quinta-feira, 21 de abril de 2022

Tiradentes: como um herói 'sem rosto' acabou ganhando uma representação quase religiosa

A história é de um rebelde condenado à morte, traído por um de seus companheiros. Ressignificada para ganhar o lustro necessário a um herói da pátria, a imagem de Tiradentes precisava de um rosto — e nenhum retrato dele havia.

Tiradentes foi executado há 230 anos no Rio de Janeiro (Tela de Pedro Américo)

O alferes da cavalaria, dentista, comerciante, minerador e ativista político Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), mais conhecido como Tiradentes, foi executado há 230 anos, no Rio de Janeiro. E sua representação física, criada 100 anos mais tarde, é muito semelhante à imagem mais recorrente de Jesus Cristo: um homem de olhos claros e traços europeus, cabelos longos, barba e rosto simétrico.

"Um herói nascido na região centro-sul do país, que morreu sem pegar em armas, traído por um amigo, o Silvério dos Reis, à semelhança da trágica histórica de Jesus Cristo", aponta o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autor do livro Em Busca de Um Rosto: a República e a Representação de Tiradentes.

"Não havia representação visual de Tiradentes e os artistas tiveram liberdade para desenhá-lo como desejaram. Um país católico, com um herói com traços nazarenos, inventados por artistas desde o nascimento da República: Tiradentes, iconograficamente, venceu. Sua escolha não foi aleatória", acrescenta ele.

Uma escolha, sim. Afinal, não foram poucas as revoltas, motins e rebeliões ocorridas no Brasil colônia nas décadas de antecederam a independência. Mas enquanto boa parte desses ativistas permaneceram anônimos e mesmo os episódios são pouco abordados, a chamada Inconfidência Mineira é assunto conhecido por todos — e Tiradentes tornou-se um ícone nacional, a ponto de até merecer feriado.

Exposição do Centenário da Independência no Rio em 1922

Por que uma grandiosa exposição no Rio em 1922 foi esquecida enquanto a Semana de Arte Moderna ainda é debatida

"Realmente tivemos várias revoltas no Brasil ao final do século 18, muitas delas influenciadas pelas ideias iluministas que estavam em voga. Vale lembrar que todas essas regiões ainda pertenciam a Portugal e não houve, no início, uma valorização desses movimentos. Tudo foi sendo construído ao longo do século 19", ressalta o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Unesp, e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré.

Missato ressalta que ao longo do Brasil Império, a história de Tiradentes passou a ser recuperada pelos republicanos. E após a proclamação da República, em 1889, ele foi alçado a herói nacional por uma elite que desejava apagar do imaginário o exemplo de ativistas mais recentes — para que eles não servissem de inspiração para motins populares.

"Tiradentes era um personagem morto já há 100 anos. E o centenário de sua morte [em1892] acabou servindo para exaltá-lo como personagem, um personagem perfeito, entre aspas, para ser herói da República", contextualiza o historiador.

Tiradentes imberbe, como alferes, em pintura de José Wasth Rodrigues

É dessa época a primeira representação do alferes com os traços que o tornaram conhecido pelos brasileiros. Obra do pintor Décio Villares (1851-1931).

"A primeira pintura que promoveu a equivalência da imagem social de Tiradentes com a de Jesus Cristo data de 1890, produzida por Décio Villares. Ela apresenta Tiradentes como Cristo, com barbas, olhos claros e cabelos longos", comenta o historiador Isaac Marra, professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília Internacional. "Pela referência da época, inclusive, segundo a descrição dos representantes da Coroa Portuguesa, Tiradentes era magro, alto e de uma duvidosa feição 'inagradável'."

Marra cita o livro Autos da Devassa — A Inconfidência Mineira por Detrás da Cortina, do historiador Mário Caldonazzo de Castro, como fonte desse relato da época.

No livro A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho escreve que "para consolidar-se como governo, a República precisava eliminar as arestas, conciliar-se com o passado monarquista, incorporar distintas vertentes do republicanismo". "Tiradentes não deveria ser visto como herói republicano radical, mas sim como herói cívico-religioso, como mártir, integrador, portador da imagem do povo inteiro", diz ele.

"Como era alferes, isto é, aspirante militar, Tiradentes nunca usou barbas longas, cabelos escorridos ou bigodes vultosos, como muitos livros buscam caracterizá-lo. Em seu enforcamento ele portava cabelos aparados e barba raspada", pontua Marra "A imagem produzida e representada foi idealizada especialmente no contexto da proclamação da República Brasileira com a finalidade de atender aos anseios do positivismo militar à época."

Tiradentes recebendo a setença de morte, em pintura de Leopoldino de Faria (Arquivo Nacional)

Contexto histórico

Rodrigues lembra que a então capitania de Minas Gerais teve muitas revoltas "notadamente antifiscais" ao longo do século 18. "Desde a Revolta de Vila Rica, em 1720, até a Inconfidência Mineira, de 1789, são variadas as tentativas de revoltas ali conhecidas", aponta. "Onde circula riqueza, como a advinda da mineração, faz com que também haja motins contra as maneiras como a população paga os impostos."

A Inconfidência Mineira foi mais uma dessas revoltas. "Com a participação de grupos sociais variados, que contestavam as maneiras como Portugal gerenciava a administração local", afirma ele.

"Na época, em 1789, a capitania de Minas tinha uma dívida, desde 1771, com a arrecadação dos quintos do ouro de 582 arrobas de ouro ou o equivalente a 8.730 quilos de ouro", explica o historiador. "E o pagamento desses atrasos recairia sob toda a população da capitania, caso se decretasse seu pagamento compulsório, a derrama. Em vista disto e caso a derrama fosse decretada pelo governador, a participação popular seria intensa e isso mobilizava nas autoridades um temor de revolta que envolvia a capitania como um todo, independente do estrato social que a pessoa tinha. Todos seriam cobrados."


Sentença que condenou Tiradentes (Arquivo Nacional)

"Por talvez congregar a participação dos moradores de Minas e seus planos congregarem interesses diversos, mas atrelados às situações econômicas, a Inconfidência ganhou notoriedade, além de contar com a participação de importantes homens daquela sociedade, como militares, intelectuais, juristas, letrados, religiosos, etc", contextualiza o professor.

"Isto tudo fez com que a Inconfidência se destacasse frente aos demais movimentos rebeldes ocorridos em solo mineiro. Em outras partes do Brasil também havia movimentos de contestação, que também foram variados. Independentemente de quais sejam eles, todos os movimentos rebeldes do século XVIII e princípios do século XIX foram reprimidos e durante o Império foram feitos perpétuos silêncios de suas histórias e personagens."

Rodrigues lembra que "rememorá-los" seria uma afronta "ao poder dominante" — era a mesma casa dinástica que reinava no Brasil, afinal. No próprio Código Criminal de 1830, o Artigo 87 previa penas graves — variando de prisão por pelo menos cinco anos a prisão perpétua — a quem questionasse o imperador. Como Dom Pedro I era descendente da mesma família monárquica contra a qual Tiradentes havia atentado, não era condizente essa memória.

"Somente a partir da segunda metade do século 19 é que a Inconfidência e mesmo o alferes Tiradentes passam a aparecer em eventos públicos, sendo citados como exemplos de liberdade e contestação à ordem monárquica reinante", conta. "Com a República buscou-se construir heróis, nada como eleger o alferes Tiradentes."

"O fato de Tiradentes ser elencado no memorial nacional como o herói nacional se dá por inúmeras razões", elenca Marra. "A priori, o fato de ter transitado por diversas ocupações, empregos e trabalhos, entre os quais destacam-se minerador 'freelancer', comerciante, alferes da Cavalaria de Dragões Reais de Minas e, o labor que o legou a maior fama nacional, dentista prático, o Tiradentes."

"A segunda razão que busca explicar essa exponencial presença, simbólica e nacional, é a referência de associações imagéticas da imagem pessoal e privada de Joaquim Xavier com a imagem de Cristo elaborada pelo Renascimento italiano, isto é: loiro, de olhos claros, cabelos longos incompatíveis com a ocupação de alferes e destacada compleição física", comenta Marra.

"Esse popularismo de Xavier teria sido possível a partir das múltiplas ocupações por ele desempenhadas e pela sua legítima capacidade de cooptar e exercer um certo fascínio em seus discursos, especialmente com os mais próximos", acrescenta ele.

E como o historiador Carvalho pontua no seu livro, era um momento em que a República em formação carecia de um herói nacional que pudesse exercer uma amálgama simbólico em torno dos ideais de transformação política.

"Como os ideais republicanos haviam se manifestado, inclusive, no ideário dos conjurados [da Inconfidência Mineira], ergueu-se um pendão representativo de interesses para a justificativa de um ícone nacional para a República brasileira, tal como fora Napoleão Bonaparte para a República Girondina francesa: uma figura meio humana e, após a sua morte, pesadamente mítica associada aos ideais positivistas e militares dentro das ambições políticas de uma República que se fez a partir das armas, livrando a nação dos ditames imperativos de uma Dinastia herdeira do colonizador", analisa Marra.




Tiradentes em pintura de Francisco Auréliio de Figueiredo e Melo

Ao mesmo tempo, exaltar Tiradentes significava anular, como pontua o historiador, "com certa intencionalidade, a proposição do nome de Zumbi dos Palmares para a edificação de um mito fundador e simbolicamente viável". Ele virou o mártir da independência, mesmo que esse reconhecimento tenha sido dado já após a República.

Mas apesar dessa narrativa, e do próprio título de herói da independência, não há nenhuma evidência histórica de que os ativistas mineiros do episódio buscassem a emancipação política do Brasil frente a Portugal. A luta parecia ser muito mais por autonomia frente à metrópole do que pela construção de um novo país.

"Tiradentes é considerado herói nacional e também lhe atribuído o epíteto de protomártir, ou seja, ele é considerado o maior dentre todos os mártires do nosso processo de independência. Infelizmente, não há evidências concretas de que os inconfidentes desejavam a independência do Brasil", afirma o historiador Rodrigues.

"Suas falas no processo aberto para julgar seus envolvimentos na Inconfidência Mineira revelam que, antes de pensar no Brasil, eles desejam o rompimento dos laços que uniam a capitania de Minas Gerais do Império português, e que, após o sucesso do movimento sedicioso, outras capitanias poderiam aderir aos mineiros, quase desejassem, como as capitanias do Rio de Janeiro, da Bahia ou de São Paulo."

"Mas, concretamente, eles desejavam ver as Minas Gerais separadas de Portugal e há falas de interesses nesse sentido, de que as Minas Gerais já não aguentavam mais a opressão econômica sentida de Portugal. O movimento tinha como chamariz a decretação do pagamento dos impostos em atraso — a derrama, a ser executada compulsoriamente sobre cada habitante da região", conclui o historiador.

