quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Decisão de Moraes contra o PL: Entenda o cálculo da multa e o suposto crime Foto: Redação

Ministro determinou que partido e demais integrantes da coligação de Bolsonaro paguem quase R$ 23 milhões após não apresentar provas que sustentem ação pedindo anulação de votos de determinadas urnas, o que configura ‘litigância de má fè'

O presidente Jair Bolsonaro (PL) participou da solenidade de posse dos ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski à frente do TSE, apesar das recorrentes críticas do atual chefe do Executivo à Justiça Eleitoral e ao próprio Moraes. Foto: Isac Nóbrega/PR

Nesta quarta-feira, 23, o ministro Alexandre Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), condenou o Partido Liberal e as demais siglas da coligação que propôs a candidatura à reeleição do presidente Jair Bolsonaro a pagar uma multa de R$ 22,9 milhões por “litigância de má-fé”, após a tentativa de anular os votos de 279,3 mil urnas eletrônicas. O cálculo do valor da multa teve como referência a própria quantidade de urnas citadas na ação apresentada à Justiça.

Segundo o documento de decisão, a causa representa um valor total de R$ 1,1 bilhão. Para chegar nesse número, o ministro multiplicou a quantidade de urnas eletrônicas citadas na ação do PL (aquelas diferentes do modelo UE2020 - um total de 279.383 equipamentos) atribuindo o custo unitário de cada máquina adquirida pelo TSE: R$ 4.114,70.

Nos termos do § 3º do art. 292 do CPC, arbitro o valor da causa no valor de R$ 1.149.577.230,10 (um bilhão, cento e quarenta e nove milhões, quinhentos e setenta e sete mil, duzentos e trinta reais e dez centavos), que é, exatamente, o valor resultante do número de urnas impugnadas, ou seja, todas aquelas diferentes do modelo UE2020 havido no parque de urnas do TSE e utilizadas no 2º Turno (279.383) multiplicado pelo custo unitário das últimas urnas eletrônicas adquiridas pelo TSE (R$ 4.114,70).

Petição Cível (241) - Nº 0601958-94.2022.6.00.0000 (PJe)

Entretanto, segundo o artigo 81 do Código Penal Civil, o valor de uma condenação por litigância de má-fé, quando o autor, por exemplo, propõe um processo “para conseguir objetivo ilegal” (leia abaixo), “deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa” que, no caso, é o valor de R$ 1,1 bilhão calculado anteriormente. No tocante da ação do PL, a porcentagem escolhida por Moraes foi de 2%, chegando ao valor de R$ 22,9 milhões

Assim, nos termos do art. 81, caput, do CPC, CONDENO A AUTORA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, À MULTA DE R$ 22.991.544,60 (vinte e dois milhões, novecentos e noventa e um mil, quinhentos e quarenta e quatro reais e sessenta centavos), correspondentes a 2% (dois por cento) do valor da causa aqui arbitrado.

Petição Cível (241) - Nº 0601958-94.2022.6.00.0000 (PJe)

No documento assinado por Moraes, o ministro classifica os argumentos do PL como “absolutamente falsos”, uma vez que a rastreabilidade das urnas eletrônicas de modelos antigos são possíveis de serem feitas. “Como bem destacado pelo Secretário de Tecnologia de Informação do TSE, ‘é descabida qualquer afirmação de que todas as urnas possuem o mesmo número ou que não possuem patrimônio que as diferencie umas das outras’, uma vez que, ‘cada urna possui um número interno identificador único que permite a identificação do equipamento em si’”, descreve no documento.

Reação

O pedido de anulação foi enviado ao TSE pelo PL na última terça-feira, 22. Segundo o documento do partido, houve “mau funcionamento” em 279,3 mil urnas eletrônicas. Para o partido de Jair Bolsonaro, o presidente teve 51,05% dos votos no segundo turno e venceu a disputa contra Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no último dia 30.

Em resposta, Moraes determinou que, em 24 horas, a coligação de Bolsonaro apresentasse um relatório completo sobre as eleições, incorporando informações do primeiro turno. A determinação não foi cumprida pelo PL.

Além da multa, o ministro do TSE também determinou o bloqueio imediato dos fundos partidários da coligação bolsonarista até o pagamento da dívida. Contrariados com a penalidade, os presidentes do PP e do Republicanos, siglas que formalizaram a aliança com o PL na coligação que registrou a candidatura à reeleição, disseram não ter sido consultados pelos liberais e anunciaram que vão recorrer da multa.

Litigância de má-fé

O crime apontado na decisão de Alexandre de Moraes está previsto no artigo 80 do Código Penal Civil (Lei nº 13.105 de 16 de Março de 2015). De acordo com a legislação, considera-se litigante de má-fé aquele que:

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidente manifestamente infundado;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Natália Santos / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 11h08

PP e Republicanos rejeitam ação do PL e dizem que vitória de Lula não pode ser contestada

Após partido de Bolsonaro pedir anulação de votos de certas urnas, Moraes determinou que contas da coligação sejam bloqueadas para pagar multa; PP e Republicanos disseram não concordar com ação do PL e vão recorrer ao TSE

O deputado Marcos Pereira é uma das figuras de maior relevância na Câmara, à frente do Republicanos e ligado à bancada evangélica.  Foto: Dida Sampaio / Estadão Conteúdo

Os presidentes do Republicanos, deputado Marcos Pereira (SP), e do PP, deputado Cláudio Cajado (BA), afirmaram nesta quinta-feira, 24, que os partidos não foram consultados sobre a ação do PL que pede a anulação de votos de determinadas urnas no segundo turno da eleição presidencial. As três siglas formaram uma coligação para lançar o presidente Jair Bolsonaro à reeleição.

O PL, ao qual Bolsonaro é filiado, sustenta, sem provas, que a eleição não foi vencida por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas, sim, pelo atual presidente.

“Não fomos consultados. Reconheci o resultado publicamente às 20:28 do dia da eleição”, declarou Pereira ao Estadão. Cajado, que administra interinamente o PP enquanto Ciro Nogueira exerce o cargo de ministro da Casa Civil, foi na mesma linha. “Não fui consultado e eles falavam em nome do PL e não em nome da coligação”, declarou.

Além do PL, a ação foi protocolada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em nome da coligação eleitoral de Bolsonaro, da qual Republicanos e o PP também faziam parte. O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, solicitou que a demanda também incluísse as urnas de primeiro turno, quando o PL elegeu 99 deputados e oito senadores, mas o partido se recusou a fazer isso.

Em resposta, Moraes considerou que a coligação e o partido acionaram a Justiça indevidamente e determinou o pagamento de multa e o bloqueio das contas das três legendas enquanto o valor não for recolhido. Os presidentes do Republicanos e do PP disseram que vão entrar com um recurso para excluir seus partidos do bloqueio. “Será protocolizado hoje ainda”, afirmou Pereira. “Faremos em conjunto”, completou Cajado.

Para reforçar sua posição de distância da iniciativa adotada pelo PL de Valdemar Costa Neto, condenado pelo escândalo do Mensalão no governo de Lula, mas hoje aliado de Bolsonaro, o presidente do Republicanos divulgou um vídeo gravado logo após o resultado da eleição de segundo turno.

“Tivemos a eleição do ex-presidente Lula. Reconhecemos o resultado. Apoiamos o presidente Bolsonaro até o último minuto, trabalhamos, mas as urnas, o povo escolheu, as urnas são soberanas. Não há porque duvidar do resultado das urnas, não há porque questioná-los”, declarou ele.

Impossível dissociar primeiro turno

Contrariando a ação do PL, que visa a apenas questionar o resultado presidencial do segundo turno, Pereira reconhece que não dá para dissociar a disputa que Lula venceu das outras, inclusive as que os candidatos do Republicanos venceram.

“Senão, nós teríamos que questionar a eleição do Tarcísio (eleito governador de São Paulo pelo Republicanos), a eleição do senador Mourão, a eleição da senadora Damares, a eleição do nosso governador, que foi reeleito em primeiro turno lá em Tocantins, Wanderley Barbosa, a eleição dos 41 deputados federais”, enumerou. “Não, o resultado está aí, nós não apoiamos o candidato eleito, mas agora precisamos continuar trabalhando em prol do Brasil”, completou.

O deputado Claudio Cajado (PP-BA) é presidente interino do Progressistas; ele assumiu o comando da sigla após Ciro Nogueira se tornar ministro no governo Bolsonaro. Foto: Billy Boss/Agência Câmara

Já o presidente interino do PP chamou a atenção para fato de Ciro Nogueira comandar a transição para o governo Lula pelo lado do atual governo. De acordo com o dirigente, é “claro” que o partido reconhece a vitória de Lula. “Se o chefe da transição pelo atual governo é o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, presidente do Progressistas, e que já praticou os atos da transição, sim, claro (o PP reconhece o resultado da eleição)”.

O Republicanos declarou que vai adotar postura de independência durante o próximo governo Lula, sem se classificar como base ou oposição. Já o PP ainda não decidiu a postura que será tomada.

Lauriberto Pompeu / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 10h54

Área técnica do TSE classificou como ‘inequivocadamente falsos’ argumentos do PL sobre urnas

Secretário de Tecnologia da Informação da corte eleitoral rechaçou, uma a uma, as três alegações feitas pelo partido do presidente Jair Bolsonaro para pedir a anulação dos votos de 279,3 mil urnas; ministro Alexandre de Moraes barrou a ofensiva e multou a legenda em R$ 22,9 milhões por má-fé

Servidores da Justiça Eleitoral preparam urnas eletronicas. Foto: Dida Sampaio / Estadão

Ao barrar a mais recente ofensiva do presidente Jair Bolsonaro contra o sistema eletrônico de votação nesta quarta-feira, 23, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tomou como base parecer da área técnica da Corte que rechaçou as alegações do PL sobre ‘mau funcionamento’ de 279,3 mil urnas. O Secretário de Tecnologia da Informação do TSE Júlio Valente Da Costa Júnior classificou como ‘inequivocadamente’ falsos os argumentos do partido do chefe do Executivo.

