segunda-feira, 21 de março de 2022
O poder da maioria silenciosa
Sanções econômicas funcionam? O que a história diz sobre o sucesso dessas medidas
As sanções impostas à Rússia pelos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido e outros países em resposta à invasão da Ucrânia seguem um longo histórico do uso de penalidades para forçar mudanças de comportamento em determinadas nações.
A cotação do rublo russo despencou desde que sanções econômicas foram impostas à Rússia (EPA)
Mas uma análise de medidas do tipo adotadas no passado demonstra que nem sempre o objetivo é alcançado. Além disso, em certos casos, há o risco de consequências inesperadas e até mesmo de que o resultado seja o oposto do desejado, fortalecendo o governo que pretendem fragilizar e gerando impacto negativo sobre direitos humanos, democracia e outros aspectos.
"Se você olhar para a história moderna, verá que quase todas as vezes em que um país violou tratados internacionais, ou invadiu outro país, ou sequestrou cidadãos de outro país (entre outros exemplos), sanções foram impostas", diz à BBC News Brasil o economista Paolo Pasquariello, professor de Finanças da Universidade de Michigan, nos EUA.
"Mas o histórico (dos resultados) não é muito bom. Nas últimas décadas, para mencionar apenas alguns exemplos, sanções foram impostas contra Cuba, Venezuela e Coreia do Norte. Mas, no meu entender, não produziram os resultados desejados", observa Pasquariello.
Estudos calculam que apenas cerca de um terço das sanções costumam ter sucesso e atingir seus objetivos. Uma das análises recentes mais completas sobre o tema foi feita por pesquisadores da Universidade Drexel, com sede na cidade da Filadélfia, e confirma essa estimativa.
Os pesquisadores criaram um banco de dados com informações sobre 1.101 casos de sanções aplicadas por países, grupos de países ou organizações intergovernamentais desde 1950, muitas das quais ainda permanecem em vigor.
As sanções foram classificadas conforme o tipo (comerciais, financeiras, de assistência militar, de armas, de viagens e outros tipos) e objetivos (forçar mudanças em determinadas políticas, desestabilizar regimes, prevenir ou acabar com guerras, proteger direitos humanos, restaurar democracia, combater terrorismo, resolver conflitos territoriais, entre outros)
O próximo passo foi analisar o grau de sucesso, medido de acordo com declarações oficiais dos governos ou "confirmações indiretas em anúncios internacionais de imprensa", e levando em consideração que essas declarações “podem ser subjetivas ou tendenciosas”.
Quando incluídas sanções ainda em vigor, calcula-se que cerca de 30% tenham pelo menos sucesso parcial.
"Ao longo do tempo, cada vez mais sanções foram classificadas como parcialmente ou completamente bem-sucedidas, sugerindo assim que as sanções se tornaram mais eficazes em atingir seus objetivos", diz o estudo.
Exemplos históricos
O uso de diferentes sanções para punir um governo ou forçá-lo a cumprir determinados objetivos é registrado desde pelo menos a Grécia antiga e foi adotado ao longo de vários séculos.
A partir de 1950, período englobado pelo banco de dados da Universidade Drexel, o número de sanções "aumentou continuamente, e esse aumento foi acelerado desde 2018", segundo a análise.
"Nós vemos essa tendência como evidência da crescente popularidade de sanções como ferramenta de diplomacia coercitiva", dizem os pesquisadores.
Em média, mais de 35% de todas as sanções entre 1950 e 2019 foram impostas pelos Estados Unidos, país que usou esse tipo de penalidade com mais frequência. A análise também revela um “aumento significativo e contínuo em sanções da União Europeia e da ONU [Organização das Nações Unidas] desde o início dos anos 1990".
Cuba enfrenta embargo econômico imposto pelos EUA há 60 anos (Getty Images)
Há vários exemplos de países submetidos a essas penalidades no período analisado. A África do Sul foi alvo de sanções internacionais na era do apartheid, o regime de segregação racial que esteve em vigor do fim da década de 1940 até os anos 1990.
Cuba é alvo há 60 anos de um embargo econômico imposto pelos Estados Unidos. O Iraque foi submetido a sanções após a invasão do Kuwait, em 1990. Coreia do Norte e Irã foram alvo de sanções por causa de seus programas nucleares.
A própria Rússia já havia sido punida em 2014, quando invadiu a Crimeia, e muitas das sanções impostas ao país na época ainda permanecem em vigor.
Sofrimento da população
Sanções econômicas e financeiras são as mais comumente usadas, segundo o banco de dados da Universidade Drexel.
Algumas das medidas são projetadas para serem o mais específicas possível, punindo apenas determinados indivíduos. Mas muitas outras, apesar de serem uma alternativa à ação militar, também causam grandes danos e sofrimento à população civil, incluindo aos cidadãos que se opõem ao governo.
O bilionário russo Roman Abramovich, conhecido por ser dono do time inglês Chelsea, também foi alvo de sanções (PA Nédia)
No entanto, mesmo com o impacto às vezes devastador, as sanções não atingem seus objetivos em cerca de dois terços dos casos.
"Geralmente, as sanções acabam afetando a maioria das pessoas que vivem nesses países", ressalta Pasquariello, da Universidade de Michigan.
"Acho que, apesar de isso não ser dito explicitamente, o objetivo é mesmo ferir a população do país (alvo)."
Segundo o economista, o propósito é fazer com que o país inteiro entenda que seus governantes estão fazendo algo que as nações impondo as penalidades consideram errado.
As atuais sanções contra a Rússia são consideradas únicas pelo alcance e a rapidez com que foram adotadas, poucos dias após a invasão da Ucrânia, em 24 de fevereiro. Além disso, se diferenciam por terem como alvo uma potência nuclear e um país que, apesar de não ser considerado um gigante econômico, tem papel geopolítico crucial.
"As sanções costumam ser impostas a pequenos atores regionais", ressalta Pasquariello, lembrando que esses países não têm tanta importância para a economia global.
"O caso da Rússia é diferente. Tem uma magnitude e um alcance que nunca vi em outras sanções em meus 50 anos de vida.”
Entre as penalidades já adotadas, estão sanções a bancos e membros do governo russo e da elite econômica, incluindo o congelamento de ativos, restrições de viagens e exclusão de grandes bancos russos do sistema financeiro e do sistema de comunicação usado para transações internacionais.
Outras medidas incluem restrição de importações de petróleo, gás e carvão da Rússia, proibição da exportação de diversos produtos para o mercado russo, incluindo artigos de luxo, taxação sobre importação de produtos russos e restrições a aeronaves russas no espaço aéreo de diversos países.
McDonald's foi uma das multinacionais que suspenderam as atividades na Rússia após sanções (Crédito: Getty Images)
Grandes empresas do setor privado, como Coca-Cola, McDonald’s, Starbucks e várias outras, suspenderam operações na Rússia.
Estas e outras penalidades não apenas estão abalando e isolando a economia e o sistema financeiro da Rússia e suas elites, mas também afetam a população geral. O rublo, a moeda russa, despencou, e a economia está em colapso.
"São sanções econômicas devastadoras, que estão realmente ferindo cidadãos russos", salienta Pasquariello.
"Estamos falando de 145 milhões de pessoas, muitas das quais não conseguem retirar dinheiro dos bancos."
Os impactos da crise econômica russa devem afetar o resto do mundo, com alta global nos preços do petróleo e reflexos na inflação.
Sucesso ou fracasso
Mas, apesar deste impacto, a Rússia mantém sua ofensiva militar, e não se sabe se as sanções vão ajudar a Ucrânia.
A Rússia proibiu a exportação de alguns produtos em retaliação, impôs sanções contra membros do governo americano e ameaçou nacionalizar os ativos de empresas que se retiraram do país. Há também o temor de que a crise leve a um aprofundamento das relações com a China.
Pasquariello destaca que é sempre muito difícil prever se determinadas sanções irão atingir seus objetivos.
O sucesso ou fracasso depende de uma combinação de diversas circunstâncias e fatores — entre eles, o grau de integração econômica do país que é alvo das medidas com o resto do mundo.
“Alguns podem argumentar que determinadas sanções impostas contra o Irã foram eficazes, ao retardar o progresso do desenvolvimento de armas nucleares e trazer o país para a mesa de negociação”, observa, ao citar um exemplo em que as punições podem ter tido sucesso.
Sanções contra o Irã foram revogadas após um acordo nuclear negociado durante o governo de Barack Obama em 2015. Seu sucessor, Donald Trump, abandonou o acordo e retomou as medidas punitivas.
Neste ano, o sucessor de Trump, o atual presidente Joe Biden, anunciou que aliviaria as sanções, em meio a novas negociações sobre um acordo.
Pasquariello compara o Irã com a Coreia do Norte, onde a pressão internacional não teve resultado.
"A Coreia do Norte é um país isolado do resto do mundo há décadas e no qual as sanções não conseguiram impedir o desenvolvimento de armas nucleares", afirma.
No caso da Rússia, Pasquariello ressalta que não se pode analisar apenas um fator isoladamente. Segundo o economista, o possível impacto das sanções deve ser considerado em conjunto com outros aspectos.
