sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Risco de golpe bolsonarista cai, mas o de confusões continua alto

Só estaremos seguros mesmo quando Bolsonaro estiver no xadrez

Posse de Alexandre de Moraes no TSE - Mateus Vargas - /Folhapress

Menos de uma semana após a sociedade civil ter afirmado de forma crível que não aceitará um golpe, foi a vez de a classe política dizer o mesmo. A mensagem foi dada na posse do ministro Alexandre de Moraes como presidente do TSE. A impressionante salva de palmas que as urnas eletrônicas receberam no discurso de Moraes mostrou que não será fácil desacreditar o sistema de contagem de votos. A Bolsonaro, que estava no evento, só restou fazer cara de tacho.

Isso significa que agora o presidente vai parar com a pregação golpista? Não é tão simples. Até acho que Bolsonaro entendeu que as resistências a seu plano de pôr as eleições sob suspeição serão maiores do que ele antecipava, mas daí não decorre que a estratégia será abandonada. O problema de Bolsonaro é que, quando acuado, ele só sabe reagir radicalizando.

Bolsonaro, porém, não era o único destinatário dos recados. Os comandantes militares também os ouviram e espera-se que os tenham assimilado de forma mais madura que o presidente. Isso significa que estamos livres do risco de insurreições pós-eleitorais? De novo, não é tão simples. Não creio que as Forças Armadas entrarão numa aventura golpista, mas não é impossível que eleitores de Bolsonaro, eventualmente militares, policiais ou só valentões, o façam por conta e risco. Foi um pouco esse o perfil dos revoltosos que invadiram o Capitólio em Washington em 2021.

Com um exército de Brancaleone fica difícil ter êxito numa empreitada sediciosa, mas é o que basta para criar confusão. Pessoas meio malucas, armadas e agindo sem comando hierárquico e sem objetivos definidos ficam ao sabor de flutuações quânticas. Podem tanto acovardar-se ao primeiro sinal de resistência quanto envolver-se em incidentes com mortes, como ocorreu nos EUA.

A defesa das instituições está hoje em melhor posição do que há 15 dias, mas só estaremos seguros mesmo quando Bolsonaro estiver no xadrez.

Hélio Schwartsman, o autor deste artigo, é Jornalista. Foi editor de Opinião da Folha de S. Paulo. É autor de "Pensando Bem…". Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 18.08.22, às 18h02

'Putain du Centrao': cobertura global tenta traduzir 'tchutchuca'

Francês Le Figaro e argentino La Nación usam alternativas como 'perrita del Centrao'; outros evitam expressão ao noticiar

Apoiada em vídeo, a notícia do confronto físico entre Jair Bolsonaro e o influenciador Wilker Leão deu volta ao mundo, com a cobertura se esforçando para traduzir "tchutchuca do Centrão", um dos insultos usados contra o presidente-candidato.

O conservador francês Le Figaro, com AFP, usou "putain du Centrao", prostituta do Centrão, e explicou que Leão perguntou "por que ele havia se aliado a uma nebulosa de partidos que comercializam seu apoio para obter vantagens".

O Washington Post, com AP, descreveu o insulto como "the 'darling' of a pork-barrel faction in Congress", o "queridinho" de uma facção clientelista no Congresso. E ouviu de um analista da Medley Advisors que "foi muito ruim para o presidente em termos eleitorais, mostra falta de contenção".

Outros americanos, como Bloomberg, noticiaram sem a expressão. "Tchutchuca", registre-se, já havia levado a um esforço de tradução no exterior há três anos, quando o deputado Zeca Dirceu usou a palavra para se referir ao ministro Paulo Guedes.

O vídeo chegou a sites como o diário econômico NBD, de Xangai (acima). O jornal Huanqiu, o original em chinês do Global Times, e o portal Sohu noticiaram, traduzindo "tchutchuca" como 宠儿 ou chǒng ér, que significa "queridinho", no caso, "dos membros do Congresso envolvidos na alocação de verbas".

Em russos como Gazeta.Ru e a emissora OTR, destacados pelo agregador Yandex, a expressão foi evitada, falando genericamente em "perguntas desconfortáveis" e "obscenidades".

Alemães como Der Spiegel também evitaram, mas não a RND, que traduziu o insulto por "liebling politischer hinterwäldler", algo como "queridinho dos políticos caipiras" ou do interior.

Na Argentina, o Página/12, usualmente mais severo com Bolsonaro, também evitou, mas o conservador La Nación não se conteve: "perrita del Centrao", cadelinha do Centrão.

Nelson de Sá, o autor deste texto, é Jornalista. Publica a coluna Toda Mídia e cobre cultura e tecnologia para a Folha de S. Paulo. O texto acima foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 19.98.22, às 12h51.

Jornalista, publica a coluna Toda Mídia e cobre cultura e tecnologia

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A diferença entre direito e regalia

Indenizações generosas pagas a militares que passam para reserva distorcem direito à proteção social da categoria

O pagamento de generosas remunerações a militares nos últimos anos, revelado recentemente pelo Estadão, expõe de forma cristalina um dos elos que sustentam a relação entre o presidente Jair Bolsonaro e as Forças Armadas. 

No auge da pandemia de covid-19, quando o País buscava uma forma de ajudar milhões de famílias vulneráveis e contabilizava milhares de mortes diárias em decorrência de uma doença ainda sem vacinas nem tratamento eficaz, o governo depositava valores milionários a militares como Walter Braga Netto e Bento Albuquerque, que ocupavam os Ministérios da Casa Civil e de Minas e Energia à época, e a Luiz Eduardo Ramos, à frente da Secretaria-Geral da Presidência da República.

Os dados, levantados pelo deputado Elias Vaz (PSB-GO), jogam luz sobre benesses exclusivas, que garantem à categoria militar a invejável condição de aumentar a renda na aposentadoria – chamada de passagem para a reserva. O Ministério da Defesa argumentou haver amparo legal em todos os pagamentos, que incluíram indenizações por férias, adicionais e licenças especiais não usufruídas ao longo da carreira. A força do relatório do deputado está na revelação de que a situação dos ministros não é caso isolado. Quase 1,6 mil militares receberam mais de R$ 100 mil por mês entre janeiro e maio deste ano, totalizando despesas de R$ 262,5 milhões. Entre os contemplados está o ex-ministro Eduardo Pazuello, conhecido pela ruinosa gestão à frente do Ministério da Saúde e por ter violado a disciplina militar ao participar de um comício bolsonarista quando ainda era general da ativa. Ele recebeu R$ 305,4 mil em março.

É um fenômeno que o colunista Pedro Fernando Nery, do Estadão, chamou de “marechalcracia”, que garante aos militares uma promoção de patente na passagem para a reserva, a integralidade dos vencimentos e o direito de se aposentar com a maior remuneração da carreira. Aos privilégios que já vigoram há anos, Bolsonaro adicionou novos apanágios. No ano passado, permitiu que os militares acumulassem salários e aposentadorias acima do teto constitucional de R$ 39,2 mil, medida autorizada por portaria e que beneficiou inclusive o próprio presidente. Recentemente, criou um bônus para o militar que continua trabalhando mesmo depois de atingir o tempo para passar à reserva. Aos trabalhadores civis que se aposentam pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), resta arcar com um benefício calculado a partir da média das contribuições e limitado a um teto de pouco mais de R$ 7 mil, que proporciona um padrão de vida bem mais modesto.

O assunto suscita o debate sobre a diferença entre legalidade e moralidade. As indenizações militares podem até não violar nenhuma lei, mas são constrangedoras do ponto de vista moral, considerando os valores auferidos e o momento em que eles foram pagos. Como instituições permanentes de Estado, as Forças Armadas exigem dedicação exclusiva de seus quadros; em contrapartida, o País oferece uma proteção social permanente aos que seguem a carreira e às suas famílias. É um direito que deve ser preservado, mas que não pode ser distorcido ou usado como pretexto para a concessão de regalias.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.08.22

Demonstração de união contra o golpismo

Ao expressar firme união do País em torno da democracia e do TSE, cerimônia de posse de Alexandre de Moraes foi auspiciosa. Não há espaço para devaneios golpistas  

Em tempos normais, a cerimônia de posse de um novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é ato meramente protocolar e burocrático. Como não vivemos tempos normais, a posse do ministro Alexandre de Moraes na presidência do TSE, anteontem, foi meticulosamente organizada para expressar a imperturbável disposição de fazer valer a vontade dos eleitores nas eleições de outubro, ante as ameaças golpistas do presidente Jair Bolsonaro.

Além do próprio presidente Bolsonaro, estiveram presentes os presidentes da Câmara e do Senado, o presidente do Supremo Tribunal Federal, quatro ex-presidentes da República, numerosas autoridades de diversas esferas, parlamentares, candidatos e lideranças da sociedade civil. Ou seja, a República compareceu em peso para ouvir o ministro Alexandre de Moraes garantir que o sistema eleitoral, difamado por Bolsonaro, é seguro e transparente. Foi aplaudido de pé.

A cerimônia de posse do novo presidente do TSE expressou a firme união do País em torno da democracia e de sua Justiça Eleitoral. As urnas eletrônicas não são um tema que cause divisão na sociedade. Ao contrário: como mostraram os atos suprapartidários em favor do atual sistema de votação na semana passada, a campanha bolsonarista contra o sistema eleitoral é artificial e minoritária. Sem provas e sem apoio, Jair Bolsonaro, claramente deslocado na cerimônia do TSE, está cada vez mais solitário na tentativa de difamar e bagunçar as eleições brasileiras.