O laudo de 16 páginas foi produzido com o objetivo de ‘esclarecer o conjunto de informações equivocadas’ que constam do requerimento do PL e o ‘motivo pelo qual não há razão técnica para invalidar ou levantar suspeição sobre as votações registradas nas urnas de modelos 2009, 2010, 2011, 2013 e 2015’. A avaliação do servidor da Corte eleitoral foi a de que os argumentos apresentados pelo PL ‘não encontram respaldo nos fatos’, consistindo ‘interpretações equivocadas que não prosperam frente às reais funcionalidades do processo eletrônico de votação’.

Bolsonaro e seu partido pediam ao Supremo a anulação dos votos apenas do segundo turno contabilizados em 279,3 mil urnas eletrônicas de modelos anteriores a 2020 – equipamentos usados quando o presidente foi eleito em 2018. O Secretário de Tecnologia da Informação frisou como ‘não há motivo técnico minimamente razoável’ para ignorar tais votos.

“Não há nenhum motivo técnico minimamente razoável para ignorar os votos de urnas de modelos anteriores ao modelo 2020 ou, ainda, fazê-lo somente para o 2º turno. Ainda que fosse encontrada falha grave em algum conjunto de urnas, considerando que o ecossistema de hardware e software é idêntico entre turnos, não há sentido em salvaguardar um em detrimento de outro”, indicou Júlio Valente Da Costa Júnior.

O relatório foi citado na decisão em que o ministro Alexandre de Moraes classificou o pedido do presidente e de seu partido como “inconsequente”, “esdrúxulo”, “ilícito” e “ostensivamente atentatório ao Estado Democrático de Direito”. “Os partidos políticos, financiados basicamente por recursos públicos, são autônomos e instrumentos da democracia, sendo inconcebível e inconstitucional que sejam utilizados para satisfação de interesses pessoais antidemocráticos e atentatórios ao Estado de Direito”, escreveu o presidente do TSE.

No relatório técnico, o secretário de Tecnologia da Informação listou os três pontos suscitados pelo partido de Bolsonaro, rebatendo as alegações uma a uma. O PL sustentou, por exemplo, que urnas de modelos anteriores a 2015 teriam a rastreabilidade prejudicada. Em resposta, a área técnica do TSE ressaltou que é ‘descabida qualquer afirmação de que todas as urnas possuem o mesmo número ou que não possuem patrimônio que as diferencie umas das outras’.

A Corte esclareceu que cada urna possui um número identificação único, usado pelo software do equipamento em diversos momentos, além de ter um certificado digital que a distingue das demais. Júlio Valente explicou como cada urna ‘chancela tudo o que produz, garantindo a identidade das informações produzidas em três documentos principais: o log de eventos, o registro digital do voto e o boletim de urna’. Além disso, o servidor listou uma série de outros mecanismos que ‘asseguram a resiliência e a robustez do sistema eletrônico de votação’.

O Secretário de Tecnologia da Informação do TSE também afastou as alegações de supostas violação do sigilo do voto e discrepâncias de votação. Com relação à primeira, Júlio ressalta que o software de votação não registra qualquer tipo de identificação do eleitor, não sendo possível rastrear as escolhas de determinada pessoa. Já quanto ao segundo argumento, o servidor da Corte eleitoral explicou como ele não encontra ‘respaldo estatístico’.

O documento que deu base à decisão de Alexandre de Moraes ainda listou informações adicionais sobre as eleições, dando destaque às etapas de conferência e fiscalização do processo. No ciclo 2021-2022 foram disponibilizadas pela Corte 40 oportunidades de fiscalização do sistema eletrônico de votação, que contaram com a participação de diversas instituições e missões de observação.

Entre as entidades que participaram da fase de acompanhamento e especificação do desenvolvimento dos sistemas eleitorais, por exemplo, estão a Polícia Federal, o Ministério da Defesa, o PTB, o Senado Federal, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Ministério Público Eleitoral, a Controladoria-Geral da União, e o PV. O PL também consta na lista de participantes da atividade, mas, segundo o TSE, apesar de comparecer à Corte em data marcada, ‘não exerceu as atividades de inspeção dos códigos-fonte no TSE’.

Pepita Ortega e Rayssa Motta / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 0905

Lula se aproxima de generais demitidos por Bolsonaro, mas ainda enfrenta dificuldades com militares

Oficiais que integraram cúpula das Forças Armadas no atual governo estão na lista do grupo que tratará da Defesa no gabinete de transição



Fernando Azevedo e Silva foi o primeiro ministro da Defesa de Jair Bolsonaro; ele deixou o governo no primeiro semestre do ano passado. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

O gabinete de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva buscou contato direto com oficiais-generais que passaram por cargos de chefia nas Forças Armadas, não só em governos petistas, mas também na antiga cúpula militar da gestão de Jair Bolsonaro. Interlocutores do presidente eleito já estabeleceram canais com ex-comandantes, como Edson Leal Pujol, do Exército, e com o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva.

Um conselheiro de Lula que atua nas tratativas disse ao Estadão que todos os demais ex-comandantes estão sendo procurados. A lista inclui os últimos comandantes-gerais da Força Aérea Brasileira (FAB), brigadeiro Antônio Carlos Moretti Bermudez, e da Marinha, almirante Ilques Barbosa Junior.

O ex-ministro e os três oficiais-generais da reserva deixaram o governo Bolsonaro em março de 2021, numa intervenção sem precedentes do Palácio do Planalto sobre a cúpula militar. Todos foram exonerados após cobranças de apoio político feitas por Bolsonaro. Na ocasião, Azevedo e Silva afirmou ter preservado as Forças Armadas como instituição de Estado.

O Estadão apurou que, embora os generais Pujol e Azevedo e Silva tenham se mostrado dispostos a opinar em consultas informais, a tendência é de que eles não aceitem ser efetivamente nomeados na equipe da transição. Existe, porém, uma tentativa do futuro governo de articular ao menos uma reunião com os generais de quatro-estrelas.

Os antigos comandantes que chefiaram o Exército, a Aeronáutica e a Marinha nos governos do PT também voltaram a ser consultados por interlocutores de Lula. Entre eles estão o general Enzo Peri, o brigadeiro Juniti Saito e os almirantes Julio Soares de Moura Neto e Eduardo Bacellar Leal Ferreira.

Além dos militares, há outros nomes sugeridos que compõem uma lista já esboçada, inclusive civis, como o atual presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), Roberto Alves Gallo Filho.

Impasse

Lula vive um impasse na formação da equipe que deverá se relacionar com as Forças Armadas, uma das únicas ainda não designada. Como mostrou o Estadão na semana passada, os ex-comandantes já estavam sendo consultados por emissários de Lula para opinar sobre a formação da equipe e temas da área, mas uma ala argumentava que os contatos deveriam se restringir apenas a ex-integrantes de governos do PT. Outros defendiam apenas civis no núcleo da Defesa.

Coordenadores da transição de governo dizem que caberá a Lula arbitrar a formação do grupo da Defesa, que terá civis e militares, como disse o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. Havia a expectativa de que Lula anunciasse os integrantes da equipe nesta semana, mas os planos foram alterados porque ele não viajou a Brasília, por recomendação médica, para poupar a voz após cirurgia.

Um dos interlocutores do gabinete de transição é o general da reserva do Exército Marcos Edson Gonçalves Dias, que foi chefe da segurança presidencial durante os mandatos de Lula. G. Dias, como é conhecido, tem sido a principal ponte de contato com os militares.

O general estava cotado para o grupo de Inteligência Estratégica, assim como o delegado da Polícia Federal Andrei Passos. Esse núcleo temático não chegou a ser anunciado ainda e já houve sugestões para que fosse integrado ao grupo da Defesa, também pendente. Há dúvidas, porém, sobre como seria o seu funcionamento e formato.

O próprio G. Dias avalia que não seria viável receber relatórios com informações sigilosas da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ou do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Mesmo assim, ele já recebeu um telefonema do Palácio do Planalto para tratar da transição com a equipe do general Augusto Heleno, ministro do GSI.

Lula também vem sendo aconselhado pelos ex-ministros da Defesa Jaques Wagner, Celso Amorim e Nelson Jobim e por parlamentares com trânsito na caserna. O ex-ministro Aloizio Mercadante, filho do ex-general Oswaldo Muniz Oliva, afirmou haver um problema institucional com as Forças Armadas, mas minimizou o adiamento na escolha da equipe.

Desde a campanha, Lula passa por dificuldades de acesso às cúpulas militares, principalmente as da ativa. Enfrenta resistências ideológicas e reconhece nos quartéis uma simpatia por Bolsonaro, que foi capitão do Exército. Bolsonaro deu inédito protagonismo político aos militares, que ocuparam cerca de 6 mil cargos na Esplanada dos Ministérios. Lula já disse que pretende reverter o aparelhamento.

Saída antecipada

Além da indefinição sobre a equipe, Lula pode ter de lidar em breve com um ato potencialmente polêmico. Como mostrou o Estadão, os atuais comandantes das Forças Armadas já sinalizaram que planejam deixar os cargos às vésperas da posse de Lula. Não se trataria de uma renúncia coletiva, mas da passagem de comando, em datas e cerimônias distintas. Essa saída antecipada não ocorreu em trocas de governo anteriores.

O brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, disse a integrantes de sua equipe que deseja deixar o cargo em dezembro. Ele chegou a convidar oficiais-generais para sua futura passagem de comando, que deve ocorrer às vésperas do Natal, em 23 de dezembro. Seria dias depois de outra cerimônia importante da Força Aérea: a entrega e entrada em operação de quatro caças novos Gripen ao 1º Grupo de Defesa Aérea, em Anápolis (GO).

