terça-feira, 5 de julho de 2022

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato 

Abro com uma hilária historinha envolvendo o folclórico deputado Antônio Bilu, potiguar do meu querido RN.

Hotel Zero Km

O deputado do Rio Grande do Norte desceu no aeroporto Santos Dumont, no Rio, pegou um táxi:

– Hotel Zero Quilômetro.

– Zero Quilômetro? Não tem esse hotel, não.

– Tem, sim. Em frente ao Hotel Ambassador.

– Ah, Hotel OK Senador Dantas, não é?

– Não, senhor, Deputado Antônio Bilu, de Natal.

Pitadas filosóficas

a) "O luxo do funeral e a suntuosidade do túmulo não melhoram as condições do morto; satisfazem apenas a vaidade dos vivos". (Dante Veoleci)

b) Sabedoria popular

Quando Confúcio visitou a montanha sagrada de Taishan, encontrou uma mulher cujos parentes haviam sido mortos por tigres.

- Por que não se muda daqui, perguntou Confúcio.

- Porque os governantes são mais ferozes que os tigres.

Análise da conjuntura

Braga Netto

O general Braga Netto, filiado ao PL, foi escolhido pelo presidente Bolsonaro como candidato a vice em sua chapa. Primeira constatação: não agrega um voto. A ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, seria um nome com mais apelo ao eleitorado feminino – onde Jair tem votação menor – ou mesmo a ex-ministra da Pasta da Mulher e da Família, Damares Alves.

Passaporte

O ex-ministro da Defesa, Braga Netto, poderia ser o passaporte que Bolsonaro pensa ter para se sentar novamente na cadeira presidencial no voo de um golpe? Digamos que a hipótese passa pela cabeça do capitão. Fiquemos, porém, no terreno de um improvável evento de ruptura. As Forças Armadas, em sua plenitude, não topariam entrar nessa aventura. Não há clima político para abrigar um golpe. Não haveria endosso social. A economia, a escassez, a fome seriam também grandes armas contra o golpismo.

O Centrão reclama

O Centrão não quer Braga Netto como candidato a vice. Vai chiar. Mas o general, se não será o passaporte para uma inclinação golpista, deve funcionar como bastião de defesa contra eventual prisão do capitão-comandante das FAs, em caso de sua derrota. E disso o Centrão será instado a acreditar.

As democracias

A paisagem mundial faria parte também do painel de contrariedades. As democracias ocidentais não fechariam os olhos a uma eventual ação golpista. O mundo é, hoje, interdependente. Vejam o caso de isolamento da Rússia por causa de sua empreitada de invadir a Ucrânia. Vladimir Putin está isolado, com exceção da posição da China e da dubiedade que paira sobre a conduta de algumas poucas Nações, entre as quais, o Brasil.

Esquisitice

Caem sobre as nossas cabeças essas esquisitices. A geopolítica, com seus interesses comerciais, faz com que países de ideologias opostas se unam em alianças pragmáticas. Ora, o Brasil de Bolsonaro faz virulenta "guerra de palavras" contra o comunismo, as ameaças vermelhas que ainda existem aqui e ali, condenando aqueles que se identificam com elas, como Cuba, Venezuela, China e, claro, Rússia. E qual o parceiro que Bolsonaro faz questão de glorificar a todo momento? Com quem falou segunda-feira última? Vladimir Putin. Que, por sua vez, tem interesse em formar uma cabeça de ponte por essas bandas do sul do continente.

Não beberei

Minha querida mãe sempre me dizia: "meu filho, nunca diga: desta água não beberei".

Polarização e inquietude

O artigo "Polarização e Inquietude", do padre João Medeiros Filho, na mídia potiguar, é oportuno, denso e merece profunda reflexão. "Diante de fundamentalismos ideológicos e religiosos, polêmicas jurídicas e políticas, importa meditar sobre as palavras de Cristo: 'Deixo-vos a Paz, dou-vos a minha vida, não como a dá o mundo'. (João, 14, 27).

Um terço à deriva

Se os dois candidatos somam, juntos, cerca de 70% das intenções de voto, vale inferir que 30% estão com um olho no norte, outro no sul. Olham para cima e para baixo. O eleitor brasileiro é mutante. Garantir que a eleição será decidida no primeiro turno é esquecer o histórico de campanhas eleitorais. O vento pode mudar de rumo. E se mudar, não haverá força a impedir sua trajetória.

Lula cá

Lula é um candidato partido ao meio. Vez ou outra, o discurso palanqueiro emerge e ele embarca nos velhos refrãos do passado. Mas, no geral, corre para o meio, onde espera atrair votos de segmentos refratários ao petismo. Aborto, controle da mídia, estatização, reforma trabalhista e outros temas polêmicos continuam integrando a velha pauta lulista. O Lula Lá e o Lula Cá deixam confusos muitos eleitores.

Combustíveis

Digamos que os preços dos combustíveis sejam contidos e segurados pela mão do novo comando da Petrobras. Vai adiantar e dar votos a Bolsonaro? Este analista tende a acreditar que não reverterão em votos para o presidente. A imagem da economia fraturada, inflação alta, juros subindo, alimentos distantes das mesas pobres – essa mistura quase venenosa acabará puxando a gasolina, o diesel, o gás de cozinha para o caldeirão da indignação. Reverter imagem negativa, com esse andar da carruagem, é tarefa para gigantes de estatura moral.

A barriga ronca

Sou recorrente com a minha hipótese: a barriga roncando de fome e panelas vazias definirão o voto em 2 de outubro. A fome se espalha. A estética dos polos urbanos está locupletada de pedintes, mendigos e sem teto.

O bem contra o mal?

Jung perguntou, certa vez, a um rei africano:

- Qual é a diferença entre o bem e o mal?

O rei meditou, meditou e respondeu às gargalhadas:

- Quando roubo as mulheres do meu inimigo, isso é o bem. E quando ele rouba as minhas, isso é o mal.

Bolsonaro disse que a campanha eleitoral desse ano será uma luta do bem contra o mal.

Quem vai roubar?

Entendamos que esse posicionamento vale para os dois lados. Pois Lula deve dizer a mesma coisa. Se Bolsonaro roubar os votos do petista, o bem estaria do lado dele? Assim como Lula, se conseguir roubar os votos do bolsonarismo? Ambos garantem que sim.

Agregador de pesquisas

Os Institutos de Pesquisa, em sua quase totalidade, atribuem ao candidato do PT uma margem entre 10 pontos a 19 pontos de maioria. O índice depende da metodologia usada. Pelo sistema de agregação de resultados de pesquisas, montado pelo Estadão, a média é de 15 pontos. A virtude está no meio? Vamos acompanhar esses números.

Até quando?

O novo presidente da Petrobras – a ser ainda referendado pelo Conselho – ficará no cargo até quando? Promete nova dinâmica de preços na estatal. Dinâmica de preços – eis o vocabulário da crise.

Terceira via

Foi para o beleléu, segundo muitos analistas. Este escriba ainda vê faíscas no fim do túnel.

Ciro com 10 pontos

Ciro Gomes deve entrar na faixa dos dois dígitos. Simone Tebet terá fôlego? É a candidata de contingentes médios. Pelo menos, nas expectativas.

França baixando a crista

Marcio França (PSB) até que suportou bem as pressões. Mas poderá abandonar o barco da pré-candidatura ao governo de São Paulo e se refugiar na canoa de candidato ao Senado com apoio de Fernando Haddad. O PT parece ter ganhado a parada. Lula teria costurado bem. Quando França fará o anúncio?

No Rio de Janeiro

Marcelo Freixo (PSB) deve escolher Cesar Maia (PSDB) em articulação feita por seu filho, Rodrigo Maia (PSDB) como vice em sua chapa ao governo do Rio de Janeiro. Pode ganhar do atual governador, Claudio Castro (PL), candidato de Bolsonaro, por enquanto na frente. O prefeito Eduardo Paes(PSD) apoia o ex-presidente da OAB, Felipe Santa Cruz (PSD). Mas pode desistir desse apoio por causa do baixo índice de intenção de voto de Santa Cruz.

O véio Lunga

Seu Lunga estava cortando uns limões, quando passa sua mulher e pergunta:

– Esse limão é pra fazer suco?

– Não, é pra eu usar de colírio!

Prefiro um sabonete

Entra um sujeito na sucata de seu Lunga, escolhe um relógio um pouco velho e pergunta:

– Seu Lunga, esse relógio presta pra tomar banho?

– Eu prefiro um sabonete – resmunga o velho.

Amor próprio

"Um maltrapilho dos arredores de Madrid pedia esmolas com grande dignidade. Um transeunte lhe disse:

- "Não tem vergonha de exercer essa infame atividade quando pode trabalhar?"

- "Senhor, respondeu o mendigo, peço-lhe esmola e não conselhos".

E tendo dito isto, deu-lhe as costas com toda a empáfia castelhana. Era um mendigo orgulhoso esse; pouca coisa bastava para ferir sua vaidade. Por amor de si mesmo pedia esmola; e ainda por amor de si mesmo não permitia que lhe fizesse qualquer reprimenda". (Voltaire)

 Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

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‘PEC do Desespero’ não prioriza pobres

Auxílio para caminhoneiro e taxista não é programa social. É privilégio para a base eleitoral de Bolsonaro. Oposição não pode apoiar uma PEC cujos meios e fins são antidemocráticos

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022 é uma violência contra as regras do jogo eleitoral. É incompreensível que senadores não alinhados ao bolsonarismo tenham aprovado a criação, no texto constitucional, de um estado de emergência para burlar a legislação fiscal e eleitoral. Para piorar, os parlamentares autorizaram essa aberração jurídica motivados por uma mentira: ao contrário do que o governo diz, a PEC, destinada na prática a comprar votos para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro, cria benefícios sociais para profissionais de classe média, e não para a população carente e desempregada.

O foco da PEC 1/2022, apelidada corretamente de “PEC do Desespero”, tem pouco a ver com os pobres. Ela cria auxílios, por exemplo, para caminhoneiros e taxistas – que, por mais que estejam sofrendo as consequências da crise social e econômica, não fazem parte da população necessitada no Brasil.

