sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A realidade não é o que você vê

O mundo é uma construção do nosso cérebro. E não há dois cérebros


Uma mulher trabalha com óculos de realidade virtual.

Como lemos a palavra inconstitucionalidade? O i com o n, in, o c com o, co e assim por diante por 10 minutos? Não, pelo amor de Deus. Isso só é feito por crianças que estão aprendendo a ler. O resto de nós, que somos leitores experientes, reconhecemos a palavra de relance. E se diz inconstitucionalidade , o mais provável é que continuemos a reconhecê-la, mesmo que falte uma sílaba. Os corretores automáticos percebem o erro imediatamente, mas nós, humanos, não somos muito bons nisso. O cérebro usa massivamente o processo de preenchimento,que pode ser visto muito bem com o exemplo do ponto cego. Em todo o centro do campo visual não vemos nada, porque a retina tem um orifício por onde sai o nervo óptico. Mas nossa consciência não percebe o buraco, porque os processadores cerebrais de nível superior o preenchem com o que eles acham que deveria estar lá. O preenchimento não é uma peculiaridade do ponto cego da retina. Funciona em todos os níveis de percepção e pensamento.

Um corolário desses fatos é que nosso modelo interno do mundo não é o mundo, mas uma construção ativa do cérebro, baseada em experiências anteriores, cultura recebida e conhecimento adquirido. Como não há dois cérebros iguais, nem duas biografias iguais, isso implica que cada pessoa tem um modelo de mundo diferente. Cada um chama isso de realidade, mas nenhum está certo. Não conhecemos a realidade diretamente, apenas suas sombras projetadas em uma parede, como na alegoria da caverna de Platão.

As ideias atuais sobre a percepção talvez tenham origem em Hermann von Helmholtz , o grande físico e filósofo alemão do século XIX. O cara era uma aberração que fez contribuições essenciais à ótica, meteorologia, matemática e eletrodinâmica, além de formular a lei da conservação da energia, mas também era um fisiologista talentoso que recebeu o melhor treinamento em Berlim em troca de servir como Médico do Exército por oito anos. Agora isso é um milhão. Helmholtz propôs que a percepção é na verdade um processo de inferência inconsciente. Ninguém prestou muita atenção a ele, mas sua ideia foi adotada por neurocientistas e cientistas da computação em nosso tempo. Eles chamam isso de processamento preditivo e consiste no seguinte.

A função do cérebro não é perceber o mundo, mas predizê-lo. O córtex cerebral, onde residem nossa percepção e mente, usa informações dos sentidos para atualizar seu modelo de mundo e, portanto, suas previsões. Mas esse modelo já havia sido formado antes, por experiências anteriores. Sem ela não podíamos ver nada nem pensar nada. Seríamos como a criança que demora 10 minutos para ler a inconstitucionalidade.

A ciência, aliás, é a melhor estratégia que temos para conhecer a realidade. Uma teoria científica não só explica de forma compacta os milhões de fatos que já eram conhecidos, mas também prevê aspectos do mundo que ninguém imaginava, como aconteceu com Einstein com os buracos negros. Elas emergiam de suas equações, mas ele não conseguia acreditar nelas. Uma teoria vê mais longe do que seu criador.

Xavier Sampedro para o EL PAÍS, em 07.10.22, às 00:00hs

Lula precisa fazer jus a tanto apoio

Pedro Malan, Arminio Fraga, Persio Arida e Edmar Bacha cedem valor de seu legado à candidatura do petista, o que não é endosso à desconhecida política econômica de sua campanha

A candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu um apoio de peso do mundo econômico nos últimos dias. Os economistas Pedro Malan, Arminio Fraga, Persio Arida e Edmar Bacha, que tiveram papel-chave na implantação do Plano Real, declararam voto no petista por meio de uma nota pública tão sucinta quanto simbólica. “Votaremos em Lula no 2.º turno; nossa expectativa é de condução responsável da economia”, afirmam.

A nota diz tudo sobre o posicionamento do grupo – e, a despeito de seu tamanho, não é pouco. Não há imposição de condições para o anúncio de apoio à candidatura de Lula. Não há sugestão sobre a âncora a ser adotada em substituição ao teto de gastos. Não há críticas à heterodoxia que marcou o segundo mandato do petista e que foi extrapolada por sua sucessora, a ex-presidente Dilma Rousseff. Esses são conceitos que estão implícitos no pensamento liberal que norteou a atuação desses economistas, e que foram deixados de lado pelo retrocesso civilizatório e pela ameaça democrática que o grupo vê na reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Logo, é dever de Lula e sua equipe de campanha fazerem jus a esse inestimável voto de confiança e apresentarem compromissos claros e críveis que conduzam o País a uma rota de desenvolvimento econômico sustentável.

O Plano Real – que, convém lembrar, foi hostilizado pelo PT – foi um divisor de águas na história brasileira. Domar a hiperinflação proporcionou a estabilidade que a sociedade desconhecia e almejava. Foi a maior conquista do plano econômico, mas ele não se limitou a isso. Além de devolver o poder de compra à moeda brasileira, ele deu início a um período de aumento de receitas e redução de despesas e de uma política fiscal alinhada à política monetária, sem gastança desenfreada e marretadas artificiais nos preços dos combustíveis. Reduzir a inflação teria sido impossível sem o compromisso de atingir, também, o equilíbrio fiscal – o oposto do que o governo de Jair Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes promoveram nos últimos anos.

O sucesso do Plano Real não rendeu apenas frutos econômicos, mas também políticos – o líder da equipe do Real, Fernando Henrique Cardoso, elegeu-se e reelegeu-se presidente, sempre no primeiro turno. Mas nem tudo foram flores. Logo após a reeleição, o País teve que fazer ajustes para enfrentar crises internacionais, mas a adoção do tripé macroeconômico, composto por câmbio flutuante, metas de inflação e metas fiscais, deu sustentação ao crescimento que se seguiu nos anos posteriores.

Foi somente depois do Plano Real que o País aprendeu que o equilíbrio das contas públicas não é um dogma, mas uma premissa para a execução de qualquer política econômica, independentemente da linha defendida pelo governante de plantão. É esse o significado de uma “condução responsável da economia”, e é em nome disso que Pedro Malan, Arminio Fraga, Persio Arida e Edmar Bacha emprestam agora seu legado à candidatura de Lula – o que evidentemente não se traduz em endosso à política econômica da campanha, que, por sinal, nem sequer é conhecida.

Como mostrou o Estadão, a equipe de campanha do petista tem sido incapaz de se entender em relação ao rumo da política fiscal que seu governo seguirá caso seja eleito. Enquanto a ala política defende o retorno dos superávits primários e a fixação de bandas, a ala econômica é favorável a um mecanismo de controle de gastos que permita aumentar as despesas acima da inflação. Em ambos os casos, o diabo mora nos detalhes e, como Arminio Fraga disse ao Estadão, no escuro da irresponsabilidade fiscal, os pobres são os mais prejudicados.

É preciso mais do que a vaga sinalização do ex-ministro Guido Mantega sobre o acolhimento de propostas dos ex-candidatos Ciro Gomes e Simone Tebet no programa do partido, e bem mais do que o silêncio do coordenador da campanha, Aloizio Mercadante. É preciso que Luiz Inácio Lula da Silva apresente um programa econômico crível. Como não o fez até agora, das duas, uma: ou não o tem ou não quer mostrar. Em qualquer dos casos, é péssimo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 07.10.22

Simone Tebet: ‘Ao olhar para o retrovisor, Lula menosprezou o eleitor’

Senadora diz que petista tinha de apresentar programa de governo quando passou a pedir voto útil

A senadora Simone Tebet (MDB), terceira colocada na eleição presidencial, durante evento em que declarou apoio a Lula na quarta-feira, 5 (Foto: Sebastião Moreira/EFE)

Terceira colocada no 1° turno da eleição presidencial, quando recebeu 4,9 milhões de votos (4,16%) a senadora Simone Tebet (MDB), de 52 anos, declarou apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na segunda etapa, mas não deixou de fazer críticas ao petista e se colocou contra a hipótese do partido ingressar em um eventual governo. “Ao olhar apenas para o retrovisor e falar dos possíveis acertos do passado, Lula menosprezou e não deu conforto para o eleitor”, disse Simone nesta entrevista ao Estadão. A seguir, os principais trechos:

A sra. defende que o MDB esteja em um eventual governo Lula?

Não defendo. Acho que o MDB tem que manter sua autonomia como um grande partido de centro democrático no Brasil. É fundamental que o MDB se fortaleça como o fiel da balança. Quando falamos do centro democrático temos que incluir o PSDB, por mais machucado que tenha saído do processo, além do Cidadania e o Podemos. Isso não significa que o partido não possa dar apoio ao próximo presidente nas pautas construtivas. Há um país a ser reconstruído, mas sempre critiquei o fisiologismo do partido. Não vejo dificuldade de composição, mas não pode ser na velha tradição do toma lá, dá cá, da troca de cargos por apoio.

O ex-presidente indicou que a sra. pode estar em um eventual ministério. Cogita essa hipótese?

Nada me foi oferecido. O Lula tem a experiência de saber lidar com a classe política. Ele sabe muito bem com quem fala e com quem trata. A conversa foi muito clara. Meu manifesto estava pronto e eu ia declarar o meu voto à favor da democracia e da Constituição por amor ao Brasil. Eu não vejo uma escolha difícil porque não há dois lados. Um eu reconheço como democrata apesar de todos os defeitos, o outro não. Há um lado só. Mas meu apoio não será por adesão, mas por propostas. Se eles tivessem com intuito de aceitar minhas propostas, o apoio seria maior.

Lula sinalizou que deve aceitar as suas sugestões?

Apresentei sugestões palatáveis, mas decisivas. Coloquei todas no mesmo guarda chuva. Não estou falando de teto de gastos, mas seja qual for a âncora fiscal ela precisa existir como um meio para alcançar a responsabilidade social. As propostas a princípio foram bem aceitas. Amanhã (sexta-feira, 6) eles devem acatar essas sugestões. Provavelmente vai haver um encontro meu com o ex-presidente Lula.

A sra. falou em âncoras fiscais. Não falta clareza no programa econômico do Lula?

Total. Todos nós erramos na campanha. Foi isso que tirou a vitória do Lula no 1° turno. Ao mesmo tempo que pregava o voto útil, que é legítimo, e eu faria a mesma coisa, ele não apresentou ao Brasil as propostas que ele vai fazer se for eleito. Ao olhar apenas para o retrovisor e falar dos possíveis acertos do passado, Lula menosprezou e não deu conforto para o eleitor. O eleitor ficou desconfiado e concluiu que precisava de mais tempo.

