quarta-feira, 20 de abril de 2022

O último de Mariupol: a epopeia da resistência também tem um significado militar

Além de seu valor propagandístico e simbólico, o entrincheiramento de um grupo de soldados em uma siderúrgica na cidade ucraniana obriga a Rússia a mobilizar um grande contingente militar para manter o cerco

Esta é a fábrica em que os últimos combatentes ucranianos de Mariupol resistem. Carros destruídos pela guerra, com fumaça da siderúrgica Azovstal ao fundo, na segunda-feira.Foto: ALEXEI ALEXANDROV | Vídeo: DANIEL CASTRESANA

A resistência heróica de um pequeno grupode soldados contra um inimigo imensamente superior faz parte da história militar desde os primórdios da cultura ocidental. “Para os gregos que estavam nas Termópilas , o primeiro que anunciou que iam morrer ao amanhecer foi o vidente Megístias”, escreve Heródoto no volume VII de sua História . No entanto, apesar dos maus presságios, Leônidas e seus 300 espartanos decidiram lutar contra os persas até o fim naquele desfiladeiro. Heródoto garante que eram personagens "dignos de serem lembrados" e que conseguiu descobrir os nomes de cada um desses 300.

Desde então, a história militar ofereceu numerosos exemplos dessa resistência desesperada, às vezes de derrotas transformadas em mitos, outras de vitórias contra todas as probabilidades após uma resistência impossível, do Álamo ao Alcázar de Toledo durante a Guerra Civil Espanhola; o Cerco de Bastogne , durante a Batalha do Bulge no final da Segunda Guerra Mundial; ou o último das Filipinas . Esse destacamento de caçadores espanhóis resistiu ao ataque de uma força muito maior por 11 meses antes de se render com todas as honras e se tornou um mito imperial que procurava fazer as pessoas esquecerem que era uma guerra perdida. As centenas de combatentes ucranianos resistindo na siderúrgica Azovstal, entre as ruínas de Mariupol, cidade sitiada pela Rússia há mais de 50 dias, tornaram-se parte dessa mitologia da luta numantina.

"A conquista de Mariupol assumiu uma enorme importância simbólica", explica o historiador militar britânico Antony Beevor por e-mail . “O que eu gostaria de saber é se os defensores são realmente falantes de russo ou ucranianos. O fato de Mariupol ser majoritariamente de língua russa, supostamente as mesmas pessoas que Vladimir Putin quer resgatar com seus exércitos do nazismo ucraniano, e que resistem tão desesperadamente, é algo que o Kremlin não pode admitir.

Imagem de um bombardeio contra a fábrica de Azovstal obtida por um drone e divulgada na terça-feira pela Câmara Municipal de Mariupol. (CONSELHO MUNICIPAL DE MARIUPOL (VIA REUTERS)

Mas, além de seu valor simbólico, essas trincheiras têm um significado militar. O caso de Mariupol, cidade do sudeste da Ucrânia e principal porto do Mar de Azov, arrasada por bombas russas desde o início da invasão , demonstra as enormes dificuldades que o combate urbano impõe aos assaltantes, muito mais do que aos defensores, que podem usar as ruínas para montar emboscadas e deter o avanço do inimigo por dias, tudo isso sem contar com o poderoso valor propagandístico proporcionado por tais resistências heróicas.

Foi o que aconteceu durante a Batalha de Stalingrado , a vitória soviética após um longo cerco que selou a derrota de Hitler na Segunda Guerra Mundial em 1943, onde também houve longos assaltos a fábricas em uma cidade da qual apenas ruínas e escombros. Um único atirador poderia causar estragos em um inimigo muito superior. Em seu relato dessa batalha, Beevor lembra Zaitsev, "um pastor taciturno dos Urais", que derrubou 149 alemães. "Notícias de suas façanhas se espalharam por todo o front", escreve ele.

Tor Bukkvoll, pesquisador sênior do Norwegian Defense Research Establishment (FFI), especialista em Rússia e Ucrânia, explica: “Ele tem um ponto de vista estratégico essencial. Não só porque a Rússia precisa controlar Mariupol para tomar aquela faixa do sul da Ucrânia para ligar a Crimeia a Donbas. Também é importante porque força os atacantes a manter um número muito significativo de tropas no terreno, que Moscou precisaria em outros lugares. Além disso, a resistência de Mariupol mostrou aos líderes russos como é difícil tomar uma cidade quando ela está bem defendida. Acredito que o que aconteceu em Mariupol, que tinha 450.000 habitantes antes da guerra, foi decisivo para Moscou desistir de tentar tomar Kiev, que tem quase três milhões de habitantes”.

Atiradores soviéticos atiram no inimigo de uma casa na Batalha de Stalingrado, durante a Segunda Guerra Mundial (SOVFOTO GRUPO DE IMAGENS UNIVERSAIS VIA GETTY)

Há pouca certeza sobre o que acontece na siderúrgica Azovstal porque a Ucrânia não fornece dados por razões óbvias de segurança. É um enorme complexo de edifícios, de cerca de 11 quilômetros quadrados, no qual podem resistir entre 2.500 soldados —segundo o Ministério da Defesa russo— e entre 500 e 800, segundo outras estimativas. Justin Crump, especialista militar da consultoria Sibylline, explicou à BBC britânica que a planta industrial "possui bunkers e túneis nucleares que podem resistir a bombardeios". "É realmente muito bem planejado para a defesa e eles tiveram mais de 50 dias para se fortalecer e preparar rotas de fuga."

O fato de ser um local tão bem defendido fez alguns especialistas em armas químicas temerem que a Rússia possa ser tentada a usar esse tipo de armamento não convencional para desalojar os combatentes da resistência. "A ameaça de armas químicas é real", disse a especialista em estratégia militar russa Katarzyna Zysk à France 24. "Neste momento, faz sentido militar para a Rússia alcançar a vitória em Mariupol o mais rápido possível, porque isso liberaria muitas forças para sua ofensiva planejada na área de Donetsk", disse o especialista em armas químicas e ex-chefe à mesma rede. do laboratório da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) Marc-Michael Blum, que explicou que um ataque em pequena escala, sem testemunhas, em uma área isolada de Mariupol, seria muito difícil de provar.

Gravura de Kurz Allison da Batalha de Quasnimas, nas Filipinas, em 1898.  (GRUPO DE IMAGENS UNIVERSAL VIA GETTY)

Sobre a possibilidade de tentar isolar o contingente que resiste na siderúrgica, entrincheirado com um número indeterminado de civis que se refugiaram dos bombardeios russos na fábrica, Beevor acredita que as tropas de Moscou “poderiam cercá-los até que morressem de fome”. ." ”. Bukkvoll argumenta, em vez disso, que essa estratégia representa um problema, porque deixar um inimigo para trás sempre pode provocar ataques de guerrilha pela retaguarda. Este especialista acredita também que a recusa de rendição também é influenciada pelo facto de, durante a guerra do Donbass que começou em 2014, em outras ocasiões os soldados ucranianos que entregaram as suas armas terem sido também bombardeados ao deixarem as suas posições.

“Existem centenas de lugares relacionados à resistência heróica ao longo da história. Toda a Guerra da Independência Espanhola é assolada por este tipo de sítio”, explica o especialista militar do Instituto Real Elcano Félix Arteaga. “Em alguns casos, eles podem ter um significado muito importante e decidir o curso de uma guerra. A epopeia é dada pelo tempo em que resiste e também quando a posição se mantém apesar de tudo já estar decidido, como aconteceu com a última das Filipinas. O que acontece na siderúrgica Mariupol não vai decidir o sentido da guerra, mas dá um sentido épico à sua resistência”.

Guillermo Altares, o autor desta reportagem, é editor-chefe de Cultura do EL PAÍS. Trabalhou nas seções Internacional, Reportagens e Ideias, viajou como enviado especial para vários países – incluindo Afeganistão, Iraque e Líbano – e fez parte da equipe de editorialistas. Ele é o autor de 'Uma lição esquecida', que recebeu o prêmio de melhor ensaio das livrarias de Madrid. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 20.04.22

O mês de medo e escuridão de 300 ucranianos em um porão

As forças russas forçaram os moradores da vila de Yahidne a permanecer no porão úmido da escola. Onze anciãos morreram

Vizinhos de Yahidne, na quinta-feira em frente ao acesso ao porão da escola. (FREDERICO QUINTANA Yahidne (Ucrânia) -20 DE ABRIL DE 2022 - 23:40 EDT)

Para os 300 ucranianos forçados por soldados russos a viver por um mês no porão da escola na aldeia ucraniana de Yahidne, "não havia manhã, meio-dia ou noite", diz Ania Yanko, 26, enviada para lá no início deste mês. com o marido e os filhos, de quatro e sete anos. “Estávamos o tempo todo no escuro. Primeiro acendíamos lâmpadas, até que alguém trouxe um gerador elétrico que valia o que valia”, lembra em frente ao local, onde os vizinhos se reúnem hoje para receber ajuda humanitária.

Eram todos os habitantes que permaneceram em 5 de março, dia em que as forças russas estacionadas na Bielorrússia tomaram esta cidade no norte da Ucrânia, cerca de 120 quilômetros ao norte de Kiev. Eram em sua maioria velhos, mulheres e crianças, já que os homens estavam em outras partes do país, lutando ou organizando defesa ou suprimentos. Cerca de 130 dormiam em um quarto e, como não cabiam todos deitados, alguns o faziam apoiados nos ombros uns dos outros, ou de costas. Pelo menos 11 (a estimativa mais conservadora) morreram no porão. Seus corpos envelhecidos cederam às duras condições.

Depois de ocupar a cidade, os militares russos foram de casa em casa forçando os moradores a se mudarem para o porão da escola, cinco salas com piso de madeira que retém um cheiro de mofo, um punhado de cadeiras escolares quebradas e cobertores mofados. Em um dos vários episódios rebeldes, Yanko inicialmente se recusou a sair de sua casa. “Dissemos a eles para nos deixarem em paz, que tínhamos filhos pequenos. Em 7 de março, vários soldados chegaram à noite. Eles estavam bêbadose eles nos disseram: 'Ou você vai embora agora ou nós te matamos'. Eles nos escoltaram até lá e exigiram que eu lhes desse o cartão SIM do telefone, que eles quebraram. No dia seguinte eles queriam o telefone também, mas eu o escondi. Meu marido tem botas com uma sola muito grossa e nós abrimos uma fenda para colocá-lo lá sem que ele pisasse.”