Missiato acrescenta que associar a Inconfidência Mineira a luta pela Independência "não é algo necessariamente controverso, mas sim multifacetado". "Há nesses grupos personagens com interesses pela Independência de Minas Gerais, mas enquanto movimento, a luta principal era pela autonomia da província, da região, e não necessariamente independência política", explica ele.

O bode expiatório

O episódio da Inconfidência Mineira acabou com os ativistas todos presos. O fazendeiro, proprietário de minas de ouro e coronel Joaquim Silvério os Reis (1756-1819) foi o delator que colaborou para que os rebeldes fossem encontrados e detidos.

Reis teria informado ao vice-rei no dia 9 de maio de 1789 sobre o paradeiro de Tiradentes, que estava foragido desde março daquele ano. No dia seguinte, a casa onde ele estava foi cercada e invadida por soldados. Sem ter como fugir, Tiradentes acabou se entregando.

Todos os inconfidentes ficaram presos por quase três anos até a finalização do processo. As condenações, pelo crime de lesa-majestade, ou sej a, traição ao rei", dividiam-se entre pena capital e degredo. Mas graças a uma ordem de clemência da rainha de Portugal, todas as sentenças de morte foram convertidas a degredo. Exceto a de Tiradentes.

"Isso ocorreu porque ele tinha uma patente militar mais baixa. Sua condenação acabou servindo como forma de exemplo a não ser seguido", diz Missiato.

"Tiradentes foi o único a assumir o crime de se rebelar contra o poder português na capitania de Minas Gerais, enquanto todos os demais participantes da Inconfidência Mineira negaram envolvimento na pretendida revolta, além de atribuir a ele a maior parcela de culpa pelos infortúnios que passavam e por falar demais sobre ideias de rompimento dos laços coloniais", acrescenta o historiador Rodrigues.

"A lei era implacável. Quem assume participação em atos de rebelião, comete traição. E traição contra o governo metropolitano — o rei ou qualquer autoridade governamental que representa a Coroa portuguesa — é condenada com a morte. Por isso, Tiradentes foi condenado, porque ele foi o único a assumir, em seu quarto depoimento, a responsabilidade pela morte do governador da capitania de Minas Gerais."

"Ele foi tipificado como o bode expiatório da Inconfidência Mineira. Entre audiências e interrogatórios, Tiradentes foi o único que confessou a conspiração, assumindo assim toda a responsabilidade", afirma Marra.

"Em um ato muito comum à época, o castigo exemplar, decorrente da mentalidade escravista, Tiradentes foi enforcado publicamente, no Rio de Janeiro, no Largo da Lampadosa, atual Praça Tiradentes. Seu corpo foi esquartejado, a sua cabeça exposta em praça pública em Vila Rica e seus membros espalhados estrategicamente em postes e pontos de referência no caminho entre Minas Gerais e os portos do Rio de Janeiro."

Tiradentes em obra de Décio Villares

Em uma cena que também permite paralelos com a Paixão de Cristo, Tiradentes foi obrigado a percorrer as ruas do centro do Rio em uma procissão. O governo fez de tudo para que o episódio tivesse uma alta carga simbólica, enaltecendo o poder e a força da coroa portuguesa. Foram 18 horas apenas para a leitura da sentença. O cortejo contou com participação de toda a tropa local e da fanfarra.

Tiradentes foi executado na forca e teve seu corpo esquartejado. Conta-se que a certidão de cumprimento da sentença foi lavrada com seu próprio sangue.

O herói oficializado

Se o reconhecimento de Tiradentes como herói se deu quase 100 anos após sua morte, a oficialização é consolidação dessa imagem é obra da ditadura militar. "Por volta de 1870, o movimento republicano identificou-o como mártir cívico-religioso e postulou a identificação da data de sua morte como feriado nacional: o Dia de Tiradentes", aponta Marra.

"Sua imagem social e heróica foi também explorada pelos governos do regime militar [entre 1964 e 1985], mesmo que os movimentos políticos à esquerda tentassem reconduzir Tiradentes como rebelde, insurreto e insubordinado."

Considerado Patrono Cívico do Brasil, Tiradentes é rememorado com um feriado nacional. Em 21 de abril, exatamente a data de sua morte. Essa honraria é garantida por lei de 1965, sancionada pelo presidente Humberto Castello Branco (1897-1967), o primeiro da ditadura militar brasileira.

Em 21 de abril de 1992, 200 anos após sua morte, o nome de Tiradentes foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria.

Edison Veiga. de  Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 20 abril 2022

Quem foi o Chalaça, amigo e companheiro de noitadas de D. Pedro 1º

A palavra "chalaça", dizem os dicionários, significa espirituoso, zombeteiro, gracejador. Por isso, foi com ela que seus amigos e conhecidos - e inimigos - na corte de D. João 6º, no Rio de Janeiro, apelidaram o português Francisco Gomes da Silva, um dos 15 mil integrantes da comitiva real que desembarcou no Brasil, em 1808.

Pintura com busto de Francisco Gomes da Silva, o Chalaça (Reprodução Google Arts&Culture)

Irreverente, bem-humorado, gozador, boêmio e esperto, ele se tornou amigo próximo e fiel do então príncipe e depois imperador, D. Pedro, de quem foi companheiro de farras e noitadas e alcoviteiro - arranjava belas mulheres para seu amigo real. Também galgou altos cargos no Império.

Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, nasceu em Lisboa, 22 de setembro de 1791 e morreu na mesma cidade em 30 de dezembro de 1852. Segundo muitos historiadores, era filho bastardo de Francisco José Rufino de Sousa Lobato, que mais tarde seria barão e depois Visconde de Vila Nova da Rainha, e de sua empregada doméstica Maria da Conceição Alves, uma moça pobre de 19 anos, que o registrou como sendo de "pai incógnito".

Quando Lobato foi se casar, sua futura mulher exigiu que ele se livrasse de Maria e seu filho. Ele então mandou a empregada para África e, de acordo com algumas versões, pagou para um protegido seu, Antonio Gomes da Silva, ficar com Francisco e registrá-lo como filho legítimo.

O certo é que, por influência do futuro visconde, ele conseguiu um emprego público como ourives oficial corte portuguesa. "Ele foi o responsável pela confecção da coroa de D. João VI no Brasil", conta o escritor Paulo Rezzutti, autor de vários livros sobre o primeiro reinado e biógrafo D. Pedro I e da imperatriz Leopoldina

Mas, apesar disso, o pai biológico não abandou o filho. "A verdade é que ele protegeu o rapaz por muito tempo", diz Rezzutti, que está escrevendo um livro específico sobre a Independência do Brasil. "Foi Lobato quem o colocou para estudar no seminário de Santarém, na província da Estremadura, onde ele aprendeu francês, inglês, italiano e espanhol."

O jovem Francisco ficou lá até 1807, quando, depois de brigar com o reitor e com o padre-mestre de disciplina, veio para o Brasil, acompanhando a família real em sua fuga. "No Rio de Janeiro, em 1810, foi feito faxineiro do Palácio de São Cristóvão, sendo expulso de lá, em 1816, por ter se envolvido com uma dama do Paço", conta o escritor e historiador Rafael Cupello Peixoto. O biografado era inimigo de Chalaça na corte do imperador D. Pedro 1º.

Contam algumas versões da história, que a expulsão da corte se deu, porque ele e a dama foram flagrados nus, num quarto do Palácio, pelo próprio D. João VI. "Depois disso, Chalaça se estabeleceu com uma barbearia na rua do Piolho (hoje rua da Carioca)", revela Peixoto. "Após o retorno do pai de D. Pedro para Portugal, voltou ao serviço do Paço, sendo peça importante na política da Corte imperial."

De acordo com Rezzutti, as relações pessoais entre ele e D. Pedro eram as mais estreitas possíveis. "Eles se conheceram na juventude, no Rio de Janeiro, onde, de companheiros de aventuras pelas tavernas, acabaram estreitando laços, até que o Chalaça se torna um dos homens mais confiáveis do príncipe e depois imperador do Brasil", diz.

Peixoto complementa, acrescentando que ele era um amigo sincero de D. Pedro, sempre pronto para servi-lo em todas as circunstâncias, "inclusive como pombo-correio das conquistas femininas". "Chalaça era um conselheiro pessoal, merecendo do imperador um tratamento cordial e com acesso diário a dele", explica. "Logo, ele não se restringia ao papel mero criado do Paço."

Isso fica demonstrado pela atuação política do amigo do imperador. De acordo com Peixoto, Chalaça pertencia a um grupo de portugueses de nascimento, que circundavam o Imperador desde sua juventude e que após a independência foram conquistando cada vez mais espaço na Corte, e assim, participando diretamente de ações políticas do Primeiro Reinado.

Conhecidos como "áulicos", esse grupo político, que apoiou o imperador D. Pedro 1º, tinha uma concepção de monarquia, na qual a soberania da nação repousava na cabeça da Coroa. "Isso era visto como forma de resguardar os interesses nacionais, com o poder de veto imperial sobre as decisões da Assembleia Geral e com o propósito de garantir a ordem e a tranquilidade pública", explica Peixoto.

Segundo ele, um exemplo de que Chalaça não era apenas um criado na Corte, é que foi ele que, na qualidade de oficial maior da Secretaria de Estado, inseriu na Carta Constitucional do Império do Brasil de 1824 a sua assinatura com a rubrica: "Francisco Gomes da Silva, a fez". Por ter redigido a Carta, foi condecorado por Pedro 1º com a comenda da "Torre e Espada".

Há vários exemplos de que a atuação de Chalaça não se limitava a apenas ser amigo e prestar "serviços reservados" a D. Pedro. "Sua missão como secretário pode ser vista até hoje, por exemplo, na redação final da Constituição outorgada em 1824 por D. Pedro ao Brasil", lembra Rezzutti.

"Ele estava ao lado do então príncipe regente na viagem da Independência e em vários outros momentos. Sua influência sobre o amigo era bastante comentada na época, chegando a ser considerada nefasta após a morte de João 6º, em Portugal, em 1826, quando passou a advogar os interesses dos portugueses junto ao imperador."

Chalaça ficou no Brasil até 25 de abril de 1830, quando foi nomeado embaixador plenipotenciário do Império para o Reino das Duas Sicílias, cuja capital era Nápoles. Foi uma armação de seus adversários, entre os quais o Marquês de Barbacena, que havia participado ativamente das negociações do segundo casamento do Imperador, na Europa, e acabava de trazer de lá a segunda de D. Pedro, D. Amélia de Leuchtenberg, e queria se ver livre dele.