Ao olhar apenas para o retrovisor e falar dos possíveis acertos do passado, Lula menosprezou e não deu conforto para o eleitor. O eleitor ficou desconfiado e concluiu que precisava de mais tempo.”

Isso prejudicou a 3° via...

Foi aí que eu e Ciro desidratamos. Cheguei a bater em 11% nos trackings em São Paulo. Na reta final, o eleitor migrou mais para o Bolsonaro. Agora será diferente. Será uma nova eleição. É muito difícil o Bolsonaro conseguir desidratar os votos do Lula.

A sra. falou que o respeito à democracia pesou na sua decisão. Não falta o ex-presidente se posicionar de maneira mais crítica em relação aos regime antidemocráticos latino-americanos? E tem também a ideia de regulamentar a mídia...

Sem dúvida. Nesse aspecto da mídia ele recuou, mas precisa deixar isso mais claro. O editorial do Estadão foi brilhante. Não é que o eleitor escolheu um Congresso mais conservador. Isso é do jogo e faz parte da democracia. O problema é que junto com esse conservadorismo vieram pessoas com pautas reacionárias e que representam o extremismo. Houve um aumento da bancada da bala. Não dá para desconsiderar que no caso de uma possível reeleição do Bolsonaro ele terá uma hegemonia de poder que há muito tempo não se via. Teria o controle do Congresso Nacional para se assenhorar do único poder que não é político, que é o Judiciário. Quando a gente fala de ditaduras de esquerda, não tem como apagar a história do PT. Temos que olhar para frente e para o Brasil de hoje. Eventual vitória de Bolsonaro pode dar a ele o controle do STF.

Temos que olhar para frente e para o Brasil de hoje. Eventual vitória de Bolsonaro pode dar a ele o controle do STF.”

Como foi tomar a decisão de apoiar Lula?

Foram as 48 horas mais difíceis da minha carreira política. O maior risco político que eu já corri foi tomar uma decisão, mas não havia outro caminho. Conhecidos, correligionários e parentes me imploraram por minha neutralidade no 2° turno.

Por que fez a declaração de apoio ao Lula sozinha sendo que muitos emedebistas estavam em São Paulo?

Muitos não estiveram comigo na campanha. E quem estava precisava manter a imparcialidade.

Pretende participar dos programas de TV e subir no palanque do Lula?

Tudo que for necessário fazer para garantir a democracia como pilar estou disposta a fazer, mas como defesa do Brasil."

Pedro Venceslau, repórter, para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 06.10.22, às 21h03

Biden alerta para "Armagedom" se Putin usar arma nuclear

Presidente dos EUA diz que risco de catástrofe atômica é o maior desde a crise dos mísseis cubanos, no auge da Guerra Fria, em 1962. Zelenski afirma que Ucrânia recuperou mais de 500 km2 de território em sete dias.


Joe Biden - o risco que corre o pau, corre o machado

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que a ameaça russa de utilizar armas atômicas no conflito da Ucrânia coloca o mundo no maior risco de "Armagedom" nuclear desde a crise dos mísseis cubanos no auge da Guerra Fria, em 1962.

"Não enfrentamos a perspectiva do Armagedom desde Kennedy e a crise dos mísseis cubanos", disse ele nesta quinta-feira (06/10), durante um evento de arrecadação de fundos do Partido Democrata.

O presidente americano alertou que Putin "não está brincando quando fala sobre o uso potencial de armas nucleares táticas ou armas biológicas ou químicas, porque suas forças armadas têm um desempenho significativamente abaixo do esperado".

Biden disse acreditar que o uso de uma arma tática de baixo rendimento pode sair do controle e levar à destruição global. "Não existe a capacidade de usar facilmente uma arma tática e não acabar em um Armagedom", alertou.

Há meses que autoridades americanas alertam para a possibilidade de a Rússia utilizar armas de destruição maciça na Ucrânia, após uma série de reveses estratégicos no campo de batalha. No entanto, ainda esta semana disseram não ter visto qualquer mudança nas forças nucleares russas que exigisse uma mudança na postura de alerta das forças nucleares dos EUA.

"Não vimos qualquer razão para ajustar a nossa própria postura nuclear estratégica, nem temos indicação de que a Rússia se está se preparando para utilizar iminentemente armas nucleares", disse na terça-feira a secretária de imprensa da Casa Branca, Karine Jean-Pierre.

Saída diplomática

O presidente americano também disse que Washington ainda busca uma saída diplomática. "Estamos tentando descobrir qual é a saída de Putin. Onde ele encontra uma saída? Onde ele se encontra em uma posição que não, não apenas perde prestígio, mas perde poder significativo na Rússia", acrescentou.

Putin aludiu repetidamente à utilização do vasto arsenal nuclear, incluindo no mês passado, quando anunciou os planos de mobilização parcial. "Quero lembrar que o nosso país também tem vários meios de destruição", ameaçou. "E quando a integridade territorial do nosso país for ameaçada, para proteger a Rússia e o nosso povo, usaremos certamente todos os meios à nossa disposição", disse Putin em 21 de setembro, acrescentando, com um olhar fixo na câmera: "Isto não é um blefe".

O conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, disse na semana passada que os EUA têm sido "claros" para a Rússia sobre quais seriam as "consequências" da utilização de uma arma nuclear na Ucrânia.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, disse que Putin compreendeu que o "mundo nunca perdoará" um ataque nuclear russo. "Ele compreende que após o uso de armas nucleares não seria mais capaz de preservar, por assim dizer, a sua vida, e estou confiante nisso", afirmou.

Ucrânia segue recuperando terreno

Apesar das ameaças de Moscou, as tropas ucranianas mantêm sua contraofensiva, recuperando quase toda a região de Kharkiv e importantes centros logísticos como Izium, Kupiansk e Lyman no leste.

"Somente desde 1º de outubro e na região de Kherson, mais de 500 quilômetros quadrados de território e dezenas de cidades foram liberados", declarou na noite de quinta-feira o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski.

Horas antes, Zelenski havia pedido aos líderes europeus reunidos em uma cúpula em Praga que continuem com a ajuda militar a Kiev para que "tanques russos não avancem sobre Varsóvia ou Praga".

Os fornecimentos de armas dos EUA e da Europa indignaram as autoridades russas, que convocaram o embaixador francês em Moscou na quinta-feira precisamente por causa da ajuda militar oferecida por Paris a Kiev.

Putin, por sua vez, assegurou que a situação militar iria se "estabilizar", apesar das derrotas e fracassos na mobilização de centenas de milhares de reservistas, o que fez com que muitos homens em idade de lutar fugissem. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, assegurou que os territórios perdidos serão "recuperados".

Dias antes, Putin assinou a anexação de quatro regiões da Ucrânia sob controle parcial de suas tropas, o que abriria caminho para o uso de armas nucleares pois a doutrina de Moscou permitiria a utilização desse arsenal para proteger território russo. A anexação viola o direito internacional e foi duramente criticada por vários países.

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 07.10.22, às 05h:22

Lucro líquido dos bancos cresceu 49% em 2021

O crescimento da margem de juros, a redução das despesas com provisões e os ganhos de eficiência explicam a melhora dos resultados

O economista sócio diretor da OpenInvest, César Bergo, explicou como a redução de despesas provocou um ganho de escala para os bancos. (Crédito da foto: Ed Alves/CB)

O lucro líquido das instituições financeiras somou R$ 132 bilhões no ano passado, uma alta de 49% em comparação ao registrado em 2020. Segundo o Relatório de Economia Bancária (REB) de 2021, divulgado pelo Banco Central, a rentabilidade dos bancos retornou a níveis próximos dos observados antes da pandemia. De acordo com o documento, o crescimento da margem de juros, a redução das despesas com provisões e os ganhos de eficiência explicam a melhora dos resultados.

O economista sócio diretor da OpenInvest, César Bergo, explicou como a redução de despesas provocou um ganho de escala para os bancos. "Durante a pandemia, a implantação do home office e a revisão de seus quadros com relação ao tamanho da estrutura fizeram com que os bancos ganhassem eficiência, e isso resulta no ganho de lucratividade. A tendência é que isso continue, sobretudo com as taxas de juro altas que estamos vivendo", disse.

Bergo também ressaltou que o sistema financeiro talvez tenha sido o menos afetado pela crise sanitária, em função do alto nível de tecnologia. "O impacto com relação ao isolamento social não foi tão importante, porque as pessoas utilizavam o sistema eletrônico para fazer as suas transações. Além do que a chegada do Pix também ajudou que as transações não sofressem e tivessem continuidade", acrescentou.

O relatório apontou que as despesas com provisões, que já são contabilizadas como ocorridas mesmo que ainda não pagas, retornaram aos níveis pré-pandemia. "Dado o cenário econômico menos favorável previsto para 2022, a expectativa é de alta moderada na inadimplência (em direção aos níveis pré-pandemia). Esse movimento da inadimplência e a migração das carteiras para um mix de maior risco podem aumentar o nível de ativos problemáticos ao longo do ano", projetou a autoridade monetária.

As cinco maiores instituições financeiras do país concentravam 78,7% do mercado de crédito no segmento bancário em 2021, uma queda de 0,5 ponto percentual em relação ao ano anterior, conforme descreve o relatório. O percentual mostra trajetória de redução desde 2018. Incluindo o segmento não bancário, que engloba cooperativas, fintechs e financeiras, por exemplo, os maiores representavam 67,9% de operações de crédito, 0,6 ponto a menos do observado em 2020.

"A queda da concentração é observada em todos os agregados contábeis e, de forma mais intensa, nos depósitos totais", ressalta o relatório. Em relação aos depósitos, o grupo concentrava 75,9% no segmento bancário e 70% no não bancário. Os ativos totais das cinco maiores instituições, por sua vez, equivalem a 74,9% do total do segmento bancário e 65,2% do não bancário.

Outra novidade foi a mudança na metodologia para medir a concentração do sistema financeiro, que acabou tirando o Santander do grupo das maiores instituições financeiras brasileiras. Para se igualar aos padrões internacionais, o BC passou a considerar agora os quatro maiores bancos e não mais cinco, como antes.

As quatro maiores instituições, segundo o relatório, são Caixa, Banco do Brasil, Bradesco e Itaú. "A RC4 (quatro maiores bancos) mede o grau de concentração por meio da soma das participações das quatro maiores instituições financeiras em um dado mercado".