Na verdade, caminhoneiros e taxistas só estão na “PEC do Desespero” porque são supostamente parte da clientela eleitoral de Bolsonaro. Sendo assim, e como o desespero bolsonarista é grande diante das pesquisas de intenção de voto, nada impede que outras categorias profissionais (e eleitores em potencial) entrem no pacote de bondades com dinheiro alheio: o relator da matéria na Câmara, deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), quer agora incluir motoristas de aplicativo. Sabe-se lá quem mais será beneficiado até a votação da PEC. Só se sabe que não serão os mais carentes.

Há muitos pobres no Brasil. Recente estudo da FGV Social mostrou que, no ano passado, 62,9 milhões de brasileiros (29,62% da população) estavam abaixo da linha da pobreza. De acordo com critérios consolidados internacionalmente, essa linha é de US$ 5,50 per capita por dia, o que, ajustada por paridade do poder de compra, equivalia a R$ 497 mensais no ano passado. Nas faixas mais pobres, eram 33,5 milhões de brasileiros vivendo com até US$ 3,20 por dia, e 15,5 milhões de brasileiros com até US$ 1,90 por dia. Essas pessoas, no entanto, mal estão contempladas pelos benefícios que a PEC 1/2022 cria.

A PEC tem, portanto, escasso conteúdo social e abundantes privilégios – que, uma vez concedidos, dificilmente poderão ser retirados sem criar ressentimentos. Logo, como a mudança constitucional vale só até o fim do ano, supõe-se que haverá muito ressentimento em 2023. Já os pobres, bem, estes continuarão pobres.

Ou seja, a PEC 1/2022 não é a escolha de um caminho errado – violação das regras fiscais e eleitorais – para um fim supostamente bom. Ao dar dinheiro para determinadas pessoas, sem nenhum critério social, apenas por motivo eleitoral, a “PEC do Desespero” reforça desigualdades, com a produção de novas distorções. Essa disfuncionalidade é rigorosamente contrária ao papel do Estado, que não tem poder nem competência para atuar assim. No seu art. 3.º, a Constituição define que um dos “objetivos fundamentais da República” é “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Tudo isso só faz aumentar a perplexidade perante a votação quase unânime da PEC 1/2022 no Senado. Apenas o senador José Serra (PSDB-SP) foi contrário. Qual é o sentido de a oposição apoiar a criação de privilégios para a base eleitoral de Jair Bolsonaro? Talvez alguém possa achar que o aumento temporário de R$ 200 no benefício do Auxílio Brasil, também previsto na PEC, justificaria todo o restante. No entanto, esse acréscimo, longe de representar algum conteúdo social, só reitera a natureza eleitoreira da “PEC do Desespero”. 

O valor de R$ 200, como tudo o que parte de Bolsonaro, foi definido arbitrariamente, sem nenhum estudo prévio nem qualquer vinculação com as reais necessidades da população. Além disso, a implosão do Cadastro Único, que o governo Bolsonaro vem causando, escancara o objetivo de destituir de sentido social – de proteção da população mais vulnerável – todas as políticas públicas sociais em funcionamento para transformá-las em meras plataformas de compra de votos. Tal aberração, vergonhosamente apoiada pela oposição, não merece nenhuma condescendência.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 05.06.22

José Serra: PEC Kamikazi, há arcabouço fiscal que resista?

A polêmica provocada pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 1/2022, no Senado me fez pensar sobre o crônico menosprezo no país por aspectos institucionais, em variadas instâncias, não somente políticas. Situo o leitor brevemente no contexto da discussão.

Em 30/6/2022, o Senado votou em dois turnos a PEC nº 1/2022, a qual determinou um conjunto de gastos para 2022 somando mais de R$ 41,2 bilhões. Há diferentes itens no pacote: transferências de renda para famílias pobres inscritas no Cadastro Único da assistência social; subsídios à gratuidade de idosos no transporte público; benefícios para caminhoneiros e taxistas; e compensação aos estados pela concessão de crédito presumido de ICMS à cadeia do etanol. Não pretendo discutir o mérito de cada item. Apenas destaco que foram necessários somente dois dias para o Senado emendar o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias com o intuito de incrementar gastos sem que os atores — Executivo, sobretudo — incorressem em riscos de responsabilização por violar normas de direito financeiro e eleitoral.

Todo o arcabouço fiscal do país — composto por dispositivos constitucionais, leis complementares, entre outros — foi expressamente afastado para que um dispêndio conjuntural pudesse acontecer. Aprovou-se uma PEC (a de nº 01/2022) para criar exceções à PEC anteriormente aprovada (a que originou a EC nº 95/2016 ou teto de gastos). É como se as restrições institucionais devessem subsistir até que começassem a restringir de fato; a partir de então, excetua-se. Não foi a primeira vez, não será a última.

Sintomaticamente, poder-se-ia dizer, o Brasil tem sido pródigo na criação de normas, incluídas normas fiscais. Especialistas apontam que, desde sua promulgação em 1988, o texto principal da Constituição saltou de 67 para 167 dispositivos no capítulo das finanças públicas. Há ainda o ADCT, o qual em breve receberá mais dispositivos caso a PEC nº 1/2022 seja aprovada, e dispositivos apartados no corpo das emendas. Discute-se muito o afã brasileiro de constitucionalizar: a Carta de 1988 trata de numerosos assuntos. Como parlamentar constituinte, pude observar o fenômeno. Para alguns, o esforço de tudo inscrever na CF/88 foi e é reflexo da busca de proteção por parte dos vários segmentos sociais: na falta de consensos suficientes decorrente de um conflito distributivo acentuado e não raro predatório, num quadro de brutais desigualdades, todos almejam um lugar constitucional. Mas se tudo se constitucionaliza, toda mudança requer alterações constitucionais. Lá se vão 128 emendas desde 1988. Outras duas já estão a caminho.

Existem numerosos conceitos na literatura das ciências sociais, desde os mais parcimoniosos, que definem instituições como regras formais, até outros mais abrangentes que incluem normas e valores culturais. Considerando o tema que motiva este artigo, chamo a atenção para a importância de certas funções institucionais. Instituições delimitam as ações possíveis dos vários atores, são as regras do jogo social ou político. Instituições criam incentivos ao recompensar e punir. Instituições facilitam, em maior ou menor grau, para os diversos atores, projetar, em horizontes variados, os resultados possíveis de suas decisões. Instituições mitigam ou ampliam riscos.

A ideia de governança, tão em voga em múltiplas esferas, tem um caráter institucional. Nos termos do Ifac (International Federation of Accountants), por exemplo, governança diz respeito ao conjunto de arranjos institucionais que objetivam assegurar que os resultados esperados pelas diferentes partes interessadas (stakeholders) de uma organização sejam definidos e alcançados. No campo da política fiscal, o recente debate opondo padrões de governança a regras fiscais numéricas tem como pano de fundo uma questão institucional: que conjunto de instituições fiscais melhor promovem o equilíbrio intertemporal das contas públicas, além de otimizar aspectos de eficiência e equidade do gasto? Na arena eleitoral, diferentes conjuntos de regras favorecem maior ou menor representatividade ou governabilidade.

Instituições, portanto, não são irrelevantes. Novas regras tendem a promover novos resultados. Ao transigir com instituições, podem-se comprometer objetivos, ainda que não imediatamente. Pense-se agora no grande marco institucional que é uma Constituição, na qual aspectos fundamentais de uma sociedade como direitos individuais, arquitetura do aparato estatal, regras de competição política, entre outros, são estabelecidos. Quais são as consequências de submetê-la a mudanças circunstanciais?

Algo paradoxal, o Brasil parece apostar em reformas institucionais mesmo com sua disposição a subverter normas com muita presteza. O arcabouço fiscal, como mencionado, é um caso evidente. Em 1998, inserimos na Constituição um teto remuneratório do serviço público. Desde então, foi inventado um sem-número de manobras para burlá-lo. Cada tentativa de tapar furos no teto é seguida de novos artifícios, num ciclo interminável. A Lei de Responsabilidade Fiscal, pela extensão e magnitude das mudanças trazidas, tinha um imenso potencial de introduzir novos padrões e comportamentos na gestão pública. Fato é, no entanto, que crises fiscais abalaram os vários entes federativos desde então e, em 2016, decidiu-se que um teto de gastos deveria ser imposto à União. Esse teto, por sua vez, já sofreu mudanças para atender a necessidades do governo de ocasião. A PEC nº 1/2022 é apenas a bola da vez. Já se espera que o governo a ser empossado em 2023 venha a instituir novo regime fiscal.

Ao fim, pergunto-me se existem arranjos institucionais que prescindam da qualidade dos atores. Se quase todos se prestam a votar contra o arcabouço fiscal do país, há arcabouço que resista?

José Serra, o autor deste artigo, é senador (PSDB-SP), ex-governador de Estado, ex-prefeito de São Paulo, ex-ministro das Relações Exteriores, da Saúde e do Planejamento, ex-deputado, ex-secretário da Fazenda de Estado, professor, economista e engenheiro civil. Publicado no Consultor Jurídico, em 04.06.22

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Bolsonaro sozinho com seu golpismo

Nenhum partido político, como nenhuma entidade relevante da sociedade civil, apoia a investida de Bolsonaro contra as eleições. O golpismo bolsonarista não é força, e sim fraqueza

Eis um fato constante ao longo de todo o governo. As instituições não conseguiram moderar Jair Bolsonaro. Para piorar, seu destempero fica ainda mais estridente no período prévio às eleições. Tem-se um presidente da República rigorosamente sem limites. Mas, se o mundo político-institucional não conseguiu conter Jair Bolsonaro, é também um fato o fracasso do bolsonarismo em arrastar o mundo político-institucional para seus devaneios. 

É inegável que Jair Bolsonaro tem seguidores. No entanto, mesmo tendo conquistado a confiança de parcela da população, ele continua inteiramente isolado em relação à sua bandeira atual mais importante, contra as eleições e a Justiça Eleitoral. Não há nenhum partido ou organização da sociedade civil, como também não há nenhuma liderança política ou civil, que apoie sua campanha contra a integridade eleitoral. Apesar de todo o discurso bolsonarista, a sociedade não está dividida quanto a isso.

Tanto é assim que mesmo os aliados do governo – aqueles para os quais o governo Bolsonaro vem entregando generosos nacos do orçamento federal – se colocam bem distantes do presidente da República quando o assunto são as urnas eletrônicas. Consideram o tema encerrado desde que o Congresso rejeitou, no ano passado, a PEC do Voto Impresso. Os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que, diante das inúmeras denúncias de crimes de responsabilidade, muito contribuíram para a permanência de Jair Bolsonaro no cargo, são taxativos em rejeitar qualquer suspeita contra o sistema eleitoral. Até o pré-candidato bolsonarista ao governo do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), admitiu, em entrevista na TV Cultura: “Eu acredito nas urnas”.

