quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Um ritual moderno

Apesar de tudo, o rito eleitoral, como a lâmpada de Aladim, tem suas surpresas

O primeiro turno das eleições aconteceram no último domingo, 2, e teve como resultado a continuação do pleito. Foto: Nelson Almeida Evaristo Sá/AFP

Rituais são âncoras de tradições. Como descobriu Van Gennep, eles são as marcas dos encontros e despedidas. Novos tempos são legitimados nas democracias representativas por eleições obrigatórias (com voto secreto), cujo sentido profundo seria a de impedir a permanência dos mesmos governantes que, em alguns lugares ou - quem sabe? - em todos os lugares, desejam permanecer. O “moderno”, derivado de um evolucionismo constitutivo do mundo ocidental, supõe que mudar, fabricar ou desfazer “tradições” é progredir e que progresso é sinônimo de felicidade.

As tecnologias confirmam com dúvida a tese, mas é um erro crasso considerar que um novo aparelho implica num avanço moral ou ético (pense na bomba atômica). Prova disso são os milhões de iPhone espalhados pelo mundo dando voz a essa multidão de boçais. Falamos mais das mesmas coisas e tagarelamos com gosto sobre o que não podemos prever (como o resultado eleitoral) porque, como dizia um herói esquecido, o Sombra: “Ninguém sabe o mal que se esconde nos corações humanos, só o Sombra sabe”.

Na realeza, não há eleição. Seria um golpe que põe no poder um imbecil, como já experimentamos, e não tenho nenhuma certeza de que tais regimes não voltem porque, como diziam alguns observadores, “o Brasil não tem povo” e, como remarca o historiador José Murilo de Carvalho, quando “proclamamos” a República, o povo a tudo assistiu “bestificado”.

A beatificação faz parte de nosso esqueleto autoritário messiânico que ainda acredita que, mudando o Chefe, muda-se o filhotismo, o compadrio, a sagrada reciprocidade dos favores - essas marcas que dinamizam o nosso sistema político. Um sistema de dupla face, pois nele há o formalismo jurídico do Estado Democrático de Direito, lamentavelmente usado para legitimar o seu lado oculto: o que não honra a lei da ficha limpa e livra corruptos condenados...

O resultado é uma tradição eleitoral reacionária. Muito mais chegada a repor o passado dos reis, que sempre serão majestade, do que um ritual de renovação e de esperança porque a cada eleição surgiriam novas caras e propostas.

Mas, apesar de tudo, o rito eleitoral, como a lâmpada de Aladim, tem suas surpresas. É o que parece ter acontecido neste domingo, 2 de outubro de 2022. Houve uma “onda de direita” ou uma revelação de que o povo não esquece de pronto o roubo da boa-fé pública? Eu pensava que a cultura e os valores - honra, honestidade, coerência e humildade - estavam esquecidos. Hoje, vemos comentaristas sem saber o que dizer porque eles não sabem o que é cultura, matriz ideológica e valores.

Roberto DaMatta, o autor deste artigo, é antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.10.22 às 03h00

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