Concessão de crédito

No ano passado, as concessões de crédito no Sistema Financeiro Nacional (SFN) aumentaram 18,2%, a maior alta na comparação anual da série iniciada em 2011. Segundo o BC, com o avanço da vacinação e a retomada da atividade econômica, observou-se expansão significativa das operações de crédito às pessoas físicas, tanto nas linhas de crédito livre quanto nas de crédito direcionado.

Rafaela Gonçalves para o Correio Braziliense. Publicado originalmente em 07.10.22, às 03h:55

Vladimir Putin faz 70 anos: 7 momentos-chave que marcaram sua carreira

Vladimir Putin completa 70 anos nesta sexta-feira (7/10). Como ele se tornou o autocrata isolado pelo Ocidente que comanda a invasão da Ucrânia?

Putin, cara de malvado desde criancinha (Getty Images)

Sete momentos cruciais em sua vida ajudaram a moldar seu pensamento e explicar seu crescente distanciamento com o Ocidente.

Judoca na juventude (1964)

Nascido em uma Leningrado (atual São Petersburgo) ainda marcada por seu cerco de 872 dias na Segunda Guerra Mundial, o jovem Vladimir era um menino mal-humorado e combativo na escola — seu melhor amigo lembrou que "ele podia brigar com qualquer um" porque "não tinha medo".

No entanto, em uma cidade invadida por gangues de rua, um menino franzino, mas briguento, precisava estar preparado. Aos 12 anos, começou a praticar o sambo, uma arte marcial russa, e depois o judô. Ele era determinado e disciplinado: aos 18 anos, era faixa preta de judô e tinha o terceiro lugar em uma competição nacional júnior.

Essa parte da biografia foi usada para ressaltar o lado "machão" da persona do atual presidente russo. Mas também confirmou sua crença inicial de que, em um mundo perigoso, você precisa ter confiança e também perceber, segundo suas próprias palavras, que quando uma briga é inevitável "você deve bater primeiro e bater com tanta força que seu oponente não se levantará".

Tentando entrar na KGB (1968)

Em geral, as pessoas evitavam ir ao 4 Liteyny Prospekt, endereço do quartel-general da KGB (a polícia política soviética) em Leningrado. Tantos haviam passado por suas celas e seus interrogatórios para seguir depois para os campos de trabalho do gulag siberiano na era Stálin que costumava-se contar uma piada ácida. O chamado Bolshoi Dom, a "Casa Grande" onde ficava a sede da KGB na cidade, era o edifício mais alto de Leningrado porque era possível ver a Sibéria mesmo de seu porão.

Mas Putin, quando tinha 16 anos, foi até a recepção com tapete vermelho da KGB e perguntou a um oficial atrás de uma mesa como ele poderia tomar parte na corporação. Surpreso e confuso, o oficial disse que ele precisava completar o serviço militar ou ter um diploma. Putin então perguntou qual seria a melhor graduação.

"Direito" foi a resposta e, a partir desse ponto, Putin ficou determinado em conseguir esse diploma. E foi assim que ele foi recrutado pela corporação soviética. Para Putin, o malandro das ruas, a KGB era a maior gangue da cidade: oferecia segurança e chance de progredir mesmo para alguém sem conexões com o Partido Comunista.

E também representou uma oportunidade de se tornar alguém que faz acontecer. Como o líder russo contou sobre a inspiração que veio dos filmes de espionagem na adolescência, "um espião pode decidir o destino de milhares de pessoas".

Cercado por uma multidão (1989)

Apesar de depositar tantas esperanças, a carreira de Putin nunca decolou na KGB. Ele tinha um bom desempenho nas suas funções, mas os voos altos nunca aconteceram. De qualquer forma, ele se empenhou em aprender alemão e isso lhe rendeu uma nomeação em 1985 para os escritórios da KGB em Dresden, na antiga Alemanha Oriental.

Lá ele conseguiu ter uma vida confortável. Mas, em novembro de 1989, o comunismo alemão começou a entrar em colapso com extrema velocidade.

Em 5 de dezembro, uma multidão cercou o prédio da KGB de Dresden. Putin ligou desesperado para o posto mais próximo do Exército Vermelho para pedir proteção. A resposta: "Não podemos fazer nada sem ordens de Moscou. E Moscou está em silêncio".

Putin aprendeu a temer o súbito colapso do poder central — e determinado a nunca repetir o que achava ser um erro do líder soviético Mikhail Gorbachev: não responder com rapidez e determinação quando confrontado com a oposição.

Putin aprende o significado da influência política (1992)

Putin mais tarde deixaria a KGB, quando a União Soviética implodiu. Mas logo garantiu uma posição como intermediário do novo prefeito de sua Leningrado, já com seu antigo nome de volta: São Petersburgo.

A economia estava em queda livre e Putin foi encarregado de administrar um acordo para tentar ajudar a população da cidade com a troca do equivalente a US$ 100 milhões em petróleo e metal por alimentos.

Na prática, ninguém viu comida. Segundo uma investigação — rapidamente abafada —, Putin, seus amigos e os gângsteres da cidade, embolsaram o dinheiro.

Nos "selvagens anos 1990", Putin aprendeu rapidamente que a influência política era uma mercadoria monetizável — e que os gângsteres poderiam ser aliados úteis. Quando todos ao seu redor estavam lucrando com suas posições, sua lógica foi: por que ele não deveria?

Invasão da Geórgia (2008)

Quando Putin se tornou presidente da Rússia, em 2000, ele esperava poder construir um bom relacionamento com o Ocidente — sob suas próprias condições, incluindo uma esfera de influência em toda a antiga União Soviética. Logo ele ficou desapontado, depois com raiva, acreditando que o Ocidente tentava isolar e diminuir a Rússia.

Quando o presidente georgiano Mikheil Saakashvili colocou seu país na rota da adesão da Otan (Aliança do Tratado do Atlântico Norte), o alarme soou para Putin. Uma tentativa da Geórgia de recuperar o controle sobre a região separatista da Ossétia do Sul, apoiada pela Rússia, tornou-se uma desculpa para uma operação de guerra.

Em cinco dias, as forças russas não deram chance aos militares georgianos e forçaram o presidente Saakashvili a aceitar um tratado de paz humilhante.

O Ocidente demonstrou indignação, mas, em um ano, o presidente Barack Obama se ofereceu para "redefinir" as relações com a Rússia. E Moscou recebeu até o direito de sediar a Copa do Mundo de 2018.

Para Putin, estava claro que o uso da força funcionava — e que um Ocidente fraco e sem direção bufaria de raiva, mas, no final, recuaria diante de uma vontade determinada.

Protestos em Moscou (2011-2013)

A suspeita — com evidências — de que as eleições parlamentares de 2011 foram fraudadas provocou protestos populares. A proporção deles cresceu quando Putin anunciou que se candidataria à reeleição em 2012.

Conhecidos como os "Protestos Bolotnaya", em homenagem à praça de Moscou que serviu de palco para as manifestações, isso representou a maior expressão de oposição pública a Putin.

O líder russo disse que os atos foram incentivados e dirigidos por Washington e apontou a culpa para a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton.

Para Putin, era uma evidência de que o Ocidente flexionava seus músculos e que vinha em sua direção. Na prática, significava que agora era guerra.

A pandemia da covid (2020)

Quando a covid-19 varreu o mundo, Putin entrou em um isolamento incomum até mesmo para autocratas. Qualquer um que fosse encontrar o presidente russo, teria que se isolar por 15 dias sob vigilância e depois passar por um corredor banhado em luz ultravioleta e desinfetante.

Nesse período, o número de aliados e conselheiros que conseguiam encontrar Putin diminuiu drasticamente — apenas algumas figuras mais próximas.

Exposto a poucas opiniões contrárias e quase sem contato com seu próprio país, Putin parece ter se convencido de que todas as suas crenças estavam certas e justificadas, e assim as sementes da invasão da Ucrânia foram plantadas.

Professor Mark Galeotti, o autor deste artigo, é um pesquiador e escritor, autor de livros como We Need To Talk About Putin (Nós Precisamos Falar sobre Putin) e Putin's Wars (As Guerras de Putin), ainda a ser lançado. Publicado originalmente por BBC News, em 06.10.22

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Enquanto isso lá fora, Andorra bloqueia 37 milhões em propinas da Odebrecht

O país europeu congela cerca de trinta contas na ABP de líderes, empresários e altos funcionários da América Latina comprados pela construtora brasileira

O ex-presidente do Peru Alan García, na sede da Promotoria de Lima, em 2017. (Guadalupe Pardo / Reuters)

Os dirigentes, empresários e altos funcionários subornados pela Odebrecht, a gigante da construção brasileira que esteve envolvida no maior complô corrupto da América Latina , não poderão usufruir de parte de seu saque escondido em Andorra. Um juiz do Principado ordenou em março passado o bloqueio de 30 contas na Banca Privada d'Andorra (BPA) e uma no Credit Andorrà, com um saldo total de 52,2 milhões de euros (US$ 51 milhões), segundo os documentos. teve acesso.

Os recursos pertencem a ex-dirigentes, funcionários públicos e figuras de proa que arrecadaram da empresa de infraestrutura em troca da adjudicação de obras públicas. E entre as fortunas bloqueadas, há três milhões de euros (2,9 dólares) em depósitos e contas opacas vinculadas a empresários e altos funcionários que serviram durante o segundo mandato do falecido ex-presidente peruano Alan García (2006-2011). Além disso, 34 milhões de euros (33,5 milhões de dólares) ligados a ex-acusações e espantalhos do ex-chefe de governo do Panamá, Ricardo Martinelli (2009-2014).

O embargo afeta 282.701 euros (US$ 279.393) de Alecksey Mosquera, ex-ministro da Eletricidade durante o mandato de Rafael Correa (2007-2017) e 1,4 milhão de euros (US$ 1,3) de dois ex-executivos da Odebrecht.

O saldo retido (52 milhões) representa um quarto dos 200 milhões que a construtora brasileira desembolsou em Andorra —país protegido até 2017 pelo sigilo bancário— para comprar os testamentos de 145 políticos e altos funcionários do Equador, Peru, Panamá , Chile, Uruguai, Colômbia, Brasil e Argentina.