Ania Yanko, na entrada do porão. (FREDERICO QUINTANA)

Manter o celular não era apenas um arriscado ato de resistência simbólica, mas também uma consequência do que acontecia ao seu redor. “Eu vi um telefone esmagado contra o canto do banheiro e outra pessoa encontrou um no vaso sanitário. Eram os antigos que os avós tinham. iPhones e smartwatches os mantinham. Uma garota ao meu lado foi obrigada a sair de seu perfil do iCloud... para que pudessem usá-lo. As pulseiras fitness também foram mantidas , pois diziam que poderiam ser usadas para contatar o inimigo. Que coincidência, apenas as boas pulseiras fitness ! Por que eles tiveram que manter meu telefone? Comprei há um mês, tive que pedir um empréstimo e achei que a guerra acabaria logo", conta a mulher

Como era o prédio da escola, havia material no andar de cima que os soldados deixavam as crianças levarem. As paredes são decoradas com desenhos infantis em marcador e aquarela, como um calendário com uma cruz ao lado da palavra "morto". Também a letra do hino ucraniano. Foi pintado por Yulia Semenova, 12 , "muito feliz que isso acabou". "Eu estava muito assustado. Ficamos muito tempo lá embaixo”, diz hoje na superfície.

Yulia Semenova, diante de seus desenhos no porão. (FREDERICO QUINTANA)

Os vizinhos de Yahidne não foram presos. Especialmente no início, eles poderiam sair, para um espaço em frente à escola onde podem ser vistas as pegadas dos veículos blindados estacionados em ambos os lados. Eles também viram a luz do dia quando foram ao banheiro em uma cabine localizada a poucos metros de distância. “Estávamos mais ou menos bem... Até que nos encontramos no meio do fogo cruzado. Uma bomba caiu ao lado do prédio, ferindo um idoso e uma criança. Decidimos não sair mais. Eu usei um penico para meus filhos”, diz ele.

Foi o momento de maior pânico, com tropas ucranianas abrindo fogo da estrada e tanques russos respondendo de sua posição ao lado da escola, concorda Nina, 68 anos, com um filho na frente. “Tive medo de que o telhado desabasse e fôssemos enterrados vivos. Durante dois dias, os russos não nos permitiram sair nem para ir ao banheiro. Começamos a ter muito medo. Foi muito difícil, estava frio e faltava ar fresco. Sabe, 300 pessoas em um lugar, os bebês chorando, os velhos gemendo... então decidimos fazer alguma coisa. Os dois líderes [não oficiais, dois homens mais velhos] olharam e viram que a batalha estava bem ali. Uma hora depois, fez-se silêncio. Eles saíram e contaram para o resto de nós. Os russos não estavam mais lá. Ao sair, notei o brilho do céu. Percebi que a primavera havia chegado e os pássaros cantavam." Era 3 de abril. Nos arredores, ainda é possível ver uma ponte explodida e veículos blindados completamente destruídos, aparentemente por tiros de drones ou por Javelin, os mísseis antitanque.entregue à Ucrânia por seus aliados ocidentais .

Ajuda e ameaças

A relação entre civis ucranianos e soldados russos era ambivalente, uma mistura de gestos de ajuda e busca de conversas com ameaças e detalhes de desprezo. Os militares pareciam temer os civis e sentiram a necessidade de lhes explicar por que estavam ali.

Nina garante que, quando iam ao banheiro, davam tiros para o ar para assustá-los, que estavam cada vez mais nervosos e que impunham medo, com ameaças de execução imediata caso fossem pegos de posse de um celular. "Não ousávamos falar de política nem entre nós", diz. "Um dia, meus filhos começaram a cantar o hino ucraniano e eu os silenciei", lembra Yanko, que traz à tona a história que um grupo de homens lhes contou quando voltaram ao porão. Eles saíram, com a permissão dos comandantes russos, para cavar duas covas para enterrar cinco corpos. Quando os corpos foram trazidos, "os russos abriram fogo naquela direção de um Tigr [um veículo militar russo]". Eles tiveram que se refugiar nos buracos onde estavam os cadáveres. Um ficou ferido na perna. "Os russos costumavam nos escoltar, mas não o fizeram lá", diz ele.

No entanto, os militares russos também os deixaram cozinhar do lado de fora e ir ao poço buscar água. E eles roubaram os animais, mas depois deram a eles uma parte depois de sacrificá-los . Alguns até compartilharam suas rações militares com eles, cujos restos podem ser vistos no porão (os soldados russos estavam no andar de cima). Eles também não estavam com muita fome. Comiam mingaus típicos da região ou legumes. Os soldados russos escoltaram os dois líderes não oficiais - que atuaram como representantes e interlocutores perante os comandantes - até suas casas para recolher alimentos e roupas. "Eles receberam 30 minutos", lembra Nina.

Nina, 68, conta seus dias no porão. (FREDERICO QUINTANA)

As tropas russas tinham uma lista com os nomes e sobrenomes de todos. "E eles nos disseram que se um deles escapasse, o resto teria muitos problemas", diz Nina. Sem telefones, jornais, rádio ou televisão, eles ignoravam o curso da guerra. “Nós não sabíamos o que estava acontecendo em Kiev, em Chernihiv... Eles nos disseram que nosso governo estava prestes a cair e nosso país estava em sério perigo. E o tempo todo, aquela Ucrânia era pobre e eles vinham para libertá-la”, acrescenta.

O Yanko, de vinte e poucos anos ou mais, conversou com eles várias vezes, quando dividiam cigarros ou iam ao banheiro. “Eles se gabavam de ter tomado Mariupol , Kiev, Kherson [só a última era verdade]… 'Chernihiv nós quase temos', eles disseram. 'O Batalhão Azov chegou, mas nós imediatamente acabamos com eles também. Seu [Volodymyr] Zelensky deixou a Ucrânia e [Vladimir] Putin virá reconstruí-la.' Disseram-me que não tinham nada contra nós, que só queriam lutar contra o Batalhão Azov , os nazistas e Stepan Bandera”, fundador da Ucrânia independente e colaborador da Alemanha hitlerista que morreu em 1959. “Falaram de Stepan Bandera como se estivesse ao vivo. Eu não entendi nada".

Antonio Pita (enviado especial), autor desta reportagem, é Editor da seção Internacional e responsável pela cobertura de vários países balcânicos. Passou nove anos como correspondente em Rabat, Paris e Jerusalém, principalmente na Agencia Efe. Licenciado em Jornalismo e Mestre em Relações Internacionais e Comunicação pela Universidade Complutense de Madrid. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 20.04.22

Ocidente promete armas à Ucrânia, em meio a avanços russos

Moscou renova ultimato para rendição de soldados ucranianos em Mariupol. Líderes ocidentais se comprometem a enviar novas remessas de armamentos a Kiev. Tropas russas intensificam ataques, na nova fase da invasão

A Rússia renovou o ultimato para que os combatentes ucranianos na cidade de Mariupol se rendam e deponham as armas, enquanto suas tropas intensificavam os ataques no leste do país nesta terça-feira (19/04). Em meio ao recrudescimento da ofensiva russa, líderes ocidentais prometeram reforçar o envio de armamentos a Kiev.

Milhares de soldados russos, apoiados por ataques de artilharia e de mísseis, avançaram em diversas regiões no leste ucraniano.

Tropas russas tomaram a cidade de Kreminna, a primeira a cair desde o início da nova fase da invasão russa. A localidade de 18 mil habitantes fica no entorno de Lugansk, uma das duas províncias separatistas na região de Donbass.

As tropas invasoras continuam a cercar as forças defesa ucranianas no complexo siderúrgico Azovstal, o último bastião da resistência em Mariupol. Com a aproximação do fim do prazo dado por Moscou para que os soldados ucranianos se rendessem, o Kremlin anunciou uma ampliação do ultimato até esta quarta-feira.

O Ministério da Defesa da Rússia informou que nenhum soldado ucraniano se entregou até o momento em Mariupol, motivo pelo qual decidiu dar mais tempo para uma possível rendição. Entretanto, os comandantes da resistência ucraniana prometeram que não vão desistir.

O cerco a Mariupol teve início nos primeiros dias da invasão russa. Dezenas de milhares de pessoas ainda estão presas na cidade, sem acesso a água ou alimentos. O governo ucraniano afirma que mais de 20 mil pessoas morreram em razão dos intensos bombardeios.

O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, disse que a situação em Mariupol é a pior possível, e acusou a Rússia de bloquear todas as tentativas de organizar corredores humanitários para permitir a retirada de civis.

O ministro russo da Defesa, Serguei Shoigu, disse que Moscou avança "metodicamente" em seus planos para "liberar" as províncias de Lugansk e Donetsk. Moscou exige que o domínio dessas duas regiões seja entregue aos grupos separatistas que realizam uma insurgência em Donbass desde 2014.

Kharkiv, a segunda maior cidade do país, também foi atingida por bombardeios nesta terça-feira. Autoridades locais disseram que os ataques, que destruíram edifícios residenciais e outras estruturas, mataram ao menos quatro pessoas e feriram outras 14.

Ocidente promete reforçar ajuda militar

Após uma reunião por videoconferência entre os líderes de diversas nações ocidentais, os Estados Unidos, o Reino Unido e o Canadá prometeram enviar à Ucrânia novas remessas de armamentos para reforçar as defesas do país.

"Continuaremos a fornecer mais munição, enquanto enviamos mais assistência militar", disse a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki. Ela afirmou ainda que novas sanções contra Moscou estão sendo preparadas.

O presidente americano, Joe Biden, deve anunciar nos próximos dias um novo pacote de ajuda militar semelhante ao da semana passada, no valor de 800 milhões de dólares.

A Alemanha se comprometeu a enviar sistemas de defesa antitanque e antiaérea, além de financiar compras de armamentos por parte do governo ucraniano.

Zelenski, no entanto, criticou a demora dos países ocidentais em fornecer ajuda ao país. "É injusto que a Ucrânia tenha que pedir armamentos que estão encostados há anos nos depósitos de nossos parceiros", afirmou. rc (Reuters, DPA)

Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, em 20.04.22

'Sou cuidadora e não tenho quem cuide dos meus filhos': 3 milhões de crianças não têm vaga no ensino infantil

As creches que nunca saíram do papel, desamparando milhares de famílias brasileiras

Falta de vagas em creches e pré-escolas prejudica formação infantil, possibilidade de mulheres trabalharem e renda das famílias (Getty Images)

"Sou uma trabalhadora doméstica explorando outra doméstica."

Assim Valdirene Boaventura Santos, de 39 anos e moradora de Salvador, resume uma situação que para ela é desconfortável.

Cuidadora de idosos há oito anos e antes disso babá, arrumadeira e cozinheira, Valdirene passou a vida toda cuidando das casas e das famílias de outras pessoas.