Com o auditório do TSE inteiramente lotado, Alexandre de Moraes disse que a cerimônia de posse simbolizava “o respeito pelas instituições como único caminho de crescimento e fortalecimento da República e a força de democracia como único regime político onde todo poder emana do povo e deve ser exercido pelo bem do povo”. Ou seja, se os tempos têm um evidente caráter excepcional, com o presidente da República tentando interferir explicitamente no processo eleitoral, é também evidente que o País e suas instituições estão do lado da democracia. Não há espaço para devaneios golpistas.

“Somos a única democracia do mundo que apura e divulga os resultados eleitorais no mesmo dia, com agilidade, segurança, competência e transparência. Isso é motivo de orgulho nacional”, disse o novo presidente do TSE, sendo ovacionado pela plateia. Eis a resposta da sociedade aos ataques de Bolsonaro: uma união ainda mais forte, um reconhecimento ainda mais explícito, um aplauso ainda mais entusiasmado à Justiça Eleitoral.

As palmas eram também um reconhecimento do trabalho feito até aqui pelo anterior presidente do TSE, ministro Edson Fachin. Nas justas palavras do corregedor-geral da Justiça Eleitoral, ministro Mauro Campbell Marques, Edson Fachin mostrou na presidência do TSE um firme compromisso com o exercício do diálogo, com a transparência e com a harmonia institucional entre seus integrantes.

Com suas circunstâncias peculiares, a cerimônia de posse do novo presidente do TSE serviu para reiterar um aspecto fundamental do processo eleitoral: seu caráter civil. Os militares não foram citados nos discursos. E essa ausência, longe de representar qualquer menoscabo, é importante reconhecimento do papel constitucional das Forças Armadas. Respeitam-se os militares respeitando suas funções, que nada têm a ver com contagem de votos.

Ao expressar a firme união do País em torno da democracia e do TSE, a cerimônia de posse foi especialmente auspiciosa. Mas os desafios continuam. Como lembrou Alexandre de Moraes, “liberdade de expressão não é liberdade de agressão, de destruição da democracia, das instituições, da dignidade e da honra alheias”. O novo presidente do TSE prometeu uma atuação da Justiça Eleitoral célere, firme e implacável no combate à desinformação e a outras práticas abusivas, de forma a “proteger a integridade das instituições do regime democrático e a vontade popular”.

Em sua fala, o procurador-geral da República, Augusto Aras, garantiu que o Ministério Público “respeita o voto votado e o voto apurado” e que está especialmente atento à defesa do sistema eleitoral. É o que o País espera. 

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 18.08.22

Chamado de 'tchutchuca do Centrão', Bolsonaro reage e puxa camisa de youtuber; veja o vídeo

Influencer Wilker Leão, que costuma gravar vídeos provocando bolsonaristas no Palácio da Alvorada, também chamou presidente de covarde

O presidente Jair Bolsonaro se envolveu em uma confusão ao agarrar a camisa e tentar tirar o celular de um youtuber após ser provocado durante conversa com apoiadores na manhã desta quinta-feira, ao deixar o Palácio da Alvorada, em Brasília. Wilker Leão, que tem um canal na internet, chamava o presidente de "tchutchuca do Centrão" e questionava medidas tomadas por Bolsonaro, quando foi confrontado pelo presidente. O vídeo da confusão foi publicado pelo portal G1.

Perfil: Saiba quem é Wilker Leão, youtuber que irritou Bolsonaro ao chamá-lo de 'tchutchuca do Centrão'

Antes do embate com Bolsonaro, Wilker já havia sido derrubado no chão por apoiadores do presidente. O influencer costuma ir à saída do Alvorada para gravar vídeos nos quais provoca Bolsonaro e militantes bolsonaristas. Em abril deste ano, Wilker já havia discutido com o presidente após questionar Bolsonaro sobre declarações a respeito da realidade de cabos e soldados do Exército nos quartéis.

No episódio desta quinta-feira, Bolsonaro cumprimentava apoiadores na saída do Palácio do Alvorada quando começou a ser questionado por Wilker:

— Por que o senhor limitou delação premiada, presidente? — perguntou, sendo empurrado em seguida.

Após a queda, Wilker Leão perguntou a Bolsonaro o que ele achava desta violência e foi ignorado pelo presidente, o influencer, no entanto, continuou gritando xingamentos em meio aos bolsonaristas:

—Quero ver se você é corajoso de sair para conversar comigo, tchutchuca do Centrão. O Lula é ladrão também, mas esse aí está fazendo tudo que o PT faz, senão o PT volta — disse Wilker Leão. — Seu covarde, tchutchuca do Centrão. Safado! Você é vagabundo.

Após essas falas, o presidente saiu do carro e foi em direção a Wilker tentando tirar o celular da mão do influencer.

— Vem cá, quero falar contigo, vem cá— disse Bolsonaro enquanto puxava o youtuber pela camisa e segurava seu braço.

Paula Ferreira, de Brasília-DF para O Globo, em 18.08.22 

Nova Lei de Improbidade: STF veta anistia de condenações definitivas, mas poupa políticos investigados ou com processos pendentes

Reforma na legislação acabou com modalidade culposa dos atos de improbidade

Supremo Tribunal Federal vetou anistia de políticos condenados por atos de improbidade culposos. Foto: Felipe Sampaio/STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 18, que as mudanças na tipificação da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), em vigor desde outubro do ano passado, valem para investigações em curso e processos ainda sem sentença definitiva. A decisão barra a anistia de políticos condenados com base na versão anterior da lei.

A reforma legislativa não prevê mais punição para os atos de improbidade “culposos” – cometidos por negligência, imprudência ou imperícia. Apenas atos deliberados de corrupção foram mantidos na nova lei. Essa era uma bandeira da classe política, que reclamava de condenações consideradas injustas e da falta de segurança para os gestores públicos. Para promotores e procuradores, a extinção da forma culposa favorece a impunidade e enfraquece o combate à corrupção.

A maioria dos ministros votou para manter as condenações culposas transitadas em julgado (quando não há mais possibilidade de recurso) e poupar políticos investigados ou que brigam na Justiça para reverter sentenças desfavoráveis.

O resultado do julgamento, no entanto, não tem efeito automático sobre inquéritos e processos em andamento. Caberá aos investigadores e juízes responsáveis analisar cada caso para verificar se houve intenção do político em transgredir as regras da boa administração pública.

Apenas os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia foram contra a revisão das ações e investigações em tramitação.

Prescrição

Outro ponto em discussão no julgamento era o efeito das alterações nos prazos prescricionais previstos na Lei de Improbidade, ou seja, o tempo máximo para que o Estado possa processar o agente público por improbidade administrativa.

Com a reforma legislativa, o Congresso adotou um modelo híbrido que combina balizas do Direito Penal e do Direito Processual. De um lado, a prescrição principal, contada a partir da data em que foi cometido o ato de improbidade, passou de cinco para oito anos. De outro, foi instituída a chamada “prescrição intercorrente”, que leva em consideração a duração do processo, e tem prazo máximo de quatro anos. A ideia foi evitar o prolongamento das ações de improbidade e o desgaste à imagem dos políticos processados enquanto aguardam o fim do processo.

A maioria dos ministros decidiu que os novos prazos só valem para processos iniciados depois que a nova lei entrou em vigor.

Rayssa Motta/São Paulo e Weslley Galzo/Brasília para O Estado de S. Paulo, em 18.08.22.

Superação da pobreza precisa incluir incentivo ao trabalho, diz um dos criadores do Bolsa Família

Um dos idealizadores do programa Bolsa Família durante o primeiro governo Lula, mas também atuante nas gestões Michel Temer e Jair Bolsonaro, o economista Ricardo Paes de Barros se diz pronto para colaborar com as políticas de combate à pobreza e à desigualdade de qualquer que seja o próximo governo.

Ricardo Paes de Barros sugere programa social para além da transferência de renda e diz que pobreza no Brasil mudou de característica (Foto divulgação INSPER)

"Isso não quer dizer que eu não tenha minhas preferências de qual seja o próximo governo", diz Paes de Barros, entre risos.

Consignado do Auxílio Brasil: o que pensa quem vai pegar empréstimo e quem vai passar longe

Nesta quinta-feira (18/8), ele apresenta em um seminário no Insper, em São Paulo, o artigo inédito Diretrizes para o desenho de uma política para a superação da pobreza, ao qual a BBC News Brasil teve acesso em primeira mão.

No documento, escrito em parceria com Laura Muller Machado, secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo e também professora do Insper, os dois economistas apresentam sugestões a partir de um pressuposto simples.

"Uma efetiva e duradoura superação da pobreza só ocorre quando há geração de renda pelo trabalho de forma autônoma. Portanto, a superação da pobreza requer um processo de inclusão produtiva bem-sucedido", diz logo de início o estudo.

Machado e Paes de Barros propõem um modelo de assistência social que combina transferência de renda focalizada (isto é, com foco em quem mais precisa), a exemplo do Bolsa Família e do Auxílio Brasil, com um acompanhamento individualizado das famílias vulneráveis por agentes públicos.

Nesse acompanhamento, agente social e família construiriam em conjunto um "plano personalizado de desenvolvimento familiar", para coordenar os esforços dos membros da família e a oferta local de serviços e oportunidades, com objetivo de superar a pobreza, tendo como pilar central a geração de renda autônoma pelas pessoas através do trabalho.

Questionado se a proposta não pode ser entendida como uma responsabilização individual da família por uma pobreza que advém de questões sociais e estruturais, Paes de Barros admite que o projeto contém "um componente ideológico forte" — ele é um economista de viés liberal, com doutorado pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.

