porto seguro", disse o âncora. "Se não fosse por Putin, o que seria de nós?"

Em 24 de fevereiro de 2022, o capitão do Kremlin zarpou em uma tempestade criada por ele mesmo e foi em direção ao iceberg.

A invasão da Ucrânia por Vladimir Putin trouxe morte e destruição ao país vizinho da Rússia. Isso resultou em enormes baixas militares para seu próprio país: algumas estimativas colocam o número de soldados russos mortos em dezenas de milhares.

Também houve centenas de milhares de cidadãos russos que foram convocados para o exército, enquanto prisioneiros — incluindo assassinos condenados — foram recrutados para lutar na Ucrânia.

A guerra afetou ainda os preços da energia e dos alimentos em todo o mundo e continua a ameaçar a segurança global.

Todos problemas monumentais como o Titanic.

Então, por que o presidente da Rússia decidira por essa manobra?

Vladimir Putin está no comando da Rússia há mais de 20 anos (Reprodução / Gov. da Rússia)

"No horizonte, estavam as eleições presidenciais russas de 2024", aponta a cientista política Ekaterina Schulmann.

"Dois anos antes dessa votação, [o Kremlin] queria algum acontecimento vitorioso. Em 2022, eles alcançariam seus objetivos. Em 2023, eles colocariam na mente dos russos que eles eram sortudos por ter aquele capitão comandando o navio, não apenas conduzindo em água turbulentas, mas também levando para praias novas e mais ricas. Então, em 2024, as pessoas votariam. Bingo. O que poderia dar errado?"

Muito — se seus planos forem baseados em suposições e erros de cálculo.

O Kremlin esperava que sua "operação militar especial" fosse rápida como um relâmpago. Dentro de semanas, pensava, a Ucrânia estaria de volta à órbita da Rússia.

Mas o presidente Putin subestimou seriamente a capacidade da Ucrânia de resistir e revidar, bem como a determinação das nações ocidentais de apoiar Kiev.

O líder da Rússia ainda não reconheceu, porém, que cometeu um erro ao invadir a Ucrânia. O jogo de Putin é avançar e aumentar as apostas.

O que me leva a duas questões-chave: como Vladimir Putin vê a situação um ano depois e qual será seu próximo passo na Ucrânia?

Nas últimas semanas, ele nos deu algumas pistas.

Em fevereiro, em seu discurso anual à nação, sua fala estava cheia de bile contra o Ocidente. Ele continua a culpar os Estados Unidos e a aliança militar Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) pela guerra na Ucrânia e a retratar a Rússia como uma parte inocente.

Sua decisão de suspender a participação no último tratado de controle de armas nucleares remanescente entre a Rússia e os Estados Unidos, o New Start, mostra que o presidente Putin não tem intenção de se retirar da Ucrânia ou de encerrar seu impasse com o Ocidente.

No dia seguinte ao discurso, em um estádio de futebol de Moscou, Putin dividiu o palco com soldados russos da linha de frente. Em uma manifestação pró-Kremlin altamente coreografada, o presidente Putin disse à multidão que "há batalhas acontecendo agora nas fronteiras históricas [da Rússia]" e elogiou os "corajosos guerreiros" da Rússia.

Conclusão: não espere nenhuma reviravolta partindo de Putin.

Putin participou em fevereiro de evento com a presença de soldados que estiveram na linha de frente da guerra na Ucrânia, mostrando que não planeja recuar do conflito (Reuters)

"Se ele não enfrentar resistência, ele vai até onde puder", analisa Andrei Illarionov, ex-assessor econômico do presidente Putin. "Não há outra maneira de detê-lo além da resistência militar."

É possível negociar a paz com Putin?

“É possível sentar com qualquer um”, continua Illarionov, “mas já temos um histórico de acordos com Putin".

"Ele violou todos os documentos: o acordo sobre a criação da Comunidade de Estados Independentes; o tratado bilateral entre a Rússia e a Ucrânia; o tratado sobre a fronteira internacionalmente reconhecida da Rússia e da Ucrânia; a carta da ONU; a Lei de Helsinque de 1975; o Memorando de Budapeste... E assim por diante. Não há documento que ele não violaria."

Quando se trata de quebrar acordos, as autoridades russas têm por sua vez uma longa lista de ressentimentos contra o Ocidente. No topo dessa lista está a afirmação de Moscou de que o Ocidente quebrou uma promessa feita na década de 1990 de não ampliar a aliança da Otan para o leste.

No entanto, em seus primeiros anos no cargo, Vladimir Putin parecia não ver a Otan como uma ameaça. Em 2000, ele não afastou a possibilidade de a Rússia um dia se tornar membro da organização.

Dois anos depois, perguntado sobre a intenção declarada da Ucrânia de ingressar na Otan, Putin respondeu: "A Ucrânia é um Estado soberano e tem o direito de escolher como garantir sua própria segurança...".

Ele insistiu que a questão não prejudicaria as relações entre Moscou e Kiev.

O Putin de 2023 é um personagem muito diferente. Fervendo de ressentimento com o "Ocidente coletivo", ele se autodenomina líder de uma fortaleza sitiada, repelindo as supostas tentativas dos inimigos da Rússia de destruir seu país.

A partir de seus discursos e comentários — e suas referências a governantes imperiais russos como Pedro, o Grande e Catarina, a Grande — Putin parece acreditar que está destinado a recriar o império russo de alguma forma.

Mas a que custo para a Rússia? Putin já teve uma reputação de trazer estabilidade ao seu país. Isso desapareceu em meio às baixas militares e às sanções econômicas. Centenas de milhares de russos deixaram o país desde o início da guerra, muitos deles jovens, qualificados e educados — uma fuga de cérebros que prejudicará ainda mais a economia da Rússia.

Como resultado da guerra, de repente, há muitos grupos com armas, incluindo grupos militarizados e privados, como o grupo Wagner, de Yevgeny Prigozhin.

As relações com as forças armadas oficiais estão longe de harmoniosas. O conflito entre o Ministério da Defesa russo e o grupo Wagner é um exemplo das disputas internas entre as elites.

A instabilidade somada a um cenário com exércitos privados é um coquetel perigoso.


O editor Konstantin Remchukov tem que a Rússia esteja diante de uma guerra civil

"É provável que a guerra civil cubra a Rússia na próxima década", afirma Konstantin Remchukov, proprietário e editor do jornal Nezavisimaya Gazeta, com sede em Moscou.

"Existem muitos grupos de interesse que entendem que, nessas condições, há uma chance de redistribuir a riqueza."

"A chance real de evitar a guerra civil será se a pessoa certa chegar ao poder imediatamente após Putin. Uma pessoa que tenha autoridade sobre as elites e determinação para isolar aqueles que desejam explorar a situação."

Pergunto a Konstantin se as elites russas estão discutindo quem é o homem ou a mulher certa.

"Silenciosamente. Com as luzes apagadas. Eles discutem isso. Eles terão sua voz."

Putin sabe que essas discussões estão acontecendo?

"Ele sabe. Acho que ele sabe de tudo."

A Rússia sobreviverá, como tem feito por séculos. Já o destino de Vladimir Putin está agora irrevogavelmente ligado ao resultado da guerra na Ucrânia.

Steve Rosenberg, o autor deste artigo, é Editor da BBC em Moscou. Publicado originalmente em português em 07.03.23. ( https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp4yg28v1wwo)

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