Oficiais-generais da ativa com conhecimento do assunto dizem que o gesto deve se repetir no Exército e na Marinha. As Forças não confirmam. Generais que trabalham com o comandante Marco Antônio Freire Gomes alegam que “nada foi definido”. A assessoria do almirante Almir Garnier Santos não respondeu.

A saída antecipada seria uma forma de prestigiar o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, para que ele fosse a autoridade a participar das cerimônias e recebesse homenagem. Segundo um general, não seria um ato deliberado para atingir Lula. A possibilidade ainda é vista com desconfiança na transição de governo.

O atual ministro da Defesa da gestão Bolsonaro, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira 

Militares falam em possível pressão vinda dos Altos-Comandos. Auxiliares de Lula afirmam ver no caso uma jogada política do Planalto. A atitude demonstraria apoio a Bolsonaro, já manifestado pelos comandantes da FAB e da Marinha às vésperas da eleição, em postagens nas redes sociais.

Nas palavras de um oficial da Defesa, eles “entrariam para a história” como militares que não quiseram transmitir o comando para colegas de farda, não para rivais políticos. É uma comparação com a recusa de Bolsonaro em se comprometer a passar a faixa a Lula.

Embora as cúpulas militares se digam legalistas, os atuais comandantes-gerais das Forças Armadas emitiram nota conjunta, recentemente, em defesa de manifestações, na frente dos quartéis, que tinham como principal pauta o protesto contra a eleição de Lula e um pedido de intervenção militar.

Caso a saída antecipada se confirme, o militar mais antigo de cada Força assumiria interinamente. Diante desse cenário, o Estadão ouviu de um dos mais importantes conselheiros de Lula, sob reserva, que o ideal seria a indicação, o quanto antes, de quem será o ministro da Defesa – um civil – e dos próximos comandantes-gerais. A aposta é a de que Lula escolherá quem está há mais tempo no topo da carreira.

Esse mesmo integrante da transição afirmou que transmissões de cargos de comando militar costumam demorar algumas semanas. Não seria ruim para o presidente eleito, portanto, ter os próximos comandantes já em atuação em 1.º de janeiro de 2023. Já a transição no âmbito político envolve apenas o Ministério da Defesa.

Emissários do governo eleito ouviram de generais que não agradaria às cúpulas militares repetir na Defesa a fórmula de embaixadores no comando da pasta. Além disso, eles também não veem com bons olhos a indicação de um nome oriundo do Supremo Tribunal Federal (STF), que é, atualmente, alvo de críticas na caserna.

Felipe Frazão / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 08h50

Comandantes das Forças Armadas planejam dar posse aos indicados por Lula já em dezembro

Força Aérea marcou para o dia 23 a passagem de comando para o brigadeiro escolhido por petista; Marinha e Exército estudam fazer o mesmo em outras datas

Os comandantes das Forças Armadas em 2011, durante o governo Dilma, quando foi criada a Comissão da Verdade: almirante Julio Soares de Moura Neto, general Enzo Martins Peri, e o brigadeiro Juniti Saito, além do então chefe do Estado Maior, José Carlos De Nardi. Do grupo, apenas Saito ainda não confirmou se participa da equipe de transição do novo governo Lula. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Os comandantes das Forças Armadas planejam passar seus cargos para os oficiais-generais indicados pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva já em dezembro. A ideia é que o petista tome posse em 1.º de janeiro já com os comandantes de sua gestão. A Força Aérea tem até data marcada para a cerimônia de transmissão de cargo: dia 23 de dezembro. As demais Forças pretendem fazer o mesmo em datas diferentes.

Assim, a passagem de bastão de um governo para o outro começaria pelas Forças Armadas. Oficiais-generais ouvidos pelo Estadão consideram que não haveria problema nem mesmo legal, pois dizem acreditar que o presidente Jair Bolsonaro não se oporia a publicar os decretos para nomear os escolhidos por Lula. Na transição, o plano dos generais causou estranheza. É que os comandantes tomariam posse antes mesmo do ministro da Defesa, que deve ser um civil.

A medida evitaria quaisquer constrangimentos aos atuais comandantes, caso haja alguma ação ou protesto contra a posse do presidente eleito. Dentro das três Forças se nega a ideia de que a decisão seja uma forma de os atuais comandantes não terem de se submeter, ainda que por alguns dias, ao governo Lula. Acredita-se que a nova gestão deve “olhar para frente” e deixar o atual ambiente conturbado para trás, priorizando a modernização das Forças Armadas, sem envolvê-las na política partidária, como tem tentado o atual chefe do Executivo.

Foi só no 11.º dia da gestão de Bolsonaro que houve a passagem de comando do general Eduardo Villas Bôas para o general Edson Leal Pujol, o primeiro dos três generais que comandaram o Exército durante o atual governo. Foi o último dos comandantes militares a tomar posse no início do atual governo. O primeiro foi o brigadeiro Antônio Carlos Moretti Bermudez, em 4 de janeiro. O segundo foi o almirante Ilques Barbosa Júnior, em 9 de janeiro. Todos foram empossados depois de o general Fernando Azevedo e Silva assumir como ministro da Defesa.

Transição

Os comandantes das Forças já informaram ao senador Jaques Wagner (PT-BA) que aguardam apenas a designação dos responsáveis pela transição na área da Defesa para iniciar o processo. Os nomes do Grupo Técnico no governo de transição devem ser divulgados oficialmente ainda nesta quinta ou sexta-feira. A equipe de transição fez contatos com ex-comandantes de cada uma das Forças sobre a disposição de eles participarem do processo. Inclusive com aqueles demitidos por Bolsonaro, como mostrou o Estadão, a exemplo do general Edson Leal Pujol, do Exército, e do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva.

Os comandantes das Forças Armadas em 2011, durante o governo Dilma, quando foi criada a Comissão da Verdade: almirante Julio Soares de Moura Neto, general Enzo Martins Peri, e o brigadeiro Juniti Saito, além do então chefe do Estado Maior, José Carlos De Nardi. Do grupo, apenas Saito ainda não confirmou se participa da equipe de transição do novo governo Lula.

Os comandantes das Forças Armadas em 2011, durante o governo Dilma, quando foi criada a Comissão da Verdade: almirante Julio Soares de Moura Neto, general Enzo Martins Peri, e o brigadeiro Juniti Saito, além do então chefe do Estado Maior, José Carlos De Nardi. Do grupo, apenas Saito ainda não confirmou se participa da equipe de transição do novo governo Lula. Foto: Ueslei Marcelino/Reuters

Os nomes foram revelados ontem pelo Valor e confirmados pelo Estadão. Entre eles estão os generais Enzo Peri, que comandou o Exército de 2007 a 2015 e o general José Carlos de Nardi, que foi chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas – este último aceitou nesta quarta-feira, 23, o convite. Na Marinha, o almirante Júlio Soares de Moura Neto, que a comandou de 2007 a 2015. No caso da Marinha, pretende-se ainda um nome que esteja vinculado à área da energia nuclear, assim como na FAB a transição procura um brigadeiro ligado à área de ciência e tecnologia.

A transição convidou ainda o tenente-brigadeiro Juniti Saito, que comandou a FAB de 2007 a 2015, mas sua participação ainda não era certa para compor o grupo, assim como foram sondados para participar da equipe os professores Manuel Domingos Neto, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), e Adriana Marques, coordenadora do Laboratório de Estudos de Segurança e Defesa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Escolhas

Entre conselheiros do presidente eleito existe a ideia de que a escolha dos novos comandantes recaia sobre os três oficiais mais antigos de cada Força. No caso do Exército, o nome mais provável para o cargo é o do general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, atual comandante militar do Sudeste. Tomás foi ajudante de ordens dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, de quem se tornou amigo. Foi ainda chefe de gabinete do general Eduardo Villas Bôas.

No caso da Aeronáutica, a escolha recairia em Marcelo Kanitz Damasceno, atual chefe do Estado-Maior da FAB. Além do senador Jaques Wagner, os ex-ministros da Defesa Celso Amorim e Nelson Jobim têm servido de intermediários entre o novo governo e os militares.

Como antecipou o Estadão, no dia 11 de novembro, o almirante de esquadra Almir Garnier Santos, comandante da Marinha, o general Marco Antônio Freire Gomes, comandante do Exército, e o tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior, comandante da Aeronáutica, publicaram nota conjunta sem a assinatura do atual ministro da Defesa, general Paulo Sérgio de Oliveira, na qual defenderam a garantia de manifestações pacíficas e condenaram “restrições a direitos por parte de agentes públicos” e “excessos cometidos” em atos pelo País – “que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública”.

Eles estavam se referindo às manifestações em estradas e na porta de quartéis feitas por apoiadores de Bolsonaro que buscavam impedir a posse do presidente eleito. A manifestação dos comandantes levou a reações de políticos, como a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann.

Em publicação no Twitter, a petista afirmou que os chefes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica não devem se envolver em política. “Não é papel dos comandantes militares opinar sobre o processo político, muito menos sobre a atuação das instituições republicanas”, afirmou. Gleisi ainda declarou que a liberdade de manifestação “não se aplica a atos contra a democracia, que devem ser tratados pelo nome: golpismo”.

Marcelo Godoy / O Estado de S. Paulo, em 24.11.22, às 08h33

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Atuação de Alexandre de Moraes põe à prova teoria da 'democracia militante'

Tese foi proposta por alemão em 1937; para estudiosos, STF e TSE terão que rever ações de 2022 em momento de normalidade

O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, em reunião com procuradores para tratar de protestos antidemocráticos - Pedro Ladeira - 8.nov.2022/Folhapress

Pouco discutido no Brasil até dois anos atrás, um princípio idealizado na Alemanha há mais de oito décadas tem sido usado no meio jurídico para analisar as ações dos tribunais superiores, em especial do ministro Alexandre de Moraes, diante dos ataques às instituições e ao sistema eleitoral no Brasil.