“Em combinação com o fato de que a Ucrânia está resistindo melhor do que o antecipado e de que os russos claramente superestimaram sua própria força militar”, salienta.
“Acho que tudo isso cria uma situação muito precária para (o presidente Vladimir) Putin e para as pessoas ao seu redor.”
Segundo Pasquariello, resta saber qual será a reação russa diante desta situação.
"Será que vai redobrar (sua posição)? Ou virá à mesa de negociação?", questiona.
Alessandra Corrêa, de Washington (EUA) para a BBC News Brasil, em 20.03.22
Anonymous: como hackers estão tentando minar Putin
O coletivo de hackers e ciberativistas Anonymous vem bombardeando a Rússia com ataques cibernéticos desde que declarou "guerra cibernética" ao presidente Vladimir Putin em retaliação à invasão da Ucrânia.
Um membro do grupo de hackers Squad 303/Anonymous
Várias pessoas que operam sob essa bandeira conversaram com a reportagem da BBC sobre suas motivações, táticas e planos.
De todos os ataques cibernéticos realizados desde o início do conflito na Ucrânia, destaca-se uma ação do Anonymous em redes de TV russas.
O ataque foi capturado em um pequeno vídeo que mostra a programação normal interrompida com imagens de bombas explodindo na Ucrânia e soldados falando sobre os horrores do conflito.
O vídeo começou a circular em 26 de fevereiro e foi compartilhado por contas de mídia social do Anonymous com milhões de seguidores. Uma postagem no Twitter trazia uma mensagem que, traduzida, fica desta forma: "Canais de TV estatais #russos foram hackeados pelo #Anonymous para transmitir a verdade sobre o que acontece na #Ucrânia".
Ela rapidamente acumulou milhões de visualizações.
O vídeo foi enviado para uma mulher nos EUA, Eliza, por seu pai na Rússia
O caso tem todas as características de uma ação do Anonymous - dramática, impactante e fácil de ser compartilhada online. Como muitos outros ataques cibernéticos do grupo, também foi extremamente difícil de verificar.
Mas um dos grupos menores de hackers do Anonymous disse que eles eram os responsáveis e que assumiram os serviços de TV por 12 minutos.
A primeira pessoa a postar o vídeo também foi capaz de verificar se era real. Eliza mora nos Estados Unidos, mas seu pai é russo e ligou para ela quando seus programas de TV foram interrompidos. "Meu pai me ligou quando aconteceu e disse: 'Oh meu Deus, eles estão mostrando a verdade!' Então eu consegui que ele gravasse e postei o vídeo online. Ele diz que um de seus amigos viu isso acontecer também."
A Rostelecom, empresa russa que administra os serviços hackeados, não respondeu aos pedidos de comentários da reportagem.
Os hackers justificaram suas ações dizendo que ucranianos inocentes estavam sendo massacrados. "Vamos intensificar os ataques ao Kremlin, se nada for feito para restaurar a paz na Ucrânia", acrescentaram.
O Anonymous diz que também derrubou sites russos e roubou dados do governo, mas Lisa Forte, sócia da empresa de segurança cibernética Red Goat, diz que a maioria desses ataques até agora tem sido "bastante básica".
Os hackers têm usado principalmente ataques DDoS, onde um servidor é sobrecarregado por uma enxurrada de solicitações, explicou ela. Estes são relativamente simples de realizar e apenas colocam os sites offline temporariamente.
"Mas o ataque cibernético da TV é incrivelmente criativo", disse ela, "e acredito que muito difícil de realizar".
Quem é o Anonymous?
O coletivo de hackers e ciberativistas (ou 'hacktivistas') surgiu em 2003 a partir do site 4chan
O grupo não tem liderança, seu slogan é "somos legião"
Qualquer um pode reivindicar ser parte do grupo e hackear por qualquer causa que quiser, mas geralmente atacam organizações acusadas de uso indevido de poder
Seu símbolo é uma máscara de Guy Fawkes, que ficou famosa pelos quadrinhos V de Vingança, de Alan Moore, na qual um revolucionário anarquista derruba um governo fascista corrupto.
O grupo tem muitas contas de mídia social, com 15,5 milhões de seguidores apenas em suas páginas do Twitter
Hackers anônimos também desfiguraram sites russos. Lisa Forte diz que isso envolve ganhar o controle de um site para alterar o conteúdo exibido.
Até agora, os ataques causaram perturbações e constrangimentos, mas os especialistas cibernéticos estão cada vez mais preocupados com a explosão do ativismo cibernético desde a invasão.
Eles estão preocupados que um hacker possa acidentalmente derrubar a rede de computadores de um hospital ou interromper links de comunicação essenciais, por exemplo.
"Nunca vi nada assim", diz Emily Taylor, do Cyber Policy Journal. "Esses ataques trazem riscos. [Eles] podem levar a uma escalada, ou alguém pode acidentalmente causar danos reais a uma parte fundamental da vida civil".
O coletivo Anonymous não era tão ativo há anos.
Roman, um empresário de tecnologia ucraniano que lidera um grupo de hackers chamado Stand for Ukraine (Defenda a Ucrânia, em tradução livre), não tinha ligações com a organização até que a Rússia invadiu seu país.
Mas ele me disse que quando ele e sua equipe desfiguraram brevemente o site da agência de notícias estatal russa Tass, com um pôster anti-Putin, eles incluíram um logotipo do Anonymous.
Roman trabalha em seu apartamento no sexto andar em Kiev, coordenando sua equipe enquanto eles criam sites, aplicativos Android e bots do Telegram para ajudar no esforço de guerra da Ucrânia e hackear alvos russos.
Roman no trabalho: "Às vezes vejo foguetes no céu"
"Estou pronto para pegar um rifle pela Ucrânia, mas no momento minhas habilidades são melhor usadas no computador. Então estou aqui em minha casa com meus dois laptops, coordenando essa resistência de TI."
Ele diz que seu grupo desativou um serviço de passagens de trem regional russo por várias horas, embora a BBC não tenha conseguido verificar essa informação.
Ele defende suas ações dizendo: "Essas coisas são ilegais e erradas até que haja uma ameaça para você ou seu parente".
Outro grupo que se fundiu com o Anonymous é uma equipe polonesa de hackers chamada Squad 303, em homenagem a um famoso esquadrão de caças poloneses na Segunda Guerra Mundial.
"Trabalhamos junto com o Anonymous o tempo todo e agora me considero um membro do movimento Anonymous", diz um membro do grupo, que usa o nome do piloto da Segunda Guerra Jan Zumbach como apelido.
Ele pediu que sua foto não fosse publicada. Outro membro de sua equipe, um ucraniano, enviou uma foto dele mesmo de capacete e máscara. Ele descreveu sua situação como "na barricada com um rifle durante o dia e hackeando com o Squad/Anonymous à noite".
O Squad 303 construiu um site que permite ao público enviar mensagens de texto para números de telefone russos aleatórios, contando a verdade sobre a guerra. Eles afirmam ter possibilitado o envio de mais de 20 milhões de mensagens SMS e WhatsApp.
Dois grupos do Anonymous com quem conversei citaram isso como a coisa mais impactante que o coletivo fez até agora pela Ucrânia.
Questionado sobre como justificou a atividade ilegal do Squad, Jan Zumbach disse que eles não roubaram ou compartilharam nenhuma informação privada e estavam apenas tentando falar com os russos, com o objetivo de vencer a guerra de informações.
No entanto, ele também disse que eles estavam planejando um ataque hacker mais impactante nos próximos dias.
Grupos semelhantes na Rússia também estão realizando ataques cibernéticos contra a Ucrânia, mas aparentemente em menor escala.
Houve três grandes ondas de ataques DDoS coordenados contra a Ucrânia desde janeiro, além de três incidentes de ataques "wiper" mais sérios que excluíram dados em um pequeno número de sistemas de computador ucranianos.
Na quarta-feira (16/3), um vídeo manipulado do presidente ucraniano apareceu no site do canal de TV Ucrânia 24 após uma aparente invasão.
No ambiente atual, porém, é difícil saber exatamente quem está por trás de qualquer ataque cibernético.
"O calcanhar de Aquiles do Anonymous é que qualquer um pode se dizer Anonymous, incluindo atores estatais que operam contra aquilo pelo qual lutamos", diz o antigo hacker do Anonymous Anon2World.
"Com nosso atual aumento de popularidade, é (quase) certo que haverá repercussões óbvias de uma entidade governamental. Quanto a aumentar o caos, estamos acostumados ao caos, especialmente online."
Joe Tidy, repórter de segurança cibernética, para a BBC News, em 20.03.22
O que move Putin? Agentes estrangeiros tentam entender mente do líder russo
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, está preso em um mundo fechado e criado por ele mesmo, acreditam espiões de países ocidentais.
Durante anos, eles tentaram entrar na mente de Putin para entender melhor suas intenções. E isso os preocupa.
O presidente russo Vladimir Putin carregando um rifle de caça em imagem de 2007 (AFP)
Com as tropas russas aparentemente atoladas na Ucrânia, a necessidade de fazer isso tornou-se ainda maior à medida que eles tentam descobrir como ele reagirá sob pressão.