Mas antes disso, Barbacena se aproximou de Chalaça para atingir seus objetivos políticos. Segundo Peixoto, o marquês adotou a estratégia de "conquistar" a confiança dele para assim também ganhar a de D. Pedro. Depois o traiu, no entanto. Quando Barbacena foi feito Ministro da Fazenda, em 1829, contando com a simpatia de D. Amélia, conseguiu convencer o imperador que era necessário afastar Chalaça e Rocha Pinto, componentes do criticado "gabinete secreto", do Brasil e enviá-los em comissões na Europa, em abril de 1830, explica.

Naquele momento, o país vivia uma forte tensão política com a oposição ao primeiro imperador o acusando de "absolutista" e responsabilizando sua proximidade com os "áulicos" portugueses, como Chalaça e Pinto, como a principal razão pelas ações autocráticas de D. Pedro e seu pouco diálogo com a Câmara dos Deputados.

Barbacena passava a imagem de quase um "primeiro-ministro" e conseguiu nos primeiros tempos à frente da pasta da Fazenda pacificar, em parte, a crise política.

Mas a armação do marquês se voltou contra ela próprio. Chalaça não aceitou o cargo em Nápoles e, em vez disso, foi para Londres. "Lá, quando descobriu que a autoria do plano de sua retirada do Brasil havia sido chefiada por Barbacena, dirigiu-lhe ataques e injúrias", conta Peixoto.

"O descreve como um sujeito de 'caráter dobre e atraiçoado' associando-o aos 'obscuros discípulos da Escola de Maquiavel, que, tomando mal as lições do grande mestre da dissimulação, caem vítimas de seus próprios enredos, e traições'."

Não satisfeito, resolveu se vingar. "Em Londres, Chalaça realizou um levantamento dos gastos que Barbacena fez, tanto para o segundo casamento de D. Pedro quanto com a filha de D. Pedro I, D. Maria II de Portugal, que foi obrigada a se instalar por um tempo na Inglaterra, depois que o tio dela, D. Miguel, usurpou o trono de Portugal para si", acrescenta Rezzutti.

Seja consequência ou não dessa devassa, o fato é que Barbacena foi demitido do Ministério naquele mesmo ano de 1830. "O curioso dessa relação dos dois é que até o momento em que a crise explodiu, com a demissão marquês, tanto ele quanto Chalaça trocavam correspondências sobre diferentes assuntos e disfarçavam entre si que ambos conspiravam um contra o outro", diz Peixoto. "O certo é que a queda de Barbacena tem o dedo de Francisco Gomes da Silva."

Apesar de sua trajetória curiosa e do papel que desempenhou junto a D. Pedro e na Corte e no governo, há controvérsias sobre a real importância histórica de Chalaça. Para Rezzutti, de forma específica ele não tem nenhuma "Francisco Gomes da Silva participou de vários eventos históricos, como acompanhante do imperador ou como seu secretário, mas ele não foi responsável direto por nenhum deles", defende. "Há algumas influências suas, como na queda do gabinete do marquês de Barbacena. Então, é impossível dizer que o Chalaça não tem importância histórica, mas é aquela que é destinada aos que exercem muitas vezes o poder por detrás do poder."

Peixoto pensa de maneira diferente. "Se observarmos Francisco Gomes da Silva para além da visão mais caricata, isto é, como o amigo alcoviteiro, mulherengo, boêmio e divertido de D. Pedro I, que claro ele era, vamos perceber que Chalaça também foi um personagem político", explica. "Ele atuou diretamente nos acontecimentos do Primeiro Reinado, além de ter grande influência sobre o próprio imperador."

Evanildo da Silveira, de  Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil, em 20.04.22.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Élio Gáspari: A tortura produziu uma milícia

Os ministros do STM se afastavam do terrorismo


A brutalidade do regime militar. Estudante é carregado por militares do Exército. Foto de Evandro Teixeira (Jornal do Brasil). 

A revelação, pela repórter Míriam Leitão, das gravações pesquisadas pelo professor Carlos Fico nos arquivos do Superior Tribunal Militar tirou do armário o esqueleto da tortura praticada nos porões dos quartéis durante a ditadura. Engana-se o vice-presidente, Hamilton Mourão, quando pergunta: “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. Vai trazer os caras do túmulo de volta?”.

Mark Twain ensinou, há mais de um século: “A História não se repete, mas rima”.

É pela rima que convém recuperar as falas de dois ministros do STM. O general Rodrigo Octávio Jordão Ramos morreu em 1980, e o almirante Júlio de Sá Bierrenbach em 2015. Ambos foram oficiais ativos dos períodos de anarquia militar do século passado. Rodrigo Octávio, ou R.O., era um obsessivo defensor da presença do Exército na Amazônia. Defenderia em sessões secretas e públicas a apuração das denúncias de tortura. Ambos sabiam o que acontecia nos porões.

A partir de 1976, Bierrenbach e R.O. tornaram-se paladinos do combate à “tigrada” que se apoderara do aparelho repressivo da ditadura. O general deixou o STM em 1979, quando lhe foi negada a vez para assumir sua presidência. O almirante fez o que pôde para apurar o atentado do Riocentro, de 1981, em que morreu o sargento do DOI quando explodiu a bomba que tinha no colo.

Para buscar a rima, é preciso voltar a 1976. Em janeiro, o presidente Ernesto Geisel havia demitido o general comandante da guarnição de São Paulo depois da morte do operário Manoel Fiel Filho numa cela do DOI. Fiel era o terceiro preso “suicidado” naquele DOI desde agosto de 1975. Punham-se bombas em bancas de jornais que vendiam semanários oposicionistas. Para desgosto da “tigrada”, desde fevereiro, R.O. defendia um caminho para o retorno à normalidade democrática. (O telefone de seu filho, tenente-coronel, estava grampeado.)

Três semanas antes da fala de Bierrenbach, na noite de 22 de setembro de 1976, uma patrulha terrorista sequestrou o bispo de Nova Iguaçu, Dom Adriano Hipólito, pintou-o de vermelho e deixou-o numa beira de estrada. Explodiram seu carro perto da sede da Conferência Nacional dos Bispos e de lá seguiram para o Cosme Velho, onde puseram outra bomba na casa do jornalista Roberto Marinho, dono das Organizações Globo.

Ela explodiu embaixo da janela do quarto de dormir. Marinho e sua mulher foram derrubados da cama. Ele convocou o detetive particular Bechara Jalkh e, em três meses, o atentado foi esclarecido. (Um dos terroristas havia sido repórter do GLOBO.)

Na patrulha estava pelo menos um oficial oriundo do Centro de Informações do Exército e do Serviço Nacional de Informações. Em 1968, ele participara de atentados a teatros e vinha redigindo panfletos contra o governo. Num deles, insultou o general Newton Cruz, que morreu há poucos dias. Tomou de volta um telefonema típico do temperamento de “Nini”, como era conhecido o general.

Os ministros do STM reagiam também diante do novo fenômeno. A “tigrada” da repressão política havia produzido uma milícia terrorista. Todo mundo sabia de onde saíam as bombas, mas, assim como desde 1964 não se apurava quem torturava presos, não se apuraram os atentados.

Foi preciso que a bomba do DOI explodisse cinco anos depois no colo do sargento para que o país se desse conta da ação daqueles milicianos no estacionamento do Riocentro. A História não se repete, mas rima.

Élio Gáspari é Jornalista. Autor de 5 livros sobre a ultima ditadura militar no Brasil. Publicado originalemnte n'O Globo, em 20.04.22.

Emendas parlamentares: no resto do mundo é assim?

O que se faz aqui não é comum. Distorcemos o Orçamento ao extremo, jogamos dinheiro fora e enfraquecemos a democracia.

As emendas parlamentares ao Orçamento da União cresceram e se tornaram, em sua maioria, despesas obrigatórias. Com valor total de R$ 36 bilhões, já representam 24% da soma de despesas discricionárias e emendas. A maior parte das emendas se refere a gastos de caráter local, focalizados em municípios ou Estados específicos, e atende interesses eleitorais ou pessoais específicos de cada parlamentar.

Analistas de finanças públicas apontam os valores e o modus operandi dessas emendas como uma distorção que implica queda na qualidade das políticas públicas, aumento da despesa, distorção do processo eleitoral e perda de governabilidade pelo Poder Executivo federal. A imprensa revela, dia após dia, novas modalidades de corrupção envolvendo essas verbas.

Por outro lado, os defensores do uso e da ampliação das emendas argumentam que esse tipo de procedimento é normal em sociedades democráticas e ocorre em outros países. Será que é verdade? Num estudo publicado pelo Instituto Millenium, comparo o processo orçamentário brasileiro com o de países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da América Latina. Percebe-se que somos claramente um ponto fora da curva.

A OCDE dispõe de um banco de dados descritivo das práticas orçamentárias de seus países-membros. À pergunta “no último ano fiscal, qual foi o montante total de alterações feitas pelo Legislativo no orçamento apresentado pelo Executivo?”, a maioria dos países reportou valores que são inferiores a 0,01% da despesa primária discricionária. Entre os que têm maior intervenção aparecem Portugal, com 0,48%; EUA (2,4%); Eslováquia (5,5%); e Estônia (12,3%). Esses números não chegam perto dos 24% do Brasil.

Recentemente, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (Utao) da Assembleia da República de Portugal analisou o processo orçamentário daquele país. Apontou como problema de primeira ordem o grande número de emendas ao orçamento. Assim se expressa o relatório: “Haver centenas de Propostas de Alteração (PA) à POE (Proposta de Orçamento do Estado) para discutir e votar todos os anos num prazo curto é um problema sério e que se vem agudizando nos últimos anos. (...) As PA são entregues sem nenhum documento técnico de apoio. Isso significa que são ponderadas e votadas sem que se conheça a justificação técnica quanto à sua utilidade nem evidência quanto à sua exequibilidade ou capacidade de execução operacional pelos Serviços das AP (Administrações Públicas). Muito menos há informação técnica sobre as consequências financeiras para os contribuintes e sobre os resultados para os beneficiários e os prejudicados pelas medidas propostas. (...) Chegados a esta situação extrema, é tempo dos cidadãos e dos atores políticos se questionarem sobre a sanidade do processo. Não haverá uma maneira mais amiga da razão de deliberar sobre o Orçamento do Estado para o ano seguinte, e em respeito absoluto pela democracia?”.

Pois bem, se o problema é grave em Portugal, onde em 2021 foram submetidas 1.547 emendas e aprovadas 287, o que dizer do caso brasileiro, que teve 7.014 emendas apresentadas e 6.522 aprovadas em 2022?

Nos EUA há uma tradição de emendas similares às brasileiras, lá apelidadas de pork barrel projects, voltadas para investimentos feitos com recursos federais nas bases eleitorais dos congressistas. Uma organização não governamental voltada a fiscalizar e denunciar abusos nessas emendas (Citizens Against Government Waste – CAGW) dispõe de estatísticas sobre os valores envolvidos. Foram apenas 285 emendas em 2021 (menos de 5% das 6,5 mil emendas brasileiras), envolvendo recursos equivalentes a 2,3% das despesas primárias discricionárias, já excluídas aquelas com defesa nacional.