Vista como necessária por muitos, a teoria da "democracia militante" também é avaliada com receio por outros, pelo risco de servir de pretexto para eventuais abusos.

Exposta por Karl Loewenstein (1891-1973) em texto de 1937, ela defende que o sistema democrático tenha mecanismos de defesa para garantir sua própria sobrevivência —entre eles, a restrição de direitos políticos de pessoas que atentem contra a democracia e a repressão a atividades que façam o mesmo.

Por trás da ideia, criada no contexto da ascensão do nazismo e do fascismo na Europa, está o entendimento de que a própria democracia, por excesso de tolerância, viabiliza a chegada ao poder de líderes que acabam por miná-la.

Mais de 80 anos após a publicação do texto, a ideia de democracia militante passou a aparecer no debate público brasileiro diante da reação do Judiciário aos ataques do presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores a outros Poderes e ao sistema eleitoral.

Entre as ações do STF (Supremo Tribunal Federal) e do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) que suscitaram a comparação com a teoria alemã, estão os inquéritos das milícias digitais e dos atos antidemocráticos, as determinações de bloqueios de contas em redes sociais e a ampliação dos poderes do tribunal eleitoral no combate à desinformação.

A teoria de Loewenstein já foi citada explicitamente pelos ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes nos últimos anos. Não se tem notícia de que Moraes, conhecedor da obra do alemão, tenha feito o mesmo.

O fato é que, conscientemente ou não, ele está claramente aplicando o princípio da democracia militante ao contexto atual, diz João Gabriel Madeira Pontes, autor de "Democracia militante em tempos de crise" (ed. Lumen Juris, 2020), fruto de seu mestrado em direito público pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Pontes tem críticas pontuais a decisões que considera desproporcionais, como a operação que mirou empresários que se manifestaram a favor de um golpe em um grupo de WhatsApp. Ainda assim, de forma geral ele avalia como adequadas as ações de Moraes.

Para o advogado, a democracia no país estaria em situação muito mais delicada sem inquéritos como o das milícias digitais e dos atos antidemocráticos. Mas "como o Supremo Tribunal Federal vai aplicar esses precedentes num cenário de normalidade é uma preocupação legítima", pondera.

Em sua opinião, o STF terá que fazer esforço no futuro de requalificar esses precedentes como "jurisprudência de crise", para evitar que sirvam de justificativa para abusos.

Sua principal preocupação é com restrições à liberdade de expressão.

"Princípios constitucionais não são ponderados no vácuo. Entre liberdade de expressão e sobrevivência da democracia, a democracia ganha mais peso na ponderação", diz. "Mas, em período de normalidade, é preciso muito cuidado com a regulação de discurso."

Professor de direito penal da Universidade Humboldt, no país berço da teoria da democracia militante, o brasileiro Alaor Leite avalia que o STF, o TSE e Moraes, em particular, aplicaram uma versão bem brasileira do conceito, que ele prefere chamar de "democracia combativa".

A primeira especificidade do caso brasileiro, afirma, é que o princípio foi usado como defesa a ataques e ameaças de alguém que já estava no poder e não como originalmente pensado, para prevenir a ascensão de um autocrata.

Outra singularidade é o fato de as decisões do Judiciário terem sido tomadas em meio a um processo eleitoral em curso.

Até por isso, ele afirma que ainda é cedo para definir se elas foram de todo legítimas ou não, uma vez que as manifestações de caráter golpista ainda ocorrem, bem como questionamentos ao processo eleitoral, e ainda não se sabe tudo o que está por trás desse movimento, como financiadores e o papel de autoridades.

"A democracia alemã foi ao inferno e voltou com uma mensagem de nunca mais repetir o que aconteceu, reconstruir as instituições e conjugar a proteção com os pilares do Estado de Direito", diz. "No Brasil, estamos assistindo a uma democracia combativa ser construída diante de uma ameaça real ainda em curso", diz.

Isso não o impede de afirmar sua concordância com a necessidade da aplicação de princípios da democracia militante no contexto atual.

Entre as razões para isso, ele cita as ameaças de Bolsonaro ao sistema de votação, a tentativa de tumultuar o processo com o duvidoso monitoramento das inserções de rádio na campanha e, em especial, a atuação da Polícia Rodoviária Federal no dia da eleição, com abordagens a ônibus concentradas na região onde o adversário do presidente era o favorito.

Necessária ou não, a teoria da democracia militante também é vista como perigosa por alguns estudiosos.

Em artigo de 2017, Carlo Accetti e Ian Zuckerman, professores respectivamente da City University of New York (Cuny) e da Universidade Stanford, nos EUA, argumentam que a definição de quem são os inimigos da democracia é por demais arbitrária, e que restringir a liberdade deles dá margem a autoritarismo e não a mais democracia.

"Nossa democracia não milita", escreveu em maio do ano passado o colunista da Folha Demétrio Magnoli ao criticar a aplicação da teoria no Brasil e apontar riscos na então recém-aprovada legislação dos crimes contra o Estado de Direito, que substituiu a Lei de Segurança Nacional.

É por causa do risco de que a democracia militante possa abrir margem para abusos que mesmo acadêmicos que concordam com seu uso defendem que o país reexamine em algum momento a jurisprudência criada na atual conjuntura.

Para Leite, alguns entendimentos vieram para ficar, como a limitação da imunidade parlamentar entendida no caso Daniel Silveira e o veto a portar armas perto de seções eleitorais.

Já as questões relativas à remoção de conteúdo em redes sociais, em sua opinião, devem ser de preferência objeto de um arcabouço legal mais claro a ser definido pelo Congresso.

Outra medida para evitar concentração de poder no Judiciário, sugerida por Pontes, é estabelecer para a Procuradoria-Geral da República mesma regra que vale para ministérios públicos estaduais: indicações de arquivamento são analisadas por um conselho superior. Ela evitaria a inação do órgão, vista durante o processo eleitoral.

Além disso, eventual interposição de quarentena para nomeação do procurador-geral como ministro do STF poderia reduzir o incentivo para uma atuação alinhada com o governo por razões não republicanas.

Ex-subprocuradora-geral da República e defensora da aplicação da democracia militante, Deborah Duprat também avalia ser necessário, no caso de volta à normalidade, um reexame das decisões proferidas no atual contexto, para que sejam usadas como justificativa de precedente para abusos.

"A noção de precedente pressupõe um ambiente que se reproduz", afirma.

Bolsonaristas promovem atos antidemocráticos em SP, Rio e Brasília

Angela Pinho para a Folha de S. Paulo (edição impressa), 21.11.22

Entenda a escalada golpista de Bolsonaro e suas possíveis consequências

Especialistas veem banalização nas ameaças, sem reação à altura dos Poderes, e avaliam que é preciso levá-las a sério


No começo, em frente ao Forte Apache, o QG do Exército, em Brasília, discursando contra o Centrão. À sua frente, os primeiros ensaios dos atos antidemocráticos.

Apesar de ser conhecido o modus operandi do presidente Jair Bolsonaro, que radicaliza seu discurso sempre que se vê sob pressão, suas repetidas declarações de ameaças à realização das eleições de 2022 têm gerado cada vez mais preocupação de uma tentativa de golpe.

Especialistas em direito e ciências sociais consideram negativa a banalização e a escalada deste tipo de discurso golpista sem que haja uma reação à altura por parte das demais instituições democráticas.

Por um lado, há incerteza quanto a se Bolsonaro teria ou não apoio suficiente para ser bem-sucedido em eventual tentativa de se manter no poder ao arrepio da lei.

Por outro lado, torna-se cada vez mais próxima da unanimidade a avaliação de que é preciso levar a sério o risco de que, em um cenário desfavorável, ele saia da retórica e chegue às vias de fato.

Entenda a escalada do discurso de Bolsonaro e como especialistas avaliam a situação.

Relembre dias de fúria de Bolsonaro

Quais falas recentes subiram a temperatura da crise? Pressionado pela CPI da Covid, pelas ruas e por pesquisas que mostram aumento de sua reprovação no Planalto e derrota no cenário eleitoral de 2022, Bolsonaro subiu a aposta e intensificou seu discurso golpista.

Na última sexta-feira (9), além de atacar diretamente o presidente do TSE, a quem chamou de "idiota" e "imbecil", Bolsonaro disse que a fraude está na corte eleitoral e, em tom de ameaça, acrescentou que poderia não haver eleições em 2022.

"Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar, no voto auditável e confiável. Dessa forma [atual], corremos o risco de não termos eleição no ano que vem."

No dia anterior, o mandatário já havia feito uma ameaça semelhante: "Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições".

Diretor da Faculdade de Direito da USP e professor de direito do Estado, Floriano de Azevedo Marques Neto afirma que a frase não pode ser tolerada.

“Uma fala como essa é absolutamente inaceitável vinda de um chefe de um dos Poderes, que jura à Constituição e jura, portanto, assegurar a permanência do Estado de Direito. É uma declaração sem precedentes, tanto do ponto de vista da sua inconsistência, quanto da sua gravidade”, diz.

Falas desacreditando o sistema eleitoral já faziam parte da retórica do presidente desde 2018, quando dizia ter sido eleito no 1º turno, declaração que repetiria outra vezes, mas sem nunca apresentar provas. Em janeiro deste ano, o presidente afirmou que sem o voto impresso, o Brasil poderia viver, em 2022, algo pior do que os Estados Unidos —onde apoiadores insuflados por Trump invadiram o Congresso.

Qual é a discussão atual sobre o voto impresso? Em maio deste ano, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), instalou uma comissão especial para debater uma proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre o tema.

Na prática, não se trata do voto impresso diretamente, mas de um comprovante do voto dado na urna eletrônica e com o qual o eleitor não poderia ter contato. O comprovante impresso seria uma forma extra de auditoria (as urnas eletrônicas já são auditadas em todas as eleições).