Compreender seu estado de espírito será vital para evitar a escalada da crise para um território ainda mais perigoso.
Houve especulações de que o líder da Rússia estava doente, mas muitos analistas acreditam que ele realmente se isolou e se fechou para quaisquer visões alternativas.
Seu isolamento ficou evidente em fotos de suas reuniões, como quando conheceu o presidente Emmanuel Macron - os dois nas extremidades de uma longa mesa. Também ficou evidente na reunião de Putin com sua própria equipe de segurança nacional às vésperas da guerra.
O plano militar inicial de Putin parecia algo planejado por um oficial da KGB (a polícia secreta da antiga União Soviética), diz um oficial de inteligência estrangeiro.
Foi criado, dizem eles, por uma "cabala conspiratória" com ênfase no sigilo. Mas o resultado foi o caos. Os comandantes militares russos não estavam prontos e alguns soldados atravessaram a fronteira sem saber o que estavam fazendo.
Único tomador de decisão
Espiões ocidentais, através de fontes que não revelam, sabiam mais sobre esses planos do que muitos dentro da liderança russa. Mas agora eles enfrentam um novo desafio - entender o que o líder da Rússia fará a seguir. E isso não é fácil.
"O desafio de entender os movimentos do Kremlin é que Putin é o único tomador de decisões em Moscou", explica John Sipher, que anteriormente dirigiu as operações da CIA na Rússia. E mesmo que seus pontos de vista sejam frequentemente esclarecidos por meio de declarações públicas, saber como ele agirá sobre eles é um difícil desafio de inteligência.
"É extremamente difícil em um sistema tão bem protegido como a Rússia ter uma boa inteligência sobre o que está acontecendo dentro da cabeça do líder, especialmente quando tantos de seu próprio povo não sabem o que está acontecendo", disse John Sawers, ex-chefe do MI6 britânico, à BBC.
Putin preside uma reunião em fevereiro de 2022 (Sputnik/AFP)
Segundo autoridades de inteligência, Putin está isolado em uma bolha que ele mesmo criou, na qual muito pouca informação externa penetra, particularmente qualquer uma que possa desafiar o que ele pensa.
"Ele é vítima de sua própria propaganda no sentido de que só ouve um certo número de pessoas e bloqueia todo o resto. Isso lhe dá uma visão estranha do mundo", diz Adrian Furnham, professor de psicologia e co-autor de um livro a ser lançado em inglês, The Psychology of Spies and Spying (A psicologia de espiões e espionagem, em tradução livre). O risco é o que se chama de "pensamento de grupo", em que cada um reforça a mesma visão. "Se ele for vítima de grupo achamos que precisamos saber quem é o grupo", diz Furnham.
O círculo daqueles com quem Putin conversa nunca foi grande, mas quando chegou à decisão de invadir a Ucrânia, ele se reduziu a apenas um punhado de pessoas, acreditam autoridades de inteligência ocidentais - todos aqueles que verdadeiramente compartilham a mentalidade e as obsessões de Putin.
A sensação de quão pequeno seu círculo íntimo se tornou foi enfatizada quando ele repreendeu publicamente o chefe de seu próprio Serviço de Inteligência Estrangeira na reunião de segurança nacional pouco antes da invasão - um movimento que parecia humilhar o funcionário. Seu discurso horas depois também revelou um homem zangado e obcecado com a Ucrânia e o Ocidente.
Aqueles que o observaram dizem que Putin é movido pelo desejo de superar a humilhação percebida pela Rússia na década de 1990, juntamente com a convicção de que o Ocidente está determinado a manter a Rússia sob controle e tirá-lo do poder. Uma pessoa que conheceu Putin se lembra de sua obsessão em assistir a vídeos do coronel Gaddafi da Líbia sendo morto depois que ele foi expulso do poder em 2011.
Um homem olha para aparelhos de TV que transmitem a coletiva de imprensa anual do presidente russo Vladimir Putin em uma loja de eletrônicos em Moscou. 31 de janeiro de 2006.
Em foto de 2006, aparelhos de TV transmitem coletiva de imprensa anual de Putin (Denis Sinyakov)
Quando o diretor da CIA, William Burns, foi solicitado a avaliar o estado mental de Putin, ele disse que "estava fervendo em uma combinação explosiva de queixa e ambição por muitos anos", descreveu suas opiniões como "endurecidas" e disse que ele estava "muito mais isolado" de outros pontos de vista.
O presidente russo é louco? Essa é uma pergunta que muitos em outros países fizeram. Mas poucos especialistas consideram útil. Um psicólogo com experiência na área disse que um erro foi supor que porque não conseguimos entender uma decisão como invadir a Ucrânia enquadramos a pessoa que a tomou como "louca".
A CIA tem uma equipe que realiza "análises de liderança" em tomadores de decisão estrangeiros, baseando-se em uma tradição que remonta às tentativas de entender Hitler. Eles estudam antecedentes, relacionamentos e saúde, baseando-se em inteligência secreta.
Outra fonte são as leituras daqueles que tiveram contato direto - como outros líderes. Em 2014, Angela Merkel teria dito ao presidente Obama que Putin estava vivendo "em outro mundo". Enquanto isso, quando se sentou com Putin recentemente, o presidente Macron teria encontrado o líder russo "mais rígido, mais isolado" em comparação com encontros anteriores.
Os presidentes Putin (Rússia) e Macron (França) em reunião em fevereiro de 2022 (Anadolu Agency / Getty Images)
Alguma coisa mudou? Alguns especulam, sem muita evidência, sobre possíveis problemas de saúde ou impacto de medicação. Outros apontam para fatores psicológicos, como a sensação de que seu próprio tempo está se esgotando para ele cumprir o que vê como seu destino de proteger a Rússia ou restaurar sua grandeza. O líder russo visivelmente isolou-se de outras pessoas durante a pandemia de covid e isso também pode ter tido um impacto psicológico.
"Putin provavelmente não tem doença mental, nem mudou, embora esteja com mais pressa e provavelmente mais isolado nos últimos anos", diz Ken Dekleva, ex-médico e diplomata do governo dos EUA, e atualmente membro sênior da Fundação George HW Bush para Relações EUA-China.
Mas uma preocupação agora é que informações confiáveis ainda não estão chegando ao circuito fechado de Putin. Seus serviços de inteligência podem ter relutado antes da invasão em lhe dizer qualquer coisa que ele não quisesse ouvir, oferecendo estimativas otimistas de como uma invasão seria e como as tropas russas seriam recebidas antes da guerra. E esta semana uma autoridade ocidental disse que Putin pode ainda não ter a visão - que a inteligência ocidental tem - de quão mal as coisas estão indo para suas próprias tropas. Isso leva à preocupação sobre como ele pode reagir quando confrontado com uma situação cada vez pior para a Rússia.
'Teoria do louco'
O próprio Putin conta a história de que perseguiu um rato quando era menino. Quando ele o encurralou, o rato reagiu atacando-o, forçando um jovem Vladimir a se tornar aquele que fugiu. A pergunta que os políticos ocidentais estão fazendo é: e se Putin se sentir encurralado agora?
"A questão realmente é se ele reagirá ou não com maior brutalidade e escala em termos dos sistemas de armas que está preparado para usar", disse um funcionário ocidental. Houve preocupações de que ele pudesse usar armas químicas ou mesmo arma nuclear tática.
"A preocupação é que ele faça algo inacreditavelmente imprudente ao apertar o botão de forma cruel", diz Adrian Furnham.
O próprio Putin pode fingir que é perigoso ou mesmo irracional - esta é uma tática bem conhecida (muitas vezes chamada de "teoria do louco") em que alguém com acesso a armas nucleares tenta fazer seu adversário recuar convencendo que ele pode ser louco o suficiente para usá-los, apesar do potencial de atingir a todos.
Para espiões e formuladores de políticas ocidentais, entender as intenções e a mentalidade de Putin hoje não poderia ser mais importante. Prever sua resposta é fundamental para descobrir até onde eles podem empurrá-lo sem desencadear uma reação perigosa.
"O conceito de Putin sobre ele mesmo não permite falhas ou fraquezas. Ele despreza essas coisas", diz Ken Dekleva. "Um Putin encurralado e enfraquecido é um Putin mais perigoso. Às vezes é melhor deixar o urso sair da jaula e voltar para a floresta."
Gordon Corera, repórter de segurança, para a BBC News, em 20.03.22
sábado, 19 de março de 2022
'É o pior Congresso que tivemos na história do Brasil', diz Lula sobre atual legislatura
Em discurso para integrantes do MST, o ex-presidente também voltou a criticar a política de preços da Petrobrás.
Lula em visita ao assentamento Eli Vive, em Londrina, para conhecer a produção de alimentos e a agroindústria do MST. Foto: Ricardo Stuckert
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) criticou neste sábado, 19, o Congresso Nacional, a política de preços da Petrobras e o processo de privatização da Eletrobras durante um discurso a membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). Segundo o petista, a atual composição da Câmara e do Senado representa "talvez o pior Congresso que tivemos na história do Brasil."