"Sim, esse plano responsabiliza a família. Ele está dizendo: 'você, com os talentos que você tem, consegue sair da pobreza, mesmo vivendo num país desigual'", diz Paes de Barros.

"Essas famílias são pobres não por falta de talento, mas por falta de oportunidades. O que esse programa vai fazer é 'dar um balão' no capitalismo selvagem, levando essas famílias àquelas oportunidades que não chegaram nelas", acrescenta o economista.

"A ideia desse programa é as pessoas voltarem a ter um projeto de vida, voltarem a sonhar com uma vida melhor e mostrar que, com o devido apoio da sociedade, esse sonho pode ser concretizado, não precisa de uma revolução para garantir a superação da pobreza."

O Bolsa Família, mais bem sucedido programa social do país, foi concebido durante o primeiro governo Lula por um grupo de economistas liberais, como Marcos Lisboa, Ricardo Henriques, José Márcio Camargo e o próprio Paes de Barros.

O projeto enfrentou resistências dentro do governo e também em setores do PT, mas foi encampado pelo então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

'A cara da pobreza mudou'

Pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) por mais de 30 anos e subsecretário de Ações Estratégicas durante o governo de Dilma Rousseff (PT), entre 2011 e 2015, Paes de Barros explica que as diretrizes desenhadas por ele e Laura Machado — secretária no governo do tucano Rodrigo Garcia — partem de uma percepção de que houve uma mudança no caráter da pobreza no Brasil.

Ele observa que a pobreza diminuiu no país entre o início dos anos 2000 e 2014, voltando a subir desde então, numa tendência que se manteve mesmo com a retomada do crescimento da economia e da geração de emprego.

Gráfico de linha mostra a evolução da extrema pobreza no Brasil entre 1992 e 2021

Pobreza diminuiu no país entre o início dos anos 2000 e 2014, voltando a subir desde então. Gráfico produzido a partir de dados da Pnad (1992-2015) e Pnad Contínua (2012-2021) do IBGE (Crédito INSPER)

"A cara da nossa pobreza mudou. Antigamente, o pobre era o cara que o avô, o pai e ele trabalharam a vida toda, 10 horas por dia, e eram pobres. Agora, temos uma pobreza diferente, porque a taxa de ocupação dos pobres caiu dramaticamente, embora a vontade deles de trabalhar continue lá em cima", diz o economista.

Ele observa que isso se reflete na taxa de desemprego, de pessoas trabalhando menos horas do que gostariam e de pessoas que desistiram de procurar trabalho entre os mais pobres.

Exemplo disso é que 81% dos 3,7 milhões de brasileiros sem emprego há mais de dois anos pertencem às classes D e E. Entre 2015 e 2021, o número de pessoas sem emprego há mais de 48 meses nessas classes sociais avançou 173%, segundo levantamento da Tendências Consultoria noticiado pelo jornal O Estado de S. Paulo.

"Tem uma clara evidência de que a nossa pobreza migrou de ser de insuficiência de salário, para ser de falta de trabalho. Não é que a economia não tenha trabalho, mas as pessoas mais pobres têm muita dificuldade de se reconectar ao mundo do trabalho", avalia.

"Temos então que reconstruir essa conectividade dos mais pobres com a economia brasileira, num esforço coletivo e em novas bases. Vamos ter que levar muito a sério o talento dessas pessoas, promovendo uma inserção mais moderna, produtiva, sustentável e permanente."

Voltar ao Brasil sem Miséria

Segundo Paes de Barros, o modelo que está sendo proposto é muito similar ao do plano Brasil sem Miséria, lançado em 2011 pelo governo de Dilma Rousseff.

Esse plano, diz ele, era baseado em três pilares: direito ao trabalho, transferência de renda e garantia de outros direitos sociais, como acesso à água, luz e habitação.

Dilma Rousseff em cerimônia de comemoração de 1,5 milhão de beneficiados pelo plano Brasil sem Miséria (Roberto Stukert / Pres. da República)

"O desenho do Brasil sem Miséria é o que tem de mais moderno em nível mundial. Tinha muita coisa a melhorar no programa, mas ele estava absolutamente na direção certa. O que o Brasil tem que fazer é voltar ao Brasil sem Miséria", defende Paes de Barros.

Questionado sobre o que deu errado com o programa e por que ele não foi bem-sucedido em seu intuito de acabar com a miséria no país, Paes de Barros avalia que o plano perdeu prioridade no governo Dilma, já antes do impeachment sofrido pela ex-presidente.

"Teve uma descontinuidade do Brasil sem Miséria antes da transição [entre governos]. Por razões que eu não sei por quê. Mas precisamos de um 'Brasil sem Miséria 2', cujo pilar central seja a inclusão produtiva. O pilar da transferência de renda deve ser complementar, mas não é ele que vai superar a pobreza", afirma.

"O erro do Brasil pós-Tereza Campello [titular do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome entre 2011 e 2016] foi o foco exclusivo em transferência de renda."

Diretrizes para superar a pobreza

O programa idealizado por Paes de Barros e Laura Machado é baseado em cinco eixos:

foco em quem mais precisa (focalização);

atendimento personalizado e integrado;

acesso prioritário dos que mais precisam a serviços e oportunidades;

confiança das famílias e dos agentes públicos de que superar a pobreza pela inclusão produtiva é possível;

e contínuo monitoramento, avaliação e correção de rotas.

Os economistas observam que a focalização tem uma vantagem orçamentária.

Por exemplo, garantir uma renda mínima de R$ 210 (atual linha de pobreza do Programa Auxílio Brasil) para todos os 213 milhões de brasileiros custaria R$ 536 bilhões por ano, ou 6,2% do PIB (Produto Interno Bruto, soma dos bens e serviços produzidos pelo país).

Já com transferências focadas nos 14% da população com renda inferior a R$ 210 por pessoa, e considerando que parte dessas famílias têm alguma renda, é possível atingir o mesmo objetivo de que todos os brasileiros tenham uma renda mínima de R$ 210 com um gasto de R$ 51,3 bilhões por ano, ou 0,6% do PIB.

Programas sociais focalizados, como o Bolsa Família, têm uma vantagem orçamentária, mas desincentivam aumento de renda através do trabalho, pois isso resulta em uma redução do benefício (Lampert Zart / Ag. Brasil)

No entanto, a focalização tem uma desvantagem: como ganha mais quem tem renda menor, as pessoas têm um desincentivo para aumentar sua renda através do trabalho, pois isso resulta numa redução das transferências recebidas pelo governo.

Assim, os economistas sugerem dois caminhos para contornar esse problema: o primeiro é que a redução do benefício tem que ser menor do que o ganho de renda obtido pela pessoa através do trabalho. O segundo, é que a diminuição da transferência deve acontecer com uma distância no tempo.

Um exemplo, dizem eles, é o dispositivo de emancipação do Auxílio Brasil (que também estava presente no Bolsa Família). Com esse dispositivo, uma família que superar a pobreza através de um aumento na sua renda do trabalho continua a receber as transferências por mais dois anos.

Planos familiares personalizados

O segundo eixo proposto pelos dois especialistas em políticas públicas é o atendimento personalizado às famílias.

Eles avaliam que isso é plenamente possível, graças à rede de quase 9 mil Centros de Referência da Assistência Social (Cras), localizados em cerca de 5.500 (99%) dos 5.570 municípios brasileiros.

Somente os Cras contam com 111 mil agentes e o país tem ainda aproximadamente 300 mil agentes comunitários de saúde, com profundo conhecimento das comunidades onde atuam, destacam Paes de Barros e Machado.

Célia Barros (de amarelo) recebeu doações após seu filho Miguel (segundo à esquerda), de 11 anos, ligar para a polícia por estar com fome, em Santa Luzia, região metropolitana de Belo Horizonte (AFP)

"A consequência da pobreza é a mesma: são direitos sociais violados — falta de trabalho, insegurança nutricional, problemas de habitação e saneamento, etc. Mas a causa da pobreza é diferente para cada família", defende Paes de Barros.

"Um erro grosseiro da política atual é achar que vai resolver o problema da pobreza no anonimato. Ou seja, eu não sei quem é o pobre, mas vou fazer uma política para tirar ele da pobreza. É o mesmo que querer resolver o problema da saúde sem o doente ficar frente a frente com o médico. Não tem como", afirma.

Assim, o economista defende que cada família trabalhe com um agente público, primeiro identificando os fatores determinantes de sua pobreza e então mapeando as oportunidades e assistências necessárias para superá-la.

Esse trabalho seria acompanhado pelo agente ao longo do tempo, com monitoramento, avaliação e correção de rotas constantes — o que, na visão dos autores, também é uma forma de manter a família engajada, já que o sucesso do plano depende de a família acreditar nele.

E para que o plano possa ser executado, a família deve ter acesso ao serviços necessários — como creches, educação integral e centros-dia para idosos, para permitir que os adultos da família possam trabalhar; serviços de saúde, para garantir bem estar nutricional, físico e mental a esses trabalhadores; e de transporte, para assegurar a ida e volta ao trabalho com menor tempo e gasto de recursos.

Os pesquisadores também sugerem uma gama de serviços para quem busca ou já tem um emprego, e para quem quer trabalhar por conta própria ou ter um pequeno negócio.

Esses serviços vão desde a intermediação de mão de obra e formação profissional, até o subsídio para aquisição de insumos, disponibilidade de crédito a juros baixos e assistência técnica aos pequenos empresários.