Os três milhões que perseguem Alan García

O bloqueio, ordenado pela juíza andorrana Stephanie García, contempla sete contas com um saldo total de três milhões de euros (2,9 dólares) vinculadas a ex-altos funcionários e supostas figuras de proa que atuaram durante o segundo mandato presidencial do peruano Alan García ( 2006-2011 ), que se matou em 2019 antes de ser preso em sua casa em Lima por sua ligação com a Odebrecht.

Assim, o advogado e ex-deputado do Congresso pelo Partido Cristão Popular (PPC), Jorge Horacio Canepa Torre , não poderá repatriar, por imperativo judicial, o milhão de euros que escondia na sua conta BPA quando foi apreendida. Esse advogado arrecadou 1,2 milhão de euros da Odebrecht em um depósito do Principado em nome de sua empresa instrumental Maxcrane Finance e depois desviou parte de sua fortuna offshore para Nova York e Hong Kong.

O bloqueio também se estende a Edwin Martin Luyo Barrientos , ex-presidente da Comissão de Licitações dos trechos 1 e 2 do metrô de Lima, entidade que concedeu à Odebrecht uma obra no valor de mais de 340 milhões de euros (336 dólares) durante o segundo mandato presidencial de Garcia. Luyo Barrientos tem 1,2 milhões de euros (1,1 dólares) congelados no Credit Andorrà, numa conta em seu nome.

O ex-funcionário do Ministério dos Transportes e Comunicações (MTC) do Peru, Santiago Chau Novoa , também não poderá usufruir dos 446.346 euros (442.280 dólares) que sua conta registrou no BPA em julho de 2018. Chau Novoa, que também pertencia à Comissão de Licitação da Linha 1 do Metrô de Lima, escondeu os fundos que arrecadou da gigante da construção brasileira em uma conta em nome da empresa opaca Ultone Finance Limited.

A conta na BPA de Miguel Atala Herrera, vice-presidente da estatal Petróleos del Perú entre 2008 e 2011, também aparece entre os congelados. Apesar de este ex-diretor ter arrecadado 1,1 milhão de euros (um dólar) da construtora brasileira através da opaca Amarin Investment in the European Principado, as autoridades andorranas só conseguiram reter o valor registrado pelo seu depósito em dezembro de 2015: € 18.191 ($ 17.929). Atala Herrera compartilhou uma conta com seu filho, Samir Atala.

O magistrado também ordenou a apreensão da conta do BPA administrada pela Odebrecht de Gabriel Prado Ramos, ex-diretor de Segurança Cidadã de Lima e ex-chefe da empresa municipal de pedágio Emape. Seu depósito andorrano acumula 171 euros (168 dólares).

O bloqueio também afeta Juan Carlos Zevallos Ugarte, ex-diretor da Ositram, órgão público peruano dedicado à coordenação da infraestrutura de transporte. Zevallos Ugarte tem 115.399 euros (113.737 dólares) retidos em Andorra. Trata-se de um valor mínimo em relação aos 660 mil euros (591.360 dólares) recebidos no Principado por esse funcionário que administrou a Rodovia Interoceânica Sul no Peru, obra realizada pela Odebrecht com um investimento de mais de 1.184 milhões de euros (1.166 dólares). ) ligando Peru e Brasil.

Rómulo Jorge Peñaranda Castañeda, presidente da consultoria Alpha Consult, "uma das maiores vencedoras" do Peru, segundo a polícia andorrana, é outro dos afetados pelo bloqueio judicial. Ele tem 202.678 euros retidos (US$ 199.759).

Os 34 milhões do universo Martinelli

A justiça andorrana bloqueou oito contas com um saldo total de 34 milhões de euros (33,5 milhões de dólares) ligadas a ex-líderes e figuras próximas ao ex-presidente panamenho Ricardo Martinelli (2009-2014).

O bloqueio afeta quatro depósitos na BPA dos pais de Demetrio Papadimitriu, Ministro da Presidência do Panamá sob o mandato de Martinelli. As contas têm um saldo de 208.557 euros (205.741 euros). Um valor minúsculo em relação aos 13 milhões de euros (12,8 dólares) que os pais do político, Diamantis e María Bagatelas Papadimitriu, movimentaram entre 2010 e 2014 através de um conjunto de 45 contas no BPA e no Credit Andorrà.

O clã do ex-presidente Martinelli irrompe ligado a outro dos clientes do BPA afectados pelo bloqueio, Roberto Brin Azcárraga, que aparece numa conta com 16,8 milhões de euros (15 milhões de dólares) em nome da opaca empresa Pachira Limited. Brin Azcárraga trabalhou como diretor da rede de supermercados da família do político, Super 99, segundo o jornal La Prensa . Um tribunal federal de Nova York condenou em maio passado por lavagem de dinheiro a três anos de prisão por suas relações com a Odebrecht aos filhos do ex-presidente Luis Enrique e Ricardo Alberto Martinelli Linares. Um empresário ligado a este último, Gabriel Elias Alvarado Far, tem 12,8 milhões de euros (US$ 11) retidos por ordem judicial na ABP.

José Luis Saiz Villanueva, empresário que confessou ter atuado como figura de proa de Frank de Lima, ministro da Economia durante o mandato de Martinelli, tem 2,3 milhões de euros (2,2 dólares) bloqueados na conta que geriu na BPA em nome da empresa Herzone Overseas Limited. Outro dos envolvidos no derivado panamenho da trama da Odebrecht , Olmedo Augusto Méndez Tribaldos, acumula dois milhões na entidade do Principado dos Pirineus que não poderá repatriar devido ao jugo judicial. A Promotoria Anticorrupção do Panamá recentemente apontou este último como um espantalho para o ex-ministro De Lima.

Um ministro Correa, preso em Andorra

Alecksey Mosquera, que foi Ministro da Eletricidade do Equador no governo Rafael Correa (2007-2017), tem 282.701 euros (US$ 279.138) retidos na ABP. O depósito aparece em nome da empresa instrumental (sem atividade) Percy Trading INC que compartilha com o empresário Marcelo Raúl Endara Montenegro, que também controla outra conta congelada com 80.152 euros (79.142 dólares). O ex-membro do gabinete de Correa, que arrecadou um milhão da Odebrecht no banco andorrano, foi condenado em 2018 a cinco anos de prisão por lavagem de dinheiro e por sua ligação com a rede corrupta.

Junto com os líderes subornados, o embargo atinge os próprios ex-executivos da Odebrecht. Os ex-administradores Luiz Eduardo Da Rocha e Olivio Rodrigues Junior têm 1,2 milhão e 307.543 euros, respectivamente, paralisados ​​no BPA. Rodrigues Junior era o homem de maior confiança do presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, e administrava mais de 200 milhões no Principado.

Além disso, o contador da construtora brasileira OAS, Roberto Trombeta, processado no caso Lava Jato , embrião da trama da Odebrecht, não poderá sacar os 7,5 milhões de euros (7,4 dólares) de sua conta no BPA em nome da empresa instrumental Kingsfield Consulting Corp.

Um paradoxo que afeta as contas do economista angolano Edson N'Dalo Leite de Morais (173.339 euros) e Rosa Paulo Francisco Bento (29.449 euros), que foram usadas para subornar dirigentes deste país africano. Eles também sofrem da tenaza andorrana.

JOSÉ MARIA IRUJO JOAQUIN GIL, de Madrid para o EL PAÍS, em 06.10.22, às 07:15hs

Partidos deram R$ 51 milhões para candidatos com menos de 300 votos cada um

Emprego de altas verbas em candidatos com baixíssima votação pode indicar candidatura laranja, como o ocorrido em 2018

Urna eletrônica em cerimônia de carregamento e lacração, antes da eleição - Rivaldo Gomes/Folhapress

Partidos políticos destinaram nestas eleições R$ 50,6 milhões para 1.430 candidatos a deputado federal que não conseguiram nem 300 votos cada um. O alto emprego de dinheiro público em campanhas "sem voto" pode indicar candidaturas laranjas, como ocorrido em 2018.

Cruzamento feito pela Folha com base nos resultados das eleições e na distribuição pelas legendas dos fundos eleitoral e partidário mostra que vários desses casos envolvem mulheres e pessoas que se declararam negras —pelas regras, os partidos têm o dever de direcionar verba pública a mulheres e negros na proporção dos candidatos lançados.

O esquema de candidatura laranja consiste em inscrever nomes de fachada, ou seja, que não realizam ou simulam atos de campanha.

O objetivo é aparentar o cumprimento da cota de gênero (todos os partidos devem ter, ao menos, 30% de candidatas) e racial (divisão de verbas de forma equânime entre negros e brancos), ao passo em que, na prática, o dinheiro é desviado para outras campanhas ou outros fins.

Em 2018, a Folha revelou que o então partido de Jair Bolsonaro, o PSL, havia organizado um esquema de candidatas laranjas para desviar dinheiro público de campanha.

Na ocasião, apesar de figurar entre os 20 candidatos do PSL no país que mais receberam dinheiro público, 4 mulheres tiveram desempenho insignificante.

Juntas, receberam pouco mais de 2.000 votos, em um indicativo de candidaturas de fachada, em que há simulação de alguns atos reais de campanha, mas não empenho efetivo na busca de votos.

Agora, em 2022, o custo médio do voto dado em candidatos à Câmara dos Deputados, eleitos e não eleitos, ficou em R$ 21,78 —resultado da divisão dos fundos eleitoral e partidário repassados pelo número de votos.

Em relação a um grupo de 100 candidatos com baixíssima votação, porém, cada sufrágio recebido "custou" R$ 1.000 ou mais aos cofres públicos. Para 29 desses, o custo foi superior a R$ 2.000 por voto.

Sebastião Silva se candidatou a deputado federal em Rondônia pelo PP. Ele recebeu R$ 2,2 milhões do fundo eleitoral e teve só 570 votos. Até o momento, ele declarou R$ 1,8 milhão em gastos contratados.

O maior custo foi de R$ 600 mil com uma empresa de assessoria e consultoria de marketing eleitoral. Outros R$ 200 mil foram declarados como gasto para confecção de materiais de campanha.

Silva disse que não sabe explicar a sua baixa votação. "Infelizmente essa campanha está tão polarizada em extremismos que o resultado para mim foi uma surpresa. Inclusive candidatos no país inteiro que tiveram milhões de votos em 2018 nesta eleição não fizeram quase nada de votos", disse.

Questionado sobre os altos valores que recebeu, Silva respondeu que não pediu para ser escolhido e que a ideia principal do fundo eleitoral é "dar condições de participação a todos, independentemente de ter um sobrenome de peso, de ser rico ou não, de todos terem igualdade na disputa".