Durante uma visita a um assentamento do MST em Londrina, no Paraná, Lula pediu que seus apoiadores se dediquem à eleição de deputados e senadores que possam dar sustentação a um eventual governo petista. Para Lula, com o esquema do orçamento secreto, a Câmara passou a governar o País no lugar do presidente da República.
Lula questionou ainda o estabelecimento de uma comissão para discutir o semipresidencialismo, defendida pelo presidente da Câmara, Arhtur Lira (Progressistas).
O petista criticou o que chamou de "destruição da Petrobras" e a política de preços da petroleira. "Estamos pagando gasolina em dólar quando recebemos salário em real, os trabalhadores da Petrobras recebem em real, as plataformas são fabricadas em real", disse o ex-presidente. "A Petrobras está tendo lucro exorbitante, não para investir em tecnologia e autossuficiência, mas para dividir entre os acionistas." Lula também afirmou que os deputados deveriam agir para barrar o processo de privatização da Eletrobras, já na sua segunda etapa no Tribunal de Contas da União (TCU).
Corrupção
A Petrobras esteve no centro da Operação Lava Jato, que levou o ex-presidente Lula à prisão em 2018. O esquema bilionário de corrupção na estatal, chamado de petrolão, envolvia, segundo as investigações, cobrança de propina de grandes empreiteiras do País, lavagem de dinheiro e superfaturamento de obras, com o objetivo de abastecer políticos, partidos, além de servidores da Petrobras, durante os governos petistas.
No ano passado, Lula teve todos os seus processos da Lava Jato anulados após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que o ex-juiz Sérgio Moro, atual pré-candidato à Presidência pelo Podemos, foi parcial na condução das ações.
Na última quinta-feira, 17, o agora rival político provocou o ex-presidente após Lula dizer que a Petrobras é uma empresa que “investe no desenvolvimento do País”. No Twitter, Moro afirmou que “não teria dia mais infeliz” para o comentário do petista. “Há exatos 8 anos, a Lava Jato prendia um diretor da Petrobras que você nomeou e que recolheu propina por uma década”, escreveu o ex-juiz. “Tem certeza que você quer falar disso justo hoje?”
Cícero Cotrim, O Estado de S.Paulo, em 19.03.22, às 16h52
Os combates atingem o centro de Mariupol e a Ucrânia perde o controle do Mar de Azov
A cidade, símbolo da brutalidade russa contra civis, liga a Crimeia ao leste da Ucrânia. Rússia aumenta a tensão no oeste ao anunciar o lançamento de um míssil hipersônico a 100 quilômetros da fronteira da OTAN / Organização do Tratado Atlântico Norte
Uma mulher está em frente a um prédio residencial destruído por bombardeios russos em Mariupol na quinta-feira.(Foto: ALEXANDER ERMOCHENKO)
A expectativa com que foram recebidos os avanços da negociação anunciados por Kiev e Moscou na quarta-feira continua sendo uma miragem diante da realidade da guerra no terreno. A Ucrânia perdeu o controle do Mar de Azov nas últimas horas devido ao aperto da cerca de ferro a que as tropas do Kremlin estão submetendo a cidade de Mariupol , estratégica para a Rússia conectar a península da Crimeia sob seu poder, anexada ilegalmente em 2014 , com a região de Donbas, a leste. Ao mesmo tempo, o Ministério da Defesa russo reconheceu o uso de mísseis hipersônicos pela primeira vez.indetectável por sistemas de defesa que tem como alvo uma loja de armas subterrânea no oeste do país, de acordo com a agência oficial Ria Novosti.
Esse bombardeio, a cem quilômetros da fronteira com a Romênia, reforça a ameaça do Kremlin naquela que até poucos dias atrás era considerada a área mais segura da antiga república soviética. Enquanto isso, o presidente ucraniano, Volodímir Zelenski, continua apelando para a necessidade de avançar nas negociações para que seu país recupere sua integridade territorial, algo do qual seu homólogo russo, Vladimir Putin, se afasta todos os dias.
Socorristas carregam um soldado ucraniano salvo após 30 horas dos destroços da escola militar atingida por foguetes russos, em Mykolaiv, sul da Ucrânia, em 19 de março de 2022. - A mídia ucraniana informou que as forças russas realizaram uma grande ataque aéreo em grande escala em Mykolaiv, matando pelo menos 40 soldados ucranianos em sua sede da brigada. (Foto de BULENT KILIC/AFP)
O principal objetivo russo após 24 dias de invasão continua sendo cercar a capital, Kiev, bem como chegar às regiões de Donetsk e Lugansk, no leste, onde milícias pró-russas combatem as forças ucranianas desde 2014, e estender suas operações em a parte oriental do país, segundo o porta-voz do Ministério da Defesa ucraniano, Oleksandr Motuzniak. Até este sábado, a Rússia teria realizado um total de 1.403 ataques aéreos, segundo dados revelados por Motuzniak.
Moscou controla o porto de Mariupol desde sexta-feira, cercado e sufocado por mais de duas semanas. "Os invasores foram parcialmente bem-sucedidos no distrito operacional de Donetsk, privando temporariamente a Ucrânia do acesso ao Mar de Azov", disse o Ministério da Defesa da Ucrânia em comunicado no sábado. “Não sobrou nada do centro da cidade. Não há um pequeno pedaço de terra que não tenha sinais de guerra", disse o prefeito de Mariupol, Vadym Boychenko, à BBC horas antes, informando que as tropas russas já haviam chegado ao centro, onde mais de 80% dos edifícios de as casas estão danificadas ou destruídas e onde a população está sem água ou eletricidade.
Os combates de rua a rua no centro de Mariupol estão impedindo o resgate das "centenas de pessoas" presas no abrigo aéreo instalado no porão do teatro da cidade, que foi brutalmente bombardeado por tropas russas na quarta-feira passada. Boychenko garantiu neste sábado em declarações à BBC que as equipes de resgate só poderão continuar removendo os destroços e ajudando os sobreviventes a sair se houver uma pausa nos combates. "Há tanques, bombardeios de artilharia e todos os tipos de armas estão sendo disparados na área", disse ele, após alertar que as forças ucranianas estão fazendo todo o possível para manter sua posição, mas que "as forças inimigas" estão, "infelizmente". , mais numerosos que os deles.
Boychenko não deu uma estimativa de quantas pessoas conseguiram resgatar nas últimas 24 horas das ruínas do teatro - usado como refúgio por centenas de moradores de Mariupol desde que a ofensiva militar russa se intensificou há mais de duas semanas. Na sexta-feira, as autoridades informaram que 130 pessoas conseguiram sair e que mais de 1.000 ainda estavam presas naquele porão, que resistiu ao ataque. Moscou nega que suas forças estejam mirando em alvos civis. Também nega que tenham realizado o ataque aéreo ao teatro de Mariupol e culpa as forças ucranianas por explodi-lo como uma "provocação sangrenta".
Mar Negro
Nota: O que é controle? Manter influência física sobre uma área para evitar seu uso pelo inimigo. Pode ser alcançado ocupando-o ou dominando-o com armas. Não implica governança ou legitimidade. Fontes: Institute for the Study of War e Critical Threats Project do American Enterprise Institute (para avanços e áreas controladas); Inteligência do Reino Unido (cidades cercadas); EL PAÍS e outras fontes (combates e bombardeios).
O Ministério da Defesa do Reino Unido alertou neste sábado que a Rússia “foi forçada a mudar suas operações e agora está buscando uma estratégia de atrito. Isso certamente significará o uso indiscriminado da força que aumentará o número de vítimas civis, a destruição da infraestrutura ucraniana e a intensificação da crise humanitária”, apontam em seu relatório de inteligência sobre a situação da guerra na Ucrânia. “O Kremlin falhou até agora em seus objetivos originais. Ele ficou chocado com a escala e ferocidade da resistência ucraniana”, diz ele.
O corpo de uma pessoa morta como resultado de ataques de tropas russas na cidade portuária de Mariupol. (Foto:ALEXANDER ERMOCHENKO / REUTERS)
Mariupol tornou-se um símbolo da crueldade das tropas russascom civis na Ucrânia. Segundo dados municipais, pelo menos 350.000 moradores (antes da guerra, a cidade tinha cerca de 450.000 habitantes) continuam escondidos em armazéns e porões "antes do bombardeio contínuo pelas forças de ocupação russas", que lançam, em média, "50 a 100 bombas aéreas por dia”, enquanto a Cruz Vermelha foi forçada a deixar a cidade. Pela primeira vez esta semana, cerca de 30.000 civis foram evacuados. Sua população teve que improvisar fogueiras na rua para cozinhar e enterrou os mortos em valas comuns devido ao grande número de mortes. A cidade é um dos principais alvos de ataques de soldados russos há dias, que em várias ocasiões impediram a promessa de facilitar corredores humanitários para permitir a saída da população.ataque a um hospital materno-infantil.
Há dias, a Rússia também expandiu seus ataques para a parte ocidental do país. Este sábado, o Ministério da Defesa da Rússia garantiu que usou mísseis hipersônicos russos Kinzhal para destruir um armazém subterrâneo ucraniano “contendo mísseis e munição de aviação”, em Deliatin, no oeste da Ucrânia. As instalações, a 108 quilômetros da fronteira com a Romênia, membro da OTAN, foram "destruídas", segundo o porta-voz da Defesa Igor Konashénkov.