Ela cria sozinha três filhos, de 16, 5 e 4 anos, e não consegue vaga em creche e pré-escola públicas para os mais novos no seu bairro.

As dificuldades são compartilhadas por mais de 3 milhões de crianças brasileiras que não têm vaga na educação infantil, ciclo que vai de 0 a 6 anos e é garantido como um direito pela Constituição nacional. Sem vagas, muitos pais recorrem à Justiça (veja como mais adiante neste texto).

"Na minha comunidade, tem um centro de educação infantil, chamado Olga Benário. Eu inscrevi meus filhos desde cedo, mas toda vez somos sorteados para outros bairros", conta Valdirene, que entra no serviço às 8h e sai às 17h, o que inviabiliza para ela o deslocamento para bairros vizinhos. A família vive em Doron, a cerca de 10 km do centro histórico da capital baiana.

A trabalhadora doméstica chegou a matricular os filhos numa creche comunitária, pelo projeto Mais Infância do governo estadual. Pagava R$ 200 por criança, mas enfrentava problemas frequentes, como falta de professores, de água e de luz, que interrompiam as aulas.

"A gente que é trabalhadora doméstica não tem como justificar para o patrão que não vai trabalhar porque não tem ninguém para ficar com nosso filho", diz Valdirene.

Durante a pandemia, pagando sem as crianças poderem frequentar, optou por tirá-las da creche comunitária. Agora, enquanto segue aguardando vaga na rede pública, Valdirene deixa os filhos com uma vizinha, que cuida na própria casa de seis crianças.

'A gente que é trabalhadora doméstica não tem como justificar para o patrão que não vai trabalhar porque não tem ninguém para ficar com nosso filho', diz a cuidadora de idosos Valdirene Boaventura Santos

"É uma situação desconfortável, sou uma trabalhadora doméstica, conheço meus direitos como trabalhadora, luto em prol desses direitos, mas 'casa de ferreiro, espeto de pau'", diz Valdirene, que é secretária de assuntos jurídicos do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico).

Com seu salário de cuidadora de idosos de pouco mais de R$ 1.200 e R$ 120 de auxílio do Programa Primeiro Passo, da prefeitura de Salvador para ajuda às mães que não conseguem vaga na educação infantil, ela diz que não teria condições para assinar a carteira e pagar um salário mínimo pelo cuidado dos filhos. Também não poderia pagar por uma pré-escola privada.

Um problema que afeta a renda das mulheres

O Instituto Rui Barbosa, organização ligada aos Tribunais de Contas dos Estados, estima que o Brasil precisaria criar pelo menos 3,4 milhões de vagas na educação infantil para cumprir as metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação (PNE).

Por essas metas, todas as crianças de 4 e 5 anos deveriam estar na pré-escola até 2016 e 50% dos pequenos de 0 a 3 anos deveriam ter acesso à creche até 2024.

A pandema deixou o Brasil ainda mais distante desses objetivos, com mais de 650 mil crianças de até 5 anos tendo deixado a escola entre 2019 e 2021, segundo o Censo Escolar 2021, divulgado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).

Embora agravado pela pandemia, o problema do baixo acesso das crianças mais novas à educação não é novo. Ele dificulta que milhares de mulheres possam trabalhar em tempo integral, garantindo uma renda maior para suas famílias.

Tays Aparecida Alves Fazzio, de 30 anos e moradora de Araquari, em Santa Catarina, enfrentou dificuldades para conseguir vaga em creche para seus dois filhos.

Tays deixou o emprego devido ao horário restrito das creches públicas em sua cidade e agora trabalha em casa de babá, cuidando do próprio filho e de outra criança

Para a mais velha, hoje com 8 anos, só conseguiu vaga após acionar o conselho tutelar de sua cidade — ela morava então em Bauru, no interior de São Paulo.

A educação infantil é um direito da criança garantindo pela Constituição. Dos 0 aos 3 anos, a matrícula em creche é opcional, já a inscrição na pré-escola para crianças de 4 e 5 é obrigatória. Em caso de falta de vagas tanto na creche, como na pré-escola, os pais podem acionar o Conselho Tutelar ou a Defensoria Pública, como fez Tays com sua filha mais velha.

Para o mais novo, atualmente com 5 meses, o problema é o horário das creches em Araquari: das 7h às 13h para o turno da manhã ou 12h às 18h para o período da tarde.

"Para mim não compensava, eu tive que pedir a conta do serviço e agora estou cuidando de uma criança além dele, trabalhando em casa, de babá", conta Tays.

Formada em pedagogia e antes trabalhando com telemarketing, ela viu sua renda reduzida aos R$ 400 que ganha atualmente pelo trabalho de babá, mais uma pensão de R$ 600 que a filha mais velha recebe pelo fato de seu pai ser falecido. Tays conta da dificuldade que foi para ela deixar o emprego para ficar em casa.

"Para mim foi difícil, eu tinha planos de tentar concurso e sempre trabalhei fora, eu trabalho desde os meus 12 anos. Foi bem complicado, de repente ter que abrir mão e ficar em casa, mesmo gostando de cuidar de criança por ser pedagoga formada. Mas se eu tivesse que pagar alguém para ficar com eles, seria pagar para trabalhar, não ia sobrar quase nada."

Uma rede de cuidado informal

Diante da falta de vagas para todos, mulheres como Tays e a vizinha de Valdirene suprem a necessidade de cuidados para milhares de crianças, principalmente nas periferias.

Isso porque, além de insuficiente, a oferta de creches e pré-escolas é muito desigual.

Conforme o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021, do Todos pela Educação, 54% das crianças de 0 a 3 anos dos domicílios mais ricos do país estavam matriculadas em creches em 2019, contra apenas 28% das mais pobres. Entre as crianças de 4 e 5 anos, os percentuais eram de 98% e 93% para ricos e pobres na pré-escola, respectivamente, segundo esse cálculo.

Por regiões, enquanto os números de matrículas em creches chegavam a 44% no Sul e Sudeste, eram de apenas 33% no Nordeste, 30% no Centro-Oeste e 19% na região Norte do país.

Vitória de Andrade Lourenço, de 18 anos, cuida de crianças desde que ela mesma era pouco mais do que uma, aos 14 anos.

Ela seguiu os passos da mãe, Sueli, que cuidou de crianças em Heliópolis, bairro de baixa renda da zona sul de São Paulo, durante anos, até deixar a atividade devido a uma dor no braço que a impede de cuidar de crianças menores.

Vitória de Andrade Lourenço, de 18 anos, cuida de crianças desde os 14, seguindo os passos da mãe

Atualmente, Vitória toma conta de apenas um menino de 3 anos, mas já chegou a cuidar de quatro crianças ao mesmo tempo. Em alguns casos, ela busca os pequenos na creche e fica com eles até os pais voltarem do trabalho.

"Também tem criança que não vai para a creche e aí fica comigo o dia todo", diz Vitória.

Com seu trabalho de cuidadora, Vitória possibilita a outras mulheres trabalharem. Mas ela mesma sonha com um trabalho mais bem remunerado.

"Eu gostaria muito de encontrar um serviço fixo. Eu gosto de cuidar de criança, mas não é um trabalho com estabilidade e um salário mínimo às vezes te deixa na mão", conta.

Quando cuidava de quatro crianças, Vitória chegou a fazer R$ 800 por mês. Agora, com uma só, recebe R$ 250, que complementam a pensão recebida pela mãe, após o falecimento do pai. Com a irmã desempregada, essas são as únicas fontes de renda da família.

Vitória gostaria de trabalhar na área da beleza, com design de sobrancelhas, o que daria a ela a possibilidade de ter um negócio próprio. Ela diz que também pensa em voltar a estudar.

"Eu penso bastante nisso, queria fazer pedagogia para trabalhar em creche, mas por enquanto está um pouco apertado. Tenho que ajudar em casa e nem todo curso é de graça, alguma coisa eu teria de pagar... Mas eu quero muito", afirma.

'Educação infantil beneficia a sociedade como um todo'

Segundo especialistas em educação, apesar do carinho e dedicação das mulheres que cuidam de crianças informalmente, esse cuidado não substitui a educação em instituições de ensino.

Mais do que um lugar para deixar as crianças pequenas, as creches e pré-escolas têm papel fundamental na formação infantil, na igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e no combate à pobreza, já que a possibilidade de as mulheres trabalharem aumenta a renda das famílias.

'90% do desenvolvimento da criança acontece na primeira infância', diz Mariana Luz, da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal

"90% do desenvolvimento da criança acontece na primeira infância. Ela desenvolve as habilidades físicas e motoras — engatinhar, caminhar, dar tchau na fase certa —, mas há também o desenvolvimento cognitivo e sócio-emocional", explica Mariana Luz, diretora da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, organização com foco na primeira infância.

"O primeiro diz respeito à capacidade de aprendizagem, de absorção de conhecimento e criativa. O segundo, a habilidades que serão úteis para toda a vida, como trabalhar em equipe, lidar bem com o estresse, ter habilidades de comunicação. Tudo isso, que são capacidades muito demandadas hoje no mercado de trabalho, se forma na primeira infância", acrescenta.

Segundo Mariana, uma boa educação infantil aumenta a capacidade da criança de aprender ao longo de toda sua jornada educacional.

A educação infantil de qualidade também tem reflexos positivos na saúde pública, com melhora na nutrição das crianças, e na segurança pública, pois crianças mais bem desenvolvidas teriam menor probabilidade de sofrer aliciamento pelo crime.

"No longo prazo, uma boa formação inicial pode resultar em maior renda para a criança ao longo de toda sua vida, com benefícios para a geração futura e a quebra dos ciclos intergeracionais de pobreza", diz a especialista.

Procurado, o Ministério da Educação não respondeu a pedido de posicionamento da BBC News Brasil.

Por Thais Carrança - @tcarran, da BBC News Brasil em São Paulo -  19 abril 2022

terça-feira, 19 de abril de 2022

O sol e a República

A coisa pública tem sido opacificada por deliberada obscuridade. O lema hoje parece ser: governar é omitir, julgar é esconder, legislar é ocultar.

A boa e velha sabedoria da Roma Antiga, farol civilizatório do mundo a partir do século VII a.C., entronizou em seu panteão a deusa Justiça como réplica latina da helênica Dice, com uma diferença que se afirmaria como ícone para a posteridade: a simbolizar a imparcialidade, permanecia a divindade de olhos vendados, a tornar claro que não importava quem se estava a julgar. A mensagem era clara: todos são iguais perante a lei. No entanto, a Justiça deveria, ela mesma, estar sempre iluminada pela luz do sol, escrutinada pelos cidadãos e isenta de segredos e decisões cabulosas tomadas nas sombras do hermetismo.

