quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

"Não há ameaça real, superamos ciclos do atraso", diz Barroso sobre democracia e eleições

Presidente do TSE fala sobre ataques de Bolsonaro e afirma não crer que militares queiram se envolver na política. Entrevista à Folha de S. Paulo, publicada hoje.

O ministro Luís Roberto Barroso - Antonio Augusto - 23.abr.2021/Secom/TSE

O ministro Luís Roberto Barroso deixará a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) na próxima terça-feira (22), após os quase dois anos em que organizou uma eleição municipal ainda no primeiro ano da pandemia da Covid-19, criou uma comissão de transparência com um indicado das Forças Armadas e fez parcerias com redes sociais para evitar compartilhamentos de desinformações.

Nesse período, ele e a Justiça Eleitoral também foram alvo de intensos ataques do presidente Jair Bolsonaro (PL), por meio de xingamentos e de acusações sem comprovação de fraudes. Barroso será substituído no cargo pelo ministro Edson Fachin, que comandará o TSE até agosto.

"Eu optei por não entrar com ação penal, queixa-crime [contra o presidente], por muitas razões, mas a principal é que eu não trato isso como uma questão pessoal. A democracia foi a causa da minha geração e eu me mobilizo para defendê-la, mas eu não paro para bater boca", afirmou o ministro, em entrevista à Folha.

Nos últimos dias, o TSE enviou uma série de respostas para as Forças Armadas sobre 80 dúvidas apresentadas em relação às urnas eletrônicas. O documento tem 700 páginas e, a pedido dos militares, estava sob sigilo. Diante de vazamentos sobre seu teor, porém, Barroso decidiu divulgá-lo na tarde desta quarta-feira (16).

Antes, o ministro disse à Folha que vinha considerando essa possibilidade. 

"Eu apenas não divulguei porque havia um trato feito no âmbito da Comissão [de Transparência Eleitoral] de que as coisas ali debatidas seriam mantidas sob reserva e que, ao final, se faria um relatório noticiando o que foi discutido."

O ministro Edson Fachin apontou uma preocupação do TSE com ameaças autoritárias. O sr. acha que existe uma ameaça real e que ela pode prejudicar as eleições? 

Eu não acho que haja uma ameaça real, mas houve momentos de preocupação, como o comício na porta do quartel-general do Exército, como tanques de guerra na Praça dos Três Poderes, como ataques infundados ao sistema eleitoral, o pronunciamento do 7 de Setembro com ofensas ao ministro do Supremo e a declaração de que não cumpriria mais decisões judiciais.

Esses são sinais preocupantes. Mas acho que as instituições brasileiras, tanto as instituições formais quanto as informais, reagiram de uma forma muito positiva, demonstrando a vitalidade da democracia.

Eu me refiro à imprensa, ao presidente da Câmara, ao presidente do Senado, ao presidente do Supremo e à intelectualidade de maneira geral.

Acho que nós já superamos os ciclos do atraso e que não há risco de retrocessos, mas eu gosto de citar uma frase da Legião Urbana em que eles dizem "não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acesas".

O dano dos ataques que o presidente Jair Bolsonaro tem feito ao sistema eleitoral pode ser revertido? Eu acho que a percepção crítica do sistema eleitoral é de uma parcela muito pequena da população. O próprio Datafolha fez a pesquisa e deu pouco mais de 20%.

Portanto, o presidente falando todos os dias contra o sistema gerou desconfiança em pouco mais de 20% da população. Certamente, gente que não conviveu com todas as fraudes que havia no tempo do voto em papel.

Quando o sr. assumiu o TSE, estava preparado para tantos ataques, inclusive pessoais, do presidente da República ou esperava uma postura mais institucional? 

A gente tem de viver a vida como vem. Eu não tinha muitas previsões e trato ataques pessoais com a pouca relevância que eu acho que eles merecem. Mas reagi imediatamente aos ataques institucionais, no tom que me parecia próprio.

O presidente deve ser responsabilizado por esses ataques, na sua visão? 

Eu optei por não entrar com ação penal, queixa-crime [contra o presidente], por muitas razões, mas a principal é que eu não trato isso como uma questão pessoal. A democracia foi a causa da minha geração e eu me mobilizo para defendê-la, mas eu não paro para bater boca. Acho que algumas pessoas são espiritualmente desencontradas, mas eu não dou a elas o poder de me tirar do meu centro.

Mas e em relação aos ataques institucionais, não só pessoais? 

Nesses, onde havia acusações falsas de fraude, o Tribunal Superior Eleitoral fez uma notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal para apuração. Depois, fiz outra notícia-crime quando do vazamento de dados da arquitetura do TSE que estavam em inquérito sigiloso da Polícia Federal.

Essas apurações vão ter conclusão em breve? 

Quem conduz os inquéritos é o ministro Alexandre de Moraes.

O vereador Carlos Bolsonaro vai comandar a campanha digital do pai, o presidente. Ele tem um histórico de ataques e desinformação nas redes sociais. Ex-ministros também estão apresentando desinformações em relação à viagem à Rússia. Vai ser um problema nas eleições? 

A desinformação em si é um problema. Eu não falo de pessoas, mas a desinformação é um problema tão grande que nós temos, no TSE, uma comissão permanente de enfrentamento à desinformação.

Ontem [terça-feira, 15], assinamos parcerias com todas as principais redes sociais que operam no Brasil para o enfrentamento da desinformação, sobretudo dos chamados comportamentos inautênticos, que é a utilização de robôs, perfis falsos e trolls —pessoas contratadas para difundir notícias falsas—, e para minimizar o risco dos disparos em massa ilegais. Estamos tomando as providências possíveis, sobretudo para a proteção do sistema eleitoral.

O TSE tem investido bastante em transparência a respeito do processo de votação. Nesse sentido, as respostas dadas aos militares a respeito das urnas não poderiam ter sido públicas? [O conteúdo foi divulgado nesta quarta após a entrevista] Olha, não há nenhum problema, nem nas perguntas nem nas respostas, que impeça a divulgação.

Apenas não divulguei porque havia um trato feito no âmbito da Comissão [de Transparência Eleitoral] de que as coisas ali debatidas seriam mantidas sob reserva e que, ao final, se faria um relatório noticiando o que foi discutido. Mas, para ser sincero, diante do vazamento, nós estamos considerando divulgar publicamente, porque não há nenhum problema. Não tem nada comprometedor, não tem nenhuma crítica. São só perguntas e respostas técnicas. Para falar a verdade, é um documento técnico de leitura árdua.

Os srs. chegaram a conversar com o general indicado para a comissão a respeito disso? 

Porque a falta de divulgação tem dado munição ao presidente para fazer ataques ao TSE e às urnas. Não conversamos a respeito.

O general [da reserva e ex-ministro da Defesa] Fernando Azevedo não vai ser mais diretor-geral do TSE. Isso dá uma sinalização ruim? Primeiro, é uma pena, porque ele é um quadro altamente qualificado, mas, se uma pessoa alega motivos de saúde, tudo o que você pode fazer é aceitar a decisão.

Mesmo sem Azevedo, os militares vão ter uma participação maior nessa eleição do que nas anteriores, já que fazem parte da Comissão de Transparência Eleitoral e solicitam informações. Isso dá mais segurança às eleições ou traz riscos? 

Eu não acho que são [todos] os militares. Tem um representante das Forças Armadas indicado pelo ministro da Defesa. Em mais de 30 anos de democracia do Brasil, os militares não se envolveram em política e não creio que queiram se envolver em política, e é bom que seja assim.

O sr. tem conversado com plataformas de redes sociais e muito já se discutiu sobre como elas lucram com desinformação. Isso continua sendo um problema? 

Existe um problema que não é propriamente das plataformas, é um problema da condição humana.

O ódio, a mentira e sensacionalismo geram muito mais engajamento do que um discurso racional e moderado. O post ou a notícia absurda dão muito mais cliques, e a remuneração das plataformas em geral se dá em função do número de acessos.

Portanto, há um problema que precisa ser neutralizado. Para isso, existe a legislação e existem os acordos que nós estamos fazendo, pelos quais, consensualmente, se procura evitar esse tipo de abuso.

O sr. disse que o Telegram vai estar no acordo que o TSE fez com as plataformas ou "não vai estar". O que quis dizer com isso? Eu acho que, para atuar no Brasil e ser um ator relevante no processo eleitoral brasileiro, qualquer plataforma e qualquer entidade precisa estar submetida à legislação brasileira e às decisões da Justiça brasileira. Não é [só] o Telegram.

Mas o Telegram, necessariamente, teria de participar do acordo com o TSE? 

Eles têm de ter uma representação que possa receber e cumprir as ordens e seguir a legislação brasileira. Já há um projeto na Câmara dos Deputados, aprovado no Senado, que diz isso. É uma questão de fazer valer.

Eu tenho dito que o ideal é que o Congresso tome essa deliberação, mas, se o Congresso não tomar essa deliberação, a matéria provavelmente vai chegar, se não ao TSE, ao menos no Supremo.