Se o isolamento de Jair Bolsonaro já era visível, ficou especialmente notório após envolver os Ministérios da Defesa e da Justiça em sua tentativa de controlar as eleições, aventando a realização de uma contagem paralela de votos pelas Forças Armadas. O País tem muitos defeitos, mas ninguém – nenhuma liderança ou entidade relevante – manifestou apoio a essas investidas ilegais contra o sistema eleitoral. O que se tem visto é, cada vez com maior frequência, declarações contundentes de apoio ao Estado Democrático de Direito, à independência do Poder Judiciário e à integridade eleitoral, como a que fez o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Josué Gomes da Silva, em recente reunião da entidade. “Esta casa está ao lado do fortalecimento das instituições e do Judiciário”, disse o presidente da Fiesp.

O recado das lideranças políticas e civis é claro: ninguém quer rompimento da ordem democrática, ninguém quer bagunça nas eleições, ninguém quer candidato rejeitando, seja antes ou depois das eleições, o resultado das urnas a ser anunciado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A vontade do eleitor é soberana e será respeitada.

No isolamento de Jair Bolsonaro em sua campanha contra as eleições, há um ponto que merece destaque. Os partidos políticos têm experiência com a Justiça Eleitoral. Sabem que, por mais que haja deficiências e atrasos, o TSE aplica a legislação relativa às eleições. O pleito não é um mundo sem lei, como gostaria Jair Bolsonaro. O candidato que comete crime eleitoral não toma posse ou, se toma, tem depois seu mandato cassado. Ou seja, ninguém deseja pôr em risco sua candidatura embarcando na tresloucada investida bolsonarista contra as eleições.

É preciso, ainda, reconhecer que o desamparo político de Jair Bolsonaro vai além da questão da integridade eleitoral. Há dois anos, o presidente da República franqueou o governo para o Centrão, que passou a oferecer algum suporte político ao Palácio do Planalto. Mas a aliança está longe de ser estável ou segura. Por exemplo, na escolha do general Braga Netto como vice na sua chapa, Jair Bolsonaro ficou inteiramente isolado entre seus aliados. Como o seu entorno político mais próximo já percebeu, o golpismo de Bolsonaro não é força, e sim fraqueza. 

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S. Paulo, em 04.07.22

Mais de mil prefeitos vão a Brasília contra 'PEC Kamikaze' e propostas com impacto de até R$ 250 bi

Mobilização é organizada pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM) em protesto às medidas que aumentam gastos e reduzem receitas dos cofres municipais

Os prefeitos vão ao Congresso para entregar aos par(Foto: Arquivo/Agência Brasil)

A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) promete colocar no Congresso amanhã mais de cerca de mil prefeitos de todo o País numa mobilização contra as medidas que vêm sendo aprovadas recentemente pelo governo federal, Congresso e Supremo Tribunal Federal que aumentam gastos e reduzem receitas dos municípios. A poucos meses das eleições, a CNM denuncia que essa ofensiva, batizada de “pauta grave dos três Poderes”, já tem custo imediato de R$ 73 bilhões por ano com as decisões já aprovadas. 

(Relator quer colocar vale-Uber e vê espaço para ampliar gastos da 'PEC Kamikaze' a até R$ 50 bi)

O custo global calculado é R$ 250,6 bilhões ao ano com as mudanças já adotadas nos últimos meses, além de medidas que estão em análise e podem ser aprovadas. Os municípios do Estado de São Paulo teriam uma perda potencial de R$ 27 bilhões por ano pelos cálculos da confederação.

A concentração dos prefeitos terá início pela manhã, na sede da CNM em Brasília. À tarde, eles se dirigem ao Congresso. Os prefeitos vão entregar aos parlamentares um mapeamento com o impacto das medidas para cada município.

“Nosso papel é dar transparência. Que o governo e Congresso contestem esse número e digam que não é verdade”, diz o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski. Para ele, o problema não tem tido a repercussão política que a sua gravidade exige. Ziulkoski criticou também a forma como a "PEC Kamikaze”, de aumento de benefícios sociais, está tramitando no Congresso em ano de eleições. “A PEC do inferno, PEC Kamikaze, seja lá o nome que tiver, quem paga esse conta de janeiro em diante?”, advertiu.

Na véspera das eleições, a CNM quer chamar atenção do custo elevado para as finanças das localidades onde eles pretendem se reeleger. É uma tentativa de pressão para barrar o avanço das medidas que ainda não foram aprovadas.

Apesar do desgaste com os prefeitos, os deputados e senadores seguem aprovando as medidas, entre elas, projeto que fixou um teto entre 17% e 18% para o ICMS de combustíveis, energia elétrica, transporte urbano e telecomunicações. O impacto dessa medida é R$ 22,06 bilhões. Do lado das despesas, o potencial de aumento é de até R$ 176,8 bilhões ano, dos quais R$ 41,9 bilhões já aprovados.

As pautas que tratam de redução de arrecadação possuem impacto estimado pela CNM de R$ 51,6 bilhões por ano, sendo R$ 31,2 bilhões de medidas já aprovadas.

O presidente da CMN reconheceu as dificuldades que a entidade tem tido para se fazer ouvir no Congresso e apontou entre as razões, além das eleições, a distribuição discricionária de recursos do orçamento que é feita por meio das emendas. Outro ponto citado por ele é o fato de haver hoje muitos prefeitos novos que ainda não passaram pelos tempos das “agruras” de falta de recursos. Ele alerta que boa parte desses recursos prometidos acaba não sendo paga. “  Em ano eleitoral vem todos atrás de voto e depois fica aí (sem pagar)”.

Para justificar as medidas, governo e políticos têm argumentado que a redução de receita é justificada, já que Estados e municípios têm apresentado arrecadação elevada.  O ministro da Economia, Paulo Guedes, sempre reforça o discurso que o governo já transferiu mais de R$ 500 bilhões aos governadores e prefeitos e que o caixa deles está elevado.

O presidente da CNM, no entanto, destaca que não há garantia que os resultados excepcionais de arrecadação se sustentem nos próximos anos, pois essa variável é carregada de incerteza e está relacionada com a atividade econômica.

Freio

Os prefeitos querem que o Congresso aprove a Proposta de Emenda à Constituição 120, de 2015, que proíbe a União de criar encargos financeiros para os Estados e municípios sem a previsão de transferência de recursos para o seu custeio.  Uma das maiores críticas dos prefeitos é a criação de encargos financeiros para os municípios, como pisos salariais para as principais carreiras do funcionalismo, gastos de caráter continuado.

Para o levantamento do custo das medidas, a CNM dividiu as pautas do Executivo Federal adotadas por meio de portarias e decretos que repercutem sobre a arrecadação e as despesas dos Municípios. Já a pauta do Judiciário, centralizada no STF, diz respeito às Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) e de Recurso Extraordinário (RE). A pauta do Congresso são projetos aprovados ou em tramitação na Câmara e no Senado.

Entre essas medidas do  Congresso já aprovadas, está a criação do piso salarial nacional da enfermagem. A despesa estimada é de R$ 9,41 bilhões.  Do lado do Executivo,  a medida de maior impacto foi o reajuste de 34,24% do piso do magistério com custo de R$ 30,46 bilhões e redução de 35% do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), como perda de R$ 6,75 bilhões para as receitas. Essa medida, porém, está suspensa por liminar do STF.

Adriana Fernandes, O Estado de S. Paulo, (digital), em 04.07.22

Pedro Passos: 'Governo Bolsonaro é um show de horror; Lula tem solução antiga para problemas novos

'Seria um horror submeter o Brasil a mais quatro anos de bolsonarismo', diz empresário que é um dos fundadores da Natura em entrevista ao 'Estadão'. Entrevista com Pedro Passos, empresário, concedida a Adriana Fernandes e Ricardo Grinbaum

O empresário Pedro Passos; ‘Com a Simone, a discussão vai subir a barra’ (Foto: Daniel Teixeira/Estadão - 01/06/2022)

Pedro Passos, está preocupado com o resultado das eleições. Um dos fundadores da Natura, Passos vê problemas sérios nas duas candidaturas favoritas.  “A síntese do governo do presidente Jair  Bolsonaro (PL) é um show de horror”, disse, “(se vencer) ele vai levar a gente para uma situação muito grave por conta da situação institucional e da falta de compromisso com determinadas agendas econômicas, como a ambiental, o que isola o Brasil.”

Já em relação ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o temor é em relação a um projeto que ele considera ultrapassado e ineficaz com soluções antigas para problemas novos. “Quando analiso a proposta do PT  vejo que está mais parecida com o governo Dilma do que o Lula 1 (primeiro mandato de Lula). Esse 1 faz toda diferença.”

('Mercado considera os dois candidatos ruins, cada um a seu jeito', diz Stuhlberger, sobre eleição)

Passos defende que os empresários devem participar do debate público. “Empresário que fica muito debaixo do pano não privilegia a classe empresarial. Acaba tendo uma conotação de lobista, de tirar vantagem seja qual for o governo.” "Tem que colocar mais a cara. Não pode ficar embaixo do radar", diz.

Ele mesmo está engajado na campanha de Simone Tebet (MDB). Com outros empresários, ele ajuda a preparar propostas para o plano de governo. “Estou confiante de que com a Simone a discussão vai subir a barra.”

Passos acredita que quem ganhar a eleição tomará posse, apesar de todo o ruído político. “A gente sabe que, pelo histórico dele, o Bolsonaro não quer a democracia”, disse. “Mas, apesar de tudo, o Brasil tem ainda resistência a esse tipo de coisa. Os generais sabem que o Brasil é mais importante do que alguns cargos comissionados. Não vai haver suporte para um movimento como esse.”

Passos deu a seguinte entrevista ao Estadão:

Faltando três meses para as eleições, o que esperar das eleições deste ano?

Eu sou um ativista pela terceira via. Independente de projeções eleitorais que eu não sei fazer, a melhor forma de colocar o Brasil no rumo é ter uma alternativa ao que está aparecendo nas pesquisas, Bolsonaro e Lula. Uma chapa Simone-Tasso dá uma consistência bastante importante para as prioridades dessa terceira via. Fala muito mais de futuro do que as alternativas hoje existentes.