Como garantir trabalho nos pequenos municípios

A BBC News Brasil perguntou a Paes de Barros como levar esse plano a cabo, diante da realidade dos pequenos municípios brasileiros, onde não há oferta de empregos.

Um levantamento realizado pela Folha de S. Paulo, com dados do Ministério da Cidadania e da Secretaria Especial do Trabalho, mostrou, por exemplo, que em metade (50,3%) dos municípios do país o número de famílias beneficiárias do Auxílio Brasil supera o de empregados com carteira assinada.

No Nordeste, beneficiários superam empregados em 94% dos municípios e, no Norte, em 82%.

Isso acontece devido ao baixo dinamismo da economia dos pequenos municípios, altamente dependentes do setor público, tanto para a geração de postos de trabalho, quanto para transferência de recursos, segundo especialistas ouvidos pelo jornal.

Para Paes de Barros, a solução está em arranjos produtivos locais.

"A maior parte do Brasil, e as partes mais pobres do Brasil, tem recursos naturais, potencialidades e vantagens comparativas. Basta usar isso bem", afirma, citando como exemplos o arranjo produtivo do mel no Piauí e o da pesca no norte do Maranhão.

Cooperativa de mel no município de Piracuruca, no Piauí (Gov. do Piauí)

"O emprego que temos que ter não é emprego público e não é necessariamente emprego formal. O que queremos é trabalho de alta qualidade, isso pode ser via cooperativa de produtores e de várias outras maneiras. Ninguém precisa ser empregado de uma grande empresa, mas é preciso descobrir qual é o talento de cada local e desenvolver esse talento."

Segundo ele, isso poderá ser feito com a ajuda do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas). "O Sebrae tem que entrar em campo e baixar a bola para cuidar do realmente pobre, porque ele ainda tem um ponto de corte muito alto", opina.

Como será o Brasil de 2023, após o auxílio de R$ 600

E como fazer a transição do Auxílio Brasil elevado a R$ 600 pelo governo Jair Bolsonaro às vésperas da eleição, para esse programa complexo, onde a superação da pobreza pode levar anos até que as famílias consigam sua autonomia através do trabalho?

"O Auxílio Brasil é pessimamente focalizado e o Cadastro Único está ridiculamente desatualizado", avalia Paes de Barros.

"Temos que melhorar dramaticamente a focalização. Então tem gente que vai perder? Tem. Gente que não precisa, ou que precisa muito menos. Vamos focalizar e redesenhar, porque dar R$ 600 para uma família de uma pessoa e R$ 600 para uma família de sete pessoas não faz nenhum sentido", sentencia.

Segundo ele, o resultado desse redesenho deve ser ter menos beneficiários, recebendo mais — em agosto desse ano, o Auxílio Brasil chegou a 20,2 milhões de famílias, segundo o Ministério da Cidadania.

"O objetivo é reduzir dramaticamente a distância entre quem está passando fome e quem é classe média baixa, concentrando os benefícios nos mais pobres. É preciso dar a garantia de uma renda a essas pessoas e a implementação do projeto de vida é o segundo pilar", afirma.

Para Paes de Barros, destinar mais recursos ao Auxílio Brasil foi uma boa ideia, mas isso foi feito pelo atual governo de maneira tecnicamente tosca e pouco eficaz.

Auxílio turbinado e consignado: as medidas para injetar dinheiro no bolso dos brasileiros a 2 meses da eleição

Quanto ao empréstimo consignado do Auxílio Brasil, também parte do pacote eleitoral de Bolsonaro, o economista avalia que a possibilidade de tomar dinheiro emprestado é algo positivo, mas isso deveria vir junto com educação financeira e uma legislação impedindo a cobrança de juros abusivos.

"A ideia de dar mais uma opção para o cara do que ele pode fazer com o dinheiro dele é boa, mas isso teria que vir junto com uma série de medidas para que ninguém possa abusar desse dispositivo para se apropriar da renda dessas pessoas de uma maneira indevida. A ideia em si é boa, mas como está sendo feito é péssimo", conclui.

Thais Carrança - @tcarran,da BBC News Brasil em São Paulo

(Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62526942)

terça-feira, 16 de agosto de 2022

1,6 mil militares receberam mais de R$ 100 mil líquidos por mês

Supersalários foram pagos de janeiro a maio de 2022; maior vencimento foi de R$ 603 mil livres, já após descontos

O mais bem pago da lista é um coronel, lotado no Comando do Exército. Em abril, ele recebeu R$ 603.398,92.

De janeiro a maio deste ano, 1.559 militares das três Forças Armadas tiveram pagamentos líquidos de mais de R$ 100 mil por mês. Juntos, os profissionais receberam R$ 262,5 milhões já depois dos descontos, como Imposto de Renda e contribuição para a Previdência dos militares.

A lista dos beneficiados inclui oficiais que integraram o governo de Jair Bolsonaro (PL), como o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello – em março, o general teve rendimentos líquidos de R$ 305,4 mil, ao passar para a reserva remunerada do Exército. O ex-ministro da Saúde, porém, está longe do topo da lista dos maiores contracheques militares deste ano.

O número 1 do ranking é um coronel, lotado no Comando do Exército, chamado James Magalhães Sato, de 47 anos. Em abril deste ano, o pagamento líquido devido a ele foi de R$ R$ 603.398,92, valor correspondente a 38 anos dos rendimentos de um trabalhador que ganhe o salário mínimo atual, de R$ 1.212. O montante também é cerca de mil vezes maior do que o Auxílio Brasil, que terá valor médio de R$ 607 em agosto, segundo o governo.

No cadastro do Exército, Sato aparece como “militar da ativa”. A remuneração básica do coronel é R$ 22,4 mil, mas, em abril deste ano, os rendimentos foram aumentados por uma verba de R$ 733,8 mil recebida sob a rubrica de “outras remunerações eventuais”. O campo das “observações” informa que se trata do pagamento de “valores decorrentes de atrasos”, sem mais detalhes. A reportagem do Estadão tentou contato com o coronel, mas não houve resposta até a conclusão desta edição.

Nos últimos meses, alguns militares se aproximaram da cifra de R$ 1 milhão. Levantamento feito pela equipe do deputado Elias Vaz (PSB-GO) encontrou o caso de um militar da Aeronáutica cujos vencimentos brutos foram de R$ 818.902,09 em junho de 2021 – este é o montante antes dos descontos. Em novembro passado, os rendimentos brutos de outro aeronauta, que ocupou o posto de diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) chegou a R$ 719,7 mil. O caso de Pazuello também é mencionado no levantamento feito pelo deputado.

“É um tapa na cara do povo brasileiro, que está passando por uma das piores crises dos últimos tempos. Fica claro que há uma conduta do governo Bolsonaro que privilegia um grupo das Forças Armadas, já que esses benefícios não abrangem todos os militares nem chegam a outros servidores federais, como professores e enfermeiros”, diz Vaz.

JUSTIFICATIVA. Em março, a remuneração básica bruta de R$ 32 mil de Pazuello foi acrescida de verbas indenizatórias que somam R$ 282,6 mil em março deste ano, resultando em vencimentos líquidos de R$ 305,4 mil. Novamente, a informação disponível nos dados abertos do Portal da Transparência é a de que seriam “valores decorrentes de atrasos”. Procurado, Pazuello disse apenas que “todos os valores recebidos foram pagos conforme a legislação vigente”.

O segundo maior vencimento líquido até o momento pertence a um major-brigadeiro da Aeronáutica, que atua desde fevereiro no Quarto Comando Aéreo Regional (IV Comar), em São Paulo. Em março deste ano, a rubrica “outras remunerações eventuais” no contracheque do militar teve o valor de R$ 376,8 mil, resultando em rendimentos líquidos de R$ 405,7 mil. A justificativa é a de que o militar está “em ajuste de contas” – ou seja, se preparando para deixar a ativa.

Resposta

Valores referem-se à remuneração mensal e a indenizações pontuais e a atrasados, diz Defesa

‘INDENIZAÇÕES’. Procurado, o Ministério da Defesa apenas reencaminhou uma nota já enviada dias antes ao Estadão. Segundo o texto, “os valores referem-se à remuneração mensal e a indenizações pontuais e a atrasados”. “Essas indenizações são relativas ao recebimento de férias não usufruídas ao longo da carreira, ou a outros direitos, que são calculados na ocasião da passagem dos militares para a reserva.”

“Cabe ressaltar que as Forças Armadas cumprem, rigorosamente, a legislação que rege o pagamento de seus militares e servidores civis. Os valores são lançados no Portal da Transparência e são submetidos à fiscalização dos órgãos de controle”, diz ainda a nota do ministério.

Os comandos de Marinha, Exército e Aeronáutica também foram procurados, mas ainda não se manifestaram. •

André Shalders e Daniel Weterman para O Estado de S, Paulo. Publicado originalmente em 16.08.22

Governo Bolsonaro fura poço e não entrega água no Nordeste

Na Zona Rural de Oeiras (PI), poços do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca continuam fechados após dois anos, mantendo população sem acesso à água

Crédito: https://tv.estadao.com.br/politica,governo-bolsonaro-fura-poco-e-nao-entrega-agua-no-nordeste,1264339


Empresa vence licitação milionária em pregão encerrado em 10 minutos

Em todo o ano passado, Dnocs do Piauí comprou só ração para peixe; em dezembro, abriu sua maior licitação para poços

Lavar roupa no rio quase todos os dias é o fardo de Maria de Lourdes Rodrigues da Silva, de 58 anos, moradora de Oeiras (PI). Foto: Wilton Júnior/Estadão

Nos últimos quatro anos, o governo federal empenhou mais de R$ 260 milhões para uma única empresa abrir poços no Nordeste. A Agromáquinas Empreendimentos Agrícolas, sediada no interior da Bahia, venceu as licitações mais valiosas da Codevasf. A firma, com sede na cidade de Brumado (BA), é dirigida por Erivaldo Alves de Moura.