Essa tecnologia, que a Rússia possui desde 2018, tem a capacidade de evitar defesas antiaéreas e é lançada a partir de um caça. O nível hipersônico atinge uma velocidade de pelo menos cinco vezes a velocidade do som, mais de 6.000 quilômetros por hora. Existem dois tipos, planadores e cruzadores. Ambos podem ser manobrados para mudar sua trajetória em voo e são virtualmente imparáveis em voo baixo.
Nesta sexta-feira, o alvo dos ataques russos foi o que até agora era uma das áreas mais seguras da Ucrânia e a principal passagem para quem foge da guerra. O Exército russo lançou vários mísseis no aeroporto da cidade de Lviv, a 70 quilômetros da Polônia -país membro da OTAN e da UE-, embora sem causar vítimas fatais, naquele que foi o primeiro bombardeio na principal cidade do oeste do país desde o início da guerra e o primeiro alvo não militar. A própria região de Lviv foi alvo de mísseis russos nos últimos dias . No domingo passado, pelo menos 35 pessoas foram mortas no ataque a uma base militar em Yavoriv, a cerca de 40 quilômetros de Lviv, e na sexta-feira da semana passada outras seis pessoas perderam a vida no bombardeio de uma base aérea em Lutsk, a 87 quilômetros da Polônia.
Lviv é o principal ponto de trânsito pelo qual cerca de três milhões de pessoas fugiram da guerra como refugiadas para outros países. “Este ataque confirma que [os russos] não estão em guerra com o exército ucraniano, estão em guerra com o povo, as mulheres, as crianças, os refugiados. Não há nada sagrado para eles”, denunciou o chefe da administração militar regional de Lviv, Maksym Kozytsky, que considerou “um golpe” para um “refúgio humanitário”.
Enquanto isso, em Mikolaiv, ao sul, os esforços de resgate continuaram neste sábado, um dia após o bombardeio de uma escola militar que deixou dezenas de corpos entre as instalações destruídas. Esta é outra das cidades sobre as quais Putin vem realizando uma campanha de terror nos últimos dias porque considera um ponto estratégico estender seu controle às margens do Mar Negro e ao redor da cidade de Odessa.
As equipes de resgate continuaram ontem removendo mortos e feridos dos escombros da escola em que seis mísseis atingiram na madrugada de sexta-feira, conforme verificado pela agência France Presse. "Não menos de 200 soldados dormiam no quartel", disse Maxim, um soldado de 22 anos, que chegou de outro posto próximo e que assistiu a cena com espanto. "Pelo menos 50 corpos foram removidos, mas não sabemos quantos permanecem sob os escombros", acrescentou o jovem soldado.
Luís de Vega, de Lviv (Ucrânia) para o EL PAÍS, em 19.03.22. Ele trabalhou como jornalista e fotógrafo em mais de 30 países por 25 anos. Chegou à seção Internacional do EL PAÍS depois de reportar por um ano e meio em Madri e arredores. Antes disso, trabalhou por 22 anos no jornal Abc, oito dos quais foi correspondente no norte da África. Foi duas vezes finalista do Prêmio Cirilo Rodríguez.
O que aconteceu nos países que acabaram com as restrições contra a covid
Alguns governos chegaram até a decretar o fim da pandemia e anunciaram que a covid passaria a ser encarada como uma endemia.
O uso de máscaras deixou de ser obrigatório em muitos países europeus (Getty Images)
Alemanha, Áustria, Reino Unido, China, Coreia do Sul… Foram vários os países da Europa e da Ásia que tiveram um aumento no número de casos de covid-19 nos últimos dias.
A nova subida acontece após uma queda vertiginosa nas infecções pelo coronavírus, registrada entre o final de janeiro e o início de março, momento em que a onda provocada pela variante ômicron arrefeceu em boa parte do globo.
Esse período também foi marcado pelo fim da maioria das medidas preventivas, como o uso de máscaras em lugares fechados, especialmente nas nações europeias.
Mas como explicar esse repique nos casos? O alívio das restrições é suficiente para justificar a retomada das curvas? E será que o Brasil, que passa por um momento de queda nas estatísticas da pandemia, passará por uma piora daqui a algumas semanas? A BBC News Brasil ouviu especialistas para entender esse cenário e encontrar possíveis respostas para todos esses questionamentos.
Variante ômicron, versão 2.0
O aumento de casos em alguns países europeus e asiáticos acontece em um momento em que a BA.2, uma variante "prima-irmã" da ômicron (a BA.1) começa a se tornar dominante em muitos territórios.
Para ter ideia, a BA.2 apareceu em 68,6% das amostras que foram sequenciadas no Reino Unido entre os dias 27 de fevereiro e 6 de março. A ômicron "original" representou 31,1% dos casos no mesmo período.
Esse mesmo padrão de crescimento da linhagem BA.2, que substitui aos poucos a BA.1, pode ser observado em outros países, como Áustria, Coreia do Sul e Alemanha.
Há poucas semanas, a BA.1 reinava absoluta em muitos desses locais. Mas a variante perdeu a dianteira, de acordo com o Instituto Sorológico da Dinamarca, porque a BA.2 tem uma capacidade de transmissão 1,5 vez maior em comparação com a BA.1. E a BA.1 já era um dos vírus mais contagiosos que surgiram no último século.
"Todas as ondas que vimos nesta pandemia tiveram um componente em comum: o surgimento de uma nova variante do vírus", interpreta o médico Marcio Sommer Bittencourt, professor associado da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos.
A boa notícia é que a BA.2 não parece estar relacionada a um quadro mais grave do que o observado até agora com a BA.1.
"As análises preliminares não encontraram evidências de um risco maior de hospitalização após a infecção com a BA.2, em comparação com a BA.1", escreve a Agência de Segurança em Saúde do Reino Unido num relatório publicado no dia 11 de março de 2022.
Vale lembrar que probabilidade de sofrer complicações da covid também está relacionada à quantidade de vacinas que um indivíduo tomou ou às infecções prévias.
Ou seja: quem tem pouca ou nenhuma imunidade contra o coronavírus pode experimentar consequências muito piores do que alguém que está com as doses em dia, especialmente se considerarmos os grupos de risco (como idosos e portadores de doenças crônicas).
Outro aspecto que traz uma perspectiva otimista para esse novo aumento de casos é que ele tende a subir e cair rapidamente, a exemplo do que ocorreu com a BA.1: em países onde a BA.2 virou dominante há algumas semanas, como Dinamarca e Holanda, o registro diário de infecções já está em queda novamente, como é possível observar no gráfico a seguir.
Curva de casos de covid na Holanda e na Dinamarca
Países como Holanda (linha verde) e Dinamarca (linha laranja) tiveram uma primeira onda causada pela variante BA.1 seguida por uma segunda onda relacionada à BA.2. Nos dois lugares, o aumento e a queda aconteceram de forma rápida (OUR WORLD IN DATA)No entanto, uma elevação de casos também pode suscitar um aumento de hospitalizações e óbitos, ainda mais nos lugares com uma grande parcela da população suscetível pela baixa cobertura vacinal ou pela ausência de ondas maiores até então.
Ainda não se sabe se esse novo aumento de casos na Europa e na Ásia está acometendo apenas quem não teve covid recentemente e não foi vacinado, ou se também inclui uma proporção de indivíduos que se infectaram com a ômicron "original" recentemente.
Até o momento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que "os estudos que avaliaram a taxa de reinfecção em algumas populações sugerem que a infecção com a BA.1 proporciona uma forte proteção contra a BA.2, ao menos pelo curto período em que os dados estão disponíveis".
"Isso é algo que ainda precisa ser estudado, mas vemos que esse aumento de casos é mais intenso nos países que não têm uma taxa de vacinação adequada ou não tiveram grandes ondas anteriormente, como a Alemanha", observa Bittencourt.
"Já Portugal, que está com uma alta cobertura vacinal e teve mais casos de infecção prévia, parece possuir uma 'bagagem imunológica' maior e não experimenta um aumento de casos agora", compara o médico.
Curva de casos de covid em Portugal e Alemanha
Portugal (linha laranja) não parece estar sofrendo com um aumento grande de casos mais recentemente, enquanto a curva sobe de forma acelerada na Alemanha. Diferença pode ser taxa de vacinação e o tamanho das ondas anteriores (OUR WORLD IN DATA)Legenda da foto,
Liberou geral
Embora a alta transmissibilidade da BA.2 seja a principal explicação para o cenário europeu atual, existe um segundo elemento que precisa ser considerado: o fim de quase todas as medidas restritivas que marcaram os últimos dois anos.
Em alguns países, o uso de máscaras deixou de ser obrigatório em lugares abertos e fechados, não há mais políticas de testagem em massa, nem a recomendação de que pacientes infectados com o coronavírus fiquem em isolamento.