O que o levou a fazer essa escolha pública?

Podemos muito adjetivar o que o governo Bolsonaro tenta fazer: destruir as instituições, a democracia, os regulamentos mínimos da lei eleitoral, uma atitude muito tosca do que o Brasil precisa. Então, não precisa falar de programa de governo Bolsonaro porque a gente vive o programa Bolsonaro. A síntese é um show de horror. Em diversos campos. Ele sempre defendeu a ditadura, torturadores, etc. Não tem surpresa em relação à biografia dele. Há surpresa em relação a algumas coisas que ele disse na campanha e não fez. Seria um horror submeter o Brasil a mais quatro anos de bolsonarismo. Por outro lado, eu tenho acompanhado, e participei de um jantar com Lula, e tentando extrair das próprias diretrizes do programa do PT, fico com uma sensação de que a gente está voltando ao passado, com soluções antigas para problemas novos.

A melhor forma de colocar o Brasil no rumo é ter uma alternativa ao que está aparecendo nas pesquisas, Bolsonaro e Lula

Quais seriam essas soluções velhas?

Temos um cenário internacional muito mais complexo. Um país também mais complexo em termos de inflação, pobreza, etc. Sabemos que o Brasil precisa de um conjunto de reformas. Por isso, eu acho que a opção da Simone. Ela pode enriquecer o debate eleitoral que está muito ralo, com soluções antiquadas de um lado e trágicas de outro lado.                                                                                                

Por que o debate eleitoral em torno de ideias não acontece? 

O que se vê são generalidades. Estou confiante de que com a Simone a discussão vai subir a barra. Hoje, não tem discussão. Teve um encontro da CNI e o Lula não foi. Ele está numa posição muito de postura eleitoral e menos de explicitar qual é o programa. Alguns falam: não vai ser isso, na hora 'H' vai mudar. Eu falo: já não deu certo em 2018. Estelionato eleitoral, não vale a pena acreditar que o candidato vai mudar de postura.

Poderia dar exemplos das soluções que considera antiquadas sendo apresentadas pela campanha do Lula?

A maioria delas já foi vista e não deu certo.  Novo regime fiscal. Ou seja, tirar o teto de gastos, mas não define qual é o novo regime, se terá outro. Reformas tributária e administrativa muito superficiais. A agenda de aumento da produtividade da economia não é prioritária. Crítica a preços de combustíveis, “abrasileirar os preços”. Eu gostaria que vocês me explicassem o que é isso. Não seguir o mercado internacional? Não seguir a cotação do dólar? Isso é bobagem. Alguém vai pagar essa conta daqui a um ano, dois, três anos.  Estímulos setoriais novamente. A “política cambial não pode ser passiva”. O que é isso? Intervenção do câmbio? Abre-se uma janela para muita coisa. Intervenção de câmbio a gente sabe que não dá certo. Resistência às concessões na área de saneamento, estado indutor do crescimento através das empresas estatais, a Petrobras reintegrando toda a cadeia de distribuição e refino.

Você tem uma lista...

Já vimos onde isso vai dar. Tem a proposta do ativismo dos bancos públicos, sabemos que isso é um problema porque desequilibra o mercado de capitais de longo prazo. As políticas industriais. Eu tenho uma relação de algumas políticas industriais que foram feitas no Brasil. Uma se chamava Política de Desenvolvimento Produtivo, PDP, crédito subsidiado do BNDES a um grupo de setores contemplados. O que deu? Lembram de alguma coisa relevante que ficou aí? Teve o programa PSI, aquele que o juro estava tão barato que tinha gente comprando caminhão para estocagem de mercadoria e não para trafegar. Foram R$ 316 bilhões em subsídios creditícios alocados ao programa. Têm ainda os planos Brasil Maior, Inovar-Auto. Tem algum sentido subsidiar combustível fóssil para quem não está abaixo da linha de pobreza? Essas generalidades destroem a política econômica brasileira. Isso para falar do que eles estão propondo. Agora, para fazer diferente depois que eles foram eleitos, eu prefiro não acreditar em história da carochinha. Quando analiso a proposta do PT, está mais parecida com o Governo Dilma do que com o Lula 1 (2003/2006). Esse 1 faz toda a diferença.

(Quando analiso a proposta do PT, está mais parecida com o Governo Dilma do que com o Lula 1 (2003/2006). Esse 1 faz toda a diferença)  

A senadora Simone Tebet está bem atrás das pesquisas. As chances da candidatura dela deslanchar são mais difíceis?

Eu estou trabalhando para não acontecer isso. É uma matéria difícil para a terceira via. O PSDB, o MDB não conseguiram se entender adequadamente e o tempo está curto. Mas temos que elevar a barra do debate. Ela vai se tornar mais conhecida a partir da convenção. Torço para que se confirme o nome do Tasso, que vai dar consistência econômica e socioambiental ao programa dela. Um pouco dessa conversa aqui é no sentido de mostrar que o Brasil precisa de uma discussão mais madura a respeito de futuro, de prioridades, integrando políticas públicas com parceria privada. Pela situação de guerra e pandemia tem uma baita oportunidade para o Brasil que é a atração do capital que está circulando no mundo. Tem um caminho para fazermos uma agenda econômica verde e o Brasil tem uma grande vantagem pela frente porque vamos gerar crédito de carbono mais barato. Mas precisa ter segurança jurídica, dos contratos, para atrair o capital internacional.

Qual o seu nível de envolvimento na campanha da Simone Tebet?

Tem um grupo de empresários, etc., que vem trabalhando há dois anos na linha de buscar uma alternativa a essa polarização. Para nós, é importante o País ser pacificado. E agora afunilou o nome da Simone e estamos procurando ajudar com formulações e ideias. É um grupo de formulação de conteúdo.

Pode contar quem está no grupo?

Não tenho autorização. O que nós vemos na prática, independentemente de pesquisas, pelo menos em determinados grupos, é um grande nível de aceitação da terceira via.  

Como vice na chave do PT, o ex-governador Geraldo Alckmin poderá ter um papel diferenciado na área econômica?

Não sou amigo do Alckmin, mas fui sempre um apoiador dele e tenho ótima relação com ele, de muito respeito. Não está claro para mim essa opção política. Eu conheço o pensamento do Alckmin em termos de economia, foi um belíssimo gestor. Ele tem muitas qualidades e é difícil entender a opção política. Entendo que talvez seja um movimento contra o Bolsonaro, mas acredito que o Alckmin pode ser talvez influenciador para evitar caminhos errados. Não sei se o PT vai permitir e dar esse espaço para ele.

Há alguma interlocução com o PT?

Não. Interlocução direta não tem. Teve esse jantar, que foi divulgado, inclusive, de uma maneira maliciosa. A manchete que eu li no dia seguinte é que os empresários tinham aplaudido entusiasticamente, o que não é absolutamente verdade. Foi um aplauso protocolar. Eu acho que conversar é bom, faz parte da democracia, não é tomada de posição. Como há a visão de que a maior parte dos grupos empresariais é dirigida através de lobbies, fica uma má impressão. O empresário tem que conversar com os possíveis candidatos, tem saber qual é o programa, quais são as ideias. É importante cobrar coerência e acho uma pena o Lula não estar participando de debates. Ele está prestando um desserviço ao País, como fez o Bolsonaro lá atrás. Não ir aos debates é um desrespeito à democracia. O Lula sabe debater, sabe conversar.

A defesa da democracia entrará no debate na campanha eleitoral?  O senador Flávio Bolsonaro  disse em entrevista ao 'Estadão' que não o presidente Bolsonaro não terá como controlar uma eventual reação violenta de apoiadores que contestem o resultado das urnas?

Não quero parecer ingênuo. A gente sabe nitidamente que o Bolsonaro não quer a democracia pelo histórico dele e pelo que está fazendo de tentar destruir as instituições, o STF. Mas eu vou falar, apesar de tudo, o Brasil tem ainda resistência a esse tipo de coisa. Os generais sabem que o Brasil é mais importante do que alguns cargos comissionados. Não vai haver suporte para um movimento como esse.

Como você vê a candidatura do Ciro Gomes?

Ele é um sujeito muito inteligente, estudioso, faz a lição de casa. Mas a visão do Ciro na área econômica, pelo menos, é muito frágil. Ele defende praticamente as ideias, e às vezes mais extremadas, do que o próprio PT. Agora, politicamente parece que ele entrou num patamar de estabilidade.

Entre o empresariado, como está a participação no debate eleitoral? 

Há dois meses você escreveu um artigo criticando aqueles empresários que se prestam ao jogo do poder, do dinheiro fácil, do privilégio.

Essa coisa do empresário não se manifestar incomoda muito. Numa democracia, o empresário é um agente da sociedade. Ele tem que se manifestar. Nos Estados Unidos, algumas empresas estão se manifestando em relação ao tema do aborto, que regrediu. Tenho impressão de que o empresário ficar muito por debaixo do pano não privilegia a classe empresarial. Acaba tendo uma conotação de lobista, de tirar vantagem seja qual for o governo. Nas relações com o governo, num Estado grande como a gente tem, influente, afeta muito o negócio. Não podemos ser ingênuos. Mas o empresário tem que colocar mais a cara. Não pode ficar embaixo do radar.

Essa coisa do empresário não se manifestar incomoda muito. Numa democracia, o empresário é um agente da sociedade. Ele tem que se manifestar - Pedro Passos, empresário

Empresários de setores que são altamente regulados pelo governo não temem retaliação?

A liderança empresarial hoje é frágil. Tem isso, mas eu prefiro que as empresas se posicionem, os empresários. Não dá para ficar escondido. Faz parte do jogo correr algum risco para tentar mudar o País, que está cada vez mais pobre, sem saúde, educação, segurança institucional, jurídica. Eu fico muito preocupado porque a gente quebra o País. O empresário tem que se manifestar.

Além da agenda ambiental, a qual você é ligado, o que não pode falta no debate econômico?

As reformas econômicas. Ter um Estado mais coordenador do que operador, não tentar fazer escolhas que não deram certo, ter cuidado com o ativismo financeiro dos bancos estatais, porque isso pode destruir o mercado e afastar os investidores externos. Tem que ter compromisso com as regras fiscais, se não a esse teto de gastos que o Bolsonaro já furou, mas tem que definir uma âncora fiscal num  País onde o Congresso tem poderes sobre o Orçamento que não deveria ter, como o orçamento secreto. A economia funciona bem quando se tem clareza do ambiente de negócios. Tem muito capital para investir no Brasil e ajudar a fazer a transição climática. Daqui a 15 anos, vamos fazer captura de carbono de outras formas e por isso o Brasil precisa também investir em ciência e tecnologia, inovação.