Um dos pregões vencidos pela empresa foi encerrado em dez minutos. Apenas duas firmas participaram e a Agromáquinas levou 12 lotes no valor de R$ 53 milhões. A outra concorrente é especializada em 65 tipos de serviços, de perfuração de poços a lavanderia, passando por chaveiro, bufê, armarinho e controle de pragas urbanas. Dos R$ 260 milhões reservados para a Agromáquinas, R$ 81,9 milhões foram captados via orçamento secreto. O mecanismo de captação de apoio no Congresso, pelo governo Jair Bolsonaro (PL), foi revelado pelo Estadão.

Em 2019, o então vereador José Batista da Gama (PDT) propôs conceder título de cidadão petrolinense ao dono da Agromáquinas. Na homenagem da Câmara Municipal, Zé Batista justificou a “nobre honraria” pelos “relevantes serviços prestados à cidade, a Pernambuco e ao Nordeste”. O político é aliado do senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE). Gama foi secretário de Desenvolvimento Econômico e Agrário na gestão de Miguel Coelho, filho do parlamentar, na prefeitura de Petrolina.

Em nota, o empresário afirmou que “a Agromáquinas é uma empresa com quase 20 anos de atuação e participa de licitações na Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) e no Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) há aproximadamente dez anos, tendo celebrado contratos nas gestões dos presidentes Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro”.

“Não possuo qualquer interlocução com o senador Fernando Bezerra ou outro parlamentar, uma vez que as tratativas são sempre mantidas diretamente com os gestores públicos da Codevasf, do Dnocs ou qualquer outro contratante, seja público ou privado”, disse.

A Agromáquinas participa de licitações na Codevasf e no Dnocs há dez anos. Não possuo qualquer interlocução com parlamentares.”

Erivaldo Alves de Moura, empresário

No Piauí, o Dnocs passou o ano passado quase inteiro só comprando ração para peixe. Em dezembro, porém, promoveu licitações no valor de R$ 28 milhões para furar e equipar poços de água no Estado. Num dos pregões, a Engipec precisava demonstrar a experiência de perfuração de 500 poços. Comprovou apenas 77, sendo a maior parte feita no início de 2000. Mesmo assim, acabou levando o contrato de R$ 12 milhões.

O Dnocs no Piauí é comandado por Arão Lobão, amigo do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, homem forte do governo Bolsonaro. O preenchimento de vagas no governo e a distribuição de recursos passam pela sua mesa. Lobão assumiu em setembro do ano passado e logo promoveu as licitações dos poços num total de R$ 28 milhões. Uma busca no site do Dnocs-Piauí mostra que é o pregão mais alto da autarquia desde 2018.

Orçamento secreto

WJOEIRAS  OEIRAS  PI   21.07.2022  (((EMBARGADO E EXCLUSIVO)))   ORÇAMENTO SECRETO/ PIAUÍ    POLITICA OE -  - Na zona rural de Oeiras no Piauí - PI , o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) mantém lacrados poços artesianos abertos há meses, enquanto famílias sertanejas passam sede. Nos povoados de Lagoinha e Mata Fria, moradores lavam roupas no rio e buscam água em nascentes, chamadas de "olhos d'água". Na foto, Maria de Lourdes Rodrigues da Silva de 58 anos, indo levar roupa para lavar no rio. 

O setor técnico sugeriu a desclassificação da Engipec por “ausência de atestado de capacitação técnica e operacional em quantidade/volume suficientes” e por não apresentar o cronograma físico-financeiro da obra. A firma conseguiu o contrato após um novo parecer. O setor técnico mudou de ideia e afirmou que os 77 poços eram suficientes para demonstrar que a empresa “possui expertise e capacidade operacional para a execução dos serviços”. Adicionou que, como a empresa havia perfurado um poço de 360 metros, seria capaz de fazer um de 250 metros. Procurada, a empresa não respondeu aos contatos.

O empresário Eduardo Veras, dono da Engipec, afirmou que “o serviço está sendo executado sem problemas algum”. Sobre a falta de comprovação técnica, ele afirmou que “isso não tem fundamento”.

O programa de abertura de poços do governo criou uma expectativa numa região marcada pelo fisiologismo, pelas atuações eleitoreiras dos órgãos públicos e por históricas demandas sociais.

Poço do Dnocs lacrado em Oeiras, no Piauí; obra está inacabada 

Lavar roupa no rio quase todos os dias é o fardo de Lourdes Rodrigues da Silva, de 58 anos. Moradora da zona rural de Oeiras (PI), ela não tem água encanada em casa. Anda cerca de oito quilômetros até o rio, levando as roupas e o sabão numa bacia equilibrada na cabeça.

“No inverno, tem as brotas”, disse ela. “Brotas” são riachos sazonais que aparecem na época chuvosa e somem no período seco. Na estiagem, que no sertão piauiense vai de maio a outubro, Maria de Lourdes caminha até o Rio Croatá para lavar roupa. A água de beber vem de um poço perto da casa dela, mas a vazão não basta para lavar as roupas.

Julia Affonso e André Shalders para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 16.08.22

Governo Bolsonaro fura poço e não entrega água no Nordeste

Documentos mostram irregularidades em licitações fechadas em minutos e reservas de recursos para novas obras sem a conclusão de antigas; gasto é de R$ 1,2 bilhão

A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo (ao centro) no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos. Foto: Wilton Júnior/Estadão

Na zona rural de Oeiras, no Piauí, famílias de pequenos agricultores ainda enfrentam o velho drama da falta de acesso à água potável. Não deveriam. O município foi um dos contemplados por uma “força-tarefa das águas” anunciada pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para o Nordeste e o norte de Minas. Dois anos depois, no entanto, poços abertos pelo programa estão lacrados. As obras pararam pela metade e bombas de retirada de água não foram instaladas.

A situação se repete em todo o semiárido nordestino. Ao longo de três meses, o Estadão analisou contratos do atual governo que somam R$ 1,2 bilhão para a construção de poços no sertão. Os documentos mostram irregularidades em pregões milionários feitos em menos de dez minutos e a reserva de recursos para abertura de novos poços sem que outros sejam concluídos. O resultado é um cemitério de poços abandonados.

A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo (ao centro) no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos.

A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo (ao centro) no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos. Foto: Wilton Júnior/Estadão

O agricultor Francimário Borges de Moura, de 47 anos, foi um dos moradores do assentamento rural de Faveira do Horácio, em Oeiras, que se entusiasmaram quando o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) começou a cavar um poço de 212 metros de profundidade, em junho de 2020, perto da comunidade. O poço, porém, foi lacrado ainda naquele ano. As 24 famílias da comunidade planejavam fazer um plantio de caju de 24 hectares. “O poço tem uma vazão bastante forte, potente, daria conta”, lamentou à reportagem.

A água que chega à casa de Valmira Fernandes de Araújo, de 37 anos, no povoado vizinho da Mata Fria, sai de um antigo poço privado com alto índice de sais. É um risco para a saúde e para aparelhos domésticos. Mesmo para tomar banho é considerada inadequada pelos moradores. Em busca de água potável, a família de Valmira anda cerca de um quilômetro até chegar a uma nascente. Próximo dali há um poço lacrado com a inscrição “DNOCS 3/8/2020″. Mais um poço construído pela metade. “Eles abriram, mas não encanaram a água para nós. A gente fica triste, porque tem água doce perto, mas não pode usar”, afirmou Valmira.

Orçamento secreto

Na zona rural de Oeiras no Piauí - PI , o Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) mantém lacrados poços artesianos abertos há meses, enquanto famílias sertanejas passam sede. Nos povoados de Lagoinha e Mata Fria, moradores lavam roupas no rio e buscam água em nascentes, chamadas de "olhos d'água". Na foto, Maria de Lourdes Rodrigues da Silva de 58 anos, indo levar roupa para lavar no rio. 

No povoado da Alagoinha, o governo federal cavou um poço público, mas a bomba não é potente para abastecer casas que ficam na parte alta do lugar. “A água tem gosto de sal. Em vez de espumar (com sabão), ela vira um material diferente. A gente põe a água no corpo quando está tomando banho e pode passar o sabão dez vezes: todas as dez vezes sai sujo”, disse o morador Antônio Francisco da Silva Costa, o Antônio Marçal, de 54 anos.

Para quem mora na região mais alta, “dificilmente” chega água. A água retirada do poço é salobra, com gosto mineral forte e desagradável, levemente salgado. Já a água da nascente, considerada “boa”, não tem gosto, mas é turva de terra.

O agricultor Francimário Borges de Moura; Poços abertos na zona rural de Oeiras (PI) estão lacrados há meses. Foto: Wilton Júnior/Estadão

No fim do ano passado, o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (Progressistas-PI), anunciou que a construção de poços seria uma marca do governo Bolsonaro no Nordeste. “O presidente nos deu a determinação de levar um grande programa, uma verdadeira força-tarefa para que a gente unifique diversos órgãos que são voltados ao sistema de abastecimento de água para a população”, afirmou.