A regra da transparência atravessou os séculos e enraizou-se nos atos e ritos dos assuntos de Estado, passíveis de documentação para conferência dos órgãos controladores e do povo. O Brasil é um dos países com maior incidência solar no planeta, mas a claridade exigida dos atos relativos à res publica, a coisa pública, tem sido opacificada por deliberada obscuridade. O lema dos dias que correm parece ser: governar é omitir, julgar é esconder, legislar é ocultar. Por isso que aos cidadãos têm sido sonegadas as mais ínfimas informações acerca de decisões relativas a temas que, por natureza, são públicos e só excepcionalmente, em atenção à defesa do Estado, devem ser resguardados em sigilo, e apenas por um período que seja razoável.

Nestes tempos estranhos em que são frequentes ações voltadas a nublar a luz do sol, até o Legislativo, o mais transparente dos Poderes, engendrou um “orçamento secreto” que oculta o nome de parlamentares beneficiados em 2020 e 2021 pelas chamadas emendas de relator – mecanismo esotérico pelo qual milhões de reais dos cofres públicos são destinados a obras e serviços sem que se saiba qual parlamentar se beneficia da transferência em troca de apoio ao Executivo.

A exigida ética na condução da coisa pública tem sido trapaceada. Coube, recentemente, ao Supremo Tribunal Federal (STF) levantar o sigilo imposto à tramitação de processos administrativos instaurados pelas agências de Transportes Terrestres e Aquaviários para apurar infrações de concessionárias de serviço público. Na aparência, todos querem esconder algo. Por dá cá essa palha, processos e até inquéritos têm sido cobertos pelo segredo de Justiça – em afronta aos incisos IX e X do art. 93 da Constituição, segundo os quais “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” e “as decisões administrativas dos tribunais serão motivadas e em sessão pública (...)”. Excepcionalmente, poderá ser limitada “em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

No âmbito do Executivo, interesse público passou a ser interesse dos governantes. Assumiu foros de cabala a negativa de acesso à imprensa ao processo administrativo que culminou com a impunidade do general Eduardo Pazuello por participação em comício político do presidente da República. O Regulamento Disciplinar do Exército proíbe militar da ativa de se manifestar publicamente, “sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. A sibilina alegação foi de que a Lei n.º 12.527/2011, que regula o acesso à informação, restringe a divulgação de informações pessoais – e a mordaça corporativa recebeu o sinete secular de ultrassecreta, equiparada a episódios da Guerra do Paraguai, encerrada em 1870, ainda hoje resguardados para evitar fricções com o país vizinho. Apequenam-se os homens, avilta-se a República.

Promulgada em substituição a normas similares que disciplinavam segredos de Estado, a Lei n.º 12.527/2011 seguiu antigo padrão internacional de resguardo de assuntos sensíveis cuja divulgação ainda possa comprometer a segurança nacional ou trazer à tona fatos históricos embaraçosos. Um mérito adicional da nova legislação foi funcionar, também, como chave de acesso para informações de interesse público que não estejam classificadas como secretas, e desse mecanismo tem se valido a imprensa para divulgar com foros de revelação o que já deveria ser público.

No clássico desvio de finalidade que corrompe boas intenções, sabe Deus se as informações fornecidas são fidedignas – suspeita que nasce da resistência de autoridades em revelar determinados dados, como os gastos do cartão corporativo da Presidência da República. Se, no passado, um ministro perdeu o cargo por comprar tapiocas com tal cartão, as instituições fiscalizadoras da República têm o dever de obrigar o presidente a explicar em que gastou secretamente R$ 43,5 milhões nos três anos de seu governo.

Desconfiando, como Hamlet desconfiou de que algo cheirava mal no reino da Dinamarca, vale invocar sempre a atemporal constatação de Louis Dembitz Brandeis, juiz da Suprema Corte americana de 1916 a 1939: “A luz do sol é o melhor desinfetante”.

José Roberto Batochio, o autor deste artigo, é advogado criminalista. Foi Presidente Nacional da OAB e Deputado Federal pelo PDT-SP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 19.04.22

A LDO e o legado da devastação

Contas esburacadas, dívida em alta e atividade medíocre compõem os cenários oficiais dos próximos três anos, conforme se lê no projeto da LDO de 2023

Baixo crescimento, baixo consumo, contas esburacadas e dívida crescente compõem a herança prometida ao próximo governo pelo presidente Jair Bolsonaro, embora seu ministro da Economia, Paulo Guedes, tente enfeitar o legado sinistro. O desastre continuado está previsto nos cenários de referência do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023. Nos próximos dois anos o poder central ainda fechará seu balanço com déficit primário, isto é, com gastos maiores que a arrecadação, sem contar o custo da dívida pública. Com isso serão completados dez anos de contas primárias em vermelho. O desarranjo iniciado na gestão da presidente Dilma Rousseff deverá prosseguir até a metade do novo mandato presidencial, se as projeções estiverem corretas. Não só pelos números da inflação, mas também pela condução geral da economia, a gestão bolsonariana continua emulando a da fase final do petismo.

Sem sair do atoleiro, a economia brasileira crescerá apenas 2,5% em cada um dos próximos três anos, segundo as projeções divulgadas com o projeto da LDO. O Brasil continuará, nesse caso, em descompasso com os emergentes mais dignos dessa classificação. Além disso, ainda avançará em ritmo abaixo da média mundial, superior a 3% ao ano, segundo estimativas de organizações internacionais. Mas o crescimento apontado para a produção brasileira pode embutir algum otimismo. Fora da administração federal, a maioria das previsões continua indicando taxas inferiores a 1%, em 2022, e nada, por enquanto, parece justificar a expectativa de expansão em torno de 2,5% a partir de 2023.

A inflação diminuirá para 3,3% no próximo ano e chegará ao centro da meta, de 3%, nos dois anos seguintes, mas a taxa básica de juros continuará elevada, com taxas previstas de 10%, 7,7% e 7,1%. O Banco Central (BC) deverá continuar batalhando – essa é a expectativa implícita – para conter a alta de preços no próximo período presidencial. Esse esforço poderá produzir algum efeito contra o surto inflacionário, mas será um entrave à retomada econômica e, além disso, continuará afetando severamente os custos do Tesouro.

As contas primárias permanecerão esburacadas, com déficit de R$ 65,91 bilhões no próximo ano, nas finanças do poder central. O buraco poderá diminuir para R$ 27,89 bilhões em 2024. Em 2025 poderá surgir um superávit primário de R$ 33,70 bilhões, equivalente a 0,28% do Produto Interno Bruto (PIB). A dívida bruta do governo geral aumentará de 79,64% do PIB em 2023 para 80,29% em 2024. Essa porcentagem deverá ser mantida em 2025, porque o ressurgimento do superávit primário permitirá a imposição de algum controle ao endividamento.

Mesmo com alguma expansão dos negócios e da arrecadação, esse controle dependerá, naturalmente, da disposição de quem comandar o Executivo e do grau de influência do Centrão nas decisões sobre as finanças públicas. Hoje o Centrão opera tanto no Congresso quanto no Executivo, onde comanda a Casa Civil e exerce, com apoio presidencial, o poder de liberar despesas, até contra a opinião do ministro da Economia.

Credores do Tesouro continuarão sujeitos ao calote determinado pelas Emendas Constitucionais 113 e 114, aprovadas em 2021. Essas emendas permitem ao Executivo limitar o pagamento de dívidas correspondentes a precatórios, sem reconhecimento pleno, portanto, de ordens judiciais. Antes dessas emendas, o poder central deveria liquidar todos os precatórios oficializados em cada exercício. Agora há limites e prioridade para os compromissos de menores valores.

As projeções oficiais apontam, portanto, mais dois anos de rombos primários, dívida em expansão e manutenção do calote dos precatórios. Metas de inflação, superávit primário e câmbio flexível compuseram o tripé desenhado depois do Plano Real. Aprovada no ano 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal complementou essas diretrizes, desmoralizadas no final da gestão petista e revalorizadas temporariamente na gestão do presidente Michel Temer. A devastação dessas normas é parte da herança do atual mandato.

Editorial - Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 19 de abril de 2022 | 03h00

Putin mira inimigos em casa enquanto seus mísseis atingem a Ucrânia

Governo russo tem incluído dezenas de críticos do Kremlin no registro de ‘agentes estrangeiros’, em táticas que têm tido sucesso na erosão das liberdades civis no país


Presidente Vladimir Putin a centro de lançamento espacial de Vostochny , em 12 de abril  Foto: MIKHAIL KLIMENTYEV / AFP

REUTERS - Muito antes da invasão da Ucrânia por Vladimir Putin e das detenções em massa de manifestantes russos protestando pela paz, o Kremlin já estava sufocando a dissidência – com uma burocracia asfixiante.

(Novo carregamento de armas americanas chega à fronteira da Ucrânia)

Em 2021, o Kremlin apertou os parafusos sobre dissidentes – incluindo apoiadores do líder da oposição preso, Alexei Navalni, usando uma combinação de prisões, censura e listas de pessoas perseguidas. A repressão acelerou depois que a Rússia invadiu a Ucrânia. Agora, uma análise da agência Reuters e entrevistas com dezenas de pessoas mostram o sucesso dessas táticas na erosão das liberdades civis.

Uma arma utilizada no arsenal do Kremlin é o registro de “agentes estrangeiros”. As pessoas cujos nomes aparecem nesta lista são monitoradas de perto pelas autoridades. Entre elas está Galina Arapova, advogada que dirige o Centro de Defesa dos Meios de Comunicação de Massa, ONG que defende a liberdade de expressão com sede em Voronezh, no oeste da Rússia.



O Ministério da Justiça declarou Arapova, de 49 anos, uma “agente estrangeira” em 8 de outubro. Ela não foi informada sobre o motivo. A designação traz um escrutínio da vida cotidiana de Arapova e uma montanha de burocracia. Ela deve apresentar um relatório trimestral ao Ministério da Justiça detalhando suas receitas e despesas, incluindo idas ao supermercado. O relatório possui 44 páginas. A Reuters revisou um desses relatórios.

A cada seis meses, os “agentes estrangeiros” devem prestar contas ao ministério de como passam seu tempo. Alguns aposentados listam suas tarefas domésticas. Arapova afirma em seu relatório que trabalha como advogada, sem saber se está fornecendo detalhes suficientes.

Ela oferece aconselhamento jurídico a outros “agentes estrangeiros”, mas diz que muitas vezes não sabe o que as regras exigem. Ela imprime e envia o relatório para o ministério, com as páginas cuidadosamente grampeadas. Se faltar uma página ou o relatório chegar atrasado, ela pode ser multada. Violações repetidas podem levar a processos e até 2 anos de prisão.