Para comparar com a situação brasileira, selecionei as emendas parlamentares mais parecidas com os pork barrel projects, que são aquelas voltadas para investimentos e que têm clara identificação do Estado ou município beneficiário. Esse subconjunto de emendas representa 12% da despesa discricionária. O nosso “pork” é 5 vezes maior que o dos EUA!

A OCDE também analisou o orçamento de países da América Latina. Uma das perguntas feitas aos países foi: “Em que nível de detalhe o Legislativo aprova as dotações orçamentárias?”. Como se sabe, os orçamentos públicos são divididos em vários níveis: há a despesa global, que se desdobra em despesas por programas, que são detalhados em ações específicas, e essas em itens específicos de gastos. Somente os Parlamentos do Brasil e do Chile têm o poder de alterar o orçamento no detalhe, mexendo em rubricas abaixo do nível de classificação por programa. Porém, no Chile, o Legislativo só pode reduzir despesa.

Portanto, nos países da América Latina para os quais há dados disponíveis, apenas no Brasil é dado ao Parlamento poder para alterar e aumentar detalhes das despesas. Fazendo-o sem uma noção de conjunto e sem obedecer a um planejamento das políticas públicas, as verbas são pulverizadas e desperdiçadas.

Não procede, portanto, o argumento de que o que se faz aqui é comum no resto do mundo. Distorcemos o Orçamento ao extremo, jogamos dinheiro fora e enfraquecemos a democracia.

Marcos Mendes, o autor deste artigo, é  doutor em economia e pesquisador associado do INSPER. Publocado originariamente n'O Estado de S. Paulo, em 20.04.22.

Armadilha fiscal como herança

A continuar na atual toada, Bolsonaro vai deixar para o próximo governo despesas sem receita suficiente e vantagens tributárias permanentes baseadas em fatores temporários   

A avidez com que o presidente Jair Bolsonaro busca apoio e votos para reeleger-se custará caro para quem ocupar a Presidência da República a partir de 1.º de janeiro de 2023 – mesmo que seja ele mesmo, embora as pesquisas indiquem que, no momento, essa não é a hipótese mais provável. De vantagens tributárias para setores econômicos e segmentos sociais que Bolsonaro considera parte de sua base política a promessas de benefícios para grupos mais amplos, vai se formando um conjunto de bondades que imporão aumento de gastos ou quebra de arrecadação. Uma armadilha fiscal está sendo sistematicamente montada pelo governo com objetivos puramente eleitorais. Se não desmontada a tempo pelo próximo presidente, tornará muito mais difícil a superação dos problemas que o País enfrenta, e que poderão piorar. O legado de devastação que este governo deixará e tem sido descrito nesta página é formado também por promessas populistas que agravarão os problemas financeiros do setor público.

O aumento de 5% para todos os servidores federais é um exemplo perfeito da armadilha montada pelo governo e retrata com perfeição o modo de agir de Bolsonaro quando se trata de conquistar apoio eleitoral – que tem sido seu único objetivo desde que tomou posse. O problema começou com a promessa de aumento restrito a carreiras ligadas à segurança, área de particular interesse do presidente. Para isso, foi reservada verba de R$ 1,7 bilhão no Orçamento de 2022.

Como era previsível, outras categorias do funcionalismo, especialmente as mais organizadas e mais bem remuneradas, protestaram e passaram a exigir aumentos. Temendo a ampliação de paralisações ou operações-padrão que já prejudicavam a liberação de cargas nos portos e aeroportos, impediam a divulgação de relatórios econômico-financeiros e podiam comprometer o atendimento nos postos do INSS, o governo anunciou o aumento linear de 5% para todos os funcionários.

As diferentes categorias reagiram ao anúncio, por considerarem a correção insuficiente diante da inflação de mais de 10% ao ano. As que já estavam mobilizadas disseram que continuarão a exigir reajustes maiores. E as que seriam beneficiadas pelo aumento anunciado inicialmente por Bolsonaro – policiais federais, policiais rodoviários federais e agentes penitenciários federais – também reclamaram, porque o novo reajuste é muito menor do que estavam esperando.

Há risco de que, diante da resistência dos servidores, o índice de correção seja alterado ou benefícios específicos sejam concedidos para algumas carreiras. Do ponto de vista orçamentário, não há recursos suficientes nem para pagar o aumento de 5% que já vem gerando protesto em todo o serviço público. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2023 reservou R$ 11,7 bilhões para o aumento do funcionalismo. Nas contas do secretário especial de Tesouro e Orçamento do Ministério da Economia, Esteves Colnago, o reajuste linear anunciado implica gastos adicionais de R$ 12,6 bilhões no ano que vem. Só aí já faltam R$ 900 milhões.

O pagamento dos precatórios agendado para 2023 também não está adequadamente programado, o que poderá resultar em despesas adicionais na casa dos bilhões de reais. No ano passado, numa lambança legal e fiscal sintetizada na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios, o governo Bolsonaro destruiu o teto de gastos ao abrir, malandramente, espaço para gastos acima do limite máximo inscrito na Constituição. “O teto de gastos é apenas um símbolo, uma bandeira de austeridade”, disse na ocasião o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Isenções ou reduções expressivas de alíquotas de tributos, como o IPI, e a prometida elevação do limite de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física tendem a ser medidas permanentes, mas sua justificativa, o aumento da arrecadação, tem efeito momentâneo.

“Existe a necessidade de ajuste fiscal”, reconhece o secretário de Tesouro e Orçamento. Parece voz isolada num governo que demonstrou total irresponsabilidade na área fiscal.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 20 de abril de 2022 | 03h00

A consulta de Lula ao Exército

No auge da crise, Bolsonaro chegou a cogitar até mesmo mandar tropas para o Supremo

 Sem rodeios, emissários de Lula querem saber se o ex-presidente conseguirá tomar posse, caso seja eleito. Foto: André Dusek/Estadão

Emissários do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva têm sondado generais da cúpula do Exército. Sem rodeios, querem saber se Lula conseguirá tomar posse, caso seja eleito. A resposta não foge ao script: nada impedirá o vencedor, qualquer que seja ele, de assumir a cadeira no Palácio do Planalto.

Um dos interlocutores de Lula e dos militares de alta patente é o ex-ministro da Defesa e da Justiça Nelson Jobim, que também comandou o Supremo Tribunal Federal. “A impressão que fico, nessas conversas, é a de que as Forças Armadas são totalmente legalistas”, disse Jobim ao Estadão.

(Paulinho critica 'salto alto' de petistas, mas declara apoio a Lula após reunião)

Na cerimônia desta terça-feira, 19, em homenagem ao Dia do Exército, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que as Forças Armadas “não dão recados” e “sabem” o que é melhor para o povo. “Não podemos jamais ter eleições no Brasil sobre as quais paire o manto da suspeição”, discursou. Apesar da frase de efeito, ele condecorou magistrados e até “elogiou” Luís Roberto Barroso, o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral a quem já se referiu como “filho da p...”.

A nova estratégia não convenceu. Diante da retórica golpista de Bolsonaro, há temor no mundo político, jurídico e até na Faria Lima sobre o rumo dessa prosa. Com o presidente sempre próximo das polícias militares, pregando compra de armas para enfrentar “um ditador de plantão”, qual será a reação de seus discípulos mais radicais se ele for derrotado?

Os escândalos e absurdos se sobrepõem de tal forma que ninguém parece mais se recordar do que foi dito nesta terça-feira. “Tem que comprar fuzil, pô!”, chegou a afirmar Bolsonaro, em agosto, para um grupo de apoiadores. Alguém se lembra?

Não foi à toa que o TSE convidou observadores internacionais para acompanhar as eleições no Brasil. Bolsonaro não para de pregar o voto impresso, de levantar suspeitas sobre urnas eletrônicas e de xingar magistrados. No auge da crise, em maio de 2020, cogitou até mesmo mandar tropas para o Supremo.

Descrente da terceira via e anfitrião de um almoço que reuniu Lula e o também ex-presidente Fernando Henrique, no ano passado, Jobim tentou mais de uma vez, nos bastidores, um acordo entre o PT e o PSDB. Não conseguiu. Antes da disputa de 2018, dizia que, sem esse entendimento, o eleito poderia ser um “Donald Trump caboclo”. Foi profético.

Vivemos uma quadra em que todos os demônios se liberaram, como definiu Barroso. Faltam menos de quatro meses para agosto, mês do cachorro louco e do início oficial das campanhas. Mas, ao contrário do que muitos observam, o Trump caboclo ainda tem café quente para servir no Planalto.

Vera Rosa, O Estado de S.Paulo, em 20 de abril de 2022 | 03h00

Partidos gastam milhões de dinheiro público com presidenciáveis em cenário eleitoral incerto

Legendas devem desembolsar, cada uma, cerca de R$ 3 milhões em viagens, ações nas redes e contratação de marqueteiros antes do início formal da corrida presidencial

     Nesta etapa anterior à campanha, a legislação autoriza que os partidos se promovam, façam eventos e explorem seus presidenciáveis como porta-vozes. Foto: Dida Sampaio/Estadão

Antes mesmo do início formal da corrida presidencial, em meados de agosto, os partidos dos principais pré-candidatos registram despesas milionárias para promoção dos futuros concorrentes. Entre viagens, contratação de marqueteiros e impulsionamentos nas redes sociais, as siglas estimam que terão de consumir, em média, mais de R$ 3 milhões cada uma para promover os presidenciáveis entre o eleitorado até o início efetivo da briga por votos.

O dinheiro utilizado nesta etapa é principalmente do Fundo Partidário, que, no ano passado, consumiu R$ 1 bilhão de dinheiro público. Contudo, os partidos dos dois principais concorrentes mantêm os números sob reserva. O PL do presidente Jair Bolsonaro e o PT do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não quiseram informar à reportagem quanto já gastaram ou pretendem gastar nesta fase da disputa.

Nesta etapa anterior à campanha, a legislação autoriza que os partidos se promovam, façam eventos e explorem seus presidenciáveis como porta-vozes. A estratégia permite que os políticos se apresentem aos eleitores, participem de comemorações e discutam ideias e propostas.

Apesar de passar por uma crise interna, o PSDB já reservou R$ 2,8 milhões para a pré-campanha de João Doria. Eduardo Leite, pré-candidato não oficial dos tucanos, não tem acesso aos recursos do diretório nacional do PSDB. No entanto, pode usar o dinheiro do diretório gaúcho. Leite deixou o governo do Rio Grande do Sul e está percorrendo o País em eventos e tentando se viabilizar na chapa da emedebista Simone Tebet. Ele diz não ter feito qualquer solicitação à cúpula tucana e que não tem estimativas de despesas.