Em Roraima, Henrique Matos (Rede), candidato a deputado federal, recebeu R$ 550 mil de seu partido. Ele se autodeclarou pardo.

Nos dados disponíveis no TSE constam mais de R$ 160 mil pagos diretamente para 59 pessoas físicas diferentes, a maioria com valores de, no máximo, R$ 6.000.

No total dos gastos já declarados, Matos afirma que gastou R$ 41 mil com "atividades de militância e mobilização de rua", quase R$ 140 mil gastos com aluguel de carros e combustível e quase R$ 30 mil com publicidade.

Mesmo assim, as urnas contabilizaram apenas 130 votos. A Folha o procurou por meio de mensagens e ligações, mas não conseguiu estabelecer contato.

O PSC do Tocantins cadastrou Gleyci Cosméticos como deputada federal há poucos dias do prazo final para oficializar candidaturas. No site do TSE, não há o endereço de nenhuma rede social. Ela recebeu R$ 550 mil de seu partido, mas conquistou pouco mais de 100 votos.

Em sua prestação de contas, não informou nenhum gasto, por enquanto. À Folha ela disse que usou a verba para serviços de divulgação e advocacia, por exemplo, e prometeu enviar à reportagem os comprovantes, mas não o fez até a publicação deste texto.

Quando questionada por que sua candidatura foi oficializada poucos dias antes do prazo final, afirmou que tinha problemas de documentação para resolver, mas interrompeu a ligação sem responder quais seriam.

A candidata Talita Laila Canal (PL-RR) recebeu R$ 200 mil do fundo partidário do partido de Jair Bolsonaro e só teve 11 votos. Poucos dias antes da eleição, protocolou na Justiça renúncia à sua candidatura.

Ela declarou gasto de R$ 50 mil com um escritório de advocacia e outros R$ 102 mil com materiais e outros itens de campanha. Procurada, Talita não quis se manifestar.

O Pros teve dois candidatos no topo do ranking dos votos mais caros do país.

Raimundo Nonato da Silva se candidatou a deputado federal pelo Maranhão, recebeu R$ 300 mil do Fundo Eleitoral e teve apenas 10 votos —um custo de R$ 30 mil por voto.

À Folha ele afirmou ter feito campanha normalmente, mas que a partir do momento em que sua candidatura foi indeferida pela Justiça Eleitoral, no final de setembro, passou a orientar seus eleitores a votar em outro candidato.

"Uma parte, entre 40% e 50% [do valor recebido], foi repassada a outros candidatos do Pros [durante a campanha]. O restante foi advogado, contador, produção de programas de áudio e vídeo e alguma coisa de material gráfico", afirmou.

Já Adriana Moura de Mendonça recebeu R$ 3 milhões do fundo eleitoral do Pros e teve apenas 240 votos, um custo de R$ 12.500 por cada um deles. Ela é ex-mulher do ex-deputado e ex-governador do Amazonas Henrique Oliveira (Podemos), que disputou o governo neste ano, mas não se elegeu.

A Folha não conseguiu contato com Adriana. Henrique Oliveira negou que o dinheiro tenha sido utilizado em sua campanha ao governo.

"Não houve uso algum do recurso destinado à [campanha da] deputada federal Adriana Mendonça na campanha majoritária do Henrique Oliveira", disse ele, afirmando que a baixíssima votação da ex-mulher teve origem no racha interno do Pros nacional.

O partido passou os meses anteriores à eleição em uma disputa judicial, incluindo suspeita de tentativa de compra de sentença, o que resultou em um revezamento dos grupos no comando da legenda.

"O Pros ficou totalmente desestabilizado. Houve uma fuga enorme de deputados federais de lá, uma saída em massa. Infelizmente, nessa briga, o nome dela ficou sub judice e acredito que as pessoas não quiseram votar nela, que fez uma belíssima campanha."

O Pros nacional disse que assumiu o partido às vésperas da eleição já com o planejamento de distribuição de verbas montado pela gestão anterior e que, a partir daí, fez adequações, reduziu valores e priorizou estados em que avaliou haver candidatos com maior potencial.

João Gabriel e Ranier Bragon, de Brasília-DF para a Folha de S. Paulo, em 06.10.22, às 4h00

Campanhas de Lula e de Bolsonaro preveem aperto financeiro no segundo turno

Enquanto PL procura doações de empresários e do agronegócio para bancar campanha, o PT trabalha com economia de gastos para dar conta de candidaturas nos estados

Presidenciáveis precisam dividir valores restantes com candidatos de seus partidos a governos estaduais, e buscam renovar doaçõesPresidenciáveis precisam dividir valores restantes com candidatos de seus partidos a governos estaduais, e buscam renovar doações (Arte O Globo)

Com o avanço da disputa presidencial ao segundo turno, as campanhas de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de Jair Bolsonaro (PL) têm feito contas para conseguir bancar os gastos nas próximas três semanas e meia. Do lado do presidente, com o fundo eleitoral do PL zerado na primeira etapa das eleições, a prioridade é intensificar a busca por doações de empresários e, principalmente, do agronegócio. No PT, mesmo com um caixa remanescente de R$ 51,3 milhões, o discurso também é de que será necessário um aperto, pois esse valor terá de ser dividido com os quatro candidatos da sigla a governos estaduais que se mantêm no páreo.

(Bela Megale: Empresários que integraram campanha de Simone Tebet apoiam voto de candidata em Lula)

Eleições 2022: Partidos ignoram uma a cada três mulheres na distribuição de verbas para a campanha

Segundo as prestações de contas divulgadas ao Tribunal de Superior Eleitoral (TSE), Lula já recebeu R$ 91,5 milhões para sua campanha, mais que o dobro do que Bolsonaro, que arrecadou R$ 42,4 milhões — incluindo doações. Mas o petista também gastou mais no primeiro turno: R$ 67 milhões, ante R$ 15 milhões em despesas declaradas pelo presidente.

A campanha de Bolsonaro, porém, ainda terá que devolver aos cofres públicos gastos com viagens eleitorais do presidente nos aviões da Força Aérea Brasileira (FAB), que só devem ser contabilizadas na prestação de contas final.

Com R$ 268 milhões do fundão para todas as campanhas eleitorais do PL, o presidente do partido, Valdemar Costa Neto, decidiu priorizar as candidaturas ao Legislativo, o que ajudou a legenda a conquistar uma superbancada na Câmara, com 99 deputados. O resultado, porém, é que não sobraram recursos para o segundo turno. Além da corrida presidencial, o PL ainda está na disputa pelo governo de Santa Catarina, com Jorginho Mello, e pelo do Rio Grande do Sul, com Onyx Lorenzoni.

Preocupados com a dificuldade financeira, interlocutores do PL passaram a se concentrar na arrecadação junto ao agronegócio. Empresários do ramo, como os agropecuaristas Oscar Luiz Servi e Hugo de Carvalho Ribeiro, foram os maiores doadores da campanha de Bolsonaro até agora.

— Noventa e cinco por cento do agronegócio está fechado e mobilizado com o Bolsonaro. São 5,5 milhões de produtores no Brasil — disse Nabhan Garcia, secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura.

Integrantes do PL reclamam, sob a condição de anonimato, que esperavam uma contribuição maior do PP e do Republicanos, que integram a coligação. Apenas o PP repassou R$ 1 milhão em setembro.

O sinal amarelo na campanha de Bolsonaro foi aceso antes mesmo do segundo turno. Ao GLOBO, o senador Flávio Bolsonaro, coordenador do projeto de reeleição do pai, declarou, em setembro, que estava “muito preocupado porque o dinheiro do partido acabou”.

Disputas nos estados

A campanha de Lula, por sua vez, tinha a estimativa de gastar R$ 44,5 milhões no segundo turno, mas, se esse valor for custeado apenas com o fundão, as candidaturas a governador do partido ficarão asfixiadas. Isso porque o fundo eleitoral de R$ 51,3 milhões ainda disponível terá que bancar também as disputas do segundo turno de Fernando Haddad (São Paulo), Jerônimo Rodrigues (Bahia), Décio Lima (Santa Catarina) e Rogério Carvalho (Sergipe).

O partido ainda não definiu quanto destinará para cada um, mas, segundo o tesoureiro da campanha de Lula, Márcio Macedo, a previsão é que o candidato a presidente receba um pouco mais da metade dos R$ 44,5 milhões previstos inicialmente. O restante terá de ser arrecadado em outras fontes, como doações.

(Ipec: Diferença entre reprovação e aprovação ao governo Bolsonaro cai para 7 pontos, a menor desde o início da campanha)

Integrantes da equipe petista dizem que, de qualquer forma, será necessário apertar os cintos. O ideal, dizem, seria ter segurado as despesas no primeiro turno para ter uma reserva agora.

Aliados do ex-presidente lembram que no segundo turno as campanhas costumam ter mais gastos, porque os programas do horário eleitoral são maiores e, em muitos estados, não é possível contar com a estrutura de candidatos a governador.

Uma das ideias discutidas internamente para diminuir os gastos seria trocar os tradicionais comícios por caminhadas encerradas com discursos do ex-presidente.

Eduardo Gonçalves, Daniel Gullino e Sérgio Roxo, de Brasília e São Paulo para O GLOBO, em 06.10.22, às 04h30

Defensores da democracia também precisam assimilar recado das urnas

Votação expressiva de candidatos que exaltam a ditadura ou defendem o fechamento do STF frustrou centro político e a esquerda

Lula e Bolsonaro se enfrentam no dia 30 após primeiro turno mais acirrado desde 1989Lula e Bolsonaro se enfrentam no dia 30 após primeiro turno mais acirrado desde 1989 Miguel Schincariol/AFP e Evaristo Sá/AFP

Os resultados do primeiro turno causaram perplexidade pelas discrepâncias entre os números das pesquisas e o resultado final, pelo tamanho da votação de Bolsonaro e pelo crescimento da direita bolsonarista no Congresso. Esses temas vêm sendo discutidos à exaustão, mas uma pergunta ainda paira aqui e ali. Afinal, o brasileiro não dá importância à democracia?

A votação estrondosa de candidatos que exaltam a ditadura militar ou defendem o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF) — além, é claro, do próprio Jair Bolsonaro — causou frustração nos intelectuais, na esquerda e no centro.