Independentemente do mérito da proposta, implementá-la em 100% das urnas até as eleições de 2022 já seria pouco provável, devido à complexidade da tarefa. Além disso, é improvável que a PEC avance na Câmara e no Senado.

Dado o contexto atual e as diferentes medidas de auditoria existentes na urna eletrônica, além da inexistência de indícios de fraudes, especialistas veem a discussão da pauta neste momento como meio de jogar combustível na movimentação golpista de Bolsonaro.

O presidente, insistindo em afirmar que houve fraudes em eleições anteriores, considera a medida a única forma de ter no país o que chama de eleições limpas.

Ele, no entanto, não se utiliza dos meios institucionais para questionar as eleições, seja apresentando as supostas provas que afirma ter ou por um pedido de auditoria.

Qual o histórico de falas de Bolsonaro sobre golpe e democracia? Não é de hoje que o presidente flerta com o golpismo ou faz declarações contrárias à democracia. Como governante, ele mantém este tipo de discurso.

"Alguns acham que eu posso fazer tudo. Se tudo tivesse que depender de mim, não seria este o regime que nós estaríamos vivendo. E apesar de tudo eu represento a democracia no Brasil”, afirmou em uma formatura de cadetes em fevereiro deste ano.

Em 2020, Bolsonaro participou de manifestações que defendiam a intervenção militar.

O então chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, chegou a dar uma entrevista à revista Veja em que negou a possibilidade de um golpe, mas disse para não “esticar a corda".

No passado, em uma entrevista em 1999 quando ainda era deputado, Bolsonaro disse expressamente que, se fosse presidente, fecharia o Congresso.

"Não há menor dúvida, daria golpe no mesmo dia! Não funciona! E tenho certeza de que pelo menos 90% da população ia fazer festa, ia bater palma, porque não funciona", afirmou.

Quais outros elementos têm acendido um alerta? Um questionamento central e que já vinha sendo feito é o de se as Forças Armadas dariam ou não sustentação a uma eventual tentativa de golpe por parte de Bolsonaro.

Se a avaliação geral vinha sendo de que elas não ultrapassariam tal linha —mesmo estando fortemente presentes na composição do governo— a nota emitida contra o presidente da CPI, assinada pelos comandantes das três Forças e pelo ministro da Defesa, seguida pela entrevista do comandante da Aeronáutica ao jornal O Globo foram vistas como ameaças.

Para o presidente da ABED (Associação Brasileira de Estudos de Defesa) e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Eduardo Munhoz Svartman, o episódio é bastante grave.

“Não é admissível numa democracia que o ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas emitam ameaças dessa natureza. Isso não é admissível. Em outros países eles seriam exonerados imediatamente”.

O tom crítico da nota à atuação da CPI, mas sem menção às suspeitas de corrupção em negociações de vacinas envolvendo militares, chama atenção por si só, no entanto, ela ganha outros tons dado o contexto em que os autores da carta assumiram seus postos.

Em março, em atitude inédita, os então comandantes das Forças Armadas pediram renúncia conjunta, um dia depois de Bolsonaro demitir o general Fernando Azevedo do posto de ministro da Defesa.

A saída teria ocorrido justamente por Azevedo se contrapor à pressão de Bolsonaro, que queria apoio político das Forças, inclusive em relação a medidas de governadores no combate à pandemia.

Quais as ameaças de Bolsonaro envolvendo a pandemia? Bolsonaro por diversas vezes fez discursos ameaçando baixar um decreto e fazendo inclusive menção a estado de sítio, ainda que tal medida não comporte nenhuma comparação com as medidas de isolamento de governadores.

Em abril, durante entrevista em Manaus, afirmou: “O nosso Exército, as nossas Forças Armadas, se precisar iremos para a rua não para manter o povo dentro de casa, mas para reestabelecer todo o artigo 5º da Constituição. E se eu decretar isso vai ser cumprido".

Como explica a professora de direito Heloisa Fernandes Câmara, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), as situações para as quais Bolsonaro ameaçava utilizar instrumentos excepcionais da Constituição não correspondem àquelas previstas na lei.

Quais seriam possiveis caminhos de um golpe? É difícil prever o que poderia levar a uma quebra do Estado de Democrático de Direito, considerando que os caminhos são diversos.

“Golpe é ruptura do Estado Democrático. Ela pode se dar tanto do ponto de vista das forças militares nas ruas, de uma crescente corrosão das liberdades democráticas ou por uma intervenção parlamentar, ou do próprio presidente da República, baixando uma norma dizendo que não tem mais eleição”, diz Marques Neto (USP).

Segundo Heloisa (UFPR), dificilmente o presidente se valeria das medidas excepcionais da Constituição, como o estado de sítio e estado de defesa, para 2022, já que ambas dependem da aprovação do Congresso, e ela não vê os congressistas aprovando tal instrumento com o fim de impedir as eleições.

A professora afirma que, se o presidente tivesse de fato apoio suficiente para dar um golpe, não faria ameaças e alardes toda vez que está em baixa nas pesquisas, mas mesmo assim considera que o teor das falas não pode ser ignorado.

"É não achar que não é possível, mas tampouco considerar que tem mais força do que tem."

Bolsonaro em atos antidemocráticos em Brasília

Bolsonaro conseguiria colocar em prática seu plano golpista? Entre os especialistas entrevistados, é consenso de que as ameaças de Bolsonaro não podem ser tratadas como mera retórica. Apesar disso, eles questionam se Bolsonaro teria apoio suficiente para implementar um golpe e se manter no poder.

A organização das eleições é tarefa conferida pela Constituição à Justiça Eleitoral, não cabendo ao presidente decidir se elas serão ou não realizadas.

O professor de direito público da FGV-Rio Wallace Corbo aponta, por exemplo, que, no cenário hipotético de o presidente buscar anular os resultados das eleições por meio de um decreto ou de algum outro ato normativo, caberia aos demais Poderes agir.

"Se o presidente tomar qualquer ato que implique um exacerbamento das suas competências, o Congresso tem a função de fiscalizar e controlar o presidente."

Ele vê como fator importante a queda de popularidade de Bolsonaro e ressalta ainda a importância da manifestação popular, de modo a demonstrar o custo que as instituições, como o Congresso e as Forças Armadas, estariam assumindo ao apoiar um golpe.

"A única forma de garantir que uma decisão do STF ou do Congresso não vai ser desrespeitada, de garantir que os freios e contrapesos da nossa Constituição —que são os controles sobre um presidente— vão funcionar, isso só se garante numa democracia com o apoio do povo."

Considerando o golpe tradicional, com apoio das Forças Armadas, a questão é justamente se elas estariam a seu lado.

Para Svartman (Abed), ainda que parte das Forças Armadas estejam comprometidas com a retórica do presidente, há uma parcela de oficiais jovens preocupada com a crescente politização e insubordinação nas Forças Armadas e nas de segurança pública nos estados, o que torna o cenário preocupante.

Ele ressalta que, embora o presidente venha perdendo popularidade na população em geral, é preciso lembrar que Bolsonaro tem muitos apoiadores convictos que estão nas forças policiais e nas Forças Armadas e podem optar "por agir ou deixar de agir", a exemplo do que aconteceu nos Estados Unidos.

Em relação às polícias, os sinais de alerta, no país, estão os episódios cada vez mais recorrentes de quebra da hierarquia e de politização.

Como sintetizou reportagem recente da Folha, predomina, entre cientistas políticos e estudiosos da segurança pública, a ideia de que hoje não existiria articulação nacional para uma insurreição orquestrada pelas polícias.

Apesar disso, a avaliação é de que, ainda que elas não embarquem como um todo em uma aventura disruptiva, episódios isolados de insubordinação podem ocorrer e provocar tumultos, confusão e mortes.

Sabendo que Bolsonaro tem pretensões de dar um golpe, o que é possível fazer? Entrevistados consideram que as instituições precisam levar a sério as ameaças de Bolsonaro. Uma das reações seria o próprio impeachment.

Na avaliação da socióloga e professora da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) Fabiana Luci de Oliveira, do ponto de vista institucional, o estrago já foi feito em boa medida, dada a estratégia de Bolsonaro de deslegitimar as instituições democráticas.

Para ela, é preciso que as instituições reajam para além do discurso. "Me parece que a gente chegou a um ponto em que a retórica não vai segurar essa pressão que o presidente tem feito."

Após a subida de tom de Bolsonaro, a fala mais contudente veio do presidente do TSE que disse que qualquer tentativa de impedir a realização de eleições em 2022 “configura crime de responsabilidade”.

Cabe unicamente a Arthur Lira criar uma comissão para analisar um dos mais de 120 pedidos de impeachment que esperam em sua gaveta. O presidente da Câmara, no entanto, tem feito declarações sinalizando que não deve agir nesse sentido.

O CAMINHO DO IMPEACHMENT

O presidente da Câmara dos Deputados é o responsável por analisar pedidos de impeachment do presidente da República e encaminhá-los

O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é aliado de Jair Bolsonaro. Ele pode decidir sozinho o destino dos pedidos e não tem prazo para fazê-lo

Nos casos encaminhados, o mérito da denúncia deve ser analisado por uma comissão especial e depois pelo plenário da Câmara. São necessários os votos de pelo menos 342 dos 513 deputados para autorizar o Senado a abrir o processo

Iniciado o processo pelo Senado, o presidente é afastado do cargo até a conclusão do julgamento e é substituído pelo vice. Se for condenado por pelo menos 54 dos 81 senadores, perde o mandato

Os sete presidentes eleitos após a redemocratização do país foram alvo de pedidos de impeachment. Dois foram processados e afastados: Fernando Collor (1992), que renunciou antes da decisão final do Senado, e Dilma Rousseff (2016)

Renata Galf e Géssica Brandino, de São Paulo e Mogi das Cruzes (SP) para a Folha de S. Paulo (edição impressa), em 14.07.21.

domingo, 20 de novembro de 2022

Liberdade de expressão não é vale-tudo

Após quatro anos de bolsonarismo, é preciso recompor noção e exercício da liberdade de expressão. Há uma ideia equivocada sobre a palavra, como se fosse território da impunidade

Fanáticos de Bolsonaro nas portas dos quartéis pedem ditadura militar

Em 1988, o País restabeleceu, por meio da Constituição, a liberdade de expressão, de imprensa e de opinião. A censura da ditadura militar – definindo o que podia e o que não podia ser publicado, exposto ou escrito – ficava, assim, definitivamente extinta. Para impedir eventuais retrocessos no futuro, inseriu-se no texto constitucional uma cláusula pétrea sobre o tema: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”.