A mudança nas políticas públicas estimulou mais encontros e aglomerações, contextos onde o vírus consegue se espalhar em escala geométrica e criar novas cadeias de transmissão. E isso, junto com a maior taxa de contágio da BA.2, ajuda a explicar essa nova subida de casos em algumas partes do mundo.
Passados dois anos desde o início da pandemia, a política de "covid zero", seguida à risca em lugares como Coreia do Sul, Vietnã, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia, foi abandonada na maioria dos países. O único local que continua apostando nessa estratégia é a China.
Mesmo entre os pesquisadores da área, soa quase como uma utopia a ideia de eliminar completamente a covid-19 de uma região através de medidas como o lockdown no atual contexto.
China registrou recorde de mais de 5 mil casos, a maioria na província de Jilin (Getty Images)
"Do ponto de vista da saúde pública, o fechamento total das atividades pode até fazer sentido. Mas o custo de parar tudo também traz custos sociais e econômicos muito grandes", pondera Bittencourt.
"No início da pandemia, com o risco da doença muito alto, o fechamento era necessário, por mais caro e custoso que isso fosse", diferencia o médico. "Atualmente temos vacinas e muitas pessoas foram infectadas, então o risco é menor, logo as medidas podem ser calibradas para essa situação."
Isso não significa que o extremo oposto dessa postura, a liberação completa de todas as restrições, faça sentido.
Para explicar esse ponto de vista, a médica Lucia Pellanda, professora de epidemiologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, faz um paralelo entre a covid-19 e o futebol.
"Às vezes, sinto que a pandemia se assemelha a uma partida, em que estamos ganhando de 1 a 0 e simplesmente abandonamos o campo antes de o juiz dar o apito final", compra.
"Quando as coisas começam a melhorar um pouco, há uma pressa para dizer que a covid não é mais um problema e podemos acabar com todas as medidas preventivas."
"E o que a experiência nos mostra é que não existe uma solução simples para dar um fim de verdade à pandemia. Precisamos insistir com as vacinas, as máscaras e o cuidado com as aglomerações até o final desta partida", conclui a especialista.
A médica e epidemiologista Eleonora D'Orsi, professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina, concorda. "Em muitos lugares, houve uma estagnação na cobertura vacinal com duas ou três doses e, para piorar, todos os cuidados preventivos foram deixados para trás."
"E estamos lidando com uma doença sobre a qual não conhecemos todos os efeitos de longo e médio prazo. Vários estudos nos indicam que a covid não é simples e afeta outras partes do corpo além do sistema respiratório", alerta.
Já o bioinformata Marcel Ribeiro-Dantas, pesquisador na área de saúde do Instituto Curie, na França, entende que muitos desses países fizeram tudo o que podiam e o relaxamento das medidas era um passo natural e razoável.
"Houve um esforço grande do governo e da população de muitos países europeus para conter a pandemia. Os primeiros lockdowns aqui na França foram drásticos e todo mundo ficou trancado em casa", lembra o pesquisador.
"Com a estafa natural após dois anos de restrições e a ampla disponibilidade de vacinas e tratamentos efetivos, parece inevitável que alguns países diminuam as restrições."
"A questão é conseguir transformar obrigações da lei em recomendações que as pessoas sigam no dia a dia. Quando você consegue conscientizar a população sobre a necessidade do uso de máscaras em alguns ambientes, por exemplo, isso passa a fazer parte de uma nova cultura daquele local", completa o especialista.
Vacinação continua a proteger contra formas mais graves da covid, que levam à hospitalização e morte (Getty Images)
Essa onda vai chegar ao Brasil?
Enquanto os casos sobem em partes da Ásia e da Europa, o Brasil se encontra numa situação oposta: as médias móveis de casos e mortes por covid seguem em queda desde janeiro, quando o país registrou o pico da variante ômicron.
Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que não dá pra dizer que esse mesmo cenário de agravamento em curso no exterior também se repetirá no país.
Em outros momentos da pandemia, coisas que impactaram profundamente o Brasil — como a variante gama — não tiveram o mesmo efeito no cenário internacional.
E o inverso também aconteceu: embora tenha sido avassaladora na Índia e nos Estados Unidos, a variante delta não foi tão desastrosa do ponto de vista da mortalidade nas cidades brasileiras.
Até fevereiro, a BA.2 representava apenas 0,4% das amostras sequenciadas no Brasil, segundo a Rede Genômica da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz). A BA.1, a ômicron original, está presente em praticamente 99% de todo o material analisado em laboratório nesse período.
Bittencourt entende que, diante de uma situação mais estável da pandemia, "é hora de discutir algumas medidas e ajustar a intensidade delas".
"É claro que isso não significa abandonar completamente o uso de máscaras. Elas são necessárias no transporte público, mas não precisam ser usadas em lugares abertos."
"Mas precisamos ter em mente também que o Brasil flexibilizou a maior parte das medidas há tempos. Shoppings, restaurantes e casas noturnas estão funcionando normalmente", completa.
Pellanda acredita que o desafio é fazer essa comunicação sobre o manejo e a prevenção da covid de forma adequada e contextualizada. "As pessoas precisam avaliar o risco individual e de cada local em que elas estiverem", diz.
"É errado encarar as máscaras como algo ruim e limitador. Elas precisam ser incorporadas em algumas situações, da mesma maneira que fizemos com o uso do cinto de segurança nos carros e com a proibição de fumar em estabelecimentos fechados", argumenta.
Entre o fim da pandemia e uma nova piora no número de casos relacionada à BA.2 e ao relaxamento das medidas de prevenção, o caminho mais adequado e seguro em qualquer país do mundo continua bem parecido: acompanhar o que está acontecendo e adequar os cuidados à situação de momento.
André Biernath - @andre_biernath, de Londres para a BBC News Brasil, 19.03.22
Por que as autocracias fracassam
Em autocracias, decisões com frequência são tomadas dentro de um pequeno e restrito círculo. Fluxos de informação são deturpados pelo poder. Ninguém fala para o homem no comando o que ele não quer escutar. leia a análise de David Brooks
Joe Biden argumenta corretamente que a luta entre democracia e autocracia é o conflito que define nosso tempo. Então, qual sistema desempenha melhor sob pressão?
Ao longo dos últimos vários anos, as autocracias pareceram ter tido vantagem. Na autocracia, o poder é centralizado. Líderes são capazes de responder a desafios rapidamente, deslocar recursos decisivamente. A China mostrou que autocracias são capazes de produzir prosperidade em massa. A autocracia avançou globalmente, e a democracia segue em declínio.
Em democracias, por outro lado, o poder é descentralizado, com frequência polarizado e paralítico. O sistema político americano ficou desacreditado e disfuncional. Um pretenso autocrata local conquistou a Casa Branca. Acadêmicos escreveram livros populares com títulos do tipo “Como as democracias morrem”.
Ainda assim, as semanas recentes têm sido reveladoras. Ficou claro que, quando se trata das funções mais importantes do governo, a autocracia apresenta fraquezas graves. Não é hora de triunfalismo democrático; é hora de analisar realisticamente a inépcia do autoritarismo e sua possível instabilidade. Quais são essas fraquezas?
A sabedoria de muitos é melhor do que a sabedoria de megalomaníacos. Em qualquer sistema, uma característica essencial é: Como flui a informação? Em democracias, a formulação de políticas é normalmente feita, em maior ou menor medida, em público e milhares de especialistas apresentam fatos e opiniões. Muitos economistas afirmaram no ano passado que a inflação não seria um problema, mas Larry Summers e outros afirmaram que seria — e provou-se que eles estavam certos. Ainda cometemos erros, mas o sistema aprende.
Em autocracias, decisões com frequência são tomadas dentro de um pequeno e restrito círculo. Fluxos de informação são deturpados pelo poder. Ninguém fala para o homem no comando o que ele não quer escutar. O fracasso da inteligência russa em relação à Ucrânia foi estarrecedor. Vladimir Putin não tinha nenhuma ideia a respeito da vontade do povo ucraniano, não sabia como os ucranianos lutariam e nem como seu próprio Exército estava arruinado por corrupção e cleptocratas.
As pessoas almejam grandes realizações. Os seres humanos de hoje querem viver vidas plenas, ricas e aproveitar totalmente seu potencial. O ideal político liberal é que as pessoas devem ser livres o quanto possível para construir seu próprio ideal. Autocracias restringem a liberdade em nome da ordem. Por isso, muitos dos melhores e mais brilhantes russos estão fugindo da Rússia agora.
O embaixador americano no Japão, Rahm Emanuel, aponta que Hong Kong está sofrendo uma devastadora fuga de cérebros. Segundo noticia a Bloomberg, “Os efeitos da fuga de cérebros em áreas como educação, assistência médica e até mesmo finanças deverão ser sentidos pelos moradores nos próximos anos”. Instituições americanas possuem agora quase tantos pesquisadores de alto nível em inteligência artificial vindos da China quanto naturais dos Estados Unidos. Quando têm chance, pessoas talentosas rumam para onde jaz a plenitude.
Invasão à Ucrânia revelou quão incerto e perdido o instinto populista se torna quando confrontado por um adversário que não se enquadra facilmente em seu foco.