Qual o cenário que você vê com uma vitória do Bolsonaro ou do Lula?

São situações diferentes. O Bolsonaro vai levar a gente para uma situação muito grave por conta dessa coisa institucional, a falta de compromisso com determinadas agendas econômicas, como a ambiental, que isola o Brasil. Além de ser uma tragédia para a saúde. Na educação, o que está acontecendo com quatro ministros em três anos de governo, o armamento da população. É um atraso civilizatório. O Lula é o diagnóstico que as formulações não vão dar certo. Se não trabalhar na agenda de produtividade, não vamos colocar o Brasil em condições de igualdade com os outros países.

O governo com o Congresso está aprovando uma série de medidas eleitorais com apoio de ampla maioria dos parlamentares terão forte impacto nas contas públicas, entre elas corte de tributos. Qual a sua avaliação?

A redução de impostos que está sendo feita é uma  bomba. É uma redução de espaço de investimentos melhores na saúde e educação. Como vai mudar isso para frente? Não é um custo pequeno. É absurdo. É irresponsabilidade. E do ponto de visto constitucional acho que não tem suporte uma mudança na véspera da eleição. Essa conta vai sobrar para o próximo governo. O empresário e todo o cidadão gostaria de ver redução de impostos, mas precisa de reforma tributária, crescimento. Ficar empurrando o cobertor curto só causa transtorno para a economia. Não é o que o empresário quer. Queremos segurança institucional, jurídica. Como fica a projeção sobre o risco país no ano que vem com esse aumento dos gastos improvisados de última hora. É muito difícil. Infelizmente, talvez estejamos vivendo o pior momento da nossa história depois que resgatamos a democracia.

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 04.07.22

Por que tantas pessoas estão pegando Covid novamente? Tudo o que você precisa saber neste momento da pandemia

As sublinhagens BA.4 e BA.5 do ômicron continuam a se espalhar e têm a capacidade de reinfectar aqueles que já passaram por ela. Essas são suas principais características

Centro de Atenção Primária (CAP) do Creu Alta de Sabadell, em janeiro do ano passado. (Foto: Albert Garcia)

Muitos médicos estão chamando o aumento nos casos de Covid que começou no início de junho de “onda silenciosa”. Nela há menos focos do que nos anteriores, não há mensuração exaustiva de diagnósticos, pois o Ministério da Saúde e as comunidades o abandonaram no final de março , e não produz quase tantos quadros graves quanto os anteriores ao vacinas. Mas os casos leves continuam a crescer, impulsionados por duas sublinhagens do ômícron (BA.4 e BA.5) que têm a capacidade de serem transmitidas até mesmo em pessoas que tiveram a doença recentemente. É algo que os médicos notam em suas consultas e que também é demonstrado pelas estatísticas com as quais a pandemia agora é medida, além de um aumento notável nas internações. Estas são as características desta onda:

Que onda é a atual?

A última onda clara de covid foi a sexta, que atingiu seu pico em janeiro com a grande explosão de casos ômícrons . Depois disso houve uma queda e uma nova alta em abril, que alguns consideraram ser a sétima onda , e que caiu novamente em maio. No início de junho os diagnósticos começaram a crescer novamente. Desse ponto de vista, esta poderia ser a oitava onda, mas muitos médicos falam dela como a sétima, sem contar a anterior devido à sua pequena magnitude, ou juntar as duas em uma.

Como os casos estão sendo medidos?

Desde o final de março, a Saúde e as comunidades só recolhem nas estatísticas os casos dos maiores de 60 anos, já que para os menores dessa idade, se forem pessoas saudáveis, não são indicados exames diagnósticos . Isso evita saber se há mais incidência em outras faixas etárias. Como os autotestes foram autorizados nas farmácias, há também a questão de saber quantos casos positivos, mesmo aqueles com mais de 60 anos, estão sendo deixados de fora das estatísticas por não serem notificados.

Quantos casos existem realmente? Eles são mais do que em outras ondas?

Esta terça-feira foram 841 casos por 100.000 habitantes em 14 dias (nos maiores de 60 anos), mais 86 do que na sexta-feira passada e 188 há mais de uma semana. Estamos aproximadamente nos níveis de maio - a maior parte do mês estava acima de 800. A diferença é que então ele parou nesses números, enquanto agora há uma tendência clara e rápida de alta. São também níveis semelhantes aos máximos medidos nas ondas antes do ômícron: 899 na terceira e 700 na quinta. Mas ainda estamos bem abaixo do pico da sexta onda, quando a incidência acumulada ultrapassou 3.000 casos.

Quais comunidades são mais afetadas?

Madrid é a que apresenta a maior incidência cumulativa entre as pessoas com mais de 60 anos: 1.450 casos por 100.000 habitantes. Outros seis estão acima de mil: Ilhas Baleares, Ilhas Canárias, Castilla-La Mancha, Extremadura, Galiza e La Rioja. A Andaluzia é, de longe, a que regista menos casos: 271. Todos os outros estão acima de 500.

Quais são as sublinhagens BA.4 e BA.5 do ômicron?

Praticamente todos os casos desta onda são causados ​​pela variante omicron. Mas não para o primeiro, que chegou à Espanha no final do ano passado. Ela vem evoluindo e duas sublinhagens estão surgindo: BA.4 e BA.5. Segundo o último relatório da Saúde , continuam a crescer e já representam entre 19,2% e 76,3% das infecções, dependendo da comunidade autónoma. Mas é um relatório que costuma estar um pouco desatualizado com o que está acontecendo a todo momento, então é provável que eles estejam ainda mais consolidados.

Eles são mais contagiosos?

Essas sublinhagens parecem ser ainda mais contagiosas que o ômicron original, que já era muito mais transmissível que o delta e o delta, por sua vez, que os anteriores. O que os torna ainda mais expansivos é que são capazes de contornar a imunidade dos anticorpos produzidos tanto pela infecção natural quanto pela vacina, de acordo com vários experimentos de laboratório. É por isso que é possível que uma pessoa tenha a doença neste inverno e a tenha novamente agora.

Eles são mais sérios? As internações estão aumentando muito?

Essas sublinhagens não parecem ser mais graves que as anteriores, muito pelo contrário. Na ausência de estudos mais precisos, a vacina continua apresentando alto nível de proteção na prevenção de casos graves e óbitos. No entanto, quando o número de infecções aumenta, as internações também crescem, e agora estão fazendo isso de forma decisiva: na terça-feira havia 9.500 pessoas internadas com covid (quase 1.200 a mais do que há apenas quatro dias) que ocupam 7,8% dos leitos e 433 na UTI (mais 73 do que na sexta-feira e para mais de 400). pela primeira vez desde a Páscoa), 4,9% de ocupação. Embora esses números ainda sejam administráveis ​​nos hospitais, se o aumento continuar, como indica a tendência, as baixas dos banheiros e o fechamento das fábricas para as férias podem levar a um verão complicado nesses centros.

Que sintomas eles produzem?

Mais estudos também são necessários para detalhar os sintomas dessas sublinhagens. Os médicos estão atendendo a grande maioria das condições leves nas consultas, com as características típicas da covid: dor de cabeça, dor de garganta, cansaço, febre, coriza, tosse...

Quão grande essa onda vai crescer?

É muito difícil prever como as ondas de covid se comportarão. O exemplo mais próximo que a Espanha tem é Portugal, país vizinho, com altas taxas de vacinação, onde a onda causada por essas sublinhagens vem diminuindo há mais de uma semana. Lá, a incidência atingiu um pico de 3.600 diagnósticos por 100.000 habitantes, o maior registrado no país. No entanto, a pressão sobre os hospitais está longe da das ondas anteriores. De acordo com os últimos dados disponíveis, a tendência é de queda: são 1.743 internados, dos quais 85 estão em UTI, bem abaixo do número alcançado na primeira grande onda no país, quando foram mais de 3.000 internações e meio mil pacientes em terapia intensiva . Isso não significa que o mesmo acontecerá na Espanha, mas é um precedente a ser levado em consideração.

O aumento de infecções é o culpado pelo fim das máscaras?

Não houve relação temporal direta entre o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras e o aumento de casos. A transmissão está em níveis muito altos desde antes de serem removidos dentro de casa e não caiu abaixo de 400 casos por 100.000 habitantes desde o outono passado . Acontece que as máscaras faciais não são a única restrição que foi retirada: praticamente nenhuma permanece em vigor, nem mesmo o isolamento de casos positivos . As máscaras, no entanto, reduzem a probabilidade de contágio e algumas comunidades, como a Catalunha, pediram aos idosos que as usassem novamente dentro de casa (embora ainda não sejam obrigatórias).

Será necessária outra dose da vacina para enfrentar essa onda?

A Saúde não tem nos seus planos colocar uma nova dose de reforço da covid a quem já a tem (53,5% da população) até depois do verão, embora incentive os maiores de 18 anos que não a receberam a colocá-la. É muito provável que vacinas com mais eficácia contra as novas variantes tenham sido aprovadas até o outono e que a revacinação com elas (com o que seria uma quarta dose) comece para a população com mais de 80 anos e aqueles que vivem em residências. A Comissão de Saúde Pública, órgão que decide sobre a administração de doses, não se pronunciou sobre a população abaixo dessa idade, algo que terá de ser estudado quando chegar a hora.

Paul Linde, de Londres para o EL PAÍS, em 29.06.22

Mensagem dos hepatologistas para cuidar do fígado: três dias seguidos por semana sem experimentar álcool (pelo menos)

Os especialistas reunidos no congresso internacional sobre doenças deste órgão pedem menos consumo, menos publicidade e preços mais altos para bebidas alcoólicas

Unidade móvel de escaneamento do fígado do British Liver Trust no Congresso Internacional do Fígado, realizado em junho em Londres. ( Footo: STEVE FORREST/EASL)

A quantidade mais saudável de consumo de álcool é zero. Mas os hepatologistas acreditam que essa é uma recomendação irreal para a maioria da população. No Congresso Internacional do Fígado, que reuniu alguns dos maiores especialistas mundiais no assunto na semana passada em Londres, eles quiseram enviar uma mensagem para cuidar desse órgão essencial para as pessoas que não estão dispostas a deixar de beber completamente: pelo menos três dias seguidos por semana sem experimentar álcool. E um aviso: não é uma indicação isolada. Deve ser acompanhado de moderação e boa nutrição o resto dos dias.