Dessa forma, no Estado brasileiro, sempre será “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (art. 5.º, IV), como sempre será “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5.º, IX). A garantia dessas liberdades de forma permanente é fonte de paz e tranquilidade. Que cada um possa se expressar, comunicando aos outros o que acredita, é aspiração humana fundamental: é parte essencial da dignidade humana, é elemento necessário do regime democrático.

Mas, justamente para que todos possam exercer suas liberdades fundamentais, a liberdade de expressão não é uma autorização para dizer impunemente o que bem entender. Há limites. A Constituição assegura, por exemplo, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas” – ou seja, a liberdade de expressão não dá direito a ofender. Por isso, o Código Penal prevê os crimes de calúnia, injúria e difamação. Todos têm direito a expressar sua opinião política, mas ninguém tem direito a caluniar, injuriar ou difamar quem quer que seja.

Outros exemplos de crimes previstos na lei penal envolvendo a comunicação são a injúria racial, a incitação ao crime, a comunicação falsa de crime e o ultraje ao culto religioso. Nada disso significa reduzir a liberdade de expressão. É antes o reconhecimento de que a palavra é importante e produz efeitos.

Todo esse arcabouço jurídico sobre a liberdade de expressão – suas garantias, seus limites e suas consequências – vem sofrendo um intenso e, em certa medida, inédito ataque nos últimos anos. A ameaça não é fruto de tentativas de emenda constitucional, inviáveis de prosperar em função da cláusula pétrea. O ataque é mais sutil e mais perigoso. Ele decorre de uma compreensão equivocada da ideia de liberdade de expressão, como se a palavra fosse território sem lei, isto é, como se houvesse um direito a falar o que bem entender, em um contexto de irrestrita irresponsabilidade.

O quadro atual é desafiador. Essa compreensão equivocada da liberdade de expressão não está mais restrita a pequenos grupos extremistas. Ela se difundiu. Fez-se cultura. A própria expansão da internet e das redes sociais, com a oferta de novos espaços de expressão, gerando novas percepções de liberdade, contribuiu para reforçar a ideia de que a palavra estaria imune não apenas a um controle prévio, mas à própria lei.

Tudo isso foi intensificado por Jair Bolsonaro ao longo de seus quatro anos na Presidência da República, ao transformar essa equivocada compreensão da liberdade de expressão em bandeira eleitoral. Não haveria limites, tampouco parâmetros objetivos. Sob o pretexto de liberdade, estaria assegurada ampla impunidade. Inúmeros, os exemplos envolvem desde negação de dados científicos e insinuações criminosas contra inimigos políticos até desinformação contra o regime democrático e o sistema de votação.

Agora, o País tem pela frente o desafio de resgatar a liberdade de expressão em sua dimensão de garantia e direito de todos. Ela não é instrumento de ataque de alguns que se acham mais espertos ou violentos. Nessa tarefa de recompor a noção e o exercício dessa garantia fundamental, o Poder Judiciário tem um papel especial, seja para evitar a impunidade de quem cometeu crimes, seja para ater-se aos limites de sua jurisdição – sempre lembrando que ao Estado não cabe organizar o debate público ou ser árbitro das ideias presentes numa sociedade. A liberdade de expressão é para valer, sem exceções.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 20.11.22, às 03h00

A democracia como desafio global

Diante de nós está a evidente tarefa de desagregar o consenso nacional-populista, esvaziando a base de massas do autoritarismo.

Fanáticos de Trump invadem e depredam a séde do Congresso Nacional

Menos desglobalizada do que parece, a política de diferentes países continua atravessada por riscos, tensões e até conjunturas críticas que podem ser comparadas, como as que, nas últimas semanas, marcaram as duas maiores democracias das Américas. Por aqui nos livramos da ameaça do segundo mandato do governante nacional-populista, quando costuma tomar forma não propriamente uma tradicional ditadura militar, mas um regime de controle estrito das alavancas do Estado e das instâncias da sociedade civil. Mais ao norte, nos Estados Unidos, desmentindo previsões sombrias, Joe Biden e seu partido ganharam tempo precioso até as eleições de 2024, livrando-se o presidente do destino que se reserva aos lame ducks, os governantes enfraquecidos em final de mandato.

Trata-se de dois países cujas circunstâncias, segundo insight do cientista político Jairo Nicolau, estão no ponto máximo de proximidade, a começar pela radical divisão da sociedade – e dos eleitores – e pela presença de atores com vocação subversiva. Em ambos os casos, líderes de extrema direita, com séquito de massas e traços de um fascismo reformulado, ou de um pós-fascismo, tomaram o lugar da direita constitucional, ameaçando sem nenhum pudor o mecanismo da alternância. Voto eletrônico ou impresso, eleições centralizadas ou descentralizadas, nada disso importa. O script é monotonamente previsível, os resultados só valem se o autocrata vencer.

Em cada um dos países ocorreram eleições diversas. Deixando de lado governos e Legislativos estaduais, observemos que a tarefa do presidente Biden consistia, essencialmente, em reduzir danos na Câmara dos Deputados e no Senado. Num tempo de antipolítica ou, em outras palavras, de política pretensamente “antissistema”, Biden teve a coragem de colocar no seu núcleo discursivo o tema da democracia. Coragem cívica, havemos de convir.

Ainda que sob pressão, a democracia de Biden não é frágil nem incapaz de iniciativas audaciosas, bastando ver o enfrentamento da crise econômica, do desafio climático ou de tragédias contemporâneas, como a selvagem agressão à Ucrânia. O modelo de Biden será – por ora e por algum tempo mais – inatingível, mas pode-se entrever a inspiração rooseveltiana que mostrou ser possível compatibilizar regulação progressista dos mercados e requisitos da sociedade aberta.

Se o dinamismo norte-americano vem do centro político – e não da esquerda de Bernie Sanders ou de versões mais novas, como a que Alexandria Ocasio-Cortez representa –, entre nós dá-se um movimento relativamente diferente, mas também promissor, sob a condição de ser trilhado com rigor e sem ambiguidade de nenhum tipo. Não por acaso, tiramos o pó de expressões como “frente ampla” e “frente democrática”, de largo emprego na época do regime ditatorial. E passamos a usá-las como recurso valioso para indicar a expectativa de uma nova atitude da esquerda petista e, consequentemente, vencer a disputa contra a direita populista de massas.

A frente ampla, em meados dos anos 1960, sinalizava que personalidades fortemente antagônicas podiam se unir na luta pela restauração do regime civil. Era o caso, com toda a certeza, de Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart. E a frente democrática que viria a se firmar alguns anos mais tarde, já nos anos 1970, pressupunha que a esquerda isolada não teria êxito naquela luta, menos ainda se estabelecesse como meta um quimérico “socialismo”. Ao contrário, sua parte mais clarividente iria aliar-se aos expoentes do liberalismo político, quem sabe deflagrando – imaginavam alguns – um processo interno de reavaliação de categorias e mesmo de partes consideráveis da sua visão de mundo.

Aqui e agora, no entanto, a iniciativa da frente só pode vir da esquerda política. Esta última é que, indo ao centro, deve assumir como missão existencial restaurar a República democrática gravemente ofendida a partir de 2019. A pergunta a que deve responder, sem descanso, gira em torno da possibilidade de haver, ou não, uma normal dialética política com a Nação partida ao meio. E, mais ainda, com esta “outra” metade constituída por concidadãos que se deixam em boa medida fanatizar por mitos arcaicos – como o “Deus, Pátria, família” da tradição fascista ou o medo-pânico de um comunismo fantasmagórico – e, por óbvio, se mostram avessos aos princípios liberal-democráticos que se propõem a todos os moradores da nossa casa comum, seja qual for o cômodo que nela queiram ocupar.

Posta a questão nestes termos, a resposta só pode ser perturbadora. Diante de nós está a evidente tarefa de desagregar o consenso nacional-populista, esvaziando a base de massas do autoritarismo. Mas, pensando bem, este é um desafio que hoje se coloca aproximadamente nos mesmos termos no Brasil, nos Estados Unidos e em muitas outras partes, pois vivemos um tempo de política irreversivelmente globalizada – um fato que serve de estímulo não só para a busca de alianças inéditas, como também para a obra urgente de estabilização das democracias e aprofundamento da democratização social.

Luiz Sérgio Henriques, o autor deste artigo, é tradutor  e ensaísta. É um doso organizadores das obras de Gramsci no Brasil. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 20.11.22, às 03h00

Nova provocação: Valdemar Costa Neto diz que PL vai pedir ao TSE invalidação de votos em urnas antigas

Presidente do partido de Jair Bolsonaro questiona modelos produzidos antes de 2020, mas afirmou que o PL não quer nova eleição

Valdemar Costa Neto na cerimônia de filiação de Jair Bolsonaro ao PL, em novembro de 2021. Foto: Neto Sousa/Estadão

Em vídeo divulgado nas redes sociais, o presidente do PL de Jair Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, afirmou que a sigla vai buscar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para tentar invalidar votos registrados em urnas produzidas até 2020. “Pelo estudo que nós fizemos, tem várias urnas que não podem ser consideradas”, disse ele neste sábado, 19. Costa Neto garantiu que o PL, vai propor essa análise ao TSE até a terça-feira, 22.