Parte dos apoiadores de Lula concluiu que faltou ao petista gritar mais alto para “mostrar ao povo” o risco autoritário que o Brasil corre com uma hipotética vitória de Bolsonaro. Outra ala, mais pragmática, chegou à conclusão de que grande parte do eleitorado, no fundo, não está nem aí para a democracia. Quer saber é de comer, trabalhar, pagar as contas.

"Para o eleitor, fascista é aquele que faz as coisas, e genocida é o irmão do Emicida", ironiza um apoiador de Lula de primeira hora que vive da política. "Não adianta fazer assembleia com o pessoal do todes, tem de gastar sola de sapato e falar com o povo".

A pesquisadora Esther Solano, que estuda o comportamento de eleitores como evangélicos e integrantes das classes C e D, expressou a mesma ideia de forma bem mais elaborada ao dizer, em entrevista ao GLOBO, que “o conceito de democracia é mobilizador para uma classe média e alta, mas está distante demais da realidade concreta de eleitores em situação econômica emergencial”. Para ela, parte do eleitorado também está aflita com questões morais como o aborto e a “ideologia de gênero”.

O mesmo aliado de Lula acha que o risco à democracia será um não assunto no segundo turno. Primeiro, porque Bolsonaro não teria forças para dar um golpe. Depois, porque ele acha que ganhará. Evidente que a situação é bem mais complexa, e nada disso impede o presidente da República de tumultuar o ambiente político se lhe for conveniente. Mas a noção de que o risco à democracia será um não assunto nesta eleição vem se consolidando entre os políticos.

Apesar da baixaria virtual dos últimos dias — com bolsonaristas acusando Lula de ser ligado ao satanismo, enquanto os lulistas disseminam vídeos de Bolsonaro na maçonaria para assustar os evangélicos —, fora das redes sociais a eleição nunca pareceu tão “normal”.

O que se vê nas duas campanhas são cenas de tradicional disputa democrática, com cada lado tentando enfileirar o maior número possível de apoios institucionais. Bolsonaro vestiu um terno bem passado, penteou os cabelos e saiu pelo Brasil negociando em gabinetes, fazendo promessas e prestando contas de seus apoios diante de microfones.

De seu lado, Lula reuniu a tropa nos bastidores para avaliar os erros e corrigir o rumo, enquanto diante das câmeras era cobrado a assumir compromissos.

Essa movimentação é consequência direta do primeiro turno. O fato de ter se tornado imperativo a qualquer político com algum projeto futuro assumir posição é, em si, um ganho para a democracia. Tirou das sombras quem andava escondido e será cobrado por seus atos.

Isso não quer dizer que o risco de degradação democrática tenha desaparecido. Como já constataram Steven Levitsky e outros autores, o autocrata 3.0 mina a democracia por dentro, enfraquecendo as instituições.

Bolsonaro já demonstrou inúmeras vezes que segue a cartilha. Agora mesmo, enquanto ele se apresenta como governante preocupado, seus aliados propõem uma CPI no Senado para investigar as pesquisas eleitorais.

Não se trata, portanto, de dourar a pílula, pelo contrário. Mas a história do segundo turno ainda está por ser escrita. Embora seja inevitável termos novos momentos de baixaria e jogo sujo, também é verdade que Lula e Bolsonaro agora estão sozinhos sob os holofotes, sem o escudo do candidato-laranja, da ameaça comunista, do voto útil ou do sigilo de cem anos.

Com tempo de sobra na TV e debates pela frente, terão de se enfrentar de verdade a respeito do orçamento secreto, da corrupção do PT, dos planos para a economia e para a educação.

Não que estejam loucos para fazê-lo. Mas o recado das urnas também deveria ser compreendido por aqueles que estão genuinamente preocupados com nossa democracia. A tarefa começa por cobrar de Lula e de Bolsonaro propostas coerentes, sem passar pano para populismo, autoritarismo e demagogia. Mais do que gritar pela democracia, é preciso praticá-la. Pode parecer pouco para quem está diante do abismo. Mas não se apresentou ainda uma alternativa melhor.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 06.10.22, às 04h30

Nem social, nem democrata

A ascensão e queda dos tucanos é um retrato em miniatura da tragédia política nacional. O PSDB se putrefaz quando a República mais precisa de uma social-democracia responsável

Parte considerável do eleitorado irá às urnas constrangida a escolher o mal menor entre o que há de mais retrógrado na direita e na esquerda. A guerra entre os populismos lulopetista e bolsonarista estava contratada desde 2018. Nunca como nesses quatro anos e nos próximos quatro foi tão importante mobilizar uma coalizão centrista, agregando o melhor à esquerda e à direita em nome da defesa da democracia; da descentralização política e administrativa; do Estado a serviço do povo e não de privilegiados; e do crescimento sustentável com distribuição de renda e educação de qualidade. Com essas premissas, nascia com a Constituição, em 88, um partido, o PSDB, voltado a concretizar seu ideário, invocando uma luta por “mudanças com energia redobrada, através da via democrática e não do populismo personalista”. Sua ascensão e queda é um retrato da tragédia política contemporânea.

O Partido da Social Democracia Brasileira nasceu de dissidências progressistas do PMDB insatisfeitas com o reacionarismo, o fisiologismo e a corrupção. 

Renegando o sectarismo classista de partidos trabalhistas como o PT ou PDT e a amorfia ideológica das oligarquias do Centrão, os tucanos abrigaram sob a social-democracia influxos ideológicos como o liberalismo econômico e a democracia cristã. 

Assimilando dos trabalhistas a primazia do trabalho sobre o capital, e dos personalistas católicos a ética e a participação comunitária, ele conquistou massas de eleitores, de progressistas a liberais e conservadores.

Em oposição responsável ao governo Collor, apoiou a modernização econômica, mas se engajou em seu impeachment. No governo Itamar Franco, engendrou o fim de 20 anos de crise inflacionária. A gestão FHC promoveu privatizações, programas sociais e marcos de governança pioneiros, elevando o País na vitrine global.

Mas já nos anos de ouro do partido estavam entranhados os vermes que hoje o devoram. Quadros inteiros repudiaram o Plano Real e apoiaram a candidatura de Lula em 1994. Candidatos pós-FHC trataram seu legado como a vergonha da família. Quem dera sua mácula maior fosse estar sempre “em cima do muro”. O partido que nasceu para destruir os muros que separam esquerda e direita, ricos e pobres, frequentemente se pôs do lado errado. Quando no certo, foi errático: na oposição ao PT, foi complacente com seus desmandos, e no governo Temer, recalcitrante com suas reformas. Caciques regionais traíram e foram traídos, preferindo ceder o poder a adversários a dividi-lo com correligionários.

Na “oposição” ao governo Bolsonaro, a crise de identidade virou esquizofrenia: seus parlamentares se alinharam a 8 em 10 pautas do governo, inclusive as que violentaram a ordem constitucional, fiscal e judicial. Muitos se refestelaram com migalhas do mercadão de emendas. O partido que se prestava a ser espantalho do PT agora se reduziu a fantoche de Bolsonaro.

As bandeiras se esgarçaram, e os laços com a população também. Nas eleições de domingo passado, virou nanico. São Paulo é paradigmático. Após 28 anos de governo do PSDB, esse bastião da responsabilidade fiscal e social está à mercê do saque bolsolulista. Dos ex-governadores tucanos – todos digladiaram entre si –, Geraldo Alckmin compõe a chapa petista, José Serra não se elegeu à Câmara, João Doria abandonou a vida pública. O atual, o tucano neófito Rodrigo Garcia, não passou para o segundo turno. Se o PSDB seguir sua rota suicida, o vergonhoso apoio “incondicional” de Garcia a Bolsonaro, que passou quatro anos a demonizar o governo paulista, passará à história como um epitáfio infame. 

Convém lembrar que o PSDB foi formado por quadros do MDB que consideravam que o partido havia se tornado uma máquina eleitoreira amoral e carcomida a serviço de enclaves paroquiais. Foi exatamente no que se tornou o PSDB – que, entre a derrota e a desonra, escolheu a desonra, e ainda foi estrepitosamente derrotado. Mas em política não há determinismos. A Nação precisa de uma social-democracia responsável e se arranjará com ou sem o PSDB. Cabe ao que restou do partido decidir: ou se regenera bebendo de suas fontes ou vagará como um morto-vivo, mais um dos vermes políticos que degeneram a sociedade e a democracia. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 06.10.22, às 03h00

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

"A iniquidade fez curvar a esperança", proclama Simone Tebet

"Há um Brasil a ser, imediatamente, reconstruído. Há um povo a ser, novamente, reunido. Reunido na diversidade, antes (e sempre) a nossa maior riqueza, agora esmigalhada por todos os tipos de discriminação."

"Aprendi, ao longo de minha vida política, que não se luta apenas para vencer, mas para defender projetos, disseminar ideias, iluminar caminhos, plantar boas sementes para uma colheita coletiva."

Leia a íntegra do discurso no qual Simone Tebet manifesta seu apoio a Lula:

"Apresentei minha candidatura à Presidência da República diante de um país dividido pelo discurso do ódio, da polarização ideológica e de uma disputa pelo poder que não apresentava soluções concretas para os problemas reais do povo brasileiro. Minha intenção foi construir uma alternativa a essa situação de confronto, que não reflete a alma e o caráter da nossa gente.

As urnas falaram. O povo brasileiro fez sua voz ser ouvida. Cumpriu-se o rito da Constituição, que hoje completa 34 anos. Venceu a democracia. Tive 4.915.423 votos, pelo que agradeço, do mais fundo do coração, por cada um deles.

Aprendi, ao longo de minha vida política, que não se luta apenas para vencer, mas para defender projetos, disseminar ideias, iluminar caminhos, plantar boas sementes para uma colheita coletiva.

O eleitor optou por dois turnos.

Em face de tudo o que testemunhamos no Brasil dos últimos tempos e do clima de polarização e de conflito que marcou o primeiro turno, não estou autorizada a abandonar as ruas e praças, enquanto a decisão soberana do eleitor não se concretizar.

A verdade sempre me foi companheira, não será agora que irei abandoná-la. Critiquei os dois candidatos que disputarão o segundo turno e continuo a reiterar as minhas críticas. Mas, pelo meu amor ao Brasil, à democracia e à Constituição, pela coragem que nunca me abandonou, peço desculpas aos amigos e companheiros que imploraram pela neutralidade neste segundo turno, preocupados que estão com a eventual perda de algum capital político, para dizer que o que está em jogo é muito maior que cada um de nós. 