A Reuters enviou perguntas detalhadas ao Kremlin, ao Ministério da Justiça e a outras agências russas sobre as regras impostas aos “agentes estrangeiros”. Ninguém fez qualquer comentário.

A dissidência na Rússia

Bandeiras georgianas e ucranianas em Tbilisi, Geórgia, onde 20 mil russos chegaram desde o início da guerra na Ucrânia, 12 de março de 2022

Pressionados por Putin e por sanções, russos vão para o exílio em busca de opções

Milhares de russos viram suas vidas confortáveis de classe média desaparecer da noite para o dia com a invasão da Ucrânia

Dissidência interna sobre liderança de Putin cresce com falta de resultados militares na Ucrânia

Fracassos da campanha de Putin se evidenciam no número estarrecedor de comandantes militares graduados que, acredita-se, foram mortos em combate

Perseguidos por Putin, jornalistas russos tentam manter cobertura do exterior

Repressão da mídia na Rússia que se seguiu à invasão da Ucrânia dizimou uma comunidade jornalística já quase extinta por anos de opressão

A burocracia não para por aí. As pessoas consideradas “agentes estrangeiros” devem constituir uma entidade legal, como uma Sociedade de Responsabilidade Limitada. Ela também é adicionada à lista de “agentes estrangeiros” e deve relatar suas atividades às autoridades.

O processo envolve encontrar instalações para registrar uma pessoa jurídica, elaborar selos e assinaturas eletrônicas, enviar documentos ao serviço fiscal e abrir uma conta bancária da empresa. A empresa tem de passar por auditorias anuais. Mas, como explica Arapova, os auditores não gostam de clientes com status de “agente estrangeiro”, e quem faz o trabalho costuma cobrar muito.

Ela estima que o cumprimento dos requisitos até agora lhe custou cerca de € 1.000. As despesas serão adicionadas a essa soma quando sua Sociedade de Responsabilidade Limitada passar por uma auditoria. Ainda mais caro é o tempo infinito gasto para atender aos requisitos.

“Isso tira tempo do meu trabalho e causa muito estresse psicológico”, disse ela. “Quando você é forçado a fazer esse tipo de coisa burocrática e humilhante sem sentido, é uma espécie de tortura psicológica.”

Tortura

E esse, dizem analistas, é o objetivo do Kremlin. Esses registros, segundo Ben Noble, professor de política russa na University College London, são “parte de um projeto mais amplo, que envolve agir contra indivíduos que criticam o governo e tentar impedir as pessoas de se envolverem com a oposição e intimidar o jornalismo crítico e independente, enquadrados como traidores.” “A repressão que estamos vendo agora é uma escalada espetacular de tendências já em evidência nos últimos anos”, disse Noble.

A Reuters entrou em contato com 76 pessoas da lista de “agentes estrangeiros” compilada pelo Ministério da Justiça e publicada em seu site. Sessenta e cinco responderam a uma série de perguntas sobre como a designação as afetou. Essas pessoas incluem jornalistas, aposentados, ativistas e artistas. Todos críticos do Kremlin.

Os entrevistados, todos cidadãos russos, negaram trabalhar para uma potência estrangeira. A maioria disse que não recebeu nenhuma explicação para sua inclusão na lista. Vários perderam o trabalho ou foram forçados a mudar de emprego. Outros disseram que deixaram a Rússia, pois não se sentiam mais seguros.

Dezenas disseram que reduziram sua atividade de mídia social porque tudo o que publicam, até mesmo postagens pessoais, devem conter um aviso de 24 palavras que os identifica como um “agente estrangeiro”.

Economia russa começa a rachar com peso de sanções

As sanções aplicadas por países ocidentais começam a impactar a economia russa. O risco de uma moratória da dívida se agrava e a inflação ameaça disparar.

Desde a invasão da Ucrânia, pelo menos cinco pessoas registradas disseram que foram brevemente detidas por envolvimento em protestos contra a guerra ou durante a realização de reportagens relacionadas à guerra.

Muitos críticos acusam Putin de trazer de volta a repressão ao estilo da era soviética. O Kremlin diz que está aplicando leis para impedir o extremismo e proteger o país do que descreve como influência estrangeira maligna.

Lista em expansão

Quando se trata da Ucrânia, Putin diz que está realizando uma “operação especial” que não é projetada para ocupar território, mas para destruir as capacidades militares de seu vizinho do sul, para “desnazificá-lo” e impedir o genocídio contra os falantes do russo, especialmente no leste do país. A Ucrânia e seus aliados ocidentais chamam isso de pretexto infundado para uma guerra com o objetivo de conquistar um país de 44 milhões de pessoas.

A lei dos “agentes estrangeiros” foi introduzida em 2012 e destinada a ONGs politicamente ativas que recebiam financiamento do exterior. A atividade política pode abranger trabalho jurídico e de direitos humanos ou jornalismo, disse Arapova.

A lei evoluiu para abranger um número cada vez maior de grupos e pessoas. Em 2017, o Ministério da Justiça da Rússia começou a designar os meios de comunicação como “agentes estrangeiros”. Em dezembro de 2020, as autoridades usaram a designação de uma nova maneira – rotularam indivíduos como “agentes estrangeiros” pela primeira vez.

Veronika Katkova, uma aposentada de 66 anos, que monitora as eleições para a organização de direitos de voto Golos, na região russa de Oriol, ao sul de Moscou, foi adicionada à lista no final de setembro de 2021. Isso foi logo após as eleições parlamentares que a oposição disse terem sido manipuladas em favor do partido Rússia Unida, de Putin.

Jornalista russa protesta durante transmissão ao vivo de telejornal do Chanel One , em 15 de março Foto: EFE

A Golos alegou que houve violações generalizadas na votação, o que o Kremlin negou. Katkova acredita que foi rotulada como “agente estrangeira” por causa de seu envolvimento com a Golos. As autoridades russas não responderam a perguntas sobre o assunto.

Como “agente estrangeira”, ela reporta trimestralmente todas as suas despesas ao Ministério da Justiça, incluindo alimentação, remédios e transporte, e a cada seis meses reporta suas atividades, como limpar a casa e cozinhar. Em janeiro, ela esqueceu de adicionar a um post o aviso sinalizando sua designação de agente estrangeira. O regulador de comunicações do país abriu um processo contra ela, que pode levar a uma multa.

Lyudmila Savitskaya, jornalista freelancer da região de Pskov, na Rússia, que faz fronteira com os Estados bálticos e uma das primeiras pessoas a serem adicionadas à lista, em dezembro de 2020, disse que a designação lhe deixou sem privacidade. “O Estado sabe tudo o que faço, como são minhas contas bancárias e despesas, onde vou e quais medicamentos compro.”

Trinta pessoas da lista disseram à Reuters que deixaram a Rússia. A jornalista Yulia Lukyanova, de 25 anos, é uma delas. Ela agora vive na capital da Geórgia, Tiblisi, onde muitos outros russos dissidentes estão se estabelecendo.

Os russos podem ficar na Geórgia, uma ex-república soviética, por até um ano sem visto. Mas alguns georgianos se ressentem de sua presença, com as memórias da invasão russa de 2008 ainda frescas. Lukyanova compartilhou uma foto de um adesivo antirrusso que, segundo ela, apareceu em sua rua. Mostra uma boneca matrioshka com dentes afiados. Ela acredita que os georgianos temem que, se seu país abrigar russos dissidentes, possa se tornar um alvo do Kremlin.

Lukyanova se opõe à guerra da Rússia na Ucrânia. “Eu não quero que as pessoas sejam enviadas para lutar em uma guerra que não escolheram, sejam presas por protestar contra ela ou realizar reportagens a respeito como jornalistas.”

Avanços e contraofensiva

(Rússia ataca bases em Lviv enquanto soldados ucranianos negam rendição em Mariupol)

Elizaveta Surnacheva, de 35 anos, jornalista de Moscou, mudou-se para Kiev em março de 2020, depois para Tiblisi e, finalmente, para Riga. Seu marido ucraniano, que está em idade de lutar, ficou na Ucrânia.

“É muito assustador”, disse Surnacheva. “Mesmo nos meus piores pesadelos, não podia imaginar que estaria discutindo com meu marido qual cobertor o protegeria melhor dos fragmentos do espelho do banheiro se ele se protegesse lá em uma explosão. Meu sonho agora é voltar para uma Ucrânia livre e ajudar a reconstruir Kiev e nossa vida lá.”

Ela continuou a adicionar o aviso de agente estrangeira em suas postagens nas mídias sociais, mesmo depois de deixar a Rússia, pois queria poder ir para casa visitar seus pais. Mas isso mudou em 24 de fevereiro, quando as tropas russas entraram na Ucrânia e a repressão de Putin contra seus oponentes domésticos se intensificou.

Agora Surnacheva e pelo menos 20 “agentes estrangeiros” entrevistados pela Reuters dizem que temem retornar à Rússia e serem presos ou perseguidos. “Tomei a decisão de não seguir mais nenhuma dessas regras de ‘agente estrangeiro’”, disse. “Está claro para mim que não irei à Rússia nos próximos anos.”

Processos

Outros enfrentaram consequências após serem acusados de não cumprirem as exigências da lei para agentes estrangeiros. Pelo menos nove pessoas da lista disseram que foram multadas ou tiveram processos abertos contra elas. A multa financeira pode chegar a 300 mil rublos (US$ 3,6 mil).

Como muitos outros, Arapova, a advogada de mídia, contestou sua inclusão no registro de “agentes estrangeiros”. Em uma audiência em fevereiro, ela soube que uma das razões para sua designação foi que ela recebeu financiamento estrangeiro – um pagamento de US$ 400 por falar em uma conferência na Moldávia sobre proteção de dados na Europa.

Lukyanova, a jornalista, recebeu uma explicação semelhante em seu recurso. Ela trabalhava para a Proekt, uma agência de notícias investigativa russa, cuja editora Project Media está registrada nos EUA. Isso significava que ela recebia salário estrangeiro.

Em 2021, o Ministério da Justiça declarou a Project Media uma organização “indesejável”, forçando-a a encerrar suas operações na Rússia. O cadastro de organizações “indesejáveis” começou com quatro nomes em 2015; agora, contém 53.

As pessoas que contestaram sua inclusão na lista de “agentes estrangeiros” também receberam outros motivos, como republicar conteúdo de outros “agentes estrangeiros” e transferir dinheiro de contas bancárias estrangeiras para suas contas russas. Até agora, ninguém conseguiu remover seu nome da lista.