Ele afirmou que as urnas inválidas seriam as que foram produzidas até o ano de 2020, que supostamente teriam o mesmo número de patrimônio, o que, segundo ele, inviabilizaria uma fiscalização urna por urna. Ele alegou ainda que, de acordo com o estudo do partido, o problema pode ter atingido até 250 mil urnas.

Não há qualquer indício de fraude ou problema técnico no pleito, conforme já atestaram o Tribunal de Contas da União e as próprias Forças Armadas. Três missões internacionais de observação eleitoral também emitiram relatórios preliminares atestando a segurança das urnas eletrônicas, logo depois do primeiro turno.

Questionado no evento deste sábado sobre o porquê de essa demanda não ter sido avaliada antes das eleições, Costa Neto alegou que isso seria “culpa” dos funcionários do TSE e que a direção da Corte não teria conhecimento da questão.

O dirigente negou, entretanto, que o PL queira rever o pleito. “Não queremos nova eleição, não queremos agitar a vida do País, mas eles (TSE) têm que decidir o que vão fazer”, alegou.

Ao Estadão, a assessoria de imprensa do PL não deu detalhes sobre a intenção do partido, mas confirmou as afirmações feitas pelo presidente da sigla neste sábado.

Costa Neto menciona todas as urnas produzidas até 2020. Contudo, os aparelhos mais antigos, utilizados inclusive na eleição de 2018 em que Bolsonaro foi eleito, já haviam sido submetidos ao chamado Teste Público de Segurança (TPS) em anos anteriores. O modelo de 2020, por sua vez, foi submetido pelo TSE à análise de peritos de universidades federais neste ano.

Relatório do PL

Como o Estadão mostrou na semana passada, o PL preparou um relatório preliminar a ser apresentado ao TSE pedindo a invalidação de todos os resultados gerados em urnas eletrônicas de modelos produzidos antes de 2020. No entanto, segundo o engenheiro Carlos Rocha, do Instituto Voto Legal, envolvido na fiscalização, o estudo não estaria pronto. “O trabalho de fiscalização do PL termina em dezembro, está em andamento”, afirmou.

O texto do partido alega que o log — isto é, os registros eletrônicos — de modelos de urna de 2009, 2010, 2011, 2013 e 2015 não possui valor correto no campo de código de identificação da urna, o que tornaria impossível a ligação dos arquivos com a urna física, diferente dos modelos de 2020.

Os argumentos são similares os apresentados em uma live realizada por um canal argentino controlado por um apoiador de Bolsonaro no início do mês. O Estadão mostrou que é falso que o relatório apresentado prove fraude eleitoral.

Insistência de Bolsonaro

Em sua fala deste sábado, Valdemar da Costa Neto disse que “tinha tranquilidade” a respeito dos resultados das urnas eletrônicas. “Eu disputo eleições desde 1990 e as urnas estão aí desde 94. Nunca tive preocupação com isso”, alegou. Contudo, seu posicionamento mudou depois do que ele chamou de “insistência de Bolsonaro para ver esse assunto”. O presidente, derrotado no segundo turno das eleições deste ano, teria pressionado o partido para completar o estudo.

“Eles insistiram comigo, aí insisti com o pessoal, eles foram lá e descobriram isso aí”, disse Costa Neto sobre o suposto problema nas urnas fabricadas até 2020.

Rubens Anater para o Estado de S. Paulo, em 19.11.22, à 21h06

PRF registra 11 interdições totais e 19 parciais no Mato Grosso

Caminhoneiros bolsonaristas sugerem greve e novas interrupções de tráfego em estradas federais; atos ocorrem após decisão do STF contra empresas suspeitas de financiar atos antidemocráticos; número abaixou em relação à parcial anterior e representantes da categoria negam apoiar movimento


Caminhoneiros fecharam o lado brasileiro da fronteira com a Bolívia, em Corumbá, a 419 km de Campo Grande.Trecho na fronteira é bloqueada em novo protesto. (Crédito: Anderson Gallo/Diário Corumbaense) 

Após a retomada dos protestos contra o resultado da eleição presidencial em rodovias, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) identificou aumento no número total de bloqueios desde a sexta-feira, 19. Boletim divulgado na tarde deste domingo, 20, lista 11 interdições totais e 19 parciais em estradas federais, todas no Mato Grosso. As manifestações, que se somam aos atos promovidos por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) em frente de quartéis, chegaram a 30. A corporação também informou que foram desfeitas 1.227 manifestações.

Bolsonaristas organizaram novas interdições em estradas após o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinar o bloqueio de contas de empresários suspeitos de financiar os atos antidemocráticos do início de novembro. Segundo a PRF, não há obstruções em rodovias federais de São Paulo. A concessionária CCR Via Oeste informou não ter bloqueios nas rodovias Castello Branco, Raposo Tavares e Castelinho.

Bolsonaro não fez 'Carta à Nação' para respaldar manifestações, ao contrário do que afirma vídeo

Na sexta-feira, manifestantes incendiaram um carro na rodovia BR-163, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. O automóvel passava pelo local quando o grupo colocou fogo em uma barricada de pneus. O motorista não ficou ferido, mas o carro foi destruído pelo incêndio.

Após a divulgação do resultado das eleições, no dia 30 de outubro, manifestantes bolsonaristas fecharam rodovias em todo o País, causando diversos transtornos. Os bloqueios chegaram a afetar o fornecimento de supermercados e até o transporte de insumos de medicamentos e vacinas. A prefeitura de Limeira decretou situação de emergência pública devido à escassez de combustíveis acarretada pelos protestos. A PRF informou que no dia 9 de novembro já não havia mais nenhuma ocorrência de interdição em estradas.

Caminhoneiros bolsonaristas sugerem greve, mas representantes da categoria negam apoiar movimento

Áudios que circulam em grupos bolsonaristas dão conta de caminhoneiros que sugerem “trancar” as rodovias e, inclusive, resistir à eventual ação policial. Os áudios sugerem obstruir vias em municípios de Mato Grosso, como Sinop e Campo Novo do Parecis.

As ameaças, no entanto, têm sido vistas por muitos outros caminhoneiros como piada. Nem todos estão dispostos a entrar nessa briga, sobretudo porque são empresários que estão bancando o movimento. Um dos caminhoneiros diz em uma das mensagens: “Eles compraram muitos caminhões para não depender de terceiros. Enquanto isso, os heróis (autônomos) só têm uma casinha de lata para morar.”

O presidente da Associação Brasileira de Condutores de Veículos Automotivos (Abrava), Wallace Landim (conhecido como Chorão), afirmou ao Estadão que a categoria não apoia os bloqueios, que, segundo ele, são planejados por uma pequena parcela de caminhoneiros. “Não é um movimento dos caminhoneiros, é uma ala extremista (...) está sendo cometido um crime”, disse.

Bolsonaristas fazem bloqueios rodovias em São Paulo. 

Há, ainda, a suspeita de que os bloqueios estejam sendo encorajados pelos empregadores desses motoristas, no caso daqueles que trabalham para as empresas que tiveram suas contas bloqueadas pelo STF. Se confirmada, a prática caracteriza locaute e prevê responsabilização legal.

A Abrava admitiu acionar a Justiça para pedir indenização aos caminhoneiros autônomos que sejam impedidos de circular pelas rodovias. “Eu já ouvi caminhoneiro autônomo falando que ‘vai passar por cima’, isso é perigoso”, afirmou Chorão.

Controvérsia

Nos grupos de caminhoneiros, há controvérsia em relação à paralisação. Alguns entendem que estão sendo usados para outros interesses que não o do setor. Muitos não querem aderir aos protestos com medo de multas e também dos prejuízos que se acumulam.

Entre os que estão convocando a greve de agora, está o presidente da Cooperativa de Transportadores e Profissionais da Área de Logística e Transporte de Cargas de Sinop (Cooperlog), Cleomar José Immich. Em vídeo que circula nas redes sociais, ele chama os caminhoneiros para aderir ao movimento.

Ele alega que foi protocolado um documento para “cancelar as eleições”. O prazo para darem um posicionamento seria na sexta-feira. “Se não tivermos resposta, temos de parar os caminhões até o STF julgar o assunto.” Ele e outro colega que fazem o vídeo pedem que os empresários deixem os caminhões no pátio para não tomar multa. “Deixem os caminhões em casa.”

A reportagem procurou Cleomar, que afirmou apenas que não é líder do movimento.

Davi Medeiros e Renée Pereira para O Estado de S. Paulo, em 20.11.22, às 12h38 /  /COLABOROU LAVÍNIA KAUCKZ

sábado, 19 de novembro de 2022

Casos de coronavírus aumentam em 12 estados brasileiros

Dados do Boletim Infogripe, da Fiocruz, apontam que covid-19 responde por 47% das infecções por vírus respiratórios no Brasil.

Conforme o mais recente Boletim Infogripe, divulgado nesta sexta-feira (18/11) pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), tem ocorrido um aumento de casos de coronavírus em 12 estados brasileiros: Alagoas, Amazonas, Ceará, Goiás, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.

De acordo com os dados, levantados nas últimas quatro semanas pela Fiocruz, a covid-19 responde atualmente por 47% de todos os resultados positivos para vírus respiratórios. No fim de outubro, o coronavírus era responsável por 26,4% dos pacientes.

A estatística baseia-se em números inseridos no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica até o dia 14 de novembro. Há uma semana, comparativamente, o Boletim Infogripe apontava aumento de diagnósticos de doenças respiratórias em apenas quatro estados: Amazonas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo.

A maior parte dos diagnósticos foi registrada em adultos, apresentando tendências de curto prazo (últimas três semanas) e longo prazo (últimas seis semanas).