Por trás desse conselho está uma realidade epidemiológica preocupante: a Europa tem a maior taxa de consumo de álcool do mundo e mais da metade das doenças hepáticas em estágio terminal está relacionada ao consumo de álcool, de acordo com um relatório conjunto da Associação Europeia para o Estudo do Fígado (EASL) e The Lancet . Todos os anos 287.000 pessoas morrem no continente por doenças do fígado, a maioria evitáveis ​​com hábitos saudáveis, e a tendência é aumentar: é um aumento de 25% em relação a 1990.

Além disso, as hepatopatias possuem uma característica que as diferencia das demais: atacam pessoas jovens e de meia-idade, principalmente entre a população mais vulnerável socialmente. “Isso contrasta com doenças causadas pelo tabaco e obesidade, como câncer de pulmão e diabetes tipo 2, que normalmente causam mortes em pessoas na faixa dos 60 e 70 anos”, diz o documento. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que as doenças hepáticas são a segunda causa de anos de trabalho perdidos na Europa, atrás apenas das doenças coronárias.

Com esta realidade em mente, Aleksander Krag, secretário-geral adjunto da EASL, pede uma redução decidida do consumo de álcool, sua promoção e aumento de seus preços. “Não é que digamos às pessoas que elas não podem beber nada; [você pode seguir] regras muito boas: ficar três dias sem beber toda semana, nunca consumir mais de cinco unidades de álcool de uma vez e não mais de 10 por semana [uma unidade não corresponde a uma bebida: um copo de vinho cheio é igual a três unidades; uma cerveja de 333 mililitros (uma lata), é 1,5; uma dose de uma bebida de alta prova, uma unidade]”, explica Krag.

(A origem da hepatite aguda infantil ainda é um mistério após 894 casos, dezenas de transplantes e 18 mortes)

Krag esclarece que essas quantidades, do ponto de vista da doença hepática, podem ser toleráveis, já que o fígado é um órgão com alta capacidade de regeneração, mas isso não significa que sejam recomendadas. "Você não deve beber um copo de vinho pensando que é saudável, mas porque você gosta."

A verdade é que há aumentos associados no risco de certos tipos de câncer de qualquer quantidade de álcool, que não é apenas tóxico, mas também viciante. Por esse motivo, muitos profissionais de saúde se opõem a fazer recomendações que não sejam tentar beber o mínimo possível. E se nada for consumido, melhor.

Juan Revenga, consultor de alimentação e saúde, explica que "logicamente é melhor beber menos" e descansar por três dias do que não fazê-lo, mas acredita que promover o "consumo moderado" é uma "enteléquia". “Ok, talvez uma cerveja ou uma taça de vinho por dia não vá esmagar seu fígado, mas tem outros riscos. O álcool é viciante e dá uma sensação de bem-estar que, assim que você bebe, você tende a querer um pouco mais. E, ao mesmo tempo, gera uma habituação, porque para encontrar essa sensação você precisa cada vez mais. No álcool, a melhor quantidade é zero”, resume.

Embora existam divergências de opinião sobre como lançar a mensagem para reduzir o consumo, há uma clara unanimidade entre os especialistas sobre a conveniência de fazê-lo. E para isso, existem duas ferramentas muito eficazes: aumentar o preço e diminuir a promoção. “Está bem documentado que o preço do álcool é importante. No País de Gales e na Escócia eles colocaram um preço mínimo e o consumo caiu da noite para o dia”, explica Krag. Isso não deve valer apenas para bebidas alcoólicas, mas também para alimentação não saudável, na opinião do secretário adjunto da EASL, para o qual pede aos políticos impostos diferenciados: “Sabemos que verduras são boas, mas muitos de nossos pacientes não podem pagar eles e eles vão direto para o fast food.”

A outra frente que pode ajudar na mudança de hábitos é regular a promoção do álcool e de alimentos não saudáveis . “Há uma razão pela qual as empresas têm um enorme orçamento de publicidade. Mas por que é legal anunciar álcool?”, pergunta Krag. Ele o compara ao tabaco, cuja promoção é proibida há anos em quase todos os países ocidentais e cuja embalagem alerta sobre os perigos para a saúde de seu consumo. “Por que não implementar essas medidas simples? A indústria do álcool não vai gostar, mas trata-se de proteger os cidadãos", argumenta.

Uma doença que não avisa

Um dos problemas com a doença hepática é que muitas vezes é silenciosa e não avisa até que seja tarde demais. "A maioria das pessoas com cirrose não diagnosticada tem exames de sangue normais", diz o relatório EASL e The Lancet .

A OMS apresentou no congresso de Londres, ao qual o EL PAÍS participou a convite da organização, uma nova linha estratégica de combate às doenças hepáticas com foco na prevenção. “Precisamos aproximar o diagnóstico e o tratamento da comunidade. Torne as varreduras móveis [do fígado] e os exames de sangue [para marcadores hepáticos] mais acessíveis”, disse Philippa Easterbrook, especialista do programa de hepatite da agência. Querem que seja mais fácil detectar problemas quando eles surgirem, que não seja necessário ir a um especialista ou ao hospital, mas que possa ser resolvido no posto de saúde ou mesmo em unidades itinerantes que percorrem os bairros.

É algo que o British Liver Trust (BLT), uma organização não governamental do Reino Unido focada em doenças do fígado, vem fazendo há cinco anos. Com algumas unidades móveis que escaneiam o fígado, eles podem conhecer seu estado de saúde com bastante precisão. É uma máquina que foi inventada há três décadas para entender a cura do queijo. Você pode medir se o interior ainda está macio e isso determina se você precisa de mais descanso. Levado ao fígado, pode calcular o grau de fibrose do órgão. Se estiver acima de certos níveis, é muito provável que você precise de um check-up médico para confirmá-lo.

No tempo em que está sendo executado, eles fizeram mais de 300.000 testes virtualmente aleatórios, em lugares movimentados no Reino Unido. Em 20% de todos eles o resultado não foi o ideal e eles receberam uma carta recomendando que fossem ao médico: não é um método de diagnóstico, insistem seus promotores, mas sim uma maneira fácil, rápida e barata de abordar o que o que acontece no fígado

“Noventa por cento das doenças hepáticas são evitáveis, e o que aumenta o risco são duas coisas: primeiro, o álcool e, segundo, os riscos metabólicos associados ao excesso de peso e diabetes tipo 2”, diz Vanessa Hebditch, porta-voz do BLT. “Sabemos que, se localizarmos a doença precocemente, podemos impedir que o dano progrida e, em alguns casos, até revertê-lo”.

Paul Linde, o autor deste artigo, escreve para o EL PAÍS desde 2007 e é especializado em saúde e questões de saúde. Ele cobriu a pandemia de coronavírus, escreveu dois livros e ganhou alguns prêmios em sua área. Antes disso, dedicou vários anos ao jornalismo local na Andaluzia. Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 04.07.22

Trump nu

Os depoimentos da comissão do assalto ao Capitólio confirmam que o ex-presidente procurou liderar um autogolpe

Uma gravação de Donald Trump, durante a sexta sessão da comissão que investiga o ataque ao Capitólio. ( Foto: J. SCOTT APPLEWHITE (AP)

Na manhã em que pediu a seus apoiadores que marchassem no Capitólio, Donald Trump estava ciente de que muitos estavam armados. A polícia lhe disse. Naquele 6 de janeiro de 2021, ele tentou ir com eles interromper a sessão do Congresso. Quando impedido por agentes do Serviço Secreto por razões de segurança, ele os confrontou. Então ele viu na televisão da Casa Branca como milhares de pessoas invadiram o Capitólio, sem fazer nada. Quando lhe disseram que a máfia queria "enforcar" seu vice-presidente, ele respondeu: "Ele merece". Esses detalhes foram revelados por Cassidy Hutchinson, consultora que trabalhava a poucos metros do Salão Oval,na televisão perante a comissão especial para investigar esses eventos. É o testemunho mais recente e explosivo de uma comissão que durante o mês de junho expôs completamente qualquer possível justificativa para as ações de Trump, e o próprio personagem, retratado por seu próprio círculo de confiança como um mentiroso isolado e demente.

A investigação do Departamento de Justiça já levou a mais de 800 prisões e mais de 300 condenações. Para acusar Trump ou sua comitiva desses crimes, o Ministério Público precisa de provas de que sua intenção era lançar a multidão armada contra o Capitólio e que não foi um evento espontâneo. Embora a comissão ainda não tenha decidido se encaminhará suas conclusões ao Ministério Público, essa é exatamente a história que conseguiu estabelecer nas seis sessões televisionadas. Não há espaço para confusão: tudo o que aconteceu desde a derrota eleitoral foi parte de um plano para não entregar o poder,liderada por Trump, mas apoiada por um apoio disperso que estimulou o ex-presidente. A batalha judicial, desacreditada por mais de 60 tribunais, foi elaborada por três assessores (John Eastman, Peter Navarro e Rudy Giuliani). Politicamente, um grupo de republicanos espalha descaradamente mentiras sobre as eleições. E, finalmente, no dia marcado, supremacistas violentos (Proud Boys e Oath Keepers) lideraram uma revolta armada realizada por milhares de acólitos que se reuniram em Washington por convocação de Trump. Várias dessas figuras-chave tentaram obter um perdão presidencial de Trump nos dias que se seguiram para se proteger da justiça. Não pode haver maior admissão de culpa.

Todos os envolvidos estavam cientes de que não havia fundamento para contestar o resultado eleitoral. Em outro momento sem precedentes, o procurador-geral de Trump, William Barr, declarou que o suposto roubo eleitoral era “uma farsa”. A própria filha e conselheira do ex-presidente, Ivanka Trump, concordou que não houve fraude. Ele foi informado da mesma coisa por advogados de campanha, advogados da Casa Branca, seu gerente de campanha e seu especialista em dados eleitorais. Nas palavras de Barr, o presidente "não estava interessado nos fatos reais", apenas nas vozes do grupo de conspiradores que irresponsavelmente douraram seu ego a ponto de colocar a própria democracia nas cordas. Quase todas as perguntas já foram respondidas. Falta justiça.