Votarei com minha razão de democrata e com minha consciência de brasileira. E a minha consciência me diz que, neste momento tão grave da nossa história, omitir-me seria trair minha trajetória de vida pública, desde quando, aos 14 anos, pedi autorização à minha mãe para ir às ruas lutar pelas Diretas Já. Seria desonrar a história de vida pública de meu pai e de homens históricos do meu partido e da minha coligação. Não anularei meu voto, não votarei em branco. Não cabe a omissão da neutralidade.

Há um Brasil a ser, imediatamente, reconstruído. Há um povo a ser, novamente, reunido. Reunido na diversidade, antes (e sempre) a nossa maior riqueza, agora esmigalhada por todos os tipos de discriminação.

Neste ponto, um desabafo: de que vale irmos às nossas igrejas, proclamar a nossa fé, se não somos capazes de pregar o evangelho e respeitar o nosso próximo nos nossos lares, no nosso trabalho, nas ruas de nossa pátria?

Nos últimos quatro anos, o Brasil foi abandonado na fogueira do ódio e das desavenças. A negação atrasou a vacina. A arma ocupou o lugar do livro. A iniquidade fez curvar a esperança. A mentira feriu a verdade. O ouvido conciliador deu lugar à voz esbravejada. O conceito de humanidade foi substituído pelo de desamor. O Brasil voltou ao mapa da fome. O orçamento, antes público, necessário para servir ao povo, tornou-se secreto e privado.

Por tudo isso, ainda que mantenha as críticas que fiz ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva, em especial nos últimos dias de campanha, quando cometeu o erro de chamar para si o voto útil, o que é legítimo, mas sem apresentar suas propostas para os reais problemas do Brasil, depositarei nele o meu voto, porque reconheço seu compromisso com a Democracia e a Constituição, o que desconheço no atual presidente.

Meu apoio não é por adesão. Meu apoio é por um Brasil que sonho ser de todos, inclusivo, generoso, sem fome e sem miséria, com educação e saúde de qualidade, com desenvolvimento sustentável. Um Brasil com reformas estruturantes, que respeite a livre iniciativa, o agronegócio e o meio ambiente, com comida mais barata, emprego e renda.

Meu apoio é por projetos que defendo e ideias que espero ver acolhidas. Dentre tantas que julgo importantes, destaco cinco, tendo sempre a responsabilidade fiscal (âncora fiscal) como meio para alcançar o social:

Educação: ajudar municípios a zerar filas na educação infantil para crianças de três a cinco anos e implantar, em parceria com os estados, o ensino médio técnico, com período integral e conectividade, garantindo uma poupança de R$ 5 mil ao jovem que concluir o ensino médio, como incentivo para que os nossos jovens voltem à escola;

Saúde: zerar as filas de cirurgias, consultas e exames não realizados no período da pandemia, com repasse de recursos ao SUS;

Resolver o problema do endividamento das famílias, em especial das que ganham até três salários mínimos mensais;

Sancionar lei que iguale salários entre homens e mulheres que desempenham, com currículo equivalente, as mesmas funções. Esse projeto já foi aprovado no Senado Federal e encontra-se parado na Câmara dos Deputados;

Um ministério plural, com homens, mulheres e negros, todos tendo como requisitos a competência, a ética e a vontade de servir ao povo brasileiro.

Até o dia 30 de outubro, estarei nas ruas, vigilante; meu grito será pela defesa da democracia e por justiça social; minhas preces, por uma campanha de paz."

E o Brasil consagra a vilanocracia

O fenômeno político de votar nos piores sabendo que são piores é representado no Brasil pelos milhões de pessoas que votaram contra si mesmos

Jair Bolsonaro durante evento de campanha para as eleições no Brasil. (André Borges / Bloomberg)

Às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil , pairava no ar a esperança de que Jair Bolsonaro e tudo o que o atual presidente representa foi apenas um acidente histórico. A ilusão foi desfeita na própria noite de domingo, quando as urnas eletrônicas deram a notícia de que alguns dos brasileiros que haviam prestado o pior serviço público tinham assento garantido na Câmara dos Deputados e no Senado. A expectativa de que Luiz Inácio Lula da Silva pudesse ser eleito no primeiro turno também foi frustrada , conforme indicam as últimas pesquisas. Com 48,43% dos votos, contra 43,20% para Bolsonaro-diferença de mais de seis milhões de eleitores-, a disputa vai para o segundo turno com um cenário muito difícil para o ex-presidente: Lula venceu em 14 estados, enquanto Bolsonaro venceu em 12 e no Distrito Federal, mas perdeu para o atual presidente em dois dos mais importantes colégios eleitorais do país, São Paulo e Rio de Janeiro. Há quem afirme que, no Brasil, a onda conservadora veio para ficar, aninhada na extrema direita, como acontece em outros países do mundo. Eu não vejo assim. O que existe não é conservadorismo, mas algo que ainda não podemos nomear e que talvez pudéssemos chamar de vilanocracia. Chamar conservadores aqueles que votam no pior sabendo que são piores é como chamar uma cadeira de três pernas de antiguidade.

Veja: General Eduardo Pazuello, o ministro da Saúde tão incompetente que mandou oxigênio para o estado errado e deixou pacientes de covid-19 morrendo de asfixia em Manaus, mesmo tendo sido avisado que isso iria acontecer, foi o segundo deputado mais votado de Rio de Janeiro. Luiz Henrique Mandetta, seu antecessor, destituído por defender que a covid-19 deveria ser tratada com ciência, foi derrotado. Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente que causou o recorde de desmatamento na Amazônia nos últimos 15 anose que defendeu em reunião ministerial que o Governo e os seus aliados deveriam aproveitar o facto de a imprensa estar ocupada na cobertura da pandemia para “deixar passar todo o gado”, o que significava enfraquecer a legislação ambiental e aprovar leis que permitissem a depredação da selva e de outros biomas, obteve quase três vezes mais votos que a ambientalista de renome mundial Marina Silva. Conhecida como a “musa do veneno”, Tereza Cristina liderou o Ministério da Agricultura até concorrer às eleições para o Senado, período em que foram aprovados mais de 1.600 agrotóxicos. Ela foi escolhida. Damares Alves, Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos que defende que meninos usem azul e meninas usem rosa, mentiu sobre seu currículo e adotou irregularmente uma índia, ele também conquistou sua vaga no Senado. O astronauta Marcos Pontes, que verificou com os próprios olhos que a Terra é redonda, mas foi ministro da Ciência de um governo de terraplanistas, garantiu sua vaga no Senado. E o general Hamilton Mourão, vice-presidente de Bolsonaro, notável por defender a ditadura, é outro que atormentará a câmara alta.

A lista de vilões notórios escolhidos é longa. Chamar os eleitores que fazem esse tipo de escolha de conservadores não faz sentido. Conservadores legítimos devem repudiar esse equívoco. Eleger uma Ministra do Meio Ambiente que destrói o meio ambiente, uma Ministra da Saúde que destrói a saúde, uma Ministra da Mulher que chama os direitos das mulheres de "ideologia de gênero", uma Ministra da Agricultura que envenena a terra, o ar e o solo, a uma Ministra da Ciência que nega a ciência não é conservadorismo. Quando esses tipos de eleitores são chamados de conservadores, eles são legitimados. Não há nada de imoral ou antiético em ser conservador. O próprio verbo “conservar” é carregado de positividade.

O fenômeno político de votar nos piores sabendo que são piores é representado no Brasil pelas 51.072.234 pessoas que votaram contra si mesmas, que querem reeleger um presidente que imitou pessoas que morreram sufocadas pela covid-19 por pelo menos duas vezes , que quase quintuplicou o número de armas no país, que elevou o número de famintos para 33 milhões e que está levando a Amazônia a um ponto sem volta. Este é o drama do dia seguinte vivido pelos 57.259.405 brasileiros e brasileiras que votaram em Lula e os quase 10 milhões que votaram em outros candidatos. Não se trata de aprender a viver em um país com um grande contingente de conservadores, mas de descobrir como conviver com um grande contingente de pessoas que elegem vilões para governar o país. Esse é o desafio do Brasil,

Eliane Brum, a autora deste artigo, é escritora, repórter e documentarista. Autora de oito livros, incluindo "Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre el país, from Lula to Bolsonaro and Banzeiro òkòtó", uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. Web: elianebrum. com. E-mail: elianebrum.coluna@gmail.com. Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 05.10.22, às 00h:00

A preocupação de Lula

O que surpreendeu a todos foi a capacidade de Bolsonaro de impor seus candidatos mais extremistas em estados-chave

Adesivo de Luiz Inácio Lula da Silva na praia de Copacabana, Rio de Janeiro, em 3 de outubro. (Pilar Olivares / Reuters)

Que as eleições no Brasil tenham sido uma surpresa é indiscutível. As inúmeras pesquisas que previam a vitória de Lula no primeiro turno estão terrivelmente erradas , assim como aqueles que criticaram a tática de Bolsonaro de centrar seus ataques ao Partido dos Trabalhadores (PT) na questão da corrupção ao invés de insistir em questões econômicas, na fome dos mais pobres ou na tragédia da pandemia.

Lula errou ao pensar que o que lhe daria a vitória no primeiro turno seria a questão da economia e a memória de seus governos anteriores com a luta contra a pobreza. Ele tinha tanta certeza que nem mesmo apresentou um programa de governo apelando para o fato de que os triunfos de seu passado bastavam para que acreditassem nele.

E Bolsonaro estava certo, contra todas as probabilidades, quando concentrou seus ataques a Lula na questão da corrupção, que lhe rendeu um ano e meio de prisão e o fato de o Supremo ter anulado suas sentenças pouco fez por ele. Isso foi demonstrado pelo fato totalmente inesperado de que os dois grandes protagonistas da Lava Jato , o mítico ex-juiz Sérgio Moro, que havia sido ministro da Justiça de Bolsonaro, e Deltan Dallagnol, o jovem e temível promotor da República, que se consideravam acabados e que o sonho de Lula com sua possível vitória era poder vê-los julgados e presos, ambos entraram na política e foram eleitos. Moro como senador da República, sua esposa como deputada paulista e Dallagnol como o deputado mais votado em seu estado.

Essa notícia da ressurreição de alguma forma da Lava Jato com a entrada de seus grandes protagonistas no Congresso, que os blinda judicialmente e agora os torna dois grandes inimigos de Lula dentro da política, é de um ponto de vista até psicológico, a pior coisa que poderia ter acontecido com o PT e isso dará munição a Bolsonaro para continuar sua tática de tirar a poeira dos casos de corrupção de governos anteriores de esquerda.