‘Extremistas’

No início da manhã de 15 de fevereiro de 2019, policiais armados e agentes de inteligência invadiram a casa de Timofey Zhukov, em Surgut, uma cidade petrolífera no oeste da Sibéria. Eles o derrubaram no chão e começaram a revistar seus pertences.

Foi uma das pelo menos 20 batidas policiais em Surgut naquele dia. Ele disse que todos os alvos eram Testemunhas de Jeová, uma organização que havia sido banida na Rússia dois anos antes, depois que a Suprema Corte a considerou extremista. As autoridades russas argumentaram que a organização promove suas crenças como superiores a outras religiões.

Zhukov e seus companheiros de religião foram detidos para interrogatório e acusados de “continuar as atividades de uma organização extremista”, um crime que pode levar à prisão. As autoridades russas não responderam a perguntas da Reuters sobre o assunto.

Zhukov, que se formou como advogado, disse à Reuters que ele e os outros não fizeram nada ilegal. “A filial Surgut das Testemunhas de Jeová foi fechada após a proibição”, disse Zhukov. “Mas continuamos acreditando, independentemente de haver uma entidade legal”.

O caso de Zhukov ainda está tramitando nos tribunais. Mas seu nome já consta no registro de “terroristas e extremistas” e ele não pode viajar para fora da cidade sem permissão.

A lista de “terroristas e extremistas” tem crescido constantemente. No final de 2021, havia mais de 12.200 indivíduos e grupos no registro, um aumento de 13% em relação ao ano anterior.

 Por Lena Masri, da Reuters. TRADUÇÃO DE LÍVIA BUELONI GONÇALVES. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 19.04.22.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Arquitetura da impunidade

Indícios de desvios são abundantes. Se houve crime ou não, cabe à Justiça decidir, mas o fato é que Bolsonaro cultiva condições propícias ao florescimento da corrupção

   O presidente Jair Bolsonaro se jacta de não haver corrupção em seu governo. Mas, se não houve, ainda, condenação na Justiça, os indícios são abundantes.

Para ficar só no ano de 2021: o então ministro do Meio Ambiente foi acusado de dificultar a fiscalização ambiental e patrocinar interesses privados de madeireiros ilegais; o superintendente do Ministério da Saúde do Rio de Janeiro foi demitido após assinar contratos sem licitação para reformas dos prédios da pasta; o Ministério da Saúde firmou um compromisso de compra de vacinas por um preço 1.000% maior do que o anunciado pelo fabricante e seu ex-diretor de Logística foi acusado de pedir propina para autorizar a compra de vacinas. Em 2022, o Estadão revelou que dois pastores atuavam em nome do Ministério da Educação (MEC) para privilegiar municípios na distribuição de recursos; agora, vêm à tona indícios de compras com sobrepreço e improbidade na gestão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

A Justiça decidirá se nesses casos – assim como em relação aos indícios de peculato (“rachadinha”) de Bolsonaro e seus filhos no exercício de seus mandatos parlamentares – houve ou não crime. Mas desde já é demonstrável que há um modus operandi propício ao florescimento da corrupção.

Como apontou ao Estadão o economista Marcos Fernandes Gonçalves da Silva, desde 2016 a Lei Anticorrupção e o aumento do controle sobre as empresas dificultaram os megaescândalos que grassaram na gestão petista, como o mensalão e o petrolão. Hoje, “o que resta em termos de negociação para um governo fraco é a corrupção do varejo”.

A cultura do segredo está disseminada. O gabinete secreto do MEC espelha um outro, revelado na CPI da Pandemia: o do Ministério da Saúde. Em maio, o Estadão revelou que Bolsonaro e seus suseranos do Centrão maquinaram um orçamento secreto de bilhões em emendas parlamentares distribuídos às bases do governo.

Bolsonaro subverteu a lógica elementar da administração pública: a transparência, que deveria ser a regra, transformou-se na exceção. O governo tentou ampliar a discricionariedade de servidores para classificar documentos como sigilosos e instrui seus ministros a negar pedidos via Lei de Acesso à Informação. Na pandemia, a opacidade foi tanta que a imprensa criou um consórcio para garantir informações confiáveis.

Há indícios de aparelhamento em todos os principais órgãos de controle: da Polícia Federal à Agência Brasileira de Inteligência, Receita, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional ou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras.

Mas, além da corrupção em seu sentido estrito, como tipo penal, o estilo Bolsonaro de governar propicia a corrupção em seu sentido amplo de corrosão, erosão, desintegração. Para ele, “governar” é “mandar”, e quando distingue interesses de Estado, de governo e de família, é só para sobrepor os últimos aos primeiros. É a política do “filé para os filhos”.

Além da transparência, não há um só dos demais princípios da administração pública (impessoalidade, eficiência, moralidade e legalidade) que não tenha sido degradado. O mesmo vale para as tentativas de corroer os alicerces do Estado democrático, como o processo eleitoral ou a participação da sociedade civil.

Os indícios de disseminação de notícias falsas por um “gabinete do ódio” se acumulam e devem aumentar no ano eleitoral. Só em 2021, o presidente já questionou, sem provas, a integridade do sistema eleitoral, ameaçou ignorar os resultados das eleições e pediu a cabeça de dois ministros do Supremo Tribunal Federal. Ao mesmo tempo, após seu indicado Kassio Nunes Marques assumir sua vaga na Corte, declarou: “Hoje, eu tenho 10% de mim no STF”. Depois, disse que as indicações para o STF em 2023 importam mais que as eleições. O motivo é indisfarçável: blindar amigos e garantir vista grossa à intimidação de inimigos.

Reza a sabedoria popular que quem não deve não teme. Então, por que tanto afinco em institucionalizar uma cultura do segredo e interferir em órgãos de controle?

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 18 de abril de 2022 | 03h00

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Os eternos candidatos populistas

O atual embate a que o Brasil assiste lembra os estertores da República Romana, com o sangrento confronto entre Mário e Sila.

As eleições de outubro deste ano voltam a ter dois candidatos populistas, como ocorreu no segundo turno em 1989, entre Fernando Collor de Mello e Lula. Só que, desta vez, o radicalismo das legiões de fanáticos que seguem os dois notórios postulantes vai levar a campanha a níveis de baixeza nunca dantes experimentados.

Desde 1930, com a queda da Primeira República, houve sempre um líder populista que se apresentou como defensor do povo “contra os seus exploradores”. E estes “condutores do povo” sempre derrotaram os candidatos democráticos, civilizados, representados, primeiramente, pela antiga União Democrática Nacional (UDN), e que formulavam propostas coerentes para as grandes questões nacionais. Quem venceu o primeiro embate eleitoral entre essas duas forças foi o maior e mais longevo líder populista de nossa história, o ex-ditador Getúlio Vargas, à frente dos chamados queremistas; depois, por intermédio do seu preposto Eurico Gaspar Dutra, em 1946; e, novamente, por ele próprio, em 1951. Seguiram-se Juscelino Kubitschek, em 1956; Jânio Quadros, em 1961; Collor, em 1990; Lula, em 2003; sua preposta Dilma Rousseff, em 2011; e Jair Bolsonaro, em 2019.

Todos esses vitoriosos demagogos não têm nenhuma vocação democrática. Sempre estiveram e estão em busca de modelos autoritários na esquerda e na direita: Benito Mussolini, Hugo Chávez, Recep Erdogan, Fidel Castro, Viktor Orbán, Manuel Noriega, Juan Perón, Alberto Fujimori, Donald Trump, Vladimir Putin, etc.

Ocorre que no Brasil real estes ilusionistas do povo sempre se puseram a serviço do nosso secular patrimonialismo e corporativismo extrativista e predatório. A exceção foi Fernando Henrique Cardoso, na esteira do Plano Real. Foi o único presidente eleito com espírito público, que procurou modernizar o Estado, mas acabou entregando o poder, como os seus colegas populistas, ao arcaico e corrupto estamento político liderado pelo famigerado Centrão, coadjuvado por partidos falsamente oposicionistas.

O atual embate direto entre os nossos dois candidatos populistas lembra os estertores da República Romana, que nos anos 80 antes de Cristo experimentou o sangrento confronto eleitoral entre Mário e Sila, dois cônsules demagogos que se digladiaram pelo poder na Urbe. Essa disputa extremamente radicalizada levou à instauração da autocracia imperial, com a supressão da democracia romana, que havia se sustentado por quatro séculos (508 a.C. – 60 a.C.) na base da não reeleição para nenhum cargo (edil, pretor, tribuno, cônsul), do voto direto da cidadania e da supremacia da Assembleia democrática sobre o aristocrático Senado.

Descrevendo esses dois terríveis cônsules, Indro Montanelli (Storia di Roma) nos dá as características do líder populista: “Pessoa que tem o raro talento de conhecer os seres humanos e os meios de explorar, de forma fria e calculista, suas fraquezas e suas preferências”.

É exatamente isso. O político populista não tem nenhum compromisso, a não ser com o exercício do poder pelo poder e pelo doentio culto de sua personalidade. Faltam-lhe, sobretudo, caráter, ética, humanidade, amor ao próximo e preocupação com sua honra pessoal ou com os compromissos que falsamente assume perante o povo. Estes demagogos não têm noção do que sejam políticas públicas, permanentes ou de governo. Ao contrário, procuram, com discursos duais, encantar os eleitores apontando para inimigos imaginários: “nós e eles”, “o perigo comunista”, “a desagregação dos costumes”, etc. Procuram, sobretudo, incutir nos eleitores uma falsa sensação de que o povo partilha do poder, no permanente combate aos fictícios males que fantasiosamente apontam. Com um cínico discurso, praticam o estelionato eleitoral e político, enquanto formam uma legião que os segue, alimentada por símbolos criados ou usurpados, explorando as frustrações, fomentando ódios, sectarismos, fobias, racismos, e negando as conquistas do conhecimento.

Uma vez no gozo do poder, passam a culpar o mundo pelo desastre de sua administração, que sempre leva à degeneração do Estado e à desagregação da sociedade. Esta última acaba se dividindo em duas grandes facções fundadas no ódio, na mentira e na violência, separando famílias, gerações e dissolvendo amizades – desintegrando, enfim, os valores indispensáveis ao convívio social.

Enquanto tivermos o sistema de reeleição para presidente, governadores, senadores, deputados e vereadores; o voto proporcional, ao invés do voto distrital; o monopólio dos partidos impedindo o acesso independente da cidadania à vida pública; e, ainda, enquanto mantivermos o assalto oficial dos recursos públicos que permite o domínio dos políticos profissionais, eternamente reeleitos na base das emendas parlamentares ao Orçamento, do Fundo Partidário e do Fundo Eleitoral, não sairemos desta camisa de força que nos condena a viver sob o jugo de líderes populistas, com seus discursos falsos que nos infelicitam e destroem nosso presente e nosso futuro

Modesto Carvalhosa, o autor deste artigo, é Advogado. Autor de "Uma nova Constituição para o Brasil", ( LVM, 2021). Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 06.04.22.