Editorial do EL PAÍS, em 04.07.22

As mentiras de Putin sobre ataques russos na Ucrânia

Pesquisas de jornalistas e ONGs expõem informações falsas de Moscou, que alega não atacar alvos civis na Ucrânia. Especialistas apontam seguidas violações do direito internacional pelas forças russas.

Um míssil atinge um shopping center em Kremenchuk – pessoas são mortas, feridas, o prédio é destruído. Milhares de ucranianos foram mortos na guerra de agressão da Rússia até agora. Todos os dias são reveladas novas imagens da destruição e sofrimento do povo na Ucrânia. No entanto, o governo russo, liderado por Vladimir Putin, continua afirmando: "O exército russo não está atacando a infraestrutura civil".

Mas jornalistas, organizações não governamentais e organizações políticas estão provando o contrário. "Vemos um padrão claro de violações do direito internacional humanitário aqui, que na verdade deveria proteger os civis", diz Wolfgang Benedek, que investigou violações do direito internacional na Ucrânia em nome da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).

De acordo Benedek – que chefia a comissão de especialistas em violações do direito internacional humanitário e dos direitos humanos no território da Ucrânia –, a Rússia não leva em consideração o direito internacional humanitário ou não o faz suficientemente. O fato de a Rússia não estar atacando nenhuma infraestrutura civil é, segundo ele, uma "mentira descarada".

Casos concretos comprovam ataques russos a alvos civis

A Organização das Nações Unidas (ONU) documentou 4.731 mortes de civis e 5.900 feridos civis na Ucrânia desde 24 de fevereiro (até 27 de junho) – mas espera que os números sejam ainda maiores.

A organização internacional de jornalismo investigativo Bellingcat também documentou detalhadamente em um mapa os ataques à infraestrutura civil desde o início da guerra de agressão na Ucrânia. "Vimos um grande número de infraestruturas civis destruídas e civis feridos e mortos", afirma à DW Nick Water, diretor de justiça e responsabilidade da Bellingcat.

Uma das principais razões pelas quais a Bellingcat está lançando o mapa é fornecer informações robustas para responsabilizar os responsáveis no futuro.

No entanto, existem casos específicos em que organizações e jornalistas fornecem evidências de que a Rússia é responsável pelos ataques às infraestruturas civis. A DW selecionou seis exemplos que já foram bem documentados e pesquisados.

Câmara de segurança registrou momento em que míssil atinge shopping center em Kremenchuk (Foto: CCTV/Instagram @zelenskiy_official/REUTERS)

Ataque a um shopping center em Kremenchuk

Mísseis russos atingiram um shopping center com mais de mil visitantes na cidade de Kremenchuk em 27 de junho, segundo fontes ucranianas. Pelo menos 11 pessoas morreram e mais de 50 ficaram feridas.

O Ministério do Exterior da Rússia confirmou o ataque, mas afirmou em seu site que foram bombardeados "um hangar com armas e munições que chegaram dos EUA e da Europa", alegando que a munição estocada foi responsável pelo incêndio que atingiu o centro comercial vizinho, o qual estaria inoperante no momento do ataque. Mas a Rússia não forneceu nenhuma evidência para a alegação.

Vídeo de câmara de vigilância (arquivado aqui) divulgado pelo presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, mostra o ataque. É possível ver como o míssil atinge diretamente o prédio do shopping center – não, como a Rússia afirma, primeiro um galpão fabril cuja explosão atinge o shopping center.

A inteligência britânica escreveu no Twitter que existe a possibilidade de que o shopping center tenha sido atingido acidentalmente e que o ataque aéreo alvejasse outro prédio nas proximidades.

Pesquisa da Bellingcat mostra que fábricas próximas também foram atacadas – mas o shopping também foi atingido.

Manchas de sangue e bagagens no chão após ataque a estação em KramatorskManchas de sangue e bagagens no chão após ataque a estação em Kramatorsk

Manchas de sangue e bagagens no chão após ataque a estação em Kramatorsk (Foto: Ukrainian President Volodymyr Zelenskyy's Telegram channel via AP/picture alliance)

Ataque à estação ferroviária de Kramatorsk

Na manhã de 8 de abril, ocorreu um ataque com míssil à estação de trem de Kramatorsk, no leste da Ucrânia. Cerca de 4 mil pessoas estavam no lugar no momento, segundo o prefeito da cidade, Olexandr Honcharenko.

Repórteres do jornal americano The Washington Post chegaram à estação cerca de 15 minutos após o ataque. Eles relataram pelo menos 20 mortos, incluindo crianças.

De acordo com o governador da região, Pavlo Kyrylenko, pelo menos 50 pessoas morreram e cerca de 100 ficaram feridas.

Um míssil Tochka-U foi encontrado em frente ao prédio da estação. A Rússia nega usar mísseis desse tipo. No entanto, pesquisas da Bellingcat sugerem que os mísseis Tochka-U foram de fato usados por unidades russas na Ucrânia.

A Anistia Internacional também informa que esse tipo de míssil foi usado pela Rússia na Ucrânia. O Ministério da Defesa britânico acredita ser possível que o ataque fosse destinado a um alvo militar e tenha caído na estação devido ao controle impreciso da arma.

Massacre em Bucha

As fotos de Bucha, uma cidade perto de Kiev, deram a volta ao mundo no início de abril. Centenas de corpos se espalharam pelas ruas depois que soldados russos deixaram a cidade no final de março. Os moradores foram mortos por soldados russos e, em alguns casos, torturados, segundo o lado ucraniano.

O Ministério do Exterior russo escreveu no Twitter que tudo aquilo era mentira. "Todas as fotos e vídeos publicados pelo regime de Kiev em Bucha são apenas mais uma provocação."

Mas isso não é verdade, como a equipe de checagem de fatos da DW revelou em março. Uma reportagem do New York Times mostra que imagens de satélite da empresa americana Maxar mostram que os corpos estão na rua Yablunska, em Bucha, desde 19 de março e, em alguns casos, desde 11 de março.

As imagens contradizem claramente o relato russo, segundo o qual os corpos só apareceram depois que as tropas russas se retiraram, em 30 de março.

A revista alemã Spiegel descobriu mais evidências de que foram os soldados russos que assassinaram os civis em Bucha. Como a publicação noticiou, o serviço secreto alemão BND interceptou e gravou o tráfego de rádio dos supostos assassinos de Bucha. Soldados russos trocaram informações via rádio sobre a matança de civis. De acordo com a análise do BND, a ação brutal não é um caso isolado, mas faz parte da estratégia do exército de Putin.

Em entrevista à DW, o prefeito de Bucha, Anatoliy Fedoruk, também descreve a implacável repressão russa à população civil. De acordo com ele, cerca de 90% dos civis mortos tinham ferimentos a bala. A Rússia continua a negar qualquer responsabilidade pelas atrocidades de Bucha.

Investigador de equipe internacional diante dos corpos em Bucha (Foto: Carol Guzy/Zuma Press/dpa/picture alliance)

Ataque a teatro em Mariupol

O teatro da cidade de Mariupol foi atingido e destruído por pelo menos uma bomba na manhã de 16 de março. Uma investigação da agência de notícias AP calcula que pelo menos 600 pessoas foram mortas no ataque. Em seu relatório, a Anistia Internacional cita um número menor de mortes, mas identifica o ataque a bomba como um "crime de guerra russo".

Numerosos civis haviam buscado refúgio no teatro da cidade, severamente bombardeada na época.

A comissão de peritos da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa

(OSCE) chegou à conclusão de que "a extensa destruição (...) do teatro de Mariupol, que era assinalado em ambos os lados com a inscrição 'crianças' e no qual morreram centenas de pessoas que buscavam proteção, pode muito bem ser atribuído ao bombardeio russo".

Após avaliação das fontes disponíveis, não há indícios de que a destruição tenha sido causada pelo regimento ucraniano Azov, como alegado pelo lado russo.

Ataque a maternidade em Mariupol

No início de março, vários meios de comunicação informaram que a Rússia havia bombardeado uma maternidade em Mariupol. Em entrevista à BBC no dia seguinte ao ataque, o prefeito Sergei Orlov relatou pelo menos três mortos, incluindo uma criança, e pelo menos 17 feridos, principalmente mulheres grávidas e médicos.

A Rússia negou o ataque, entre outras coisas, a Embaixada da Rússia no Reino Unido escreveu no Twitter que o hospital não estava mais em operação e estava sendo usado para fins militares. Isto é falso. O tuíte já foi apagado, mas ainda pode ser visto após um arquivamento.

Há evidências do ataque à maternidade. A Organização das Nações Unidas (ONU) disse que verificou e documentou o ataque ao hospital e confirmou que estava o lugar operacional durante o ataque aéreo.

Jornalistas da agência de notícias Associated Press (AP) também documentaram em imagens as consequências do ataque imediatamente depois que ele ocorreu. Entre outras coisas, é possível ver mulheres grávidas feridas sendo carregadas em sofás para fora do hospital destruído. Fotos das consequências do bombardeio também foram publicadas, por exemplo, pela AP e pela agência alemã DPA.

Ataque a maternidade em Mariupol foi documentado por diversos jornalistas (Foto: Evgeniy Maloletka/AP/picture alliance)

Bomba de fragmentação atinge jardim de infância

Apenas um dia após o início da invasão russa da Ucrânia, um jardim de infância na cidade de Okhtyrka foi atingido por bombas de fragmentação. Três pessoas, incluindo uma criança, teriam sido mortas no ataque.

Uma investigação da organização de direitos humanos Anistia Internacional relata o impacto de um foguete Uragan de 220 mm perto do jardim de infância. Uma filmagem de drone mostra o prédio após o ataque.

Uma análise de fontes públicas realizada pela Bellingcat a respeito do ataque conclui que as tropas russas estavam dentro e ao redor de Okhtyrka no momento do ataque e que é altamente provável que essas tropas tenham sido a fonte do ataque.