O acordo seria um passo à frente que o Telegram teria que tomar, não? 

Mas é que um acordo exige um consenso. A característica de acordo é que é um ato de vontade, e portanto ninguém é obrigado a fazê-lo. Mas, a cumprir a lei, é.

O presidente da Câmara disse que deseja que essa lei das fake news não seja contra o Telegram especificamente e que seja moderada... Eu estou de acordo. Uma lei não deve ser especificamente contra ninguém. A característica de uma lei é ser uma norma geral e abstrata. Vale para todo mundo.

Em 2020, os usuários tiveram bastante dificuldade em justificar ausência no aplicativo do TSE. Esse problema está resolvido para esse ano? 

Está bem equacionado. É preciso lembrar que o TSE, no dia das eleições, sofreu um massivo ataque –chama-se ataque de negação de serviço.

Milhares de computadores de diferentes partes do mundo tentaram derrubar o sistema do TSE, sem conseguirem. Eu sou muito convencido de que a coordenação desses ataques veio daqui de dentro do Brasil, mas a Polícia Federal infelizmente nunca conseguiu chegar nos atores.

Há proteção para um novo ataque massivo? 

O que eu posso assegurar é que não há risco de um ataque interferir no resultado das eleições, porque as urnas nunca entram em rede.

Você pode derrubar o sistema do TSE, mas não tem como fraudar a eleição, porque a urna eletrônica, às 17h, quando termina a votação, imprime o boletim com o resultado da eleição. Esse boletim é impresso em muitas vias, é distribuído aos partidos e é colocado na internet.

O envio desses dados ao TSE é só para fazer a totalização. São quase 6.000 municípios, milhares de candidatos e você faz uma totalização centralizada, mas dá para fazer a conta à mão. Não tem como fraudar a eleição.

Eu não posso garantir que não vá haver ataque, nem posso garantir que não vão derrubar o sistema. Posso dizer que até agora nunca conseguiram. Mas, se derrubarem, não acontece nada de ruim no tocante ao resultado das eleições

Luís Roberto Barroso, 63

Nascido em Vassouras (RJ), o ministro se formou, fez doutorado e deu aulas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Além de atuar na advocacia privada, foi procurador do estado no Rio. Foi indicado ao STF pela ex-presidente Dilma Rousseff, em 2013

José Marques, de Brasília para a Folha de S. Paulo. Publicado originalmente em 17.02.22.

Disque STF

Sabotagem à política sanitária, agora da parte de Damares, merece novo veto

O Supremo Tribunal Federal tem atuado, ao longo da pandemia, como um contraponto necessário às omissões e sabotagens do governo Jair Bolsonaro (PL).

São exemplos desse papel decisões como a que reafirmou a competência concorrente de estados, municípios e União para gerir a crise, bem como a que manteve a obrigatoriedade do passaporte da vacina para todo viajante do exterior que desembarca no Brasil.

Enquanto a primeira permitiu a implementação local de restrições à circulação e ao funcionamento de estabelecimentos, cruciais nos momentos em que o coronavírus matava diariamente milhares de brasileiros, a segunda visava o objetivo óbvio de impedir que não vacinados escolhessem o território brasileiro como destino.

Nesta semana, a intervenção do tribunal, na figura do ministro Ricardo Lewandowski, mostrou-se mais uma vez necessária diante das deploráveis manifestações do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.

Conforme revelou a Folha, a pasta elaborou nota técnica contrária aos imperativos da imunização infantil e do passaporte vacinal, os mais recentes alvos das hostes bolsonaristas —depois do distanciamento, das vacinas e das máscaras.

Mais grave, o ministério também incentivou que o Disque 100, principal canal governamental para denúncias de violações dos direitos humanos, fosse usado por aqueles que não se vacinam para relatar "discriminações" sofridas.

Como um professor que corrige uma tarefa malfeita, Lewandowski determinou que o documento seja retificado a fim de que se coadune com a interpretação conferida ao tema pela corte.

Nele devem ser incluídas afirmações que, embora elementares, servem para evitar a desinformação —como esclarecer que "vacinação compulsória não significa vacinação forçada" e pode ser implementada por meio da "restrição ao exercício de certas atividades", desde que previstas em lei.

Quanto ao Disque 100, o ministro prescreveu que a pasta pare de utilizá-lo fora de suas finalidades institucionais e deixe de estimular "o envio de queixas relacionadas às restrições de direitos consideradas legítimas" pelo Supremo.

Não deixa de ser lamentável que questões dessa natureza terminem decididas em um tribunal. No entanto, ante a treva bolsonarista, trata-se do menor dos males.

Editorial da Folha de S. Paulo, em 17.02.22 

editoriais@grupofolha.com.br

‘Cena de filme de terror’: os relatos sobre o temporal que virou tragédia com quase 100 mortos em Petrópolis

O temporal causou estragos em diversos pontos do município. Segundo o governo do Rio de Janeiro, foram registradas 89 áreas atingidas, com 26 deslizamentos.

Bombeiros procuram por sobreviventes na lama (Reuters)

"Foi cena de um filme de terror", define o dentista Lucas Ribas sobre o que presenciou em Petrópolis, na região Serrana do Rio de Janeiro, após o município ser atingido por um temporal na terça-feira (15/2).

Lucas saía do trabalho durante a noite quando viu o cenário de destruição deixado pela forte chuva.

"No Centro da cidade havia muitos corpos, muita gente morta que foi levada pela chuva, se afogaram, bateram em algum lugar ou ficaram presas nos carros", diz à BBC News Brasil.

De acordo com o Corpo de Bombeiros, até 21h30 de quarta (16), foram contabilizadas 94 pessoas mortas em decorrência das fortes chuvas de terça-feira.

Nas redes sociais, enquanto algumas pessoas compartilharam registros do impacto causado pela chuva, outras divulgaram fotos de entes queridos que desapareceram em meio ao temporal.

O volume de água acumulada na cidade chegou a 259 milímetros em apenas seis horas de terça-feira, segundo o Climatempo. O valor supera o que era esperado para todo o mês de fevereiro: 238,2 milímetros.

De acordo com o jornal O Globo, dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) apontam que há pelo menos 90 anos Petrópolis não enfrentava uma chuva tão volumosa em 24 horas como a de terça.

A Prefeitura de Petrópolis decretou estado de calamidade pública. Nos hospitais, segundo a gestão local, as equipes foram reforçadas para atender as vítimas.

Imagens registrada pelo dentista Lucas Riba mostram passageiros em ônibus tomado pela enchente

Para os moradores, as cenas presenciadas em razão do temporal nunca serão esquecidas.

"Ainda não caiu a ficha. Eu tenho 44 anos, nasci em Petrópolis, a gente sempre presenciou várias tragédias, mas sempre em lugares isolados e não também no Centro da cidade. O que aconteceu aqui ontem acho que nunca mais vai acontecer porque foi algo impressionante", diz a professora Bianca Maria Leite.

'Foi tudo muito rápido'

O temporal culminou em um cenário desolador em Petrópolis. Em vários vídeos que circulam pela internet, é possível ver imagens de árvores, eletrodomésticos, móveis e veículos sendo levados durante a enchente.

Inúmeras casas foram atingidas. Em algumas, os moradores perderam todos os eletrodomésticos e móveis, enquanto em outros a própria construção foi devastada pela forte chuva.

"Perdi tudo, não tem nada. Levou tudo embora. Não sei o que a gente vai fazer a partir de agora, porque a pedra ali tá quase caindo de novo. Se descer vai pegar mais casas para baixo", disse em entrevista ao telejornal SBT Rio um morador que teve a casa atingida.

Segundo o governo do Rio de Janeiro, ao menos 372 pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas na cidade.

O comércio local também foi atingido e muitos ficaram embaixo d'água. Em vídeos que circulam nas redes é possível ver diversos estabelecimentos alagados.

"Eu estava na academia e ela começou a alagar. Eu só senti que tinha que sair dali. Um pessoal ficou limpando a água do chão e jogando pro ralo. Nisso, consegui ir ao shopping, que tem três andares de estacionamento. Fiquei aguardando e não parava de chover nunca. Quando vi, a rua parecia um rio muito fundo, porque passava muita água. Olhei pro lado da academia e ela estava toda revirada: a água entrou no fundo da academia, foi destruindo tudo e jogou os equipamentos na metade da rua", detalha o universitário Vinícius Magini.

O dentista Lucas Ribas conta que ele e outros funcionários lutaram para salvar os equipamentos do consultório em que ele trabalha. "Foi tudo muito rápido, como se fosse um tsunami de lama. Quando a gente viu era uma aguinha entrando no consultório, logo isso virou muita água, depois começou a transbordar e virou enchente. Foi tempo de a gente subir com equipamentos, fechar as portas, tirar tudo de valor que tinha e salvar o máximo de coisas que podia. Foi desesperador", diz.