O MDB prevê R$ 3,5 milhões para Simone Tebet e o PDT fechou um contrato mensal no ano passado de R$ 250 mil com o marqueteiro João Santana – que atua na pré-campanha de Ciro Gomes. A pré-campanha de Felipe d’Avila (Novo) afirmou que já gastou R$ 500 mil, mas disse que não utilizou recursos do partido.




O Podemos afirmou que a breve pré-candidatura de Sérgio Moro ficou na casa dos R$ 3 milhões. Após agendas intensas como representante do partido, o ex-juiz migrou para o União Brasil.

“Nada impede que se divulgue a liderança do partido. O que não pode ter é nenhum tipo de promoção pessoal com os recursos financeiros do partido. Normalmente, contratam agências para fazer pesquisas e monitoramentos de redes com vistas a uma candidatura, e não direcionada a um candidato”, disse o presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB, Eduardo Damian.

Dirigentes do PL de Bolsonaro afirmaram que as despesas partidárias com a pré-campanha à reeleição ainda são tímidas. O atual presidente tem a vantagem de dispor de avião oficial e de toda a estrutura do governo para cumprir agendas com tom de campanha, mesmo que formalmente justificadas como participações em eventos oficiais do Planalto.

Somente as maiores “motociatas” realizadas por Bolsonaro no ano passado custaram R$ 3 milhões, considerando apenas os pagamentos feitos pela Secretaria-Geral da Presidência divulgados por meio da Lei de Acesso à Informação. Nesses eventos, o presidente costuma festejar com aliados, exibir capital político com apoio popular nas ruas e criticar adversários e instituições. Somente após iniciada a campanha o partido assume a obrigação de ressarcir o poder público com os gastos com deslocamento do presidente.

Em paralelo aos gastos governamentais com atos eleitoreiros de Bolsonaro, vêm do partido algumas das despesas estratégicas para a campanha de Bolsonaro. A pesquisa que identificou que a população “não sabe o que o governo fez” foi encomendada pelo presidente do PL, Valdemar Costa Neto, e está direcionando a estratégia eleitoral de Bolsonaro. Também coube ao diretório planejar e lançar o slogan que marcou a filiação de Bolsonaro: “o presidente que faz o maior programa social do mundo agora é do PL”.

“Há toda uma discussão sobre pré-campanha e regulamentação de pré-campanha. Obviamente, o custeios dos pré-candidatos seriam inseridos nesse contexto. Hoje não funciona assim. Regularmente é usado o Fundo Partidário e alguns, obviamente, usam dinheiro de caixa 2”, disse o advogado Acacio Miranda da Silva Filho, especialista em Direito Eleitoral.

No PT, a contratação do marqueteiro Augusto Fonseca ampliou um embate na pré-campanha de Lula. Como mostrou o Estadão, o primeiro orçamento apresentado pela agência de Fonseca foi de R$ 45 milhões para ações de comunicação.

A briga pelo controle dos recursos milionários se tornou o ponto central das divergências entre os grupos do ex-ministro Franklin Martins – conselheiro mais próximo de Lula – e o do secretário de Comunicação do PT, Jilmar Tatto.

A presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann, afirmou que a sigla continua a negociar valores com o marqueteiro. “Isso não é um problema relevante. Estamos negociando”, disse a deputada.

Vinícius Valfré, Luiz Vassallo e Pedro Venceslau, O Estado de S.Paulo, em 20 de abril de 2022 | 05h00

O último de Mariupol: a epopeia da resistência também tem um significado militar

Além de seu valor propagandístico e simbólico, o entrincheiramento de um grupo de soldados em uma siderúrgica na cidade ucraniana obriga a Rússia a mobilizar um grande contingente militar para manter o cerco

Esta é a fábrica em que os últimos combatentes ucranianos de Mariupol resistem. Carros destruídos pela guerra, com fumaça da siderúrgica Azovstal ao fundo, na segunda-feira.Foto: ALEXEI ALEXANDROV | Vídeo: DANIEL CASTRESANA

A resistência heróica de um pequeno grupode soldados contra um inimigo imensamente superior faz parte da história militar desde os primórdios da cultura ocidental. “Para os gregos que estavam nas Termópilas , o primeiro que anunciou que iam morrer ao amanhecer foi o vidente Megístias”, escreve Heródoto no volume VII de sua História . No entanto, apesar dos maus presságios, Leônidas e seus 300 espartanos decidiram lutar contra os persas até o fim naquele desfiladeiro. Heródoto garante que eram personagens "dignos de serem lembrados" e que conseguiu descobrir os nomes de cada um desses 300.

Desde então, a história militar ofereceu numerosos exemplos dessa resistência desesperada, às vezes de derrotas transformadas em mitos, outras de vitórias contra todas as probabilidades após uma resistência impossível, do Álamo ao Alcázar de Toledo durante a Guerra Civil Espanhola; o Cerco de Bastogne , durante a Batalha do Bulge no final da Segunda Guerra Mundial; ou o último das Filipinas . Esse destacamento de caçadores espanhóis resistiu ao ataque de uma força muito maior por 11 meses antes de se render com todas as honras e se tornou um mito imperial que procurava fazer as pessoas esquecerem que era uma guerra perdida. As centenas de combatentes ucranianos resistindo na siderúrgica Azovstal, entre as ruínas de Mariupol, cidade sitiada pela Rússia há mais de 50 dias, tornaram-se parte dessa mitologia da luta numantina.

"A conquista de Mariupol assumiu uma enorme importância simbólica", explica o historiador militar britânico Antony Beevor por e-mail . “O que eu gostaria de saber é se os defensores são realmente falantes de russo ou ucranianos. O fato de Mariupol ser majoritariamente de língua russa, supostamente as mesmas pessoas que Vladimir Putin quer resgatar com seus exércitos do nazismo ucraniano, e que resistem tão desesperadamente, é algo que o Kremlin não pode admitir.

Imagem de um bombardeio contra a fábrica de Azovstal obtida por um drone e divulgada na terça-feira pela Câmara Municipal de Mariupol. (CONSELHO MUNICIPAL DE MARIUPOL (VIA REUTERS)

Mas, além de seu valor simbólico, essas trincheiras têm um significado militar. O caso de Mariupol, cidade do sudeste da Ucrânia e principal porto do Mar de Azov, arrasada por bombas russas desde o início da invasão , demonstra as enormes dificuldades que o combate urbano impõe aos assaltantes, muito mais do que aos defensores, que podem usar as ruínas para montar emboscadas e deter o avanço do inimigo por dias, tudo isso sem contar com o poderoso valor propagandístico proporcionado por tais resistências heróicas.

Foi o que aconteceu durante a Batalha de Stalingrado , a vitória soviética após um longo cerco que selou a derrota de Hitler na Segunda Guerra Mundial em 1943, onde também houve longos assaltos a fábricas em uma cidade da qual apenas ruínas e escombros. Um único atirador poderia causar estragos em um inimigo muito superior. Em seu relato dessa batalha, Beevor lembra Zaitsev, "um pastor taciturno dos Urais", que derrubou 149 alemães. "Notícias de suas façanhas se espalharam por todo o front", escreve ele.

Tor Bukkvoll, pesquisador sênior do Norwegian Defense Research Establishment (FFI), especialista em Rússia e Ucrânia, explica: “Ele tem um ponto de vista estratégico essencial. Não só porque a Rússia precisa controlar Mariupol para tomar aquela faixa do sul da Ucrânia para ligar a Crimeia a Donbas. Também é importante porque força os atacantes a manter um número muito significativo de tropas no terreno, que Moscou precisaria em outros lugares. Além disso, a resistência de Mariupol mostrou aos líderes russos como é difícil tomar uma cidade quando ela está bem defendida. Acredito que o que aconteceu em Mariupol, que tinha 450.000 habitantes antes da guerra, foi decisivo para Moscou desistir de tentar tomar Kiev, que tem quase três milhões de habitantes”.

Atiradores soviéticos atiram no inimigo de uma casa na Batalha de Stalingrado, durante a Segunda Guerra Mundial (SOVFOTO GRUPO DE IMAGENS UNIVERSAIS VIA GETTY)

Há pouca certeza sobre o que acontece na siderúrgica Azovstal porque a Ucrânia não fornece dados por razões óbvias de segurança. É um enorme complexo de edifícios, de cerca de 11 quilômetros quadrados, no qual podem resistir entre 2.500 soldados —segundo o Ministério da Defesa russo— e entre 500 e 800, segundo outras estimativas. Justin Crump, especialista militar da consultoria Sibylline, explicou à BBC britânica que a planta industrial "possui bunkers e túneis nucleares que podem resistir a bombardeios". "É realmente muito bem planejado para a defesa e eles tiveram mais de 50 dias para se fortalecer e preparar rotas de fuga."

O fato de ser um local tão bem defendido fez alguns especialistas em armas químicas temerem que a Rússia possa ser tentada a usar esse tipo de armamento não convencional para desalojar os combatentes da resistência. "A ameaça de armas químicas é real", disse a especialista em estratégia militar russa Katarzyna Zysk à France 24. "Neste momento, faz sentido militar para a Rússia alcançar a vitória em Mariupol o mais rápido possível, porque isso liberaria muitas forças para sua ofensiva planejada na área de Donetsk", disse o especialista em armas químicas e ex-chefe à mesma rede. do laboratório da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) Marc-Michael Blum, que explicou que um ataque em pequena escala, sem testemunhas, em uma área isolada de Mariupol, seria muito difícil de provar.

Gravura de Kurz Allison da Batalha de Quasnimas, nas Filipinas, em 1898.  (GRUPO DE IMAGENS UNIVERSAL VIA GETTY)

Sobre a possibilidade de tentar isolar o contingente que resiste na siderúrgica, entrincheirado com um número indeterminado de civis que se refugiaram dos bombardeios russos na fábrica, Beevor acredita que as tropas de Moscou “poderiam cercá-los até que morressem de fome”. ." ”. Bukkvoll argumenta, em vez disso, que essa estratégia representa um problema, porque deixar um inimigo para trás sempre pode provocar ataques de guerrilha pela retaguarda. Este especialista acredita também que a recusa de rendição também é influenciada pelo facto de, durante a guerra do Donbass que começou em 2014, em outras ocasiões os soldados ucranianos que entregaram as suas armas terem sido também bombardeados ao deixarem as suas posições.

“Existem centenas de lugares relacionados à resistência heróica ao longo da história. Toda a Guerra da Independência Espanhola é assolada por este tipo de sítio”, explica o especialista militar do Instituto Real Elcano Félix Arteaga. “Em alguns casos, eles podem ter um significado muito importante e decidir o curso de uma guerra. A epopeia é dada pelo tempo em que resiste e também quando a posição se mantém apesar de tudo já estar decidido, como aconteceu com a última das Filipinas. O que acontece na siderúrgica Mariupol não vai decidir o sentido da guerra, mas dá um sentido épico à sua resistência”.