Eles abriram, mas não encanaram a água para nós. A gente fica triste, porque tem água doce perto mas não pode usar”

Valmira Fernandes de Araújo

A força-tarefa de abertura de poços envolveu três órgãos controlados por apadrinhados do próprio Ciro Nogueira e de líderes aliados do Planalto – a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o Dnocs e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

No primeiro semestre deste ano, Bolsonaro participou da entrega de poços no Nordeste. As obras foram citadas no discurso do presidente durante o lançamento de sua candidatura ao Palácio do Planalto, em julho, no Rio. “Água em grande parte do Nordeste é uma realidade”, disse. “Também o nosso Exército, com a Codevasf, fura dezenas de poços todos os meses, levando dignidade a essas pessoas. Eu estou mostrando o que nós fizemos, o que pretendemos seguir fazendo.”

As licitações para a construção de poços no País são genéricas. Parte dos editais da administração federal não informa a localidade exata onde o poço deve ser perfurado. Há pregões em que nem o tipo de rocha é especificado. Para especialistas em auditoria de obras públicas, isso influencia no preço final do contrato e limita a concorrência de empresas de pequeno e médio porte.

A súmula 177, do Tribunal de Contas da União (TCU), destaca que é “indispensável” ter uma “definição precisa e suficiente” do objeto das licitações, para que haja “igualdade” entre os participantes.

O Estadão teve acesso a um processo administrativo da Codevasf para abertura de poços no Piauí. Em março e abril, a estatal do Centrão, como é conhecida, recebeu seis ofícios de prefeituras, de associações e de um sindicato com a indicação dos locais onde os poços deveriam ser perfurados.

Ao Estadão, o presidente do Sindicato Rural da cidade de Pio IX (PI), Luís Pereira de Alencar, contou que indicou quatro comunidades. Ele admitiu que não sabe quantas pessoas serão beneficiadas e que poços são furados, até mesmo, em propriedades privadas. Mesmo assim convenceu a estatal a fazer a obra. “Não tem como precisar”, disse.

Procurados, Bolsonaro e Ciro Nogueira não responderam. Dnocs também não se manifestou.


Com poço, sem água

Falta de bomba

O governo federal fura poços pelo sertão, mas não instala os equipamentos do sistema de abastecimento. Sem bombas, a água não sai do buraco

Precariedade

Em alguns casos, o governo instala equipamentos precários, como bombas sem a potência adequada para destinar água até localidades mais altas

Má qualidade

Água potável não chega às casas; quando chega, é salobra

Pregões

No atual governo, foram realizados pregões de abertura de poços que somam um total de R$ 1,2 bilhão

Licitações

As licitações têm indícios de “superestimativa” de preço e limitação de concorrência. Uma licitação da Codevasf em Alagoas, de R$ 53 milhões, durou apenas dez minutos

Sob suspeita

Uma empresa venceu um pregão do Dnocs, do Piauí, sem comprovar capacidade técnica. O órgão é comandado por um amigo do ministro Ciro Nogueira (Casa Civil)

O que diz a Codevasf

A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) informou ontem que seus pregões são abertos à livre concorrência e à participação de empresas de todo o País. A empresa afirmou que observa a súmula 177 do TCU, “com clara definição de objeto, quantidades e Estados”.

De acordo com o órgão, “os locais beneficiados são apontados na definição do objeto, no Termo de Referência”. “A localização exata de poços ocorre após visita técnica de responsável qualificado da empresa contratada, com ratificação de equipe técnica da Codevasf.”

Ao Estadão, a companhia declarou que a escolha dos locais onde vai perfurar poços está relacionada “à necessidade hídrica, ausência de rede de abastecimento de água, origem de recursos orçamentários e atendimento à política pública de redução da dependência de carros-pipa”. A Codevasf afirmou que atende a demandas de prefeituras e associações e a indicações de órgãos responsáveis pela descentralização de recursos, quando aplicável.

Julia Affonso e André Shalders para O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 16.08.22

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Um Brasil altivo defende a democracia

A leitura das ‘Cartas’ em defesa do regime democrático e do Judiciário mostrou que o País não está dividido em relação à democracia, valor inegociável para toda a sociedade

Se o presidente Jair Bolsonaro envergonhou profundamente o País ao difamar a democracia brasileira perante embaixadores estrangeiros, a resposta da sociedade em defesa das eleições e do regime democrático orgulhou e emocionou o País. Ontem, em todo o território nacional, foram lidos manifestos em defesa do Estado Democrático de Direito, numa demonstração luminosa de que a sociedade está vigilante e não aceita retrocessos autoritários. A democracia é um valor inegociável, o patamar mínimo imprescindível. Não é questão de ser de esquerda, direita ou centro. É apenas a firme compreensão de que não existe projeto de país sem respeito às regras e às instituições democráticas.

Na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, foram lidos dois manifestos. Elaborada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e que recebeu a adesão da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), da União Nacional dos Estudantes (UNE), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de muitas outras entidades, a carta Em Defesa da Democracia e da Justiça é expressão contundente de que o apoio ao regime democrático e ao Poder Judiciário une os mais diversos setores e as mais variadas ideologias. “A todos que exercem a nobre função jurisdicional no país, prestamos nossas homenagens neste momento em que o destino nos cobra equilíbrio, tolerância, civilidade e visão de futuro”, diz a carta da Fiesp. A sociedade não está dividida em relação à democracia e às instituições democráticas.

Como ressaltou o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que leu o manifesto da Fiesp no Salão Nobre da faculdade, “hoje (ontem) é um momento grandioso, em que capital e trabalho se juntam em defesa da democracia. Estamos celebrando aqui com alegria, com entusiasmo, o hino da democracia”.

Em seguida, no pátio das Arcadas, foi lida a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, a Carta de 22, que até ontem à tarde havia recebido mais de 950 mil assinaturas, sendo mais de 160 mil professores, 28 mil engenheiros, 14 mil médicos, 9 mil desempregados, 6 mil policiais, 5 mil enfermeiros, 4 mil dentistas e 4 mil motoristas. Esses números explicitam que a defesa da democracia não é uma causa partidária ou elitista. É uma causa do povo brasileiro. “São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”, diz a Carta de 22.

Na ocasião, o diretor da Faculdade de Direito da USP, Celso Campilongo, lembrou três aspectos fundamentais do Estado Democrático de Direito, todos eles enxovalhados pelo presidente Bolsonaro. O primeiro é a “observância do princípio da legalidade, do respeito às leis”, ou seja, “tudo o que não estão querendo fazer com o nosso sistema eleitoral”, disse, referindo-se aos ataques de Jair Bolsonaro contra as urnas eletrônicas. O segundo aspecto, lembrou o professor Campilongo, é o princípio da publicidade.

Consequência direta dos dois anteriores, o terceiro aspecto do Estado Democrático de Direito é o “controle da legalidade e da publicidade pelas instituições com competência para fazê-lo”. E o professor lembrou que quem tem competência para organizar as eleições, apurar os votos e proclamar os resultados é o Tribunal Superior Eleitoral. “O resto é gente sem competência jurídica e sem competência moral para se intrometer no processo eleitoral brasileiro”, disse Campilongo, num ensinamento especialmente necessário nos dias de hoje, em que o bolsonarismo tenta envolver os militares na apuração das eleições, atribuição totalmente estranha às funções constitucionais das Forças Armadas.

Após a leitura da Carta de 22 no pátio das Arcadas, tocou-se o Hino Nacional. Seus versos ressoaram forte no centro de São Paulo e em todo o Brasil. Eram a certeza de que, apesar de toda a escalada de violência de Jair Bolsonaro contra a democracia, continua havendo um País altivo, que não deseja ser refém dos autoritários e que lutará para defender suas instituições, suas eleições, sua democracia. Esse é o verdadeiro e profundo Brasil.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 12.08.22

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Braga Netto e militares do governo receberam supersalários de até R$ 1 milhão no auge da pandemia

Vice-presidente na chapa de Bolsonaro, general Braga Netto recebeu R$ 926 mil em 2 meses; Exército fala em indenizações

Candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PL), o general Walter Braga Netto (acima com o chefe) recebeu R$ 926 mil em dois meses de 2020, no auge da pandemia de covid-19. Só de férias, foram R$ 120 mil pagos ao general em um único mês. 

Outros militares do governo tiveram a folha de pagamento turbinada naquele ano. Estão na lista o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, e o ex-ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque.

Os benefícios pagos pelo governo levaram oficiais e pensionistas a ganhar até R$ 1 milhão na folha de pagamento em um único mês, conforme dados do Portal da Transparência. O deputado Elias Vaz (PSB-GO), autor do levantamento, vai cobrar explicações do Ministério da Defesa sobre o que classifica como “supersalários” pagos aos militares.

Ramos disse que os valores têm caráter indenizatório ou de ressarcimento relativos à sua ida para a reserva. O Exército afirmou que os pagamentos aos generais são legais. Foto: Marcos Corrêa/PR

Procurados, Braga Netto e Bento Albuquerque não responderam. Ramos disse que os valores têm caráter indenizatório ou de ressarcimento relativos à sua ida para a reserva. O Exército afirmou que os pagamentos aos generais são legais. A Marinha não respondeu.

Braga Netto tem um salário bruto mensal de R$ 31 mil como general da reserva do Exército, mas recebeu um montante de R$ 926 mil nos meses de março e junho de 2020 somados, sem abatimento do teto constitucional. O teto limita os salários a R$ 39,3 mil por mês no serviço público. Somente a título de férias, o vice de Bolsonaro ganhou R$ 120 mil em março de 2020.