Bombeiros atuam em resgates de vítimas da tragédia (EPA)

Na noite de terça, inúmeros pontos da cidade ficaram sem energia elétrica. Na região central houve diversos relatos de roubos e estabelecimentos saqueados em meio ao rastro de destruição do temporal.

Os desaparecidos

Em meio ao temporal, inúmeras pessoas desapareceram. Há registros de busca por moradores de diferentes idades, de crianças a idosos.

Há relatos de pessoas que teriam sido levadas pela água, outras que estariam em regiões que foram soterradas e pessoas que estavam em veículos que foram carregados pela enchente.

De acordo com as autoridades locais, não há números oficiais de desaparecidos na cidade.

Atualmente, cerca de 400 bombeiros auxiliam nas buscas em diferentes áreas da cidade.

Sem respostas, familiares buscam notícias pelas redes sociais. Em alguns posts feitos na terça-feira, é possível observar atualizações de familiares que comemoram que a pessoa foi encontrada bem. Em outros, porém, há a confirmação de que a pessoa foi uma das vítimas das consequências do temporal.

"Infelizmente acharam ele sem vida. Pra ser sincera, não sei o que realmente houve, só tive a notícia de que o corpo dele está no IML", diz uma amiga de um adolescente que teve a morte confirmada. Ela havia disponibilizado o seu número de celular para receber notícias sobre o amigo na noite de terça, após ele ser considerado desaparecido.

No Instituto Médico Legal (IML) da cidade, familiares buscam respostas sobre os desaparecidos.

Chuva causou enchentes e deslizamentos em diversos pontos da cidade (Reuters)

"Vi a chegada de três carros da Defesa Civil com corpos. É angustiante", diz Anallu Andrade. Ela é prima de um garoto de oito anos que estava em um ônibus que foi levado pela enchente.

"Fui para o IML porque um policial viu meu story (postagem temporária no Instagram; nela, Anallu buscava pelo primo) e disse que possivelmente meu primo já foi encontrado sem vida, porque encontraram um menino na faixa etária dele que parecia com ele, só não tinha como me dar certeza. Sabendo disso, eu cheguei ao IML sem nenhuma certeza se é ele ou não", diz Anallu.

A Polícia Civil do Rio de Janeiro divulgou que montou uma força-tarefa com cerca de 200 agentes, com profissionais como peritos legistas e criminais papiloscopistas, auxiliares de necropsia e servidores de cartório para auxiliar na identificação das vítimas.

Após passar algumas horas no IML, Anallu voltou para casa sem respostas. Ela deverá retornar ao local nesta quinta-feira (17/2). "A avó e a mãe dele estão sem condições de ir (ao IML)", explica.

Depois do temporal

Na quarta-feira, Petrópolis amanheceu em clima de luto. Os números de corpos encontrados foram atualizados ao longo do dia.

"O dia seguinte é triste. A cidade embaixo da lama e as pessoas sem nem saber por onde começar", diz o dentista Lucas Ribas.

O fotógrafo Breno Luis Telles fez registros na manhã seguinte ao temporal. "Fiz imagens no Centro Histórico e infelizmente o cenário é de guerra. Nunca vi uma coisa assim. Gente morta em todos os lados, carros em cima de carros, um cheiro horrível. Infelizmente, a gente vê uma cidade que parece que foi bombardeada", diz à BBC News Brasil.

Fotógrafo registrou Petrópolis na manhã de quarta-feira após o temporal (Breno Telles)

Na cidade, foi possível ver cenas como morros que vieram abaixo, ruas bloqueadas por materiais deixados pela inundação, veículos empilhados, casas destruídas, estabelecimentos atingidos pela lama, comerciantes tentando estimar o prejuízo causado pela tragédia e famílias buscando formas para recomeçar.

Os moradores convivem com o temor de novos temporais. Na quarta, a previsão era de chuva fraca a moderada para a região. A Secretaria de Estado de Defesa Civil alertou que o município segue em estágio operacional de crise e orientou a população a ficar atenta aos informes, porque alertas sobre a situação podem ser atualizados a qualquer momento.

A Defesa Civil municipal argumentou que o temporal foi causado pela "passagem de uma frente fria pelo oceano, em conjunto com as instabilidades geradas pelo aquecimento diurno, mais a disponibilidade de umidade".

Nas redes sociais e em vários pontos da cidade foram organizadas campanhas para arrecadar itens para ajudar as pessoas afetadas de diferentes formas pela chuva.

Vinícius Lemos - @oviniciuslemos, da BBC News Brasil, em 16.02.22

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Para furar bolha da Lava-Jato e se aproximar dos jovens, Moro lança “morocast”

No discurso de filiação ao Podemos, Sérgio Moro admitiu que sua voz racha de vez em quando. O ex-juiz rachou a direita e encantou os bolsonaristas arrependidos 



Por Bela Megale

No discurso de filiação ao Podemos, Sérgio Moro admitiu que sua voz racha de vez em quando. O ex-juiz rachou a direita e encantou os bolsonaristas arrependidosNo discurso de filiação ao Podemos, Sérgio Moro admitiu que sua voz racha de vez em quando.

Na tentativa de falar com eleitores de fora da bolha da Lava-Jato e se aproximar dos mais jovens, Sergio Moro lançará um podcast no próximo mês. Batizado de “Morocast”, o projeto terá duas entrevistas semanais transmitidas por meio do Youtube.

A meta da campanha é que a iniciativa ajude Moro retirar a toga para se aproximar das pessoas como efetivo candidato à Presidência. No podcast, Moro vai fazer entrevistas com médicos, educadores, representantes da sociedade civil, entre outros, para coletar propostas que serão incluídas no programa seu governo.

O Globo, em 16/02/2022 • 18:36

Tribunal de Justiça de Minas vai pagar R$ 607 mil de aluguel sem licitação por escritório de ‘apoio’ em Brasília

Contrato tem vigência de cinco anos; Corte diz que filial vai servir para 'apoio logístico e administrativo' na capital federal   

Escritório do TJMG em Brasília fica no oitavo andar do Edifício CNC. Foto: Riva Moreira/TJMG

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) inaugurou nesta quarta-feira, 16, um escritório de representação em Brasília. O contrato de locação, com dispensa de licitação e vigência de cinco anos, vai custar um total de R$ 607 mil.

A sala vai funcionar no oitavo andar do Edifício da Confederação Nacional de Comércio (CNC), na Asa Norte, próximo ao acesso para a Praça dos Três Poderes, onde ficam o Supremo Tribunal Federal (STF), o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional.

O TJ-MG diz que o escritório vai servir como um ‘órgão de assessoramento técnico’ para ‘apoio logístico e administrativo’ aos magistrados e servidores mineiros. A ideia, ainda segundo a Corte, é ampliar a interlocução com os tribunais superiores, sediados em Brasília, e viabilizar ‘parcerias técnicas’ e ‘novos projetos que possam inovar ou dinamizar o desenvolvimento do Poder Judiciário’.

“Além de estreitar ainda mais as relações institucionais, especialmente, com os Tribunais Superiores e o Conselho Nacional de Justiça, representantes do Poder Judiciário mineiro passam a contar com infraestrutura necessária para realizar reuniões e encontros, bem como acompanhar a tramitação dos procedimentos administrativos”, diz um trecho da nota divulgada pelo tribunal.

A cerimônia de inauguração do escritório contou com a presença do presidente do TJ-MG, desembargador Gilson Soares Lemes; do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), e do vice-governador do Distrito Federal, Paco Britto (Avante); do senador Carlos Viana (MDB-MG) e do deputado Diego Andrade (PSD-MG); dos ministros João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Leonardo Puntel, do Superior Tribunal Militar (STM), Luiz Felipe Vieira Melo, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), e Antônio Augusto Anastasia, do Tribunal de Contas da União (TCU).

Redação d'O Estado de S. Paulo, em 16.02.22, às 19h02

Não é tempo de medo

As eleições deste ano serão produtivas se forem capazes de propiciar melhor percepção das questões coletivas.

Por Nicolau da Rocha Cavalcanti

Com exceção dos poucos defensores da intervenção militar, a imensa maioria dos brasileiros apoia o regime democrático, com a realização periódica de eleições. O consistente apoio popular não impede, no entanto, que ano eleitoral provoque em muitos de nós um frio na barriga. Qual Congresso sairá das urnas nestas eleições? Quem ocupará pelos próximos anos a Presidência da República?

Não é sem motivo essa apreensão. As eleições de 2014 e de 2018 geraram fortes frustrações e revoltas, tanto em quem apoiou os candidatos vencedores como em quem votou nos derrotados. Em público, talvez os eleitores ainda defendam seus candidatos, mas é impossível, por exemplo, que alguém identificado com a proposta petista não tenha se surpreendido com Joaquim Levy no Ministério da Economia de Dilma Rousseff ou que alguém entusiasmado com as ideias de Paulo Guedes em 2018 não esteja decepcionado com os resultados do governo atual. Mais do que atritos entre familiares e amigos – tão visíveis nos tempos atuais –, a política pode suscitar profundas frustrações interiores.