Guillermo Altares, o autor desta reportagem, é editor-chefe de Cultura do EL PAÍS. Trabalhou nas seções Internacional, Reportagens e Ideias, viajou como enviado especial para vários países – incluindo Afeganistão, Iraque e Líbano – e fez parte da equipe de editorialistas. Ele é o autor de 'Uma lição esquecida', que recebeu o prêmio de melhor ensaio das livrarias de Madrid. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 20.04.22

O mês de medo e escuridão de 300 ucranianos em um porão

As forças russas forçaram os moradores da vila de Yahidne a permanecer no porão úmido da escola. Onze anciãos morreram

Vizinhos de Yahidne, na quinta-feira em frente ao acesso ao porão da escola. (FREDERICO QUINTANA Yahidne (Ucrânia) -20 DE ABRIL DE 2022 - 23:40 EDT)

Para os 300 ucranianos forçados por soldados russos a viver por um mês no porão da escola na aldeia ucraniana de Yahidne, "não havia manhã, meio-dia ou noite", diz Ania Yanko, 26, enviada para lá no início deste mês. com o marido e os filhos, de quatro e sete anos. “Estávamos o tempo todo no escuro. Primeiro acendíamos lâmpadas, até que alguém trouxe um gerador elétrico que valia o que valia”, lembra em frente ao local, onde os vizinhos se reúnem hoje para receber ajuda humanitária.

Eram todos os habitantes que permaneceram em 5 de março, dia em que as forças russas estacionadas na Bielorrússia tomaram esta cidade no norte da Ucrânia, cerca de 120 quilômetros ao norte de Kiev. Eram em sua maioria velhos, mulheres e crianças, já que os homens estavam em outras partes do país, lutando ou organizando defesa ou suprimentos. Cerca de 130 dormiam em um quarto e, como não cabiam todos deitados, alguns o faziam apoiados nos ombros uns dos outros, ou de costas. Pelo menos 11 (a estimativa mais conservadora) morreram no porão. Seus corpos envelhecidos cederam às duras condições.

Depois de ocupar a cidade, os militares russos foram de casa em casa forçando os moradores a se mudarem para o porão da escola, cinco salas com piso de madeira que retém um cheiro de mofo, um punhado de cadeiras escolares quebradas e cobertores mofados. Em um dos vários episódios rebeldes, Yanko inicialmente se recusou a sair de sua casa. “Dissemos a eles para nos deixarem em paz, que tínhamos filhos pequenos. Em 7 de março, vários soldados chegaram à noite. Eles estavam bêbadose eles nos disseram: 'Ou você vai embora agora ou nós te matamos'. Eles nos escoltaram até lá e exigiram que eu lhes desse o cartão SIM do telefone, que eles quebraram. No dia seguinte eles queriam o telefone também, mas eu o escondi. Meu marido tem botas com uma sola muito grossa e nós abrimos uma fenda para colocá-lo lá sem que ele pisasse.”

Ania Yanko, na entrada do porão. (FREDERICO QUINTANA)

Manter o celular não era apenas um arriscado ato de resistência simbólica, mas também uma consequência do que acontecia ao seu redor. “Eu vi um telefone esmagado contra o canto do banheiro e outra pessoa encontrou um no vaso sanitário. Eram os antigos que os avós tinham. iPhones e smartwatches os mantinham. Uma garota ao meu lado foi obrigada a sair de seu perfil do iCloud... para que pudessem usá-lo. As pulseiras fitness também foram mantidas , pois diziam que poderiam ser usadas para contatar o inimigo. Que coincidência, apenas as boas pulseiras fitness ! Por que eles tiveram que manter meu telefone? Comprei há um mês, tive que pedir um empréstimo e achei que a guerra acabaria logo", conta a mulher

Como era o prédio da escola, havia material no andar de cima que os soldados deixavam as crianças levarem. As paredes são decoradas com desenhos infantis em marcador e aquarela, como um calendário com uma cruz ao lado da palavra "morto". Também a letra do hino ucraniano. Foi pintado por Yulia Semenova, 12 , "muito feliz que isso acabou". "Eu estava muito assustado. Ficamos muito tempo lá embaixo”, diz hoje na superfície.

Yulia Semenova, diante de seus desenhos no porão. (FREDERICO QUINTANA)

Os vizinhos de Yahidne não foram presos. Especialmente no início, eles poderiam sair, para um espaço em frente à escola onde podem ser vistas as pegadas dos veículos blindados estacionados em ambos os lados. Eles também viram a luz do dia quando foram ao banheiro em uma cabine localizada a poucos metros de distância. “Estávamos mais ou menos bem... Até que nos encontramos no meio do fogo cruzado. Uma bomba caiu ao lado do prédio, ferindo um idoso e uma criança. Decidimos não sair mais. Eu usei um penico para meus filhos”, diz ele.

Foi o momento de maior pânico, com tropas ucranianas abrindo fogo da estrada e tanques russos respondendo de sua posição ao lado da escola, concorda Nina, 68 anos, com um filho na frente. “Tive medo de que o telhado desabasse e fôssemos enterrados vivos. Durante dois dias, os russos não nos permitiram sair nem para ir ao banheiro. Começamos a ter muito medo. Foi muito difícil, estava frio e faltava ar fresco. Sabe, 300 pessoas em um lugar, os bebês chorando, os velhos gemendo... então decidimos fazer alguma coisa. Os dois líderes [não oficiais, dois homens mais velhos] olharam e viram que a batalha estava bem ali. Uma hora depois, fez-se silêncio. Eles saíram e contaram para o resto de nós. Os russos não estavam mais lá. Ao sair, notei o brilho do céu. Percebi que a primavera havia chegado e os pássaros cantavam." Era 3 de abril. Nos arredores, ainda é possível ver uma ponte explodida e veículos blindados completamente destruídos, aparentemente por tiros de drones ou por Javelin, os mísseis antitanque.entregue à Ucrânia por seus aliados ocidentais .

Ajuda e ameaças

A relação entre civis ucranianos e soldados russos era ambivalente, uma mistura de gestos de ajuda e busca de conversas com ameaças e detalhes de desprezo. Os militares pareciam temer os civis e sentiram a necessidade de lhes explicar por que estavam ali.

Nina garante que, quando iam ao banheiro, davam tiros para o ar para assustá-los, que estavam cada vez mais nervosos e que impunham medo, com ameaças de execução imediata caso fossem pegos de posse de um celular. "Não ousávamos falar de política nem entre nós", diz. "Um dia, meus filhos começaram a cantar o hino ucraniano e eu os silenciei", lembra Yanko, que traz à tona a história que um grupo de homens lhes contou quando voltaram ao porão. Eles saíram, com a permissão dos comandantes russos, para cavar duas covas para enterrar cinco corpos. Quando os corpos foram trazidos, "os russos abriram fogo naquela direção de um Tigr [um veículo militar russo]". Eles tiveram que se refugiar nos buracos onde estavam os cadáveres. Um ficou ferido na perna. "Os russos costumavam nos escoltar, mas não o fizeram lá", diz ele.

No entanto, os militares russos também os deixaram cozinhar do lado de fora e ir ao poço buscar água. E eles roubaram os animais, mas depois deram a eles uma parte depois de sacrificá-los . Alguns até compartilharam suas rações militares com eles, cujos restos podem ser vistos no porão (os soldados russos estavam no andar de cima). Eles também não estavam com muita fome. Comiam mingaus típicos da região ou legumes. Os soldados russos escoltaram os dois líderes não oficiais - que atuaram como representantes e interlocutores perante os comandantes - até suas casas para recolher alimentos e roupas. "Eles receberam 30 minutos", lembra Nina.

Nina, 68, conta seus dias no porão. (FREDERICO QUINTANA)

As tropas russas tinham uma lista com os nomes e sobrenomes de todos. "E eles nos disseram que se um deles escapasse, o resto teria muitos problemas", diz Nina. Sem telefones, jornais, rádio ou televisão, eles ignoravam o curso da guerra. “Nós não sabíamos o que estava acontecendo em Kiev, em Chernihiv... Eles nos disseram que nosso governo estava prestes a cair e nosso país estava em sério perigo. E o tempo todo, aquela Ucrânia era pobre e eles vinham para libertá-la”, acrescenta.

O Yanko, de vinte e poucos anos ou mais, conversou com eles várias vezes, quando dividiam cigarros ou iam ao banheiro. “Eles se gabavam de ter tomado Mariupol , Kiev, Kherson [só a última era verdade]… 'Chernihiv nós quase temos', eles disseram. 'O Batalhão Azov chegou, mas nós imediatamente acabamos com eles também. Seu [Volodymyr] Zelensky deixou a Ucrânia e [Vladimir] Putin virá reconstruí-la.' Disseram-me que não tinham nada contra nós, que só queriam lutar contra o Batalhão Azov , os nazistas e Stepan Bandera”, fundador da Ucrânia independente e colaborador da Alemanha hitlerista que morreu em 1959. “Falaram de Stepan Bandera como se estivesse ao vivo. Eu não entendi nada".

Antonio Pita (enviado especial), autor desta reportagem, é Editor da seção Internacional e responsável pela cobertura de vários países balcânicos. Passou nove anos como correspondente em Rabat, Paris e Jerusalém, principalmente na Agencia Efe. Licenciado em Jornalismo e Mestre em Relações Internacionais e Comunicação pela Universidade Complutense de Madrid. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 20.04.22

Ocidente promete armas à Ucrânia, em meio a avanços russos

Moscou renova ultimato para rendição de soldados ucranianos em Mariupol. Líderes ocidentais se comprometem a enviar novas remessas de armamentos a Kiev. Tropas russas intensificam ataques, na nova fase da invasão

A Rússia renovou o ultimato para que os combatentes ucranianos na cidade de Mariupol se rendam e deponham as armas, enquanto suas tropas intensificavam os ataques no leste do país nesta terça-feira (19/04). Em meio ao recrudescimento da ofensiva russa, líderes ocidentais prometeram reforçar o envio de armamentos a Kiev.

Milhares de soldados russos, apoiados por ataques de artilharia e de mísseis, avançaram em diversas regiões no leste ucraniano.

Tropas russas tomaram a cidade de Kreminna, a primeira a cair desde o início da nova fase da invasão russa. A localidade de 18 mil habitantes fica no entorno de Lugansk, uma das duas províncias separatistas na região de Donbass.

As tropas invasoras continuam a cercar as forças defesa ucranianas no complexo siderúrgico Azovstal, o último bastião da resistência em Mariupol. Com a aproximação do fim do prazo dado por Moscou para que os soldados ucranianos se rendessem, o Kremlin anunciou uma ampliação do ultimato até esta quarta-feira.