Insatisfação da oligarquia russa com efeito das sanções pode desencadear mudanças internas na política russa,
Quase todo o consumo de gás natural da Alemanha é importado por meio de gasodutos, e cerca de 55% dele vêm da Rússia.
O executivo vira gângster. Quem ascende na autocracia serve implacavelmente à firma, à burocracia. Essa implacabilidade o faz consciente de que outros poderão ser ainda mais implacáveis e manipuladores, então ele se torna paranoico e despótico. E com frequência personaliza o poder, para que ele seja o próprio Estado, e o Estado seja ele.
Qualquer dissidência é tomada como afronta pessoal. Ele pode praticar o que estudiosos classificam como “seleção negativa”. Ele não contrata os mais inteligentes e mais qualificados, essas pessoas podem ser ameaçadoras. Ele contrata os mais obtusos e medíocres. E forma um governo de incapazes (vide os comandantes do Exército russo).
O etnonacionalismo é autoinebriante. Todo mundo cultua algo. Numa democracia liberal, o culto à nação (que é particular) é equilibrado com o amor aos ideais políticos liberais (que são universais). Com o desaparecimento do comunismo, o autoritarismo perdeu uma grande fonte de valores universais. Glória nacional é perseguida com fundamentalismo inebriante.
'Sabemos o que precisamos fazer, como fazer e a que custo. E vamos cumprir absolutamente todos os nossos planos', disse Putin sobre a invasão à Ucrânia.
“Acredito na passionaridade, na teoria da passionaridade”, declarou Putin no ano passado. Ele continuou: “Temos um código genético infinito”. A passionaridade é uma teoria criada pelo etnologista Lev Gumilyov, que sustenta que cada nação possui um nível próprio de energia mental e ideológica, um espírito expansionista próprio.
Putin parece acreditar que a Rússia é excepcional em front após front e está “em marcha”. Esse tipo de nacionalismo tresloucado ilude as pessoas, fazendo-as perseguir ambições muito além de sua capacidade.
Governar contra o povo é uma receita para o declínio. Líderes democráticos, pelo menos em teoria, servem aos seus eleitores. Líderes autocráticos, na prática, servem ao seu próprio regime e à sua longevidade no poder, mesmo que isso signifique negligenciar seu povo.
Thomas Bollyky, Tara Templin e Simon Wigley ilustram como a expectativa de uma vida melhor diminuiu em países que viraram autocracias recentemente. Um estudo sobre mais de 400 ditadores de 76 países, de Richard Jong-A-Pin e Jochen Mierau, constatou que, a cada ano que a idade do ditador aumenta, o crescimento do país diminui 0,12%.
Quando a União Soviética caiu, soubemos que a CIA havia superestimado a economia soviética e o poderio militar soviético. É simplesmente difícil demais administrar uma sociedade grande por meio de um poder centralizado.
Para mim, a lição é que, mesmo ao confrontarmos autocracias até aqui bem-sucedidas, como a China, deveríamos aprender a ser pacientes e confiar no nosso sistema democrático liberal. Ao confrontarmos agressores imperiais, como Putin, deveríamos confiar nas maneiras que estamos respondendo agora. Se constantemente, pacientemente e implacavelmente intensificarmos a pressão econômica, tecnológica e política, a fraqueza inerente ao regime crescerá cada vez mais. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
David Brooks é colunista do The New York Times e autor dos livros “The Road to Character” e “The Second Mountain”. Publicado no Brasil n'O Estado de S. Paulo, em .03.22.
Partidos, polvos e camaleões
As legendas fundadas após 1985 são volúveis e os dirigentes, em expressiva maioria, insaciáveis na busca de dinheiro e poder.
Acredito que todos já ouviram falar do camaleão. Trata-se de pequeno lagarto da família dos répteis, encontrado na Europa, na Ásia, na África, no México, no Brasil. Está presente nos diversos países dos cinco continentes.
A característica desta espécie do reino animal consiste na capacidade de mudar de cor para se adaptar a diferentes ambientes. Altera do amarelo ao verde, ao vermelho, segundo a necessidade ou conveniência. Com língua longa, pegajosa e flexível, é capaz de capturar vítimas a considerável distância.
Outro animal dotado de recursos de camuflagem é o polvo, sobre o qual escreveu o Padre Antônio Vieira: “O polvo, com o seu capelo, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, (...) o dito polvo é o maior traidor do mar” (Sermão de Santo António, 1654, Sermões, vol. VII, Ed. Lello & Irmão, Porto, 1959, página 275).
No plano político, o Brasil pode ser considerado a República de camaleões. A leviandade que caracteriza o regime pluripartidário, financiado pelo Fundo Partidário e enriquecido graças ao dinheiro destinado ao financiamento de campanha, afastou homens e mulheres de bem, temerosos do contágio, para abrir espaço a camaleões e polvos exploradores da política como vulgar balcão de negócios.
A decadência a que estamos condenados traz à memória a imagem de Portugal, tal como a desenharam Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão em Uma Campanha Alegre: “O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres, corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos” (Obras Completas, Lello & Irmão, Porto, vol. III, página 959).
Arquétipo da política brasileira pós-1988 é Gilberto Kassab. Lançado na vida pública por Paulo Maluf e Guilherme Afif Domingos, elegeu-se vereador em São Paulo pelo Partido Libertador (PL), em 1992. Abandonou o PL em 1995, para se filiar ao Partido da Frente Liberal (PFL), fundado em 1985 e sucedido pelo Democratas (DEM). Por esse partido, Kassab foi secretário de Planejamento da Prefeitura na gestão do prefeito Celso Pitta.
Em 2004, aliou-se ao PSDB para colaborar com José Serra na disputa da Prefeitura, como vice-prefeito. Em março de 2011, arregimentou dissidentes do DEM, do PSDB e do PPS e fundou o Partido Social Democrático (PSD), “nem de direita, nem de esquerda, nem de centro”, como declarou na ocasião.
Na Wikipédia – Enciclopédia Livre, aberta à consulta dos interessados, pode-se ler síntese não desmentida da biografia de Gilberto Kassab. Sugiro que a consultem. Entre cargos de grande relevância, foi ministro das Cidades de Dilma Rousseff. Renunciou em 18 de abril de 2016, pouco antes da decretação do impeachment, “visto que ele já tinha acertado com Michel Temer uma posição no futuro governo”, do qual se tornou ministro da Ciência e Tecnologia.
Gilberto Kassab sofreu denúncias por improbidade administrativa. Em 2010, viu-se acusado, com a vice-prefeita Alda Marco Antônio, de financiamento ilegal de campanha e, em 2014, da contratação irregular de empresa terceirizada para efetuar inspeção veicular. Em todos os casos, foi absolvido por insuficiência de provas. O seu último cargo de confiança foi o de secretário da Casa Civil do Estado de São Paulo. Afastou-se, voluntariamente, para se defender de acusações de corrupção, nepotismo e tráfico de influência.
Ser camaleão parece-me repulsivo, mas não é crime. Há quem o considere justificável, diante das características singulares da política brasileira. Trata-se, contudo, de reprovável costume estimulado pela inexistência dos requisitos de integridade de caráter e reputação ilibada no Código Eleitoral e na Lei Orgânica dos Partidos Políticos. O presidente Jair Bolsonaro, habituado a frequentes mudanças de legendas, também é honorável membro da família dos chamaeleonidiae, cuja expansão se deve à indiferença do lumpen-eleitorado.
A prática, não usual antes de 1964, se revelou frequente com o pluripartidarismo e a redemocratização. Criados no governo Castelo Branco, Arena e MDB não tiverem o tempo necessário para acumularem tradições. Recordo-me das defecções na bancada estadual do MDB, em 1979, provocadas pelo governador Paulo Maluf, da Arena. As legendas fundadas após 1985 são volúveis e os dirigentes, em expressiva maioria, insaciáveis na busca, a qualquer custo, de dinheiro e poder. Inquéritos policiais e denúncias formuladas pelo Ministério Público são frequentes. De hábito, todavia, prevalece a impunidade.
Gilberto Kassab almeja ser o fiel da balança na Câmara dos Deputados e no Senado. Para alcançar os objetivos, quando necessário, será polvo ou será camaleão.
Almir Pazzianotto Pinto, o autor deste artigo, é Advogado. Autor de "A Falsa República". Foi Ministro do Trabalho e Presidente do Superior Tribunal do Trabalho. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo em 19.03.22.
O governo ucraniano pede à população que forneça testemunhos para coletar evidências de crimes de guerra russos
As autoridades exigem que os cidadãos registrem possíveis crimes para que possam ser investigados por tribunais internacionais
Uma mulher abraça uma foto de um soldado ucraniano morto na frente durante um funeral para três deles na Igreja dos Apóstolos Pedro e Paulo em Lviv em 9 de março. (JAIME VILLANUEVA /O PAÍS)
Cidadãos da Ucrânia receberam uma mensagem do Gabinete do Procurador-Geral do Estado (GPU) em seus telefones celulares na última quinta-feira. Essa organização pediu à população que registrasse em um site do governo testemunhos dos crimes de guerra que a Rússia está cometendo durante a ocupação. Estes documentos, indica o Ministério Público, servirão no futuro para reclamar indemnizações perante o Tribunal Penal Internacional (TPI) e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (CEDH).