Tem-se, assim, uma situação paradoxal. Batalhamos – ou nossos pais e avós batalharam – pela restauração da democracia, mas agora o direito ao voto parece suscitar pouco entusiasmo. Jovens (e não tão jovens) não querem votar. Nem sequer começou a campanha eleitoral, e as pesquisas de opinião já provocam prematuros sentimentos de euforia ou de melancolia, a depender do posicionamento político de cada um. Sem que nenhum voto tenha sido depositado nas urnas, o cenário já estaria definido.

Surge, então, a questão: será que o discurso democrático sobrevaloriza o voto? O tão festejado protagonismo da sociedade no regime democrático seria ilusório? Não existem respostas binárias para essas questões. Há, no entanto, um fato incontestável: são os nossos votos que elegem os governantes e parlamentares. Assim, mais do que reduzirem o voto a um exercício de autoengano, as frustrações com a política desvelam as muitas consequências do voto.

Ano eleitoral não é tempo de medo, e sim de responsabilidade. Eleições são janelas de oportunidade: para apoiar o que está funcionando, para corrigir o que está atrapalhado, para retirar da função pública quem se mostrou incapaz de suas atribuições, para incluir na vida pública novos talentos. Os efeitos do voto são impressionantes. Não há espaço para a desmobilização.

Além disso, as eleições de 2022 têm uma conotação especial. A pandemia bagunçou nossa cronologia. Os eventos prévios à covid-19 parecem situar-se noutra geração, noutro mundo. Essa peculiar percepção do tempo tem efeitos negativos, alguns perturbadores. A vida, que sempre corre, parece ter acelerado ainda mais. Mas essa específica dinâmica do tempo também pode favorecer a responsabilidade política, ao permitir um maior distanciamento.

Em certo sentido, é positivo que o ano de 2018 pareça distante. Tivemos de conviver por mais tempo com as escolhas feitas nas eleições passadas. Tudo demorou mais do que o relógio nos contou. Além de advertir sobre a responsabilidade política, este novo ritmo do tempo propicia a sensação, saudável em tantos âmbitos da vida, da “primeira vez”: votar em 2022 como se fosse a primeira vez.

A sensação de estreia gera entusiasmo, favorece a atenção e, fundamental para o exercício dos direitos políticos, recorda-nos de que sabemos pouco, que a nossa experiência política é limitada. É preciso ler mais, conversar mais, debater mais, escutar novas perspectivas. Não é estimular a insegurança, mas suscitar a necessidade de conhecer mais sobre os candidatos e suas propostas e, especialmente, sobre o próprio processo democrático, com suas várias possibilidades de participação.

Nesta trajetória, talvez possamos redescobrir um aspecto fundamental do fenômeno político. O processo é mais importante e transformador do que o resultado em si. Obviamente, o resultado das urnas é relevante, mas não é o decisivo, especialmente em médio e longo prazos. Mais do que pela vitória ou derrota de determinado partido político, a campanha e as eleições de 2022 serão produtivas se forem capazes de propiciar melhor percepção das questões coletivas e maior responsabilidade de todos com a coisa pública.

Talvez seja esta expectativa que gere frustração: nas eleições, esperamos que nossos candidatos vençam e que as coisas melhorem. É natural esperar isso, mas ao mesmo tempo é frustrante esperar tão pouco. É frustrante – e equivocado, num regime democrático – achar que o futuro comum depende tão pouco da gente.

A democracia não é apenas uma ideia. Cabe a nós realizá-la na prática. Quando se dá atenção ao processo – quando se vê que as coisas acontecem não apenas nas urnas, mas especialmente antes e depois delas: neste caminho de ampliar percepções, aprimorar diagnósticos, promover diálogos, construir pontes e reforçar o cuidado com o coletivo –, a mágica acontece. Os resultados da democracia deixam de depender do acaso para se tornarem a consequência natural do nosso trabalho – ou das nossas omissões.

Nicolau da Rocha Cavalcanti, o autor deste artigo, é advogado e jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 16.02.22

General desiste de cargo no TSE contrariado com uso político das Forças Armadas por Bolsonaro

Família pressionou ex-ministro Fernando Azevedo por temer agravamento de problema cardíaco diante de tensão política

     O general de Exército da reserva Fernando Azevedo e Silva; ex-ministro da Defesa desistiu de assumir a Diretoria-Geral do TSE Foto: Adriano Machado/Reuters

Por Eliane Cantanhêde e Felipe Frazão

A desistência do ex-ministro da Defesa e general de Exército da reserva Fernando Azevedo e Silva de assumir o cargo de diretor-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desvela o desconforto corrente na caserna com as novas “funções” relacionadas às eleições de 2022. O general estava incomodado e reclamou, a pessoas próximas, que o presidente Jair Bolsonaro tinha voltado a manipular os militares e a atacar o sistema eleitoral, lançando as Forças Armadas em narrativas para desacreditar as urnas, contra iniciativas do TSE e do Supremo Tribunal Federal. Com trânsito nos três poderes, Fernando Azevedo preferiu, no entanto, justificar a decisão por motivos de saúde e familiares.

Fontes com acesso ao ex-ministro disseram que ele descobriu um problema cardíaco que requer tratamento imediato. Amigos e familiares, contrários ao cargo, o pressionaram a desistir por causa do alto estresse previsto para a função, no caldeirão político que se formou. Essa versão também foi compartilhada pelo ex-ministro com militares da reserva e da ativa, inclusive no Forte Apache, o Comando Geral do Exército.

(Fachin: ‘A Justiça Eleitoral já pode estar sob ataque de hackers’)

Auxiliares do general disseram que ele estava animado com o profissionalismo do corpo técnico e vinha estudando a estrutura do tribunal. Ele e outros militares que teriam cargos no TSE passaram uma semana na sede da Corte, em janeiro. Em conversa com o Estadão, Azevedo referendou o processo de votação. “As urnas eletrônicas funcionam há 26 anos, nunca tiveram problema e foram aprovadas pelo Congresso. O Congresso aprova, a Justiça eleitoral cumpre”, afirmou. “Fiquei muito honrado com o convite e a confiança dos ministros (Edson) Fachin, (Luís Roberto) Barroso e Alexandre (de Moraes). O TSE tem excelentes quadros, 90% dos funcionários passaram por concurso, muitos têm mestrado e doutorado, conhecem profundamente administração pública.”

Depois do diagnóstico, no entanto, há cerca de três semanas, ela passou a consultar amigos e familiares e sofreu forte pressão dos filhos para declinar. Azevedo comunicou a decisão nesta terça-feira, dia 15, em reunião de cerca de três horas com os ministros da corte. Por enquanto, o atual diretor-geral, Rui Moreira de Oliveira, fica no cargo.

O general, segundo pessoas próximas, tinha consciência da pressão que sofreria e da responsabilidade do cargo, sentindo-se encarregado de legitimar o poder que vai ser entregue ao próximo presidente eleito. Compartilhava também do “constrangimento” de segmentos da caserna incomodados com manipulação da marca das Forças Armadas pelo presidente.

Passou a incomodar setores das Forças Armadas o protagonismo que receberam numa disputa que tem colocado em lado opostos o TSE e o presidente Jair Bolsonaro. Além do cargo administrativo que o ex-ministro ocuparia, os militares passaram a integrar, de forma inédita, a Comissão de Transparência Eleitoral, criada pela Justiça diante da crescente onda de desinformação e de tentativas de desacreditar as urnas eletrônicas.

As Forças Armadas não se negam a participar institucionalmente, mas nos bastidores não são poucos os oficiais da ativa que veem nessas duas frentes uma armadilha. Isso porque, segundo eles, podem se ver no meio de uma guerra entre a corte e o presidente Jair Bolsonaro, chefe-supremo das Forças Armadas.

Para oficiais, tanto o cargo agora dispensado pelo general de Exército da reserva Fernando Azevedo e Silva quanto o assento ocupado pelo general de Divisão Heber Garcia Portella, chefe do Centro de Defesa Cibernética, na comissão, abrem flancos para manobras políticas com os militares por parte do presidente Jair Bolsonaro e para novos desgastes como os já acumulados pelo engajamento dos generais da reserva e da ativa no alto escalão do governo.

Um exemplo ocorreu na semana passada. Bolsonaro usou uma transmissão nas redes sociais para “vazar” e até distorcer informações sobre questões enviadas pelos militares à Justiça Eleitoral, sobre o funcionamento do sistema eletrônico de votação. Bolsonaro disse que o Exército havia encontrado “dezenas de vulnerabilidades” sobre as urnas eletrônicas e que ficaram sem explicação. Mas, como o Estadão antecipou, os militares enviaram apenas perguntas técnicas. Elas estavam sob sigilo até esta quarta-feira, dia 16.

Em resposta a Bolsonaro, os ministros do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes decidiram lançar luz sobre o documento. A corte publicou a íntegra dos questionamentos do Exército e as respectivas respostas.