Bento Albuquerque, almirante de esquadra reformado da Marinha, teve R$ 1 milhão em ganhos brutos nos meses de maio e junho somados, enquanto o salário habitual do ex-ministro é de R$ 35 mil por mês como militar. Luiz Eduardo Ramos, por sua vez, recebeu um montante de R$ 731,9 mil em julho, agosto e setembro de 2020, também somados, apesar de ganhar um salário de R$ 35 mil por mês em períodos “normais” como general. Na época dos ganhos extras, Ramos comandava a Secretaria de Governo. Hoje, é chefe da Secretaria-Geral e um dos ministros mais próximos a Bolsonaro.

A folha de pagamento aumentou, sobretudo, no período em que os oficiais foram para a reserva. O governo Bolsonaro patrocinou uma mudança que aumentou a indenização paga quando os militares saem do serviço ativo e adquirem essa condição, equivalente a uma aposentadoria. Ramos, por exemplo, só foi para a reserva após a nova lei ser aprovada e entrar em vigor.

Na Marinha também há valores pagos num único mês superiores a R$ 1 milhão. O tenente-brigadeiro da reserva Juniti Saito, ex-comandante da Aeronáutica, recebeu um montante bruto de R$ 1,4 milhão, em abril de 2020, enquanto o salário habitual é de R$ 35 mil. A Marinha contesta o valor divulgado pelo próprio governo e diz que o correto é R$ 717 mil.

“Queremos ver se os pagamentos estão dentro do princípio da moralidade pública. Professores, médicos e o pessoal de outros ministérios não recebem esse tipo de coisa”, disse o deputado Elias Vaz.

Em 2019, no primeiro ano de governo, Bolsonaro apresentou um projeto de lei que aumentou os benefícios pagos a militares. A indenização paga quando eles são transferidos para a reserva, por exemplo, subiu de quatro para oito vezes o valor do soldo. O gasto com os salários aumentou de R$ 75 bilhões em 2019 para R$ 86 bilhões.

No caso de Braga Netto, o Exército afirmou que os pagamentos incluem indenização por férias não usufruídas e adicionais não recebidos ao longo da carreira. Para Ramos, os valores entraram no contracheque em função da passagem para a inatividade e indenização por férias e licença especial não usufruídas. Em todos os casos, as Forças Armadas argumentaram que os pagamentos estão fundamentados em instrumentos legais.

Daniel Weterman para O Estado de S. Paulo, em 11.08.22

Saiba o que pesa contra Trump na Justiça dos EUA

Processos vão de sumiço de documentos da Casa Branca a suspeita de fraude, passando pela invasão do Capitólio

Ex-presidente Donald Trump fala com jornalistas em Mar-a-Lago - Carlos Barria - 21.dez.16/Reuters

O ex-presidente dos EUA Donald Trump se recusou nesta quarta (10, ontem) a responder a perguntas feitas durante depoimento em Nova York no caso que apura supostas fraudes fiscais envolvendo as Organizações Trump.

O republicano há muito era esperado para depor, mas vinha adiando o comparecimento. Poucos após chegar ao local, ele divulgou comunicado à imprensa dizendo que usaria seu direito à Quinta Emenda, permanecendo em silêncio para não construir potenciais provas contra si mesmo.

O comparecimento à Procuradoria-Geral nova-iorquina vem apenas dois dias após um revés para o republicano, quando o FBI, a polícia federal americana, realizou uma operação de busca na casa dele em Mar-a-Lago, em um caso que apura a remoção e destruição ilegal de arquivos da Casa Branca pelo ex-presidente.

Veja quais são os principais processos envolvendo Donald Trump

SUMIÇO DE ARQUIVOS NACIONAIS

A Administração Nacional de Arquivos e Registros (Nara, na sigla em inglês) notificou o Congresso dos EUA em fevereiro dizendo que tinha recuperado aproximadamente 15 caixas de documentos da Casa Branca na residência de Trump na Flórida —alguns de conteúdo sigiloso. Entre os papéis estariam cartas trocadas com o ditador norte-coreano Kim Jong-un.

Trump tinha dito que concordava com a devolução e que isso era um procedimento ordinário. A Câmara pediu mais informações à Nara e abriu uma investigação para apurar a responsabilidade de Trump no desaparecimento dos papéis.

INVASÃO DO CAPITÓLIO

A vice-presidente da comissão que investiga o ataque ao Capitólio, a republicana Liz Cheney, quer provar que o ex-presidente violou a lei ao tentar invalidar as eleições em que foi derrotado.

Cheney disse que podia encaminhar ao Departamento de Justiça diversas acusações de crime contra Trump. Uma audiência do comitê em março detalhou os esforços do ex-presidente para sabotar as eleições de 2020.

A comissão não pode, entretanto, indiciar Trump por crimes federais. A decisão compete ao Departamento de Justiça, na figura do secretário de Justiça, Merrick Garland.

Trump pode, no âmbito do processo que corre na Câmara, ser indiciado por conspiração sediciosa pelos episódios do 6 de Janeiro, um dispositivo jurídico raramente usado.

FRAUDE ELETRÔNICA

Durante audiência em junho do comitê que investiga a invasão ao Capitólio, congressistas democratas disseram que Trump arrecadou por volta de US$ 250 milhões (R$ 1,28 bilhão) de seus apoiadores alegando que usaria o montante para recorrer do resultado das eleições em tribunais.

A quantia teve outra alocação, levantando a possibilidade de Trump ser denunciado por fraude eletrônica, delito que proíbe a obtenção de recursos com base em pretexto falso ou fraudulento.

ADULTERAÇÃO DE ELEIÇÃO NA GEÓRGIA

Um júri popular foi convocado em maio no estado da Geórgia para avaliar os esforços coordenados por Trump para influenciar o resultado das eleições locais. O cerne da investigação é uma ligação feita pelo ex-presidente ao então secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, em 2 de janeiro de 2021.

Na chamada telefônica, Trump teria pedido ao secretário para "encontrar" 11.780 votos necessários para reverter a derrota do republicano nas eleições no estado.

Juristas afirmam que Trump pode ter violado ao menos três legislações eleitorais da Geórgia nesse caso: conspiração para fraudar eleição; solicitação de crime para fraudar eleição; e interferência intencional no desempenho de funções eleitorais.

PROCESSO CRIMINAL CONTRA AS ORGANIZAÇÕES TRUMP

Alvin Bragg, democrata e promotor do distrito de Manhattan, investiga na esfera criminal se a companhia familiar de Trump ocultou ou declarou bens com valor reduzido para conseguir empréstimos bancários e vantagens tributárias. Dois procuradores que lideravam a investigação deixaram o caso, mas Bragg afirma que ela continua em andamento.

PROCESSO CIVIL DAS ORGANIZAÇÕES TRUMP

A procuradora-geral de Nova York, Letitia James, apura se a Organização Trump fez avaliações fraudulentas dos ativos da companhia na tentativa de obter benefícios econômicos e deduções fiscais.

DIFAMAÇÃO CONTRA E. JEAN CARROLL

E. Jean Carroll, ex-colaboradora da revista Elle, processou Trump em 2019, após ele negar sua alegação de tê-la estuprado em uma loja de departamentos em Nova York, nos anos 1990. Trump disse que a escritora mentiu para alavancar as vendas de um livro. Já os advogados do republicano entendem que o ex-presidente é protegido por uma lei federal que deixa funcionários públicos imunes à difamação.

TRUMP PODE SER PROCESSADO SE CONCORRER NOVAMENTE À PRESIDÊNCIA?

Sim. Há um entendimento de décadas na Justiça americana de que um presidente em exercício não pode ser denunciado, mas a proteção não se estende a candidatos à Presidência.

Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo, em 10.08.22

Quantos Bolsonaro deixou morrer

Licenças para armas de fogo dispararam no atual governo

Arma apreendida pela polícia com membro do PCC. - Divulgação

"Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado", disse Bolsonaro, em abril de 2020. 72% da população discorda dele. Mesmo assim, licenças para armas de fogo dispararam: 473% nos últimos quatro anos; no primeiro ano do atual governo (2019), cresceu em 68% o número de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). Nos estados onde Bolsonaro ganhou no 1 turno em 2018, houve explosão no número de armas.

Bolsonaro precisa explicar como um homem de 27 anos está menos escravizado agora que foi morto por um menino de 5 anos na última segunda-feira (8) em Jacareí (SP), por uma arma de tiro esportivo deixada no banco traseiro do carro. Bolsonaro precisa explicar quantas pessoas ele deixou morrer desde que assinou decretos sugerindo que atiradores esportivos andassem armados por aí, mesmo longe de clubes de tiro, por vezes sob efeito de drogas e álcool.

Bolsonaro precisa explicar como pode um membro do PCC (Primeiro Comando da Capital) ser registrado como atirador esportivo, com o aval do Exército. Bolsonaro precisa explicar por que segurança pública para ele significa permitir que policiais armados fora de serviço possam balear na cabeça um campeão mundial de jiu-jítsu ou atirar em um motoboy numa briga de trânsito.

Bolsonaro precisa explicar como um dono de um clube de tiro em Pirassununga (SP) de 62 anos estaria mais seguro agora que entregou 12 armas para criminosos que invadiram sua casa e fizeram sua mulher de refém. Nos últimos cinco anos, criminosos levaram de residências 5.978 armas em SP. Bolsonaro precisa explicar por que quer beneficiar milícias armadas.

Bolsonaro precisa explicar por que humilhou a Polícia Federal ao esvaziar o controle de armas. Bolsonaro precisa explicar como o Exército quer fazer uma contagem alternativa das urnas eletrônicas quando sequer sabe padronizar o registro de armas numa planilha. Bolsonaro precisa explicar quantas pessoas sua política armamentista matou. E, sim, deveria ser preso por isso.