“O país agressor vai pagar tudo!”, anunciava a manchete da mensagem: “Seu depoimento, fotos e vídeos serão usados como prova nos tribunais internacionais de Haia e Estrasburgo, bem como nos tribunais ucranianos para punir os invasores. , e terá direito à indenização adequada e ao restabelecimento dos direitos violados”. O governo do presidente Volodímir Zelenski lançou uma página na internet onde a população pode baixar a documentação que coleta nas zonas de conflito. O acesso ainda generalizado na Ucrânia a uma conexão de internet está permitindo que milhares de cidadãos transmitam episódios de guerra por meio de imagens tiradas com telefones celulares.
Na página habilitada pelo governo e pela GPU, warcrimes.gov.ua , é atualizado um relato das possíveis violações de direitos humanos e crimes de guerra perpetrados pelas Forças Armadas russas e seus colaboradores ucranianos, segundo as autoridades. Ludmila Denisova, comissária de Direitos Humanos do Parlamento ucraniano, informou nesta sexta-feira que 1.833 denúncias de crimes de guerra foram abertas, de acordo com o Código Penal ucraniano, baseado no Estatuto do TPI. Essas queixas afetariam cerca de 70 posições políticas e militares russas. Denisova também informou que 109 menores foram mortos em bombardeios e 130 feridos.
A União Europeia e governos como a Espanha, além dos Estados Unidos, pediram ao TPI que investigue possíveis violações de direitos humanos e crimes de guerra cometidos por forças russas. O procurador-chefe do TPI, Karim Khan, visitou a Ucrânia na sexta-feira passada e prometeu investigar e processar crimes contra o Direito Internacional Humanitário.
O Gabinete do Alto Representante para a Política Externa da UE emitiu na passada quinta-feira um comunicado em que alertava que criminalmente “os seus autores, assim como os responsáveis políticos e os líderes militares, terão de assumir as consequências destas graves violações e dos direitos humanos. ”. A UE fez menção especial na declaração ao cerco que a cidade de Mariupol está sofrendo. A Câmara Municipal garante que mais de 2.000 pessoas teriam morrido nos bombardeios, 80% dos edifícios residenciais foram danificados e 30% foram completamente destruídos. O presidente dos EUA, Joe Biden, também falou do presidente russo, Vladimir Putin, como um criminoso de guerra.
“O teatro municipal de Mariupol foi fortemente bombardeado apesar de ser bem conhecido, e foi indicado, que servia de refúgio para civis, incluindo crianças”, sublinha a diplomacia europeia. O escritório chefiado por Josep Borrell também cita um relatório da Human Rights Watch que confirma o uso de bombas de fragmentação na cidade de Mikolaiv. “Esses ataques deliberados a civis e infraestruturas civis são vergonhosos, repreensíveis e totalmente inaceitáveis. Eles representam uma grave violação do direito internacional”.
Christian Segura, de Lviv (Ucrânia) em 19.03.22 para o EL PAÍS. Christian escreve para o EL PAÍS desde 2014. Formado em Jornalismo e diplomado em Filosofia, exerce sua profissão desde 1998. Foi correspondente do jornal Avui em Berlim e depois em Pequim. É autor de três livros de não-ficção e dois romances. Em 2011 recebeu o prêmio Josep Pla de narrativa.
Outro ditador tendo um ano ruim
O fracasso da China com a covid se deve, como o de Putin na Ucrânia, à fraqueza dos governos autocráticos. Artigo de Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia
Xi Jinping e Vladimir Putin, em reunião em Moscou em 2019. (MIKHAIL SVETLOV/GETTY IMAGES)
O termo "ditador" vem da Roma antiga, onde era usado para se referir a um homem a quem a república concedeu temporariamente autoridade absoluta durante as crises. As vantagens do poder irrestrito em tempos de crise são óbvias. Um ditador pode agir rapidamente, sem passar meses negociando leis ou lutando contra obstáculos legais. E pode impor medidas necessárias, mas impopulares. Portanto, há momentos em que o governo autocrático pode parecer mais eficaz do que a bagunça das democracias do estado de direito.
No entanto, a ditadura começa a parecer muito menos atraente se continuar por algum tempo. É claro que o argumento mais importante contra a autocracia é moral: muito poucas pessoas podem exercer o poder absoluto por anos sem se tornarem tiranos brutais. Mas, além disso, um regime autocrático é, a longo prazo, menos eficaz do que uma sociedade aberta que permite a dissidência e o debate. Como escrevi algumas semanas atrás, as vantagens de ter um homem forte que pode dizer a todos o que fazer são mais do que compensadas pela ausência de discussão livre e pensamento independente.
Então ele estava falando sobre Vladimir Putin, cuja decisão de invadir um país vizinho parece mais desastrosa a cada dia que passa. Claramente, ninguém ousou dizer a ele que o poderio militar da Rússia era superestimado, que os ucranianos eram mais patrióticos e o Ocidente menos decadente do que ele supunha, e que a Rússia continuava extremamente vulnerável a sanções econômicas. Mas enquanto a guerra na Ucrânia nos obceca a todos - estou tentando limitar minha leitura da Ucrânia a 13 horas por dia - é importante notar que um desastre aparentemente muito diferente, mas profundamente relacionado, está ocorrendo em outra grande autocracia do mundo. : China, que atualmente está passando por um fracasso retumbante de sua política anticovid.
Eu sei que no Ocidente todos nós deveríamos estar superando o Covid, mesmo que ainda esteja matando 1.200 americanos por dia e as infecções estejam aumentando novamente na Europa, provavelmente anunciando outro aumento nos EUA. Mas a China claramente não a superou. Hong Kong, que por muito tempo parecia praticamente ilesa, está registrando centenas de mortes diariamente, uma catástrofe que lembra a do início de 2020 em Nova York, quando não havia vacinas e não sabíamos muito bem como limitar a transmissão. Grandes cidades chinesas como Shenzhen, um dos principais centros de manufatura do mundo, voltaram ao bloqueio. E não está nada claro quando ou como a nova crise de saúde no país terminará.
Tudo isso representa um enorme revés da fortuna. Durante grande parte de 2020, a política de "zero Covid" da China - bloqueios draconianos sempre e onde quer que surjam novos casos - foi saudada por muitos como um triunfo político. Alguns analistas, nem todos chineses, chegaram ao ponto de citar o sucesso da China contra a Covid como evidência de que a liderança global estava mudando dos Estados Unidos e seus aliados para a crescente superpotência asiática.
Então três coisas deram muito, muito errado. Em primeiro lugar, enquanto grande parte do mundo optou por vacinas de RNA mensageiro - uma nova técnica adaptada com velocidade milagrosa à covid - a China insistiu em usar as suas próprias, baseadas em tecnologia mais antiga e que se revelaram muito menos eficazes. contra a variante omicron do coronavírus. E ele não apenas insistiu em usar soros inferiores, mas desenvolvidos internamente, mas tentou dissuadir a adoção de vacinas ocidentais espalhando desinformação e teorias da conspiração.
Em segundo lugar, a taxa de vacinação entre os idosos da China – o grupo mais vulnerável – diminuiu. Isso pode ser em parte porque a desinformação sobre a tecnologia de RNA mensageiro não apenas impediu as pessoas de obter as vacinas mais eficazes, mas também levou à desconfiança em relação às vacinas em geral. Também pode refletir uma desconfiança mais ampla do governo; Os líderes da China mentem continuamente para seu povo, então por que acreditar neles quando dizem para se vacinar?
Por fim, a estratégia zero covid é extremamente problemática quando se trata de variantes tão contagiosas quanto o omicron, especialmente considerando a fraca proteção fornecida pelas vacinas chinesas. A questão é que todos esses fracassos, como o de Putin na Ucrânia, em última análise, decorrem da fraqueza inerente do governo autocrático.
Quando se trata de vacinas, a China sucumbiu ao nacionalismo míope tão prevalente em regimes autoritários. Quem gostaria de ser o oficial de saúde que disse a Xi Jinping que seus alardeados soros eram muito inferiores às alternativas ocidentais, especialmente depois que os capangas do presidente se curvaram para afirmar o contrário?
No caso da política de zero covid, quem gostaria de ser a autoridade econômica para dizer a Xi que o custo dos bloqueios draconianos, uma política da qual a China tanto se orgulha, estava se tornando insustentável? E, como já disse, um governo que mente o tempo todo tem dificuldade em fazer com que as pessoas o ouçam, mesmo quando diz a verdade. Com isso não quero cair no triunfalismo ocidental. A recusa de vacinas também é um grande problema nos Estados Unidos. E estou preocupado que estejamos nos apressando para remover as restrições anticovid. Mas a China, como a Rússia, agora está nos ensinando uma lição sobre a utilidade de ter uma sociedade aberta, na qual homens fortes não podem inventar sua própria realidade.
Paul Krugman é um Prêmio Nobel de Economia. © The New York Times, 2022. Tradução de clipes de notícias. Reproduzido do EL PAÍS, edição de 19.03.22.