As desconfianças sobre as urnas, bandeira do presidente e sua base, são compartilhadas por parte do oficialato da reserva e até por generais que compõem o governo. O Estadão revelou no ano passado que o ministro da Defesa, general Braga Netto, havia ameaçado a realização das eleições sem voto impresso aprovado, o que ele negou. A proposta governista foi derrotada no Congresso. O ministro da Secretaria Geral da Presidência, Luiz Eduardo Ramos, escalou o assessor de confiança Eduardo Gomes, coronel que trabalhou na inteligência do Exército, para divulgar desinformações e suspeitas infundadas sobre as urnas, ao lado de Bolsonaro.

 Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, edição online, em 16 de fevereiro de 2022 | 19h36

A coisa em Cuba está pegando fogo

A inflação e a desconfiança no peso cubano são objeto de profundo desconforto e foram uma das causas do descontentamento popular na base dos protestos maciços de 11 de julho

Um homem caminha carregando uma caixa de ovos pela rua Obispo, em Havana, na quinta-feira, 27 de janeiro de 2022. (Yander Zamora)

— Vamos, vamos nos ver um pouco, porque hoje eu vou falar com você sobre isso , Lázaro propõe, e ele solta uma de suas risadas contagiantes cheias de duplo sentido.

A coisa a que ele se refere não é outra coisa senão "a situação", a vida em Cuba e seu tibiri tábara, a provação cotidiana da subsistência, com suas angústias, absurdos e invenções para sobreviver, "um heroísmo nestes tempos", ele diz.

Nos encontramos em San Rafael, ao lado do Hotel Inglaterra, na divisa entre o Centro Habana e Havana Velha.

Ele conta que antes de 1959 essa rua era famosa por suas elegantes lojas e grandes armazéns, especialmente El Encanto e Fin de Siglo, (precursores das Galerías Preciados e El Corte Inglés, na Espanha), e também por seus bares, vitrines luxuosas e cinemas, como o Duplex ou o Rex, agora fora de serviço. "Você vê o que sobrou: vitrines vazias, fachadas quebradas e ofertas de terceira categoria, as mesmas de todos os lugares", diz ele.

O ponto de encontro foi escolhido por Lázaro não por isso, mas também não por acaso; ele gosta de ficar em lugares que têm “história”.

Lembre-se que na década de 1990, quando outra grave crise sacudiu o país após a desintegração do campo socialista, dezenas de trabalhadores autônomos se estabeleceram neste local para ganhar a vida nas ruas. O Período Especial estava causando estragos, e para atenuá-lo em 1993 Fidel Castro legalizou o dólar e um ano depois autorizou o exercício privado de uma centena de atividades, entre as quais algumas tão peculiares como forro de botão, enchimento de caixa de fósforos (isqueiros), vela de ignição limpeza e “manicure” (sic).

Assim foi que, enquanto a ilha estava submersa em uma longa noite de apagões (até 12 horas por dia), e por falta de óleo nos campos, tratores foram substituídos por bois, e a televisão recomendou receitas como casca de banana moída , e o dólar chegou a 160 pesos cubanos no mercado negro, as novas manicures particulares estavam localizadas no coração do San Rafael Boulevard com mesa, banqueta e tudo o que era necessário para atender seus clientes.

Várias pessoas caminham ou fazem fila para entrar nas lojas da Rua Obispo, em 28 de janeiro, em Havana, Cuba. (Yander Zamora)

Era la peor época de la crisis, la realidad era tan dura que no había forma de escapar a ella, y cuando dos o más cubanos coincidían en la bodega, en una cola o en una fiesta, era imposible no hablar de lo mal que estaba a coisa. Era todo dia, a qualquer hora e em qualquer lugar, e uma das manicures de San Rafael, farta que as pessoas, além de fazerem as unhas, aproveitassem sua companhia para fazer terapia, colocaram um cartaz em sua mesa que advertiu: “Proibido falar sobre a coisa”.

"Bem, é assim que estamos agora", diz Lazaro, "ele diz", chateado, o dia todo falando merda sobre isso.

Embora admita que a situação hoje “não é como no Período Especial” –entre 1990 e 1993 o PIB cubano caiu 35%–, afirma que “a situação é cada vez mais grave”, com desabastecimento desenfreado, perda de poder aquisitivo dos salários e inflação descontrolada após a implementação pelo Governo da chamada Tarefa de Ordenação.

As lojas de moeda nacional estão praticamente vazias. E o Estado abriu outros em MLC [Moeda Livre Conversível], onde você pode comprar com cartões de crédito lastreados em dólares ou outras moedas estrangeiras (um dólar equivale a um MLC). “Mas a maioria da população ganha em pesos e não tem acesso a dólares, a menos que seus parentes os enviem do exterior ou trabalhem para uma empresa estrangeira”, explica Lázaro.

"Os salários subiram, é verdade, mas os preços subiram muito mais", diz ele. “E o dólar, que há apenas três meses era trocado a 70 pesos por 1 no mercado negro, agora está a 100… O câmbio oficial é 24 por um, mas como o governo não tem moeda estrangeira para trocá-lo, o um responsável é a mudança da rua.

Ele vem para a consulta com papel e lápis. Afiado. Um médico ganha entre 5.000 e 6.000 pesos cubanos (entre 50 e 60 dólares, no câmbio informal), um recém-formado 2.800, um técnico superior 3.600, um juiz cerca de 6.000 (e se for da Suprema Corte cerca de 9.000), um varredor ou auxiliar de limpeza, 2.100 (que é o salário mínimo), um arquiteto, entre 4.000 e 5.000, o mesmo que um professor universitário. O salário médio em Cuba é de cerca de 3.800 pesos, e a aposentadoria mais baixa é de 1.528 pesos.

Um pedicab passa na frente de vários carros clássicos esperando clientes, em 27 de janeiro, no Central Park de Havana, Cuba. (Yander Zamora)

—No setor privado você pode ganhar quatro, cinco ou seis vezes mais. Um garçom em um paladar, por exemplo, pode receber 20.000 pesos por mês, ou mais, mas isso não é suficiente para ele, diz ele.

Atravessamos o Prado e sentamos no Central Park, bem perto da estátua de José Martí, herói nacional de Cuba. Lázaro para uma mulher que passa com o filho e a questiona:

— Quanto custa a caixa de ovos?

— Uau! — exclama a senhora — 500 e até 600 pesos... O que você quiser pergunte aos revendedores [uma caixa contém 30 ovos].

"E o quilo de carne de porco?" [uma libra é 454 gramas]

— De 180 a 200. E se for desossado, 250.

-O pão…?

A mulher, muito educada, faz catarse. Ela se sente insultada: diz que esta manhã comprou um pão no mesmo lugar de sempre, uma padaria particular que fica ao lado de sua casa: “Na semana passada eram 50 pesos, hoje me custou 80. Quando protestei, o dono Ele encolheu os ombros e me disse que a farinha e tudo mais subiu…”. Lázaro cresce e faz a pergunta de um milhão de dólares para uma mãe cubana.

"E o quilo de leite em pó?"

O rosto da senhora se transforma... “Uau, lá vai você por 1.000 pesos e não encontra”. Ele destaca que a caderneta de racionamento garante às crianças de até sete anos três quilos de leite em pó por mês a preços subsidiados (a 2,50 pesos cubanos por quilo, ou seja, quase de graça). "Mas meu filho tem nove anos, estou a bordo", lamenta.

Lázaro agradece. E continua com suas próprias contas: “Um corte de cabelo, 200 pesos; um maço de cigarros pretos, 140; um sabonete, 50; jeans ruins, 2.500 ou 3.000; uma pasta de dentes Colgate, 300; um litro de óleo, 200; uma refeição em um bom restaurante não passa de 1.500 por pessoa, então você não pode nem convidar a noiva…”.

Ele me pede para descer a Rua Obispo em direção à Plaza de Armas para que ele entenda melhor.

No auge da livraria La Moderna Poesía, hoje em ruínas, há uma multidão rodopiante. E uma tremenda raiva gritando e empurrando. Um funcionário passa pedindo carteiras de identidade das pessoas no meio da rua, várias pessoas discutem sobre seu lugar na fila, estão à beira do fajazón (briga). "Eles tiraram cigarros", explica alguém.

Dois homens conversam em um parque na Calle Obispo. (Yander Zamora)

Lázaro diz que a mesma coisa sempre acontece quando o Estado libera cigarros a preços “normais” -24 pesos cubanos o maço de H.Upman-. “Como quase não há cigarros, quem fuma tem que comprá-los no mercado negro a 140 pesos a caixa, por isso quando vendem a esses preços em estabelecimentos estatais, as pessoas se matam. "A maioria dos que você vê aqui são revendedores, é um bom negócio", diz ele, e então alguns policiais chegam para controlar a situação e, felizmente, as coisas se acalmam.