Thiago Amparo, o autor deste artigo, é advogado e professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. É Doutor pela Central European University (Budapeste). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, em 11.08.22

Adesão de elites a manifestos isola Bolsonaro

Lidas nesta quinta na USP, cartas em defesa do Estado democrático de direito reuniram nomes de peso da política e economia. Para analistas, manifestos têm efeito dissuasivo contra estratégia golpista


Faculdade de Direito da USP no Largo de S. Francisco, S. Paulo - Capital

A sociedade brasileira – sobretudo, as elites políticas e econômicas do país – emitem um recado contundente com os atos democráticos realizados nesta quinta-feira (11/08) a partir da leitura da Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito! e do manifesto Em defesa da democracia e da Justiça, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), afirmam analistas e cientistas políticos ouvidos pela DW Brasil.  O evento no Largo de São Francisco, replicado em várias universidades do país, em diferentes regiões, é interpretado como um marco histórico da campanha eleitoral de 2022.

Para além da simbologia de que a sociedade brasileira não admitirá qualquer arbitrariedade e desrespeito ao resultado das urnas, os manifestos têm um efeito de dissuasão relevante, que poderá desestruturar grupos apoiadores de Jair Bolsonaro e atores institucionais dispostos a embarcar numa estratégia autoritária golpista, consideram os analistas.

"[As cartas] renovam algo basilar em qualquer democracia, que é o compromisso das pessoas em geral, mas principalmente das elites, com o jogo democrático. Esse princípio precisa ser renovado de forma permanente, porque é contingente. A adesão à democracia pode se erodir", afirma Magna Inácio, cientista política e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, e editora do Pex Network (Executives, presidents and cabinet politics).

"O que temos assistido nestes anos de governo tem sido a tentativa do presidente e de seus apoiadores de provocarem a erosão desdes valores, dessa adesão à democracia", aponta.

Signatários de peso pressionam por respeito às urnas

A relevância econômica e política dos signatários das cartas serve de alerta e exerce pressão às próprias instituições, pontua Andrea Freitas, professora no Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

"Estamos falando não apenas de um número muito grande de pessoas, indivíduos que assinaram, mas de um número grande de organizações basilares, tanto da economia, quanto da academia e da elite política brasileira. Temos um conjunto de atores relevantes assinando a carta, além de um conjunto muito grande de cidadãos, assinando, o que dá muita força a esse ato simbólico e pressiona as instituições responsáveis por garantir a continuidade do sistema democrático a ficarem atentas", considera.

A Carta às brasileiras e aos brasileiros, articulada por antigos alunos da USP, foi inspirada na chamada Carta aos Brasileiros de 1977, um texto de repúdio a ações da ditadura militar, redigido pelo jurista Goffredo da Silva Telles. Até a manhã desta quinta-feira, o manifesto já contava com mais de 900 mil assinaturas. 

Entre os signatários estão os banqueiros Roberto Setubal e Pedro Moreira Salles, do Itaú Unibanco; Candido Bracher, ex-presidente do banco; e o ex-presidente do Credit Suisse no Brasil José Olympio Pereira.

Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, que é novamente candidato ao Planalto, também assinaram. Michel Temer, que se formou em Direito na USP e foi professor de Direito constitucional, prometeu assinar.

Empresários que simbolizam a elite econômica, como o ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) Horácio Lafer Piva também não hesitaram em endossar o documento. Ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), artistas, acadêmicos e entidades de peso, de diferentes espectros da sociedade, também assinaram a carta.

O segundo manifesto, intitulado Em defesa da democracia e da Justiça e apelidado de "carta das entidades" ou "carta dos empresários", foi articulado pela Fiesp e assinado também pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban).

Para o cientista político Cláudio Gonçalves Couto, professor do Departamento de Gestão Pública da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a adesão da Fiesp e da Febraban à "carta dos empresários" é um fato sem precedentes históricos. "Estamos falando de setores muito poderosos, e por isso poderosos também politicamente, e que muito raramente se manifestam."

A ameaça à democracia é real, considera Couto, e a mobilização da sociedade é uma clara resposta de que rechaça uma saída que não seja democrática e de acordo com o sistema eleitoral vigente.

"Estamos lidando com um grupo político muito radical, extremista e inclusive armado. Tudo isso têm produzido ações de violência política, como temos visto. Este ato [democrático] mostra que, se houver tentativa de permanência no poder pela força, isso vai ser dificultado. Esse é o recado mais importante. Pode funcionar como elemento de dissuasão", analisa o professor da FGV.

Tiro no pé e isolamento de Bolsonaro

Para o analista político Carlos Melo, professor do Insper, a reunião de Jair Bolsonaro com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho, em que o presidente mais uma vez suscitou dúvidas sobre a lisura do processo eletrônico de votação e sugeriu que militares garantissem a segurança de eleições, foi um tiro no pé.

"Essa reunião foi o gatilho para esse manifesto. E ali ficou claro que Bolsonaro está diplomaticamente isolado, economicamente isolado do ponto de vista internacional", afirma. O vídeo da reunião foi retirado do ar pelo YouTube nesta quarta-feira.

Segundo Melo, a recente declaração do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd J. Austin III, na Conferência dos Ministros da Defesa das Américas, realizada em Brasília no fim de julho, teve um efeito "vexatório" para o governo brasileiro. Lloyd defendeu o controle civil firme dos militares nas democracias. Os sinais enviados pelos Estados Unidos são claros, além de várias outras democracias que rechaçam um golpe no Brasil, aponta Melo.

"Bolsonaro pode contar com quem? Com a Hungria? A Rússia tem coisas mais importantes para resolver neste momento", ironiza o professor.

Se por um lado há os signatários de sempre, comprometidos, por princípio e por valor, com a democracia, por outro, os manifestos e abaixo-assinados em defesa da democracia trazem novidades, de acordo com o analista.

"O que tem de novo aí é que setores econômicos e agentes econômicos importantes passaram a assinar. Pode até ser que assinem por princípios democráticos, obviamente, mas certamente também porque perceberam que a democracia tem um valor econômico, não é só um capital político."

Para Melo, expoentes do PIB brasileiro perceberam que qualquer tentativa de ruptura no Brasil criará um ambiente de instabilidade que afetará, de imediato, os negócios, as exportações brasileiras e a economia como um todo. "O Brasil vai perder clientes", sentencia.

O efeito eleitoral

Apesar de já contar com mais de 900 mil assinaturas, é pouco provável que Carta às brasileiras e aos brasileiros mude o cenário eleitoral, avaliam os analistas políticos ouvidos pela DW Brasil. Os organizadores dos atos democráticos pelo país e do documento fazem questão de pontuar que se trata de uma mobilização suprapartidária e que os votos de cada um não estão em jogo, e sim o compromisso democrático. Além de Lula, assinaram a carta os candidatos Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB).

"Do ponto de vista eleitoral o efeito é relativo. Talvez [o ato] consiga a adesão de alguns setores que estavam mais resistentes em relação ao Lula. É evidente que o manifesto, embora não tenha sido feito para favorecer o Lula, favorece a oposição ao Bolsonaro. Chama a atenção de alguns setores para a dramaticidade do momento. Mas, em termos eleitorais, de quantidade de votos, talvez não seja um grande efeito. O valor desse ato é político e econômico. Tem um poder dissuasivo", analisa Melo.

Para a professora Magna Inácio, a carta tem um impacto eleitoral na medida em que reforça um compromisso dos candidatos com a democracia e impõe essa agenda na campanha. "Isso tem uma importância fundamental na medida em que cria a ambiência para a construção de compromissos políticos entre os candidatos e esses setores da sociedade. Tem um processo de construção e de reforço da democracia que deve ser parte de compromisso de qualquer candidato. Essa mobilização tem esse potencial."

O efeito de dissuasão dos atos democráticos pode abrir pontes para um diálogo futuro, complementa a cientista política da UFMG: "Mais do que pensar nos efeitos desta mobilização sobre o eleitor individual, que obviamente tem efeitos, é importante entender como esse processo deflagra a construção de compromissos dentro das elites políticas e econômicas com outros setores estratégicos da sociedade."

Silêncio do Congresso e a sombra do Capitólio

Neste movimento de pressão, que empareda as instituições em defesa da democracia, o silêncio do Legislativo federal, em especial da Câmara, causa incômodo e surpresa, segundo os especialistas.

As mobilizações em defesa da democracia têm efeito preventivo, afirma Andrea Freitas, da Unicamp. "O Supremo e o TSE têm passado mensagens muito fortes sobre não aceitarem notícias falsas relacionadas às urnas eletrônicas, em especial. Acho que essa é uma medida de contenção que está sendo realizada para evitar que aconteça o que aconteceu nos Estados Unidos, a invasão do Congresso americano. Algumas instituições estão reagindo, mas sinto falta da reação do Legislativo, por exemplo. Seria muito importante que estivesse junto com o STF e o TSE nesta antecipação e criando barreiras, contenção para qualquer ação violenta após a eleição."

As ameaças de Bolsonaro à democracia, segundo a professora Magna Inácio, já saíram do campo da retórica há tempos, e há movimentos institucionais, com a participação de agentes do Estado, dentro do Executivo, que dão suporte à posição do presidente.

"Há uma diferença quando essa defesa se amplia, sai do âmbito de apenas atores institucionais, e de uma forma ambígua, como é o caso do presidente da Câmara [Arthur Lira], e transita para uma mobilização mais ampliada", avalia.

Malu Delgado para Deutsche Welle Brasil, em 11.08.22.