Tudo isso vai obrigar Lula e o PT, pressionados pelos outros 9 partidos que o apoiam, a rever toda a sua estratégia para a nova batalha que se avizinha, ao mesmo tempo em que servirá ao governo de extrema-direita para continuar tentando reviver os pecados de corrupção atribuídos aos governos de Lula, que agora terão mais dificuldade em tentar negar ou minimizar.

Ao mesmo tempo, servirá para Bolsonaro em casos de corrupção em seu governo insistir na questão de escândalos de corrupção passados ​​de seus adversários políticos, que ele tentará manter vivo nas novas eleições que se avizinham.

Diante da vitória de Bolsonaro em tantos estados com sua tática de atacar impiedosamente a oposição por seus pecados de corrupção, seja Lula que seu partido, o PT, terá neste segundo turno, que se apresenta como uma nova eleição com novas incógnitas , rever seu posicionamento perante a sociedade sobre a questão da corrupção que as eleições mostraram ainda ser um assunto vivo na opinião pública. É um nervo em carne viva que a esquerda não soube enfrentar corajosamente, reconhecendo seus pecados sem tentar negá-los usando a tábua de salvação que o STF lhe lançou e que permitiu a Lula retornar com força à arena da política.

Embora possa parecer um paradoxo, apesar de Lula e os partidos que o apóiam terem conquistado o número de votos nas eleições, na realidade o que surpreendeu a todos foi a capacidade de Bolsonaro de impor seus candidatos mais extremistas nos governos de então muitos estados-chave com a possibilidade de ganhar também em São Paulo, o coração econômico e financeiro do país.

Lula fez bem em minimizar a vitória política e inesperada de seu adversário e continuar insistindo que vai acabar vencendo a batalha para voltar ao governoe tentar agora no segundo turno conquistar alguns milhões de votos dos desiludidos com a política, oferecendo-lhes dias melhores, especialmente para os mais pobres. E ao mesmo tempo, dada a realidade dos fatos, terá que apresentar um novo e concreto programa do que pretende enfrentar diante de uma realidade inesperada que surpreendeu a todos. O argumento de que ele não precisa apresentar um programa concreto sob a desculpa de que já demonstrou sua capacidade política em seus governos anteriores não lhe servirá mais. Estamos, de fato, em nível mundial, diante de uma mudança política inesperada que não pode ser ignorada e que exige uma revisão profunda do próprio conceito de democracia e dos clichês da esquerda e da direita.

Este segundo turno das eleições brasileiras, que na realidade será uma nova eleição, não deixará de revelar quão profunda é a crise política que abala o mundo globalmente e que torna difícil e perigoso descansar sobre os louros de um passado que já foi desmantelada e superada pelos novos e perigosos desafios agravados pelas garras de uma nova guerra que ninguém ainda é capaz de profetizar como ela pode terminar e que profundas mudanças pode ter na crise política que a globalização atravessa.

As velhas prescrições políticas parecem ter perdido força e as novas são apresentadas como um mistério obscuro que nem mesmo os melhores adivinhos são capazes de decifrar hoje.

João Árias, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 04.10.22, às 07h15

Um ritual moderno

Apesar de tudo, o rito eleitoral, como a lâmpada de Aladim, tem suas surpresas

O primeiro turno das eleições aconteceram no último domingo, 2, e teve como resultado a continuação do pleito. Foto: Nelson Almeida Evaristo Sá/AFP

Rituais são âncoras de tradições. Como descobriu Van Gennep, eles são as marcas dos encontros e despedidas. Novos tempos são legitimados nas democracias representativas por eleições obrigatórias (com voto secreto), cujo sentido profundo seria a de impedir a permanência dos mesmos governantes que, em alguns lugares ou - quem sabe? - em todos os lugares, desejam permanecer. O “moderno”, derivado de um evolucionismo constitutivo do mundo ocidental, supõe que mudar, fabricar ou desfazer “tradições” é progredir e que progresso é sinônimo de felicidade.

As tecnologias confirmam com dúvida a tese, mas é um erro crasso considerar que um novo aparelho implica num avanço moral ou ético (pense na bomba atômica). Prova disso são os milhões de iPhone espalhados pelo mundo dando voz a essa multidão de boçais. Falamos mais das mesmas coisas e tagarelamos com gosto sobre o que não podemos prever (como o resultado eleitoral) porque, como dizia um herói esquecido, o Sombra: “Ninguém sabe o mal que se esconde nos corações humanos, só o Sombra sabe”.

Na realeza, não há eleição. Seria um golpe que põe no poder um imbecil, como já experimentamos, e não tenho nenhuma certeza de que tais regimes não voltem porque, como diziam alguns observadores, “o Brasil não tem povo” e, como remarca o historiador José Murilo de Carvalho, quando “proclamamos” a República, o povo a tudo assistiu “bestificado”.

A beatificação faz parte de nosso esqueleto autoritário messiânico que ainda acredita que, mudando o Chefe, muda-se o filhotismo, o compadrio, a sagrada reciprocidade dos favores - essas marcas que dinamizam o nosso sistema político. Um sistema de dupla face, pois nele há o formalismo jurídico do Estado Democrático de Direito, lamentavelmente usado para legitimar o seu lado oculto: o que não honra a lei da ficha limpa e livra corruptos condenados...

O resultado é uma tradição eleitoral reacionária. Muito mais chegada a repor o passado dos reis, que sempre serão majestade, do que um ritual de renovação e de esperança porque a cada eleição surgiriam novas caras e propostas.

Mas, apesar de tudo, o rito eleitoral, como a lâmpada de Aladim, tem suas surpresas. É o que parece ter acontecido neste domingo, 2 de outubro de 2022. Houve uma “onda de direita” ou uma revelação de que o povo não esquece de pronto o roubo da boa-fé pública? Eu pensava que a cultura e os valores - honra, honestidade, coerência e humildade - estavam esquecidos. Hoje, vemos comentaristas sem saber o que dizer porque eles não sabem o que é cultura, matriz ideológica e valores.

Roberto DaMatta, o autor deste artigo, é antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.10.22 às 03h00

terça-feira, 4 de outubro de 2022

A onda reacionária

O relativo sucesso do bolsonarismo nas urnas nada tem de conservador, é só reacionário. Esquerda e direita republicanas têm o desafio de articular antídotos com mais democracia

Romeu Zema, reeleito em MG, acorreu ao Palácio da Alvorada para emprestar apoio a Bolsonaro. O Novo, partido de Zema, não ultrapassou a cláusula de barreira e agora integra à divisão dos nanicos.

A reação ao risco da volta do lulopetismo ao poder brotou forte das urnas na eleição de domingo passado. Mas não nas formas sadias do liberalismo e do conservadorismo, e sim na sua deformação: o reacionarismo. Conservadores e liberais buscam conservar liberdades fundamentais e valores universais, materializando-os progressivamente com base na estabilidade das instituições e reformas articuladas e pactuadas na arena política. O revolucionarismo progressista se opõe a esses princípios. Mas o reacionarismo também: em nome de um passado idealizado, busca autoritariamente girar a roda da História para trás, arruinando as instituições democráticas.

A democracia só é funcional quando esquerda e direita, no debate mais livre possível, encontram algum ponto em comum ao negociar políticas públicas, vencendo impasses em nome do atendimento ao conjunto da sociedade. Mas o reacionarismo opera não na dialética entre a disputa e o consenso, e sim na lógica da aniquilação. Para os extremistas à direita, assim como os à esquerda, o campo adversário é visto não como um agrupamento político que busca realizar acordos constitucionais com métodos diferentes, mas como um inimigo a ser abatido. Por isso, o bolsonarismo reacionário tem especial predileção por desqualificados – quem se notabiliza por seu total despreparo para a vida pública, como é o caso dos ex-ministros Eduardo Pazuello e Ricardo Salles, ganha lugar de destaque no palanque bolsonarista.

Desde que Jair Bolsonaro encerrou sua carreira militar ameaçando explodir bombas em quartéis, sua vida política foi pautada pela destruição e a ruptura. O saudosismo da ditadura e o revanchismo em relação à Constituição de 88 são explícitos. Nada há de conservador na desmoralização sistemática e truculenta da comunidade acadêmica, do sistema partidário ou da Suprema Corte. Como organizações humanas, estas comportam defeitos, e devem ser aprimoradas para melhor representar a vontade e a consciência populares. Mas os populistas só projetam nelas cadeias de opressão a serem rompidas por meio de mais concentração de poder nas mãos do líder que supostamente encarna o “povo”.

Como se chegou a essa situação? Como remediá-la?

O PT praticou o populismo autoritário à sua maneira: sua obsessão pela hegemonia política e sua pretensão ao monopólio moral se traduziram na sua aversão às composições, na demonização dos adversários à direita e na desmoralização de dissidentes à esquerda. A impaciência da população com o PT se desfraldou em manifestações multitudinárias que foram capitalizadas pela ferocidade antipetista de Bolsonaro em 2018.

No entanto, se a onda disruptiva não arrefeceu, mas cresceu, é pelos desmazelos da própria direita. A população conservadora nunca teve problemas em confiar seu voto a partidos formados na redemocratização que muitas vezes nem sequer propunham as pautas mais caras à direita, como o PSDB, desde que se comprometessem a conter a “república sindicalista” e outras utopias petistas. Mas, à medida que esses partidos perderam identidade, transigindo com retrocessos petistas e entregando-se ao tráfico fisiológico ou disputas fratricidas, criou-se um vácuo de poder.

Para muito além dessas eleições, a direita e a esquerda republicanas têm um imenso desafio. A esquerda terá de fazer brotar e cultivar novas lideranças no deserto de alternativas deixado pelo culto lulopetista. A direita precisará não tanto se renovar, mas se inventar. A ditadura legou seu próprio deserto, e inexistem no Brasil partidos conservadores liberais (como o centenário Republicano, nos EUA, ou os Tories, no Reino Unido) ou sociais (como as democracias cristãs que reconstruíram a Europa no pós-guerra), ou meramente liberais.

Como dizia Nelson Rodrigues, “o subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”. O neorreacionarismo brasileiro é, no mínimo, obra de décadas. As eleições mostram que chegou para ficar. A reconstrução da República também não se dará no improviso. Ela exigirá composições das forças republicanas conservadoras e progressistas. Não se pode dizer de antemão se serão logradas nem em quais termos. O certo é que só há um meio para tanto: mais democracia, não menos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 04.10.22, às 03h00