“É assim com tudo. Nas lojas de moeda nacional não há nada que valha a pena. Os únicos abastecidos, e você tem que ficar em longas filas, são as lojas do MLC, mas se você não tiver acesso a moeda estrangeira, basta comprar no mercado negro a preços astronômicos”, diz meu amigo.

Quando em 1º de janeiro de 2021 o governo elevou todos os salários e preços, eliminou os subsídios, estabeleceu a unidade monetária , acabou com o peso conversível e ditou uma taxa de câmbio oficial de 24 pesos cubanos por dólar, reconheceu que esta chamada Tarefa de Ordenação (batizada pelos cubanos como "Tarefa de Desordem") implicaria um processo inflacionário. Mas ele garantiu que manteria a inflação sob controle. Não foi.

“A taxa oficial ainda é de 24 por um, mas a taxa de Bishop é de 100 por um”, diz Lázaro sarcasticamente, que chama a taxa de “o saco preto, que é o chefe”, a taxa de Bishop. "Nos últimos meses, o dólar subiu 30%, todas as necessidades básicas ficaram brutalmente mais caras, então as pessoas estão nervosas... as filas são impiedosas, há brigas todos os dias."

Paramos no Parque Sancho Pança, na Rua Aguacate, na esquina da qual fica a loja La Francia, da MLC, que vende eletrodomésticos. "Olhe para isso", diz ele. Uma máquina de lavar Samsung custa 679 MLC (equivalente em dólares), um microondas, 113, e um ar condicionado Panasonic 830. "E a mesma coisa acontece em lojas de alimentos", diz ele. "Ontem comprei uma manteiga em cinco MLC, porque em moeda nacional, nada... O Estado nos paga em pesos e tudo tem que ser comprado em moeda estrangeira, é assim que é."

Nesse ponto, Lázaro se torna bestializado. Mas como o bom intelectual que é, veio preparado e tira da mochila algumas folhas impressas. Eles descrevem muito graficamente o que aconteceu na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, quando um processo hiperinflacionário foi desencadeado em 1922, após o colapso da confiança na economia e no antigo papel (Papiermark). Ele pega um artigo publicado coincidindo com os cem anos daquele desastre. Conta que uma pessoa vai a uma cafeteria e pede um café: custou 5.000 marcos. Duas horas depois pede um segundo café, e quando pede a conta são 13.000. O homem protesta e o dono lhe diz: o primeiro foi de 5.000, mas desta vez subiu para 8.000, ele deveria ter pedido antes.

"Bem, aqui estamos quase assim", diz ele, e outra de suas risadas ressoa na Rua Obispo.

Paramos em um restaurante particular, e novamente Lázaro questiona seu dono. Ele nos conta que já alterou os preços do cardápio duas vezes e que esta semana terá que fazê-lo novamente: "Tenho que comprar tudo em dólares e vender em pesos e, nesse ritmo, perco todos os dias". Tome a cerveja como exemplo. “Há um ano custava ao cliente 60 pesos, há três meses, 90, e hoje 160, e em outros paladares já o vendem por 200″.


Uma mãe e seu bebê olham para a vitrine de uma cafeteria. (Yander Zamora)

A inflação, a desconfiança no peso cubano e a existência de lojas no MLC são objeto de profundo desconforto e foram uma das causas do descontentamento popular na base dos protestos maciços de 11 de julho . No momento, indica Lázaro, há um intenso debate nos meios acadêmicos sobre a crise que vivemos e o que fazer para frear a espiral inflacionária. "Até a revista Alma Mater, a voz oficial da Federação de Estudantes Universitários, recentemente entrou no trapo ao consultar seis economistas proeminentes se era 'viável eliminar imediata e totalmente as lojas da MLC'.

A diretora do Centro de Estudos da Economia Cubana, Betsy Anaya, considerou "inadmissível e inaceitável que produtos essenciais sejam comercializados em uma moeda que não seja o CUP [peso cubano] e para a qual não exista um mecanismo oficial de câmbio". . Isso, observa Anaya, significa que "cada vez que a taxa de câmbio informal é maior e, portanto, o custo dos itens para quem não tem acesso a moeda estrangeira é maior". Todos concordam que a situação, como é apresentada, é insustentável para o cidadão comum – a maioria das famílias cubanas gasta 90% de sua renda, ou até mais, na aquisição da cesta básica.

Economistas cubanos insistem que, no fundo da "coisa", há grandes problemas: não há estímulos à produção ou à produtividade, as reformas empreendidas até agora são insuficientes e lentas , as reservas cambiais do país estão no mínimo, então as importações caiu 40%, a escassez é leonina, as pessoas não confiam nos pesos cubanos nem no futuro, e cada vez mais profissionais estão saindo e o dólar continua subindo. Isso sem ignorar que os efeitos da pandemia e o aperto do embargo dos EUA deram um golpe devastador.

No caminho para casa encontramos Carlos, um padeiro particular que vende bolos na rua Obispo, a 30 pesos a unidade. Seu resumo: “Com o que você ganha você compra metade do que costumava comprar, as filas são insuportáveis, até onde vai o dólar e as pessoas vão aguentar, ninguém sabe… .”

Lázaro pisca para mim e diz: “Galego, escute ele, não me escute”.

MAURICIO VICENT Mauricio Vicent, de Havana (Cuba) para o EL PAÍS, em 16.02.22

Estados Unidos acusam 'hackers' russos de roubar dados de Defesa e Inteligência

Várias agências de segurança dos EUA acusaram hackers russos de roubar informações de empreiteiros que trabalham para o Departamento de Defesa dos EUA e serviços de inteligência. Isso foi afirmado em uma declaração conjunta do FBI, da Agência de Segurança Nacional (NSA) e da Agência de Segurança Cibernética e Infraestrutura (CISA). 

No texto, eles destacam que, entre janeiro de 2020 e até este mesmo mês de fevereiro, detectaram ciberataques “regulares” a contratados de defesa por cibercriminosos apoiados por Moscou. 

Os órgãos de segurança indicaram que esses contratados estão vinculados a áreas como sistemas de combate, comando, controle e comunicações, além de tarefas de vigilância e reconhecimento. Eles também oferecem apoio no desenvolvimento de armas, mísseis e Programas, projeto de veículos e aeronaves, análise de dados, entre outros. 

A declaração aponta que essas "intrusões contínuas" permitiram que hackers apreendessem informações "sensíveis" e não confidenciais, bem como tecnologia patenteada por empreiteiros. “As informações adquiridas fornecem uma visão significativa dos dados sobre o desenvolvimento da plataforma de armas, cronogramas de implantação, especificações de veículos e planos de tecnologia da informação e infraestrutura de comunicações”, detalha a nota. 

As agências dos EUA alertaram que, com os documentos internos que os cibercriminosos acessaram, os "adversários" podem adaptar seus planos e prioridades militares, acelerar o desenvolvimento de tecnologias e informar os políticos estrangeiros sobre as intenções dos EUA, entre outros. (Ef)

Publicado originalmente por EL PAÍS, em 16.02.22

Política externa brasileira na contramão do mundo

Enquanto Putin ameaça militarmente a Europa e provoca os EUA, Bolsonaro anuncia que vai visitá-lo em Moscou. Essa poderá causar danos sem precedentes para a política externa do Brasil, escreve Philipp Lichterbeck.

Por Philipp Lichterbeck


    Vladimir Putin é recebido por Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto em novembro de 2019

Eu me encontro, no momento, na Alemanha. O tema número um em todos os veículos de notícias é a ameaça de as tropas russas invadirem a Ucrânia. A Rússia elevou sua presença militar ao redor da Ucrânia e em Belarus, assim como no Mar Báltico e na fronteira com os países bálticos.

O presidente russo, Vladimir Putin, criou um nível de ameaça que não se via desde a Guerra Fria. Ainda não está claro o que ele almeja exatamente, mas, na Europa, aumenta o medo de uma guerra. Este não é um cenário abstrato, mas assustadoramente real. No Brasil, onde a distância para esse conflito é muito grande, é difícil imaginar essa situação.

A guerra, de todo modo, parece algo bastante distante para os brasileiros, o que, claramente tem a ver com o fato de o país quase não ter se envolvido em conflitos com poderes externos, com a exceção da guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai. A única guerra que o país vem travando desde a colonização é a guerra diária contra si próprio, contra sua própria população: os indígenas, negros, pequenos fazendeiros, os pobres nas zonas rurais e os favelados.

Se Putin iniciar uma guerra na Europa, isso afetará o mundo inteiro, e também o Brasil, que já se encontra numa profunda crise econômica, social e moral. Pode-se criticar a Otan por, com frequência, não levar a sério as sensibilidades e preocupações de segurança russas. Mas, está bem claro quem é que representa o perigo atual de uma guerra: Vladimir Putin.

Da mesma forma, ficou claro nos últimos anos que a Rússia tenta manipular eleições no Ocidente, através de campanhas direcionadas de desinformação nas redes sociais e através de sua emissora de propaganda política, a RT, sempre em favor dos partidos e candidatos de direita ou extrema direita.