O Ministério da Defesa da Rússia informou que nenhum soldado ucraniano se entregou até o momento em Mariupol, motivo pelo qual decidiu dar mais tempo para uma possível rendição. Entretanto, os comandantes da resistência ucraniana prometeram que não vão desistir.

O cerco a Mariupol teve início nos primeiros dias da invasão russa. Dezenas de milhares de pessoas ainda estão presas na cidade, sem acesso a água ou alimentos. O governo ucraniano afirma que mais de 20 mil pessoas morreram em razão dos intensos bombardeios.

O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, disse que a situação em Mariupol é a pior possível, e acusou a Rússia de bloquear todas as tentativas de organizar corredores humanitários para permitir a retirada de civis.

O ministro russo da Defesa, Serguei Shoigu, disse que Moscou avança "metodicamente" em seus planos para "liberar" as províncias de Lugansk e Donetsk. Moscou exige que o domínio dessas duas regiões seja entregue aos grupos separatistas que realizam uma insurgência em Donbass desde 2014.

Kharkiv, a segunda maior cidade do país, também foi atingida por bombardeios nesta terça-feira. Autoridades locais disseram que os ataques, que destruíram edifícios residenciais e outras estruturas, mataram ao menos quatro pessoas e feriram outras 14.

Ocidente promete reforçar ajuda militar

Após uma reunião por videoconferência entre os líderes de diversas nações ocidentais, os Estados Unidos, o Reino Unido e o Canadá prometeram enviar à Ucrânia novas remessas de armamentos para reforçar as defesas do país.

"Continuaremos a fornecer mais munição, enquanto enviamos mais assistência militar", disse a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki. Ela afirmou ainda que novas sanções contra Moscou estão sendo preparadas.

O presidente americano, Joe Biden, deve anunciar nos próximos dias um novo pacote de ajuda militar semelhante ao da semana passada, no valor de 800 milhões de dólares.

A Alemanha se comprometeu a enviar sistemas de defesa antitanque e antiaérea, além de financiar compras de armamentos por parte do governo ucraniano.

Zelenski, no entanto, criticou a demora dos países ocidentais em fornecer ajuda ao país. "É injusto que a Ucrânia tenha que pedir armamentos que estão encostados há anos nos depósitos de nossos parceiros", afirmou. rc (Reuters, DPA)

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 20.04.22

'Sou cuidadora e não tenho quem cuide dos meus filhos': 3 milhões de crianças não têm vaga no ensino infantil

As creches que nunca saíram do papel, desamparando milhares de famílias brasileiras

Falta de vagas em creches e pré-escolas prejudica formação infantil, possibilidade de mulheres trabalharem e renda das famílias (Getty Images)

"Sou uma trabalhadora doméstica explorando outra doméstica."

Assim Valdirene Boaventura Santos, de 39 anos e moradora de Salvador, resume uma situação que para ela é desconfortável.

Cuidadora de idosos há oito anos e antes disso babá, arrumadeira e cozinheira, Valdirene passou a vida toda cuidando das casas e das famílias de outras pessoas.

Ela cria sozinha três filhos, de 16, 5 e 4 anos, e não consegue vaga em creche e pré-escola públicas para os mais novos no seu bairro.

As dificuldades são compartilhadas por mais de 3 milhões de crianças brasileiras que não têm vaga na educação infantil, ciclo que vai de 0 a 6 anos e é garantido como um direito pela Constituição nacional. Sem vagas, muitos pais recorrem à Justiça (veja como mais adiante neste texto).

"Na minha comunidade, tem um centro de educação infantil, chamado Olga Benário. Eu inscrevi meus filhos desde cedo, mas toda vez somos sorteados para outros bairros", conta Valdirene, que entra no serviço às 8h e sai às 17h, o que inviabiliza para ela o deslocamento para bairros vizinhos. A família vive em Doron, a cerca de 10 km do centro histórico da capital baiana.

A trabalhadora doméstica chegou a matricular os filhos numa creche comunitária, pelo projeto Mais Infância do governo estadual. Pagava R$ 200 por criança, mas enfrentava problemas frequentes, como falta de professores, de água e de luz, que interrompiam as aulas.

"A gente que é trabalhadora doméstica não tem como justificar para o patrão que não vai trabalhar porque não tem ninguém para ficar com nosso filho", diz Valdirene.

Durante a pandemia, pagando sem as crianças poderem frequentar, optou por tirá-las da creche comunitária. Agora, enquanto segue aguardando vaga na rede pública, Valdirene deixa os filhos com uma vizinha, que cuida na própria casa de seis crianças.

'A gente que é trabalhadora doméstica não tem como justificar para o patrão que não vai trabalhar porque não tem ninguém para ficar com nosso filho', diz a cuidadora de idosos Valdirene Boaventura Santos

"É uma situação desconfortável, sou uma trabalhadora doméstica, conheço meus direitos como trabalhadora, luto em prol desses direitos, mas 'casa de ferreiro, espeto de pau'", diz Valdirene, que é secretária de assuntos jurídicos do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico).

Com seu salário de cuidadora de idosos de pouco mais de R$ 1.200 e R$ 120 de auxílio do Programa Primeiro Passo, da prefeitura de Salvador para ajuda às mães que não conseguem vaga na educação infantil, ela diz que não teria condições para assinar a carteira e pagar um salário mínimo pelo cuidado dos filhos. Também não poderia pagar por uma pré-escola privada.

Um problema que afeta a renda das mulheres

O Instituto Rui Barbosa, organização ligada aos Tribunais de Contas dos Estados, estima que o Brasil precisaria criar pelo menos 3,4 milhões de vagas na educação infantil para cumprir as metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação (PNE).

Por essas metas, todas as crianças de 4 e 5 anos deveriam estar na pré-escola até 2016 e 50% dos pequenos de 0 a 3 anos deveriam ter acesso à creche até 2024.

A pandema deixou o Brasil ainda mais distante desses objetivos, com mais de 650 mil crianças de até 5 anos tendo deixado a escola entre 2019 e 2021, segundo o Censo Escolar 2021, divulgado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).

Embora agravado pela pandemia, o problema do baixo acesso das crianças mais novas à educação não é novo. Ele dificulta que milhares de mulheres possam trabalhar em tempo integral, garantindo uma renda maior para suas famílias.

Tays Aparecida Alves Fazzio, de 30 anos e moradora de Araquari, em Santa Catarina, enfrentou dificuldades para conseguir vaga em creche para seus dois filhos.

Tays deixou o emprego devido ao horário restrito das creches públicas em sua cidade e agora trabalha em casa de babá, cuidando do próprio filho e de outra criança

Para a mais velha, hoje com 8 anos, só conseguiu vaga após acionar o conselho tutelar de sua cidade — ela morava então em Bauru, no interior de São Paulo.

A educação infantil é um direito da criança garantindo pela Constituição. Dos 0 aos 3 anos, a matrícula em creche é opcional, já a inscrição na pré-escola para crianças de 4 e 5 é obrigatória. Em caso de falta de vagas tanto na creche, como na pré-escola, os pais podem acionar o Conselho Tutelar ou a Defensoria Pública, como fez Tays com sua filha mais velha.

Para o mais novo, atualmente com 5 meses, o problema é o horário das creches em Araquari: das 7h às 13h para o turno da manhã ou 12h às 18h para o período da tarde.

"Para mim não compensava, eu tive que pedir a conta do serviço e agora estou cuidando de uma criança além dele, trabalhando em casa, de babá", conta Tays.

Formada em pedagogia e antes trabalhando com telemarketing, ela viu sua renda reduzida aos R$ 400 que ganha atualmente pelo trabalho de babá, mais uma pensão de R$ 600 que a filha mais velha recebe pelo fato de seu pai ser falecido. Tays conta da dificuldade que foi para ela deixar o emprego para ficar em casa.

"Para mim foi difícil, eu tinha planos de tentar concurso e sempre trabalhei fora, eu trabalho desde os meus 12 anos. Foi bem complicado, de repente ter que abrir mão e ficar em casa, mesmo gostando de cuidar de criança por ser pedagoga formada. Mas se eu tivesse que pagar alguém para ficar com eles, seria pagar para trabalhar, não ia sobrar quase nada."

Uma rede de cuidado informal

Diante da falta de vagas para todos, mulheres como Tays e a vizinha de Valdirene suprem a necessidade de cuidados para milhares de crianças, principalmente nas periferias.

Isso porque, além de insuficiente, a oferta de creches e pré-escolas é muito desigual.

Conforme o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021, do Todos pela Educação, 54% das crianças de 0 a 3 anos dos domicílios mais ricos do país estavam matriculadas em creches em 2019, contra apenas 28% das mais pobres. Entre as crianças de 4 e 5 anos, os percentuais eram de 98% e 93% para ricos e pobres na pré-escola, respectivamente, segundo esse cálculo.

Por regiões, enquanto os números de matrículas em creches chegavam a 44% no Sul e Sudeste, eram de apenas 33% no Nordeste, 30% no Centro-Oeste e 19% na região Norte do país.

Vitória de Andrade Lourenço, de 18 anos, cuida de crianças desde que ela mesma era pouco mais do que uma, aos 14 anos.

Ela seguiu os passos da mãe, Sueli, que cuidou de crianças em Heliópolis, bairro de baixa renda da zona sul de São Paulo, durante anos, até deixar a atividade devido a uma dor no braço que a impede de cuidar de crianças menores.

Vitória de Andrade Lourenço, de 18 anos, cuida de crianças desde os 14, seguindo os passos da mãe

Atualmente, Vitória toma conta de apenas um menino de 3 anos, mas já chegou a cuidar de quatro crianças ao mesmo tempo. Em alguns casos, ela busca os pequenos na creche e fica com eles até os pais voltarem do trabalho.

"Também tem criança que não vai para a creche e aí fica comigo o dia todo", diz Vitória.

Com seu trabalho de cuidadora, Vitória possibilita a outras mulheres trabalharem. Mas ela mesma sonha com um trabalho mais bem remunerado.

"Eu gostaria muito de encontrar um serviço fixo. Eu gosto de cuidar de criança, mas não é um trabalho com estabilidade e um salário mínimo às vezes te deixa na mão", conta.

Quando cuidava de quatro crianças, Vitória chegou a fazer R$ 800 por mês. Agora, com uma só, recebe R$ 250, que complementam a pensão recebida pela mãe, após o falecimento do pai. Com a irmã desempregada, essas são as únicas fontes de renda da família.

Vitória gostaria de trabalhar na área da beleza, com design de sobrancelhas, o que daria a ela a possibilidade de ter um negócio próprio. Ela diz que também pensa em voltar a estudar.

"Eu penso bastante nisso, queria fazer pedagogia para trabalhar em creche, mas por enquanto está um pouco apertado. Tenho que ajudar em casa e nem todo curso é de graça, alguma coisa eu teria de pagar... Mas eu quero muito", afirma.