Terceira via decide lançar um só candidato à sucessão de Bolsonaro

Tebet é a mais cotada para encabeçar chapa da aliança entre MDB, PSDB, União Brasil e Cidadania 

   

  A senadora Simone Tebet; antes da definição, o União Brasil ainda pretende submeter uma sugestão de nome à análise do grupo, até o próximo dia 14. Foto: Gabriela Biló/Estadão

Dirigentes do MDB, PSDB, União Brasil e Cidadania fecharam um acordo nesta quarta-feira, 6, e decidiram lançar apenas um candidato à Presidência da República. Mesmo assim, o grupo da terceira via só baterá o martelo sobre quem será o candidato no dia 18 de maio.

Até agora, o nome mais cotado para encabeçar a chapa única é o da senadora Simone Tebet (MDB-MS). O ex-governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite (PSDB) também se movimenta, mas admite ser vice, caso haja essa dobradinha. O impasse ocorre porque quem venceu as prévias do PSDB foi João Doria, ex-governador de São Paulo, e não Leite.

Em comunicado emitido após reunião em Brasília, as cúpulas dos quatro partidos declararam que o objetivo dessa aliança  é apresentar uma alternativa à polarização entre o presidente Jair Bolsonaro e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que hoje lideram as pesquisas. “Conclamamos outras forças políticas democráticas para que possam se incorporar a esse projeto em defesa do Brasil e de todos os brasileiros", diz a carta.

O texto é assinado pelo presidente do União Brasil, Luciano Bivar; do MDB, Baleia Rossi; do PSDB, Bruno Araújo; e do Cidadania, Roberto Freire. Antes da definição, o União Brasil ainda pretende submeter uma sugestão de nome à análise do grupo, até o próximo dia 14.

O ex-juiz Sérgio Moro se filiou ao União Brasil após deixar o Podemos, mas seu novo partido não quer que ele seja candidato à sucessão de Bolsonaro. A ideia é que Moro concorra a uma vaga na Câmara dos Deputados, por São Paulo. A cúpula do União Brasil avisou que no próximo dia 14 submeterá o nome indicado pelo partido para apreciação do MDB, PSDB e Cidadania.

Na tarde desta quarta-feira, Eduardo Leite se reuniu com Simone Tebet, no Senado. Nesta manhã, em entrevista à Rádio Eldorado, a senadora afirmou ver Leite como um "grande ativo do PSDB".

VINÍCIUS VALFRÉ, O Estado de S.Paulo, em 06 de abril de 2022 | 18h27

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Indignação contra Rússia aumenta após imagens de massacre, e UE pode banir importações de petróleo e carvão

Estados Unidos querem suspender russos de Conselho de Direitos Humanos da ONU, enquanto Moscou nega acusações e alega fraude

O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, em Bucha, subúrbio de Kiev, nesta segunda-feira Foto: RONALDO SCHEMIDT / AFP

As acusações de crime de guerra contra a Rússia aumentaram nesta segunda-feira, após a divulgação pelo governo ucraniano de imagens de cadáveres abandonados em subúrbios de Kiev, sobretudo em Bucha, a 37 quilômetros da capital, no domingo, em um indício de massacres cometidos por forças russas.

Em um comunicado no qual condena as supostas execuções de civis, a União Europeia (UE) disse que prepara com urgências novas sanções para punir Moscou.

Em nome do bloco de 27 países, Josep Borrell, o principal diplomata da UE, responsabilizou “as autoridades russas por essas atrocidades, cometidas enquanto detinham o controle efetivo da área”. A nota diz que “a UE continuará a apoiar firmemente a Ucrânia e avançará, com urgência, no desenvolvimento de novas sanções contra a Rússia”.

UCRÂNIA DENUNCIA MASSACRE EM BUCHA; VEJA FOTOS

Corpo é encontrado baleado e com as mãos amarradas por pano branco em Bucha Foto: ZOHRA BENSEMRA / REUTERS

Cova comum próximo à igreja da cidade de Bucha, nos arredores da capital Kiev Foto: SERGEI SUPINSKY / AFP

Vasily, 55, passa pelo corpo de um parente, que, segundo ele, foi morto por soldados do exército russo Foto: ZOHRA BENSEMRA / REUTERS

Homem caminha próximo a corpo de vítima do massacre russo Foto: SERGEI SUPINSKY / AFP



Segundo a Otan, foram recolhidos cerca de 300 corpos pela ruas de Bucha Foto: SERGEI SUPINSKY / AFP

Corpos jazem em rua residencial, ao lado de carro carbonizado, em Bucha Foto: ZOHRA BENSEMRA / REUTERS

O presidente francês, Emmanuel Macron, defendeu a proibição das importações de carvão e petróleo da Rússia, avaliando que pode ser possível conseguir um consenso entre os países europeus para aprovar essa medida. No entanto, ele não pediu um embargo ao gás russo, crucial para países como Alemanha e Itália.

— Há indícios muito claros de crimes de guerra — disse Macron em entrevista a uma rádio francesa. — O que aconteceu em Bucha exige uma nova rodada de sanções e medidas muito claras. Então, vamos coordenar isso rapidamente com nossos parceiros europeus, especialmente com a Alemanha.

Embaixadores da UE devem discutir um novo pacote de sanções à Rússia na quarta-feira. O bloco, atualmente presidido pela França, até agora só se comprometeu a reduzir as importações da energia russa, temendo o impacto de uma proibição total sobre as economias da região.

As imagens, que foram divulgadas por autoridades ucranianas e ainda não puderam ser verificadas por fontes independentes, motivaram críticas de vários outros líderes internacionais, do Japão à Espanha.

Os EUA e o Reino Unido disseram que solicitarão à Assembleia Geral das Nações Unidas que suspenda a Rússia do Conselho de Direitos Humanos.

A Rússia está em seu segundo ano de um mandato de três anos no conselho, que tem sede em Genebra. A suspensão exigiria uma maioria de dois terços dos votos dos 193 membros. Falando em Bucareste na segunda-feira, a embaixadora dos EUA na ONU, Linda Thomas-Greenfield, disse que "a participação da Rússia no Conselho de Direitos Humanos é uma farsa".

— E está errada, e é por isso que achamos que é hora da Assembleia Geral da ONU votar para removê-la.

A Assembleia Geral da ONU já adotou duas resoluções desde a invasão em 24 de fevereiro denunciando a Rússia com pelo menos 140 votos a favor.

— Minha mensagem para os 140 países que corajosamente se uniram é: as imagens de Bucha e a devastação na Ucrânia nos forçam a combinar nossas palavras com ação — disse Thomas-Greenfield, em visita à Romênia para ver como o país lida com o influxo de refugiados da Ucrânia.

Já a ministra das Relações Exteriores do Reino Unido, Liz Truss, disse no Twitter que: "diante das fortes evidências de crimes de guerra, incluindo os relatos sobre valas comuns e o massacre perverso de Bucha, a Rússia não pode continuar sendo membro do Conselho de Direitos Humanos da ONU. A Rússia deve ser suspensa".

Um alto funcionário do prefeito de Bucha disse que 50 dos 300 corpos encontrados após a retirada das forças do Kremlin foram vítimas de execuções extrajudiciais realizadas por tropas russas.

Em um vídeo divulgado à noite, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, chamou os soldados russos de "assassinos, torturadores, estupradores, saqueadores, que se classificam como Exército e merecem apenas a morte depois do que fizeram". Ele começou o seu discurso em ucraniano e terminou em russo.

A Rússia nega qualquer responsabilidade sobre as denúncias e nesta segunda-feira o Kremlin rejeitou "categoricamente todas as acusações".

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou que funcionários do Ministério da Defesa russo encontraram sinais de "falsificações nos vídeos" e de "falsificações" nas imagens apresentadas pelas autoridades ucranianas.

Peskov também disse que a Rússia é a favor de discutir a situação em Bucha no Conselho de Segurança da ONU.

— Nossos diplomatas continuarão com esforços ativos para colocar esse assunto na agenda do Conselho de Segurança. O assunto é muito sério — disse Peskov.

Respondendo à pergunta de quem, do ponto de vista do Kremlin, deve participar da investigação dos acontecimentos em Bucha, Peskov disse:

— Não posso responder a essa pergunta agora, mas pelo menos a própria iniciativa de trazer esse tema ao Conselho de Segurança indica o que a Rússia quer e o que a discussão realmente exige.

O Reino Unido, que detém a presidência do Conselho de Segurança da ONU em abril, já rejeitou um pedido russo de convocar uma reunião sobre Bucha.

O Globo e agências internacionais, em 04/04/2022 - 10:13 / Atualizado em 04/04/2022 - 15:41

Vala comum e massacre de civis: fotos e relatos de ataques na Ucrânia chocam e provocam reação internacional

Corpos foram enterrados ao lado de igreja; escavação começou em 10 de março

As mãos de uma mulher morta em Bucha, cidade nas imediações de Kiev: ucranianos denunciam massacre feitos por tropas russas Foto: ZOHRA BENSEMRA / Reuters

A invasão russa da Ucrânia volta a causar forte indignação e repúdio nos principais países do Ocidente diante de um novo e chocante relato de atrocidades cometidas pelas forças armadas comandadas por Vladimir Putin no país invadido. A União Europeia, os Estados Unidos e grande parte da comunidade internacional reagiram com estupor às denúncias de massacres cometidos na cidade de Bucha, ao Norte de Kiev.

O governo ucraniano acusa os russos de terem promovido uma matança na cidade, revelada em relatos e imagens após a retirada das tropas de Putin na sexta-feira. Moscou nega.

Imagem de satélite mostra vala comum em Bucha, cidade que teria sido alvo de massacre russo Foto: Maxar Technologies / Via Reuters

Imagens de satélite mostram uma vala comum com quase 14 metros de comprimento cavada no terreno de uma igreja ucraniana na cidade de Bucha, que passou semanas ocupada pelo Exército russo. No domingo, o governo ucraniano denunciou que a região foi palco de um "massacre deliberado" de civis. O governo Putin desconsidera a denúncia e diz que as imagens "são montagens". Esta seria a primeira prova tangível e visível da morte e devastação nas áreas ocupadas pelas tropas russas.