O objetivo é sempre dividir e enfraquecer o Ocidente, por exemplo, através do Brexit. Na Rússia, figuras de oposição são perseguidas, presas e assassinadas, e as organizações de direitos humanos, banidas. Em 2019, o governo russo esteve por trás do assassinato de um desafeto tchetcheno em Berlim.

"Ele é conservador", elogia Bolsonaro

Apesar de tudo isso, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, quer fazer uma visita a Putin ainda em fevereiro. Sua justificativa para fazê-lo, num momento em que Putin ameaça jogar a Europa e o mundo numa guerra, é bastante primitiva, até para os padrões de Bolsonaro. 

"Ele é conservador, sim. Eu vou estar mês que vem lá, atrás de melhores entendimentos, relações comerciais. O mundo todo é simpático com a gente.” Trata-se da habitual conversa sem conteúdo de Bolsonaro.

É notável, porém, que ninguém no governo brasileiro, nas Forças Armadas, na imprensa ou na economia, tenha se pronunciado de maneira clara contra essa viagem. O chefe de Estado do Brasil, que parece agora ter abandonado por completo a realidade, quer claramente isolar o país da comunidade internacional. É impossível imaginar o estrago em termos de política externa para o Brasil, quando as imagens de Bolsonaro, com sua risada infantil de sempre, ao lado do frio estrategista Putin, correrem o mundo. Como devemos entender essa visita? Como apoio do Brasil à política agressiva da Rússia em relação à Ucrânia e ao Ocidente?

Não basta Bolsonaro e seu círculo terem insultado e provocado repetidas vezes os líderes europeus e o governo de Joe Biden. Não basta ele ter estragado a imagem do Brasil ao redor do mundo com suas políticas para a Amazônia, como também foi ridicularizado com sua política para a pandemia. Não basta ele passear com sua entourage pelas ditaduras árabes contando piadas homofóbicas, porque ninguém mais no mundo estava disposto a recebê-lo. Não basta receber pessoalmente políticos da ultradireita alemã.

Agora, ele quer dar um golpe mortal na imagem internacional do Brasil, que dez anos atrás ainda era excelente, e fazer com que o país se torne inviável como parceiro confiável. Afinal, depois disso com quem esse governo vai querer conversar, negociar e pedir ajuda em meio a uma crise? Com a Rússia, que, a propósito, ameaça armar a Venezuela e Cuba, o que, por si só, já enterra o argumento de Bolsonaro de que Putin seria conservador.

Jair Bolsonaro e seu círculo, como sempre, vão fingir que não entendem porque todo mundo está tão exaltado. Ele dirige na contramão da diplomacia. O fato de que pretende esnobar toda a Europa Ocidental e os Estados Unidos é uma catástrofe de dimensões sem precedentes para a política externa brasileira.

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Philipp Lichterbeck, o autor deste artigo, queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais da Alemanha,Suíça e Áustria  Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio. Publicado originalmente pela Deutsche Welle Brasil, em 16.02.22 / O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

Uma resposta necessária a um texto desnecessário

 "No mais, nunca "ignorei os contornos de uma sociedade verdadeiramente democrática" (seja lá o que isso queira dizer); sempre defendi o liberalismo e a democracia. É por conta da minha defesa do liberalismo que me oponho às atrocidades dos regimes nazista e comunista."

Por Kim Kataguiri

Recentemente, uma procuradora de Justiça aposentada, dra. Maria Betânia Silva, escreveu um texto na ConJur explorando a polêmica insuflada pelas redes sociais a respeito do ocorrido no podcast do Flow.

O texto é confuso e mistura uma série de conceitos sem maior propriedade técnica, bem como clichês, retórica política e argumentos emotivos. Por todas essas falhas, não mereceria maior atenção. No entanto, devo oferecer uma resposta para não permitir que uma polêmica totalmente desnecessária possa pôr em risco a minha reputação e o meu mandato. Ao contrário do que ocorreu no texto da dra. Maria Betânia Silva, tentarei expor os argumentos de forma minimamente organizada.

Comecemos pelo óbvio: nem eu, nem o Monark e muito menos a deputada Tábata Amaral fizemos qualquer defesa da ideologia nazista. O que o apresentador Monark disse (de forma mal articulada e atabalhoada) é que, para ele, uma sociedade realmente livre deveria permitir a formação de todos os tipos de partido político, inclusive os nazistas (a quem ele repudia). Já eu nem isso disse; apenas afirmei que acredito em uma liberdade de expressão em que mesmo ideias odiosas possam circular, facilitando a sua refutação por toda a sociedade.

Errei? Sim, errei. Eu deveria ter deixado claro que não apoio, de forma alguma, a legalização de um partido nazista. Meus eleitores esperavam isso de mim. Eu os decepcionei e, por isso, pedi desculpas. Especialmente, fui insensível com a comunidade judaica, que sempre me apoiou e que, nesse episódio, me foi extremamente solidária, se recusando a embarcar no linchamento que alguns setores radicais de esquerda tentaram promover. À comunidade judaica pedi, e peço, especiais desculpas.

Que fique claro: não defendi a criação de partido nazista algum. Isso é óbvio para quem tenha assistido ao trecho do vídeo. E, se é tão óbvio, por que pessoas como a dra. Maria Betânia insistem em me atacar?

A resposta está no próprio texto da dra. Maria Betânia: eles não gostam do MBL, nem de suas lideranças (e eu sou uma delas, inegavelmente), tampouco da luta que empreendemos nos últimos anos. A dra. Maria Betânia deixa claro que considera o impeachment da ex-presidente Dilma Roussef parte de um atentado à ordem constitucional. O MBL, por sua vez, considera que o atentado à ordem constitucional se dá pela criação de um sistema de governo baseado na compra sistemática de parlamentares (o que chamamos de "ditadura da propina") e pelo esquema orçamentário, mimosamente chamado de "pedaladas fiscais", que nada mais é do que uma afronta ao povo brasileiro e ao Congresso Nacional, pois permite ao presidente da República apresentar uma imagem orçamentária que não corresponde à realidade. A remoção de um presidente por meio do procedimento constitucionalmente previsto nada tem de errado.

Quanto à degradação brasileira, creio que ela tem raízes na prática adotada por alguns setores da esquerda, consistente em governar por meio de propina e ameaças, de adotar uma retórica belicosa pela qual todos os que ousam a eles se opor são considerados inimigos, indignos de respeito e portadores de sérios desvios morais, bem como na sistemática colaboração internacional com regimes ditatoriais que cometem os mais diversos atentados contra os direitos humanos.

O MBL se apresentou como uma das forças políticas de renovação, geradas no seio de uma sociedade exaurida por mais de uma década de diversos escândalos de corrupção, autoritarismo e ideologia estatizante, que nos levaram a uma forte recessão no ocaso do governo da ex-presidente Dilma, ceifando o emprego e a dignidade de milhões, enquanto os setores beneficiados pelos governos Lula/Dilma se beneficiavam de altos salários, vantagens diversas e da possibilidade de cometer todo o tipo de desvio, com total certeza de impunidade. O que defendíamos à época (e continuamos a defender) é, além, da moralização da política, a adoção de uma série de reformas liberais, muito semelhantes àquelas feitas por países asiáticos que, em poucas décadas, saltaram da periferia mundial para o clube dos países desenvolvidos, resgatando da pobreza boa parte da sua população.

É essa agenda — que passa, sim, por um necessário enxugamento estatal, com a venda de diversas estatais que nos últimos anos apenas serviram para protagonizar escândalos de corrupção — que a dra. Maria Betânia chama, numa sucessão de clichês, de "flerte com a economia neoliberal, predatória da vida coletiva, submissa à cobiça estadunidense comprometedora do exercício da soberania brasileira e do manejo dosado dos recursos naturais do país". Aparentemente, a tentativa de dinamizar a economia, implementando um mercado dinâmico e forte, capaz de criar empregos, bem como diminuir um Estado ineficiente e parasitário, que com sua alta carga tributária apenas amplia as distorções sociais, é "predatório da vida coletiva". E, curiosamente, o hábito de destinar enormes somas de dinheiro público — sempre custeadas pelos impostos pagos pelos mais pobres — às ditaduras latinas que os governos Lula e Dilma tanto apoiaram, não é "predatório". Estranhos critérios os da dra. Maria Betânia…

Quanto à alegada "cobiça estadunidense", me surpreende o uso de uma retórica tão pobre, mais afeita a um centro acadêmico dos anos 60 do que a um debate público sério. Quem quer que ouse ver o mundo além da infantil divisão entre maus e bons (em que, curiosamente, os Estados Unidos seriam uma encarnação do mal), sabe que vivemos em uma era de interdependência e rápido fluxo de capitais, sendo necessário forjar alianças com países mais avançados para garantir o crescimento econômico, o sucesso comercial e o desenvolvimento. Peço escusas ao leitor por ter que falar o óbvio, mas, ao contrário do implícito no texto da dra. Maria Betânia, economia e relações internacionais não são um jogo de soma zero; não há um vilão e um herói, tampouco exploradores malvados e explorados bonzinhos.