'Educação infantil beneficia a sociedade como um todo'

Segundo especialistas em educação, apesar do carinho e dedicação das mulheres que cuidam de crianças informalmente, esse cuidado não substitui a educação em instituições de ensino.

Mais do que um lugar para deixar as crianças pequenas, as creches e pré-escolas têm papel fundamental na formação infantil, na igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e no combate à pobreza, já que a possibilidade de as mulheres trabalharem aumenta a renda das famílias.

'90% do desenvolvimento da criança acontece na primeira infância', diz Mariana Luz, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal

"90% do desenvolvimento da criança acontece na primeira infância. Ela desenvolve as habilidades físicas e motoras — engatinhar, caminhar, dar tchau na fase certa —, mas há também o desenvolvimento cognitivo e sócio-emocional", explica Mariana Luz, diretora da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, organização com foco na primeira infância.

"O primeiro diz respeito à capacidade de aprendizagem, de absorção de conhecimento e criativa. O segundo, a habilidades que serão úteis para toda a vida, como trabalhar em equipe, lidar bem com o estresse, ter habilidades de comunicação. Tudo isso, que são capacidades muito demandadas hoje no mercado de trabalho, se forma na primeira infância", acrescenta.

Segundo Mariana, uma boa educação infantil aumenta a capacidade da criança de aprender ao longo de toda sua jornada educacional.

A educação infantil de qualidade também tem reflexos positivos na saúde pública, com melhora na nutrição das crianças, e na segurança pública, pois crianças mais bem desenvolvidas teriam menor probabilidade de sofrer aliciamento pelo crime.

"No longo prazo, uma boa formação inicial pode resultar em maior renda para a criança ao longo de toda sua vida, com benefícios para a geração futura e a quebra dos ciclos intergeracionais de pobreza", diz a especialista.

Procurado, o Ministério da Educação não respondeu a pedido de posicionamento da BBC News Brasil.

Por Thais Carrança - @tcarran, da BBC News Brasil em São Paulo -  19 abril 2022

terça-feira, 19 de abril de 2022

O sol e a República

A coisa pública tem sido opacificada por deliberada obscuridade. O lema hoje parece ser: governar é omitir, julgar é esconder, legislar é ocultar.

A boa e velha sabedoria da Roma Antiga, farol civilizatório do mundo a partir do século VII a.C., entronizou em seu panteão a deusa Justiça como réplica latina da helênica Dice, com uma diferença que se afirmaria como ícone para a posteridade: a simbolizar a imparcialidade, permanecia a divindade de olhos vendados, a tornar claro que não importava quem se estava a julgar. A mensagem era clara: todos são iguais perante a lei. No entanto, a Justiça deveria, ela mesma, estar sempre iluminada pela luz do sol, escrutinada pelos cidadãos e isenta de segredos e decisões cabulosas tomadas nas sombras do hermetismo.

A regra da transparência atravessou os séculos e enraizou-se nos atos e ritos dos assuntos de Estado, passíveis de documentação para conferência dos órgãos controladores e do povo. O Brasil é um dos países com maior incidência solar no planeta, mas a claridade exigida dos atos relativos à res publica, a coisa pública, tem sido opacificada por deliberada obscuridade. O lema dos dias que correm parece ser: governar é omitir, julgar é esconder, legislar é ocultar. Por isso que aos cidadãos têm sido sonegadas as mais ínfimas informações acerca de decisões relativas a temas que, por natureza, são públicos e só excepcionalmente, em atenção à defesa do Estado, devem ser resguardados em sigilo, e apenas por um período que seja razoável.

Nestes tempos estranhos em que são frequentes ações voltadas a nublar a luz do sol, até o Legislativo, o mais transparente dos Poderes, engendrou um “orçamento secreto” que oculta o nome de parlamentares beneficiados em 2020 e 2021 pelas chamadas emendas de relator – mecanismo esotérico pelo qual milhões de reais dos cofres públicos são destinados a obras e serviços sem que se saiba qual parlamentar se beneficia da transferência em troca de apoio ao Executivo.

A exigida ética na condução da coisa pública tem sido trapaceada. Coube, recentemente, ao Supremo Tribunal Federal (STF) levantar o sigilo imposto à tramitação de processos administrativos instaurados pelas agências de Transportes Terrestres e Aquaviários para apurar infrações de concessionárias de serviço público. Na aparência, todos querem esconder algo. Por dá cá essa palha, processos e até inquéritos têm sido cobertos pelo segredo de Justiça – em afronta aos incisos IX e X do art. 93 da Constituição, segundo os quais “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” e “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública (...)”. Excepcionalmente, poderá ser limitada “em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

No âmbito do Executivo, interesse público passou a ser interesse dos governantes. Assumiu foros de cabala a negativa de acesso à imprensa ao processo administrativo que culminou com a impunidade do general Eduardo Pazuello por participação em comício político do presidente da República. O Regulamento Disciplinar do Exército proíbe militar da ativa de se manifestar publicamente, “sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. A sibilina alegação foi de que a Lei n.º 12.527/2011, que regula o acesso à informação, restringe a divulgação de informações pessoais – e a mordaça corporativa recebeu o sinete secular de ultrassecreta, equiparada a episódios da Guerra do Paraguai, encerrada em 1870, ainda hoje resguardados para evitar fricções com o país vizinho. Apequenam-se os homens, avilta-se a República.

Promulgada em substituição a normas similares que disciplinavam segredos de Estado, a Lei n.º 12.527/2011 seguiu antigo padrão internacional de resguardo de assuntos sensíveis cuja divulgação ainda possa comprometer a segurança nacional ou trazer à tona fatos históricos embaraçosos. Um mérito adicional da nova legislação foi funcionar, também, como chave de acesso para informações de interesse público que não estejam classificadas como secretas, e desse mecanismo tem se valido a imprensa para divulgar com foros de revelação o que já deveria ser público.

No clássico desvio de finalidade que corrompe boas intenções, sabe Deus se as informações fornecidas são fidedignas – suspeita que nasce da resistência de autoridades em revelar determinados dados, como os gastos do cartão corporativo da Presidência da República. Se, no passado, um ministro perdeu o cargo por comprar tapiocas com tal cartão, as instituições fiscalizadoras da República têm o dever de obrigar o presidente a explicar em que gastou secretamente R$ 43,5 milhões nos três anos de seu governo.

Desconfiando, como Hamlet desconfiou de que algo cheirava mal no reino da Dinamarca, vale invocar sempre a atemporal constatação de Louis Dembitz Brandeis, juiz da Suprema Corte americana de 1916 a 1939: “A luz do sol é o melhor desinfetante”.

José Roberto Batochio, o autor deste artigo, é advogado criminalista. Foi Presidente Nacional da OAB e Deputado Federal pelo PDT-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.04.22

A LDO e o legado da devastação

Contas esburacadas, dívida em alta e atividade medíocre compõem os cenários oficiais dos próximos três anos, conforme se lê no projeto da LDO de 2023

Baixo crescimento, baixo consumo, contas esburacadas e dívida crescente compõem a herança prometida ao próximo governo pelo presidente Jair Bolsonaro, embora seu ministro da Economia, Paulo Guedes, tente enfeitar o legado sinistro. O desastre continuado está previsto nos cenários de referência do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023. Nos próximos dois anos o poder central ainda fechará seu balanço com déficit primário, isto é, com gastos maiores que a arrecadação, sem contar o custo da dívida pública. Com isso serão completados dez anos de contas primárias em vermelho. O desarranjo iniciado na gestão da presidente Dilma Rousseff deverá prosseguir até a metade do novo mandato presidencial, se as projeções estiverem corretas. Não só pelos números da inflação, mas também pela condução geral da economia, a gestão bolsonariana continua emulando a da fase final do petismo.

Sem sair do atoleiro, a economia brasileira crescerá apenas 2,5% em cada um dos próximos três anos, segundo as projeções divulgadas com o projeto da LDO. O Brasil continuará, nesse caso, em descompasso com os emergentes mais dignos dessa classificação. Além disso, ainda avançará em ritmo abaixo da média mundial, superior a 3% ao ano, segundo estimativas de organizações internacionais. Mas o crescimento apontado para a produção brasileira pode embutir algum otimismo. Fora da administração federal, a maioria das previsões continua indicando taxas inferiores a 1%, em 2022, e nada, por enquanto, parece justificar a expectativa de expansão em torno de 2,5% a partir de 2023.

A inflação diminuirá para 3,3% no próximo ano e chegará ao centro da meta, de 3%, nos dois anos seguintes, mas a taxa básica de juros continuará elevada, com taxas previstas de 10%, 7,7% e 7,1%. O Banco Central (BC) deverá continuar batalhando – essa é a expectativa implícita – para conter a alta de preços no próximo período presidencial. Esse esforço poderá produzir algum efeito contra o surto inflacionário, mas será um entrave à retomada econômica e, além disso, continuará afetando severamente os custos do Tesouro.

As contas primárias permanecerão esburacadas, com déficit de R$ 65,91 bilhões no próximo ano, nas finanças do poder central. O buraco poderá diminuir para R$ 27,89 bilhões em 2024. Em 2025 poderá surgir um superávit primário de R$ 33,70 bilhões, equivalente a 0,28% do Produto Interno Bruto (PIB). A dívida bruta do governo geral aumentará de 79,64% do PIB em 2023 para 80,29% em 2024. Essa porcentagem deverá ser mantida em 2025, porque o ressurgimento do superávit primário permitirá a imposição de algum controle ao endividamento.

Mesmo com alguma expansão dos negócios e da arrecadação, esse controle dependerá, naturalmente, da disposição de quem comandar o Executivo e do grau de influência do Centrão nas decisões sobre as finanças públicas. Hoje o Centrão opera tanto no Congresso quanto no Executivo, onde comanda a Casa Civil e exerce, com apoio presidencial, o poder de liberar despesas, até contra a opinião do ministro da Economia.

Credores do Tesouro continuarão sujeitos ao calote determinado pelas Emendas Constitucionais 113 e 114, aprovadas em 2021. Essas emendas permitem ao Executivo limitar o pagamento de dívidas correspondentes a precatórios, sem reconhecimento pleno, portanto, de ordens judiciais. Antes dessas emendas, o poder central deveria liquidar todos os precatórios oficializados em cada exercício. Agora há limites e prioridade para os compromissos de menores valores.

As projeções oficiais apontam, portanto, mais dois anos de rombos primários, dívida em expansão e manutenção do calote dos precatórios. Metas de inflação, superávit primário e câmbio flexível compuseram o tripé desenhado depois do Plano Real. Aprovada no ano 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal complementou essas diretrizes, desmoralizadas no final da gestão petista e revalorizadas temporariamente na gestão do presidente Michel Temer. A devastação dessas normas é parte da herança do atual mandato.

Editorial - Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 19 de abril de 2022 | 03h00