Conforme a Fiocruz, o crescimento de infecções por coronavírus em pessoas acima dos 60 anos foi registrado no Amazonas, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e São Paulo.

Em Alagoas, Ceará, Goiás, Piauí e Rio Grande do Norte, por outro lado, o crescimento dos números está mais concentrado em crianças.

Outras doenças registradas no boletim foram o vírus sincicial respiratório, que responde por 24,2% dos doentes, o influenza A (10,4%) e o influenza B (0,3%).

Conforme a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), as taxas de testes positivos de covid-19 também subiram em outubro. Na estatística consolidada do mês, foram 7.986 resultados positivos, 44% a mais do que em setembro.

A Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) também apontou crescimento na taxa de positividade, no período entre o começo de outubro e a primeira semana de novembro: de 3,7% para 23,1%.

Em laboratórios particulares, os exames positivos para o coronavírus passaram de 3% para 17% em menos de um mês, de acordo com dados do Instituto Todos pela Saúde.

Devido a essa tendência de alta de infecções, especialistas indicam o uso de máscara em locais fechados, como no transporte público e em áreas com grande aglomeração de pessoas, além da vacinação.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 19.11.22

Lula 'toma posse' no exterior em meio a vácuo deixado por Bolsonaro

Mais de 40 dias antes de assumir o Palácio do Planalto e com Jair Bolsonaro recolhido, Luiz Inácio Lula da Silva é tratado, na prática, como se já fosse presidente em compromissos no exterior e consegue atenção internacional com pauta ambiental.

Lula no Palácio de Belém, em Lisboa, em encontro com o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, e o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi (Crédito da foto: BBC News Brasil)

Após participar da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), Lula tem encontros em Lisboa, nesta sexta-feira (18/11), com o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, e com o primeiro-ministro, António Costa. Na manhã de sábado (19/11), Lula tem previsto encontro com a comunidade brasileira no Instituto Universitário de Lisboa.

Na COP27, no Egito, Lula teve encontros com autoridades de outros países e foi aguardado por um grande público internacional - o que levou a imprensa francesa, por exemplo, a dizer que o brasileiro foi recebido "como uma estrela de rock" (jornal econômico Les Echos) e a descrever que foi "acolhido com um imenso fervor" (Le Monde).

Lula em Sharm el-Sheikh, no Egito, para COP27 (Reuters)

O diplomata Rubens Ricupero avalia que Lula tem dominado a agenda "um pouco pelo acerto dele, um pouco pela omissão de Bolsonaro".

"Para todos os efeitos, é como se (Lula) já fosse presidente, até porque o outro esvaziou. Nunca vi isso antes, é como se não tivesse mais presidente, há não sei quantos dias. A agenda (de Bolsonaro) está completamente abandonada", disse o ex-embaixador e ex-ministro à BBC News Brasil ao comentar a viagem de Lula.

O silêncio de Bolsonaro e a escassez de compromissos oficiais vêm sendo destacados na imprensa brasileira. Além de poucos compromissos na agenda em Brasília e de um ritmo baixo de postagens no Twitter, Bolsonaro também não participou da cúpula do G20, na Indonésia.

'Legitimidade reforçada'

Ricupero diz que o fato de Lula ter conseguido imprimir um tratamento de presidente no exterior antes da posse "reforça a legitimidade em um momento em que aqui há um movimento muito grande de pessoas que contestam as eleições", em referência aos protestos de parte dos apoiadores de Bolsonaro.

Jornal francês Le Monde disse que Lula foi "acolhido com um imenso fervor" na COP27 (EPA)

O diplomata considera que Lula acertou no momento da viagem, no início do período de transição. Agora, ele diz, "o calendário tende a favorecer o Lula", já que há a Copa do Mundo e as festas de fim de ano até a posse.

"Com a Copa do Mundo, eu acho que boa parte desse sentimento de mobilização política (contra as eleições) vai abrandar. Terminando a Copa do Mundo, entra nas festas de Natal. Aí Ano Novo e posse, e é outra história", diz. "O momento mais crucial era agora."

Ao deixar o Brasil no início do governo de transição, Lula também se distancia, em certa medida, da disputa por espaço entre partidos aliados na formação do novo governo.

Ricupero, que já foi ministro do Meio Ambiente e da Fazenda lembra, ao mencionar viagens de Tancredo Neves e de Juscelino Kubitschek em momentos semelhantes, que "esse período de transição no Brasil é sempre muito carregado de risco, porque há muita intriga, além da chateação dos pedidos de todo tipo, porque todo mundo cai em cima do presidente".

O destaque negativo ficou para a carona que Lula pegou, para chegar ao Egito, no jato do empresário José Seripieri Filho, fundador da Qualicorp e dono da QSaúde, que chegou a ser preso em 2020 em operação que investigava supostas irregularidades na campanha de José Serra (PSDB-SP) ao Senado, em 2014.

"Eles deveriam ter calculado que cairia mal. Não creio que terá desdobramentos maiores, mas foi um descuido", diz Ricupero.

Ao lembrar que viagens de Tancredo foram feitas em aviões comerciais, Ricupero pondera que "naquela época não havia ameaça à segurança que há hoje" e diz que, no atual contexto, "também seria penoso pegar um avião comercial e ser vítima de manifestações de bolsonaristas, como essas contra os ministros do supremo em Nova York".

O diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington, diz que não há problema jurídico na carona de Lula no avião particular. "Há um problema ético aí, se você quiser. Um problema ético de você aceitar um oferecimento de um empresário para viajar num avião privado."

Barbosa destaca problemas de segurança em uma eventual viagem em voo comercial e diz que, idealmente, o presidente eleito teria se deslocado de carona em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que tivesse viajado para o Egito.

Lula em Portugal

Ao noticiar a previsão de visita de Lula a Portugal, a imprensa portuguesa destacou que Bolsonaro nunca esteve no país enquanto presidente e que, no Brasil, cancelou um encontro com Marcelo Rebelo de Sousa em julho deste ano porque o português encontraria Lula.

O jornal Expresso escreveu que a visita de Lula "marca uma nova etapa das relações luso-brasileiras, que tinham sido objeto de um distanciamento institucional durante a Presidência de Jair Bolsonaro". O jornal Público disse que há "carga simbólica" na visita de Lula "por decorrer no ano do bicentenário da independência brasileira e por acontecer meses depois de Bolsonaro ter rejeitado receber o chefe de Estado português".

A visita do presidente português ao Brasil no 7 de setembro deste ano, que marcou o bicentenário, também é lembrada.

Rubens Barbosa diz que houve uma "desconsideração" com o presidente português no desfile. "Ele estava ao lado do presidente, o presidente não falava com ele, entrou o cara da Havan (Luciano Hang), ficou no meio... Isso foi uma coisa, diplomaticamente, muito ruim".

Bolsonaro, Luciano Hang e presidente de Portugal no centro da primeira fila da tribuna de honra do 7 de setembro (Reprodução TV Brasil)

Ricupero já havia declarado que considera que o tratamento dado ao presidente de Portugal no governo Bolsonaro foi "inqualificável" e voltou a defender uma reparação.

"Os portugueses fizeram tudo o que nós pedimos, mandaram até aquela coisa do coração de Dom Pedro 1º, com aquele aspecto um pouco lúgubre... Colaboraram em tudo para que se pudesse comemorar o bicentenário, que acabou sendo um fracasso por culpa nossa, não deles".

Ricupero diz que "os portugueses foram maltratados". "Quando houve o 7 de Setembro, ele (Bolsonaro) deixou o presidente Portugal ao lado dele no palanque, mas não deu atenção nenhuma. E fez um tipo de discurso completamente fora do espírito da celebração", diz o diplomata.

E a falta de uma visita de Bolsonaro aos portugueses?

Para Rubens Barbosa, a ausência de uma visita de Bolsonaro a Portugal diz mais sobre a política externa do governo Bolsonaro em geral do que sobre a relação entre os dois países em si.

"Bolsonaro não visitou quase país nenhum, não tem nada de discriminação contra Portugal. Ele tem uma política externa muito complicada", disse. "A relação com Portugal é muito intensa e eu acho que o Lula, passando por lá, vai retomar essa tradição de contato estreito entre os dois países."

No 7 de Setembro, 'Bolsonaro deixou o presidente Portugal ao lado dele no palanque, mas não deu atenção nenhuma', diz Ricupero (Getty Images)

Lula na COP27: meio ambiente e a atenção internacional

A atenção internacional que Lula conseguiu logo após sua eleição também tem a ver com o tema central da viagem, já que a pauta ambiental é o maior interesse internacional no Brasil, devido principalmente à Amazônia.

"Lula foi para uma conferência que é, nesse momento, a mais importante da agenda internacional e na qual o Brasil é relevante", destaca Ricupero.

Na COP27, Lula disse que "não medirá esforços para zerar o desmatamento de nossos biomas até 2030" e afirmou que todos os crimes ambientais vão ser combatidos "sem trégua". Ele também propôs que a COP de 2025 ocorra na Amazônia.

5 destaques do discurso de Lula na COP27

Ricupero, que conta ter se filiado à Rede Sustentabilidade, diz que a pauta ambiental "deveria dominar grande parte da política externa" do novo governo Lula. "Tem outros aspectos da política externa do PT que são mais controversos - por exemplo, ele vai ter em algum momento que se posicionar em relação à Nicarágua, Cuba e Venezuela. No passado, sempre teve simpatia ideológica do PT (a governos desses países) e eu não sei o que ele vai fazer", disse.

"(A pauta ambiental) é um assunto que pode render enormes retornos ao Brasil a curto prazo, sem muito custo. O custo que tem é interno, de enfrentar os grileiros, mineradores, garimpeiros ou os madeireiros. De qualquer forma, ele é obrigado a enfrentar, porque são todas atividades criminosas, ilegais", diz.

Laís Alegretti, enviada especial da BBC News Brasil a Lisboa, em 18.11.22

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63649594