Kathrin Wesolowski | Marcus Lütticke para Deutsche Welle. Publicado originalmente em 03.07.22 (https://www.dw.com/pt-br/as-mentiras-de-putin-sobre-ataques-russos-na-ucr%C3%A2nia/a-62342321)

sábado, 2 de julho de 2022

Covardia coletiva no Senado

Senadores preocupados exclusivamente com a eleição, e não com o País, aprovam uma PEC que atropela leis e moralidade para autorizar Bolsonaro a comprar votos

Na noite de quinta-feira, o Senado aprovou uma aberração fiscal, moral, social e institucional. Não apenas condescendeu com uma manobra bolsonarista eleitoreira e antidemocrática, como aceitou inscrevê-la na própria Constituição. O Senado, que em diversos momentos foi resistência à barbárie e ao retrocesso de Jair Bolsonaro, aprovou em dois turnos, com um único voto contrário, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/2022, que institui o estado de emergência até o fim do ano com o único e exclusivo intuito de burlar a legislação eleitoral e criar benefícios sociais às vésperas da eleição.

A votação é o marco histórico de um retrocesso sem precedentes. Em tramitação relâmpago, os senadores autorizaram que a Constituição seja alterada – sem estudo, sem planejamento, sem debate, ignorando as consequências fiscais, sociais e institucionais – para mudar casuística e arbitrariamente as regras do jogo democrático, de forma a permitir o mais deslavado clientelismo. Depois disso, restará algum limite para conter o descalabro e a desfaçatez?

Com frequência, o presidente Bolsonaro reclama que seu cargo tem um poder muito limitado, mas a aprovação da PEC mostrou o exato oposto, explicitando a influência que um presidente da República, por mais fraco e incompetente que seja, tem sobre o Congresso. A irresponsabilidade do Executivo – seu descaramento de desprezar todos os limites morais e legais para fins eleitorais – contagiou o Legislativo.

A covardia coletiva dos senadores é, também, prova de que o problema moral, cívico e político do País não se restringe ao bolsonarismo. Não há oposição digna do nome. Não há coerência mínima entre os que afirmam ser a resistência contra o retrocesso bolsonarista. Não adianta o PT chamar Bolsonaro de genocida e depois aprovar a aberração da PEC 1/2022, que inventa estado de emergência para burlar regra eleitoral e fiscal. Não adianta os senadores Simone Tebet (MDB-MS) e Tasso Jereissati (PSDB-CE) tentarem resgatar a esperança de uma opção responsável para 2023, se depois avalizam uma mudança constitucional que cria benefícios eleitoreiros por fora do teto de gastos, da regra de ouro e da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ademais, a votação da PEC 1/2022 confirma um princípio fundamental da vida democrática: a decisão sobre o voto é sempre pessoal e intransferível. Corajoso e coerente, o voto do senador José Serra (PSDB-SP) contrário à PEC 1/2022 entra para a história, pois mostra que nem todos os senadores aceitaram a irresponsabilidade fiscal e institucional. Nem todos aceitaram chamar de “benefício social” o que é escandalosa compra de voto. Houve um que, honrando o mandato parlamentar conferido pelo eleitor paulista, foi fiel ao interesse público e à Constituição. 

Contra tudo e contra todos, no mais genuíno espírito de Quixote, José Serra não se curvou a Jair Bolsonaro nem se apavorou ante a perspectiva de ser acusado pela malta bolsonarista de prejudicar os pobres. Aliás, diga-se, o único a se preocupar genuinamente com os pobres naquele acoelhado Senado foi Serra, pois a miséria se perpetua quando a elite dirigente, como fez a quase totalidade dos senadores, despreza a Constituição, ignora as leis e administra irresponsavelmente o dinheiro público. 

É esse vigor cívico encontrado no voto de Serra que se pede aos deputados quando forem avaliar a PEC. Não é porque o Senado se submeteu ao cabresto de Bolsonaro que os integrantes da Câmara devem fazer o mesmo, ratificando a destruição não apenas da prudência fiscal e da integridade das regras eleitorais, como do próprio sentido da Constituição – que, de instrumento de proteção da democracia, foi transformada por malandros em meio para burlar impunemente as regras do jogo.

São muitas e urgentes as necessidades sociais do País, mas isso não pode ser pretexto para dar R$ 41,2 bilhões a Bolsonaro para comprar votos. O Senado sucumbiu. Cabe agora à Câmara decidir com qual atitude deseja entrar na história: a coragem ou a covardia.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 02.07.22

O mercado entre o roto e o rasgado

Investidores sabem que a vitória de Bolsonaro seria desastrosa, mas temem a irresponsabilidade lulopetista

Com base nas pesquisas de intenção de voto, analistas de mercado projetam naturalmente uma disputa dura entre o presidente Jair Bolsonaro e o petista Lula da Silva na eleição presidencial, com vantagem para o último. “O quadro é desolador”, disse Daniel Leichsenring em evento da Verde Asset Management, da qual é economista-chefe. “Nem eu, nem o mercado, nem os gringos consideram uma eleição binária”, disse o CEO da Verde, Luis Stuhlberger. “O mercado considera os dois candidatos ruins, cada um a seu jeito.”

A desolação se refere precisamente àquilo que há de não binário na disputa. Independentemente das propostas de Lula e de Bolsonaro, o mercado antecipa a ruína da já combalida ancoragem fiscal em caso de vitória de qualquer um dos dois. O debate parece dominado por “quem vai gastar mais”, disse Leichsenring. Segundo Stuhlberger, “o teto de gastos virou o inimigo público número um de Bolsonaro e Lula”.

Aos representantes do mercado, a propaganda de Lula vende o retorno a um passado dourado, aludindo às políticas econômicas ortodoxas e até liberais de seu primeiro mandato. Mas mesmo que fosse o caso – o que as evasivas de Lula de discutir economia antes das eleições não permitem antecipar – a situação hoje é diferente.

Com o loteamento do Orçamento aos parlamentares do Centrão promovido por Bolsonaro, a discricionariedade do Congresso aumentou. Mais importante, o atual ciclo das commodities não deverá ser, como foi há 20 anos, suficiente para tirar o País do baixo crescimento, desemprego elevado e juros e inflação altos. “Não posso dizer o que vai acontecer com os ativos se o candidato A ou B ganhar. A única coisa que consigo concluir é que, se o PT ganhar, vamos ter mais inflação”, disse Stuhlberger.

Tanto pior se o PT optar por reeditar a malfadada Nova Matriz Econômica. Com o inchaço do funcionalismo público, o crédito indiscriminado aos “campeões nacionais” ou o desvirtuamento das estatais, os resultados finais da gestão petista foram “os mesmos problemas de miséria, educação, saúde e desigualdade”, afirmou Leichsenring.

Vença o intervencionismo populista e atrasado de Lula, vença a administração irresponsável de Bolsonaro em quase todas as áreas relevantes, o resultado eleitoral será devastador sobre o ambiente de negócios. “Usando uma linguagem não minha, mas das ruas”, arrematou Stuhlberger, “é tipo um psicopata contra um incompetente bem-intencionado”.

Analistas de mercado têm o dever de subsidiar seus investidores com cenários prováveis e suas consequências, e é natural que estejam se concentrando na disputa entre Lula e Bolsonaro, líderes das pesquisas. Mas enclausurar-se em um fatalismo quanto à escolha entre esses dois seria condescender a uma profecia autorrealizável. Há alternativas. Sem renunciar ao realismo que lhes cabe enquanto profissionais de mercado, financistas são também cidadãos, e também a eles cabe se mobilizar por opções que libertem o País da obrigação de escolher entre o roto e o rasgado.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 02.07.22

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Terrorismo eleitoral

Talvez pressentindo a derrota e para assustar eleitores, bolsonaristas anunciam o apocalipse caso percam eleição

Na entrevista que o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) concedeu ao Estadão, transpareceu o sentimento de derrota que, a esta altura, parece predominar no Palácio do Planalto.

À falta de ideias ou planos coerentes, por absoluta incapacidade, para aplacar as aflições de uma população exausta e faminta e lhe transmitir alguma esperança por dias melhores, ao presidente da República e sua prole não resta outra coisa senão apelar para o terrorismo eleitoral. Pelo que se pode depreender não apenas das falas do senador Flávio durante a entrevista, mas também das manifestações públicas de seu próprio pai, o Brasil será o inferno na Terra caso os eleitores tenham a ousadia de não reconduzir o “mito” ao cargo em outubro.

O senador, que coordena a campanha de Bolsonaro à reeleição, disse ao jornal que o presidente “não terá como controlar” seus apoiadores caso estes resolvam se insurgir com violência contra uma eventual derrota do incumbente nas urnas. “Como a gente tem controle sobre isso?”, questionou o senador, em referência à possibilidade de um levante golpista no Brasil como houve nos Estados Unidos durante a invasão do Capitólio. 

É evidente que o presidente tem como desestimular o golpismo de seus apoiadores: basta que abandone o discurso subversivo, que há anos Bolsonaro cultiva com zelo. O risco de haver confusão cairá drasticamente quando o presidente deixar de propagar mentiras sobre as urnas eletrônicas, parar de atacar a Justiça Eleitoral e condenar planos de sublevação. Ou seja, ao contrário do que sugere seu filho Flávio, o movimento golpista dos bolsonaristas não tem nada de espontâneo – originou-se no Palácio do Planalto e de lá é orquestrado, como uma forma de manter o País refém do receio de tumulto nas eleições.

A tônica do discurso de campanha do presidente não são seus planos para tirar o País do atoleiro no qual, em boa medida, ele mesmo nos colocou. São suas desabridas desqualificações do sistema de votação eletrônica, seus ataques contra a honra e a imparcialidade dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e as ameaças de insurgência contra uma eventual derrota, um resultado bastante provável tendo em vista a alta rejeição dos eleitores ao incumbente.

Nem o presidente nem seus aliados mais próximos, como denota a entrevista do senador Flávio Bolsonaro, substituirão o discurso terrorista por uma mensagem de esperança aos brasileiros. Bolsonaro é o que é e se fez na política semeando ódio ao que lhe parece diferente, estimulando conflitos e desafiando as instituições democráticas. Não é improvável que, de fato, parta para a ação e faça tudo o que tem ameaçado fazer caso entre para a história como presidente de um mandato só.

O País, contudo, dispõe de todos os instrumentos legais para cassar candidaturas que violem a lei eleitoral e, principalmente, para punir severamente todo e qualquer cidadão que atentar contra o Estado Democrático de Direito consagrado desde o preâmbulo da Constituição. Cabe à Polícia Federal, ao Ministério Público Federal e, por fim, ao Poder Judiciário ter coragem de fazer valer todo esse arcabouço jurídico.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 01.07.22