O prefeito de Bucha, Anatoly Fedoruk, disse à AFP que cerca de 300 moradores foram mortos durante a ocupação. Neste domingo, as autoridades anunciaram que uma fossa coletiva tinha mais de 70 corpos. Segundo a procuradora-geral ucraniana, Iryna Venediktova, ao todo foram encontrados corpos de 410 civis nos territórios da região de Kiev ocupados pelos russos, sendo que 140 foram examinados pelos peritos forenses.

À condenação de Bruxelas juntaram-se os Estados Unidos. O secretário de Estado, Antony Blinken, afirmou que as imagens de Bucha são um "soco no estômago" e do secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, que qualificou de "brutalidade" o assassinato de civis nesta cidade nos arredores da capital ucraniana. A condenação internacional coincide com a publicação de um relatório da organização Human Right Watch sobre possíveis crimes de guerra em vários pontos do front Norte da guerra.

A Maxar Technologies, que coletou e divulgou as imagens de satélite, informou que os primeiros sinais de escavação de uma vala no local foram vistos em 10 de março. O registro mais recente do local é de 31 de março.

Uma equipe da agência Reuters que esteve em Bucha no sábado viu corpos nas ruas da cidade e também registrou uma vala comum ainda aberta perto de uma igreja. Mãos e pés eram vistos para fora da terra cobrindo os corpos. A agência não conseguiu confirmar, porém, se era o mesmo templo mostrado pela Maxar.

As forças russas se retiraram da região ao redor de Kiev após Moscou afirmar que terminara a primeira fase da guerra e que iria se concentrar "na libertação" de áreas no Leste, onde atuam os separatistas pró-Moscou, e no Sul. Tropas ucranianas já tinham reconquistado algumas áreas e reocuparam as restantes das quais os russos se retiraram.

Em um post na rede social Telegram, o Ministério da Defesa da Rússia classificou como "fake news" as denúncias de supostas atrocidades cometidas pelos militares do país e tachou as imagens e fotografias de corpos de "mais uma provocação" do governo ucraniano. Em ocasiões anteriores, o Kremlin sempre negou que suas forças tenham civis como alvo.

O Ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, pediu ao G7, grupo que reúne sete das maiores economias do mundo,  que imponha novas sanções "devastadoras" a Moscou. Ele disse já ter pedido ação ao Tribunal Penal Internacional (TPI).

O Globo e agências internacionais, em 04/04/2022 - 06:37 / Atualizado em 04/04/2022 - 11:51

Catástrofe contratada

A vingarem as propostas e ideias de Lula e Bolsonaro, por ora favoritos na corrida presidencial, o Brasil tem um encontro marcado com desastre maior a partir de 2023

O futuro é extremamente desafiador para o Brasil, e a escolha do próximo presidente da República definirá quão prolongados serão os efeitos perniciosos de uma crise política, econômica, social e moral que há mais de três anos tem sido pintada com cores vivíssimas, diante dos olhos de todos. Das duas, uma: ou as forças genuinamente democráticas da sociedade superam veleidades e constroem uma alternativa responsável às forças do atraso que ora parecem triunfar, ou o País tem um encontro marcado com um desastre ainda maior do que o atual a partir de 2023.

Nenhuma eleição pode ser considerada mais importante do que outra, pois todas são cruciais ao tempo de sua realização. Mas é possível afirmar que os riscos envolvidos na escolha dos eleitores em 2022 são de magnitude poucas vezes vista na história recente do País. Há sérios obstáculos políticos e econômicos a serem superados, como já estiveram em jogo em tantos outros pleitos. Mas, a julgar pelo que propõem os dois pré-candidatos que lideram as pesquisas de intenção de voto no momento, o ex-presidente Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro, nada indica que caminhos serão abertos para que o Brasil saia desse lamaçal caso um dos dois seja o vencedor do pleito em outubro.

Tanto pior porque Lula e Bolsonaro são hábeis em açular seus apoiadores mais radicais e poluir o debate público com mentiras e distorções da realidade. Ao fazerem do ódio e da dissimulação instrumentos de ação política, tanto um como outro impedem a coesão social mínima em torno de um diálogo honesto e propositivo com vistas à reversão de nossas mazelas.

Cerca de 50 milhões de brasileiros convivem com a insegurança alimentar, ou seja, não têm renda suficiente para garantir comida no prato todos os dias. O número de desempregados – embora tenha recuado de 14,6% para 11,2% no trimestre encerrado em fevereiro, em comparação com o mesmo período no ano passado – ainda é assustador: são 12 milhões de cidadãos em idade economicamente ativa sem trabalho no País, de acordo com o IBGE. Economistas preveem que o porcentual de desocupação permanecerá no patamar de dois dígitos, no mínimo, até 2024. A inflação renitente corrói a renda dos que têm um emprego. Juros em ascensão freiam a capacidade de expansão da atividade econômica.

Na educação, o cenário é de terra arrasada. A cultura e a política externa foram transformadas pelo bolsonarismo em flancos de uma “guerra cultural” que seria apenas caricatura da estupidez de uns tresloucados caso não impingisse tantos danos ao País. Na seara ambiental, o Brasil foi da condição de interlocutor indispensável a pária internacional.

Diante desse quadro trevoso, é desalentador constatar que tudo o que Lula e Bolsonaro propõem só tende a agravar os problemas do País. É o exato oposto do que se espera de candidatos à Presidência da República.

O pouco que se conhece do programa econômico de Lula para um eventual terceiro mandato não apenas não resolve os problemas atuais, como os aprofunda. O papel aceita quase tudo. Lula pode escrever à vontade que “os melhores momentos do Brasil foram nos governos do PT”, mas não pode reescrever a História.

Bolsonaro pode dizer para seus apoiadores que o País “tem tudo” para crescer e se desenvolver, e que ele ainda não conseguiu fazer do Brasil a “pátria grande” porque “alguns poucos atrapalham” e deveriam “calar a boca” e deixá-lo trabalhar.

O fato é que nem Lula nem Bolsonaro têm projetos certos para atacar os problemas do País. Não propõem nada além de suas supostas virtudes pessoais em relação ao oponente. À frente da disputa pela Presidência, ao menos por ora, estão dois mitômanos que talvez só acreditem nas próprias patranhas pela força da repetição.

O País precisa de um líder moderno, atinado com a agenda política, social, econômica e ambiental do século 21. Um conciliador. Alguém que pense o futuro com responsabilidade, empatia e espírito público. Ou seja, alguém que ainda está por se fazer conhecido e, sobretudo, despertar a esperança dos brasileiros em um futuro melhor.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 03 de abril de 2022 | 03h00

Eduardo Leite sinaliza que pode ser vice em chapa com Simone Tebet

Eduardo Leite disse em entrevista à Rádio Eldorado que a convenção do PSDB é mais importante que as prévias do partido, vencidas por João Doria, e que Simone Tebet 'tem toda a condição' de liderar a terceira via

     Leite afirmou que deve intensificar conversas sobre seu futuro político a partir desta semana.  Foto: Dida Sampaio e Felipe Rau

O ex-governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite (PSDB) sinalizou que pode ser vice na chapa da senadora Simone Tebet (MDB) para a disputa da Presidência da República. Em entrevista à Rádio Eldorado nesta segunda-feira, 4, o tucano afirmou ter “humildade” para abrir mão de aspirações pessoais e fazer composição com uma candidatura que se mostre viável contra a polarização. A parlamentar, segundo ele, “tem toda a condição de liderar esse projeto”. 

"Temos de ter um entendimento do nosso papel como lideranças políticas, não apenas buscando ocupar um espaço político concorrendo, mas apoiando eventualmente aqueles que tenham essa capacidade. Entre outras pessoas, há o nome da senadora Simone Tebet, que tem toda a condição de ser uma liderança nesse projeto. É muito prematuro falar em que posição cada um tem que assumir. Mas a disposição nossa tem que ser construindo, apoiando, disputando na chapa como vice-presidente, se for o caso", afirmou Leite.

Segundo o tucano, a senadora tem uma aspiração legítima em se apresentar como candidata. "Tudo tem de ser muito conversado para viabilizar aquilo que tenho mais capacidade eleitoral. Tenho muito respeito pelo mandato da senadora, e sua aspiração legítima de se apresentar como candidata. Ainda não avançamos em conversas nessa direção, mas haverá o momento apropriado", complementou, sobre a formação da chapa.

Após ser derrotado nas prévias do PSDB, Leite intensificou articulações com o PSD para se viabilizar como possível pré-candidato do partido, mas, por fim, decidiu permanecer no ninho tucano. Este, segundo ele, foi mais um movimento que indica sua disposição de abrir mão de ser cabeça de chapa, já que, de acordo com o ex-governador, a sigla de Gilberto Kassab não foi a única a oferecer a possibilidade. 

“Se eu quisesse mesmo ser candidato, tinha mais opções que o PSD. Eu tinha opções para uma candidatura, e mesmo assim não fui atrás desses caminhos mais fáceis”. 

O gaúcho disse considerar que o momento pede “desprendimento” por parte dos nomes que se apresentam como “terceira via”. Seu principal adversário no PSDB, o governador João Doria, atual pré-candidato do partido, tem mostrado resistência a assumir o posto de vice de outras chapas. Na última quinta-feira, o paulista admitiu que, ao anunciar desistência da eleição, sua intenção era forçar a legenda a dar primazia à sua pré-candidatura, movimento que ele classificou como “estratégia política”. 

Hoje, dias após telefonar a Doria dizendo respeitar o resultado das prévias, das quais o governador de São Paulo saiu vitorioso, Leite afirmou que a convenção nacional do partido é soberana, dando a entender que a candidatura do tucano paulista continua não sendo definitiva no partido. Leite afirmou que, até a data do evento, marcado para julho, “cada um vai ajustar seu papel nesse processo”. Esse ajuste, ele adiantou, será feito após conversas “francas e honestas” com Doria. 

Apesar de reiterar que respeita as prévias, Leite condicionou seu respaldo a Doria ao alcance de viabilidade eleitoral do paulista. Disse que o governador terá “todo seu apoio”, desde que se mostre viável. “O PSDB reconhece a legitimidade das prévias, mas sabe também que vai precisar estar atento à competitividade das candidaturas”, afirmou. Além da baixa intenção de voto de Doria nas pesquisas - 2% -, Leite citou a alta rejeição marcada por ele, em torno de 30%, como uma dificuldade para o avança de seu nome.

O gaúcho afirmou que deve aproveitar esta semana, a primeira após deixar o Palácio Piratini, para intensificar conversas e tomar uma decisão sobre seu futuro político. Ele disse estar pronto tanto “para liderar o projeto, se for o caso”, quanto para apoiar aquele que tiver as melhores condições.

Redação, O Estado de S.Paulo, em 04 de abril de 2022 | 09h50. Atualizado 04 de abril de 2022 | 13h34