No mais, nunca "ignorei os contornos de uma sociedade verdadeiramente democrática" (seja lá o que isso queira dizer); sempre defendi o liberalismo e a democracia. É por conta da minha defesa do liberalismo que me oponho às atrocidades dos regimes nazista e comunista.

 obre o comunismo, aliás, é preciso que se diga que, muito ao contrário do afirmado pela dra. Maria Betânia, trata-se de uma ideologia que prega, sim, o extermínio de pessoas. A teoria do comunismo dispõe que é necessário passar pela fase intermediária do socialismo, caracterizada (ao menos inicialmente) por uma "ditadura do proletariado", implementada por meio de uma revolução, que deveria destruir — sim, fisicamente — os adversários da ascendente classe proletária. Nesse sentido, o comunismo só se "distanciou das ideias" e "passou a ter várias interpretações e sentidos" para os militantes que, numa prodigiosa ginástica mental, insistem em relevar as dezenas de milhões de mortos pelos regimes socialistas no século 20. O truque é velho e manjado, mas continua sendo continuamente reciclado: se deu errado, não era socialismo. O "verdadeiro" socialismo nunca foi implementado e, quando for, resultará num paraíso terrestre, em que todos viverão em perfeita solidariedade. Enquanto isso não ocorre, continuamos tentando experiências socialistas, que resultam inevitavelmente em genocídio e totalitarismo. O comunismo, como se vê, também é oposto aos princípios democráticos da Constituição de 1988, tanto que alguns partidos de esquerda pregavam a instauração de uma nova ordem constitucional; isso consta explicitamente do programa de governo de Fernando Haddad (PT) em 2018.

Eu e o MBL ficamos, com orgulho, ao lado das experiências históricas que deram certo. Defendemos o capitalismo, o constitucionalismo e a democracia e queremos que o Brasil avance da mesma forma que os países asiáticos, ou seja, com robusto crescimento, ampla criação de empregos, resgate das pessoas da pobreza e oportunidades para todos, exatamente o que a ditadura da propina promovida por alguns partidos de esquerda nos negou.

Devo dizer que há um ponto em que concordo com a dra. Maria Betânia: não há "nenhuma surpresa no fato de que o ex-juiz suspeito tenha sido apoiado pelo MBL e pelo atual parlamentar Kim Kataguiri". Surpresa seria se nos aliássemos ao ex-presidente Lula, que governou o país por meio da propina e da retórica belicosa e divisiva, ou ao presidente Bolsonaro, notadamente corrupto e incompetente, que tem como objetivo apenas beneficiar a própria família.

Nos opomos ao projeto de poder de Lula, que fala abertamente em censurar a imprensa, em adotar medidas de populismo fiscal e em reatar relações íntimas com ditaduras latinas, cujos líderes sanguinários ele insiste em elogiar. Da mesma forma, nos opomos ao projeto bolsonarista, de corrupção, alianças espúrias e ignorância, que trouxe péssimos resultados econômicos e sociais.

Seria muito mais fácil adotar as narrativas prontas e respostas fáceis, tal e qual faz a dra. Maria Betânia. Lutar contra dois projetos de poder autoritários e nefastos exige coragem, mas felizmente isso nunca nos faltou.

Uma última correção à dra. Maria Betânia: eu conquistei o mandato de deputado não por conta do "flerte do MBL com a economia neoliberal" (de novo, seja lá o que isso signifique), mas por conta dos 465.310 paulistas que me honraram com o seu voto. O voto deles é uma expressão da democracia que a dra. Maria Betânia diz defender. A eles, peço novamente desculpas pela minha falha no Flow: deveria ter prontamente repudiado, de forma clara e objetiva, a possibilidade da formação de um partido nazista. Falhei, e peço desculpas aos eleitores, e em especial à comunidade judaica.

Aos radicais de esquerda, não peço desculpas. Não deixarei jamais de apontar as suas falhas, a sua corrupção, o seu autoritarismo e a sua hipocrisia.

Kim Kataguiri, o autor deste artigo, é deputado federal por São Paulo e membro do Movimento Brasil Livre (MBL). Publicado originalmente no Consultor Jurídico, em 16.02.22.

STF decidirá mérito em tese sobre cobrança de multa superior ao tributo devido

 Ainda não há data marcada para o julgamento de mérito. Com a fixação da tese de repercussão geral, qualquer decisão do STF deverá ser seguida pelas demais instâncias.

O Supremo Tribunal Federal formou maioria para reconhecer a repercussão geral no RE 1.335.293 (Tema 1.195), que discute a possibilidade de fixação de multa tributária punitiva, não qualificada, no valor superior a 100% do tributo devido. O julgamento se estenderá até esta quinta-feira (17/2), mas, na manhã desta quarta-feira, o placar já registrava 9 votos favoráveis e nenhum contrário.

Ainda não há data marcada para o julgamento de mérito. Com a fixação da tese de repercussão geral, qualquer decisão do STF deverá ser seguida pelas demais instâncias.

"A matéria aqui suscitada possui densidade constitucional suficiente para o reconhecimento da existência de repercussão geral, competindo a esta Suprema Corte definir, em face do não-confisco na esfera tributária (artigo 150, IV, da Constituição Federal), parâmetros para o limite máximo do valor da multa fiscal punitiva, não qualificada pela sonegação, fraude ou conluio, especificamente os valores superiores a 100% do tributo devido, considerado percentual fixado nas legislações dos entes federados", escreveu o ministro Luiz Fux, relator da ação.

Luís Wulff, da SW Advogados, explica que este é um tema que envolve o limite de cobrança de multa pelo fisco. "O ponto principal é que o próprio Supremo reconhece a repercussão geral, ou seja, ele define para todos os contribuintes que tiverem processos similares a esse."

Segundo ele, o julgamento do caso é muito importante porque há multas que podem chegar ate 225% do valor do tributo. "Administrativamente a Receita Federal impõe esse tipo de multa em função de uma atitude dolosa do contribuinte, uma intenção de realizar uma fraude ao Fisco". Se decidir em favor do contribuinte, o STF poderia reduzir para menos da metade o valor desse tipo de multa.

O julgamento do mérito, quando ocorrer, para Wulff, deve afetar uma infinidade de processos no Brasil, em todas as esferas (Federal, Estadual e Municipal). As multas mais graves no RS, por exemplo, chegam a 120% e na União podem ser de 75% a 220%. "Uma justiça importante para milhares de contribuintes do Brasil todo, que traz equilíbrio. A multa pode ser cobrada, mas não pode ultrapassar o valor total devido", disse.

É possível que, depois da definição dessa tese, o Supremo também passe a discutir a multa dos juros, aponta o especialista. "Há dívidas tributárias de 15 a 25 anos, nas quais o valor dos juros equivale a 500% do valor do tributo, por conta da inflação, da taxa Selic e do ambiente econômico do Brasil", comenta.

E completa: "Esse julgado é relevante porque define o primeiro marco de limite da multa e, obviamente, deve seguir na mesma linha um marco de limite dos juros. Assim, evita-se a capitalização dos juros e uma dívida impagável para o contribuinte que teve algum tipo de dificuldade financeira".

Extrema relevância

O advogado Eduardo Lustosa, sócio do LLH Advogados, escritório especializado em Direito Tributário, acredita que o exame da matéria é de extrema relevância para todos os contribuintes, já que apesar de o referido leading case tratar de uma multa punitiva aplicada pelo Estado de São Paulo, pela falta de recolhimento do ICMS, as conclusões jurídicas da Corte decorrentes deste julgamento, certamente servirão como parâmetros e limites para graduação das penalidades impostas pelas legislações tributárias de todas as esferas.

"Atualmente, os contribuintes estão expostos à aplicação das mais diversas modalidades de multas previstas nas legislações estaduais e municipais em patamares, não raramente, muito superiores ao próprio tributo em cobrança. Isso agrava sobremaneira o débito exigido e o torna impagável – o que, sem dúvidas, configura caráter confiscatório, além de ferir princípios e garantias basilares previstos na Constituição da República, como a razoabilidade, proporcionalidade e o devido processo legal substantivo", comentou o especialista.

Para ele, a expectativa em torno desse julgamento se justifica porque, em razão de julgados anteriores, o Supremo Tribunal Federal, acolhendo pleitos anteriores dos contribuintes, já afastou a aplicação de multas consideradas abusivas e confiscatórias.

RE 1.335.293

Por Severino Goes, do Consultor Jurídico, em 16.02.22

Em Moscou, Bolsonaro presta homenagem a soldados comunistas e tem reunião com Putin

 O Túmulo do Soldado Desconhecido é um monumento em homenagem aos milhões de soldados soviéticos que morreram durante a Segunda Guerra Mundial.

O primeiro compromisso de Bolsonaro foi a entrega de uma coroa de flores no Túmulo do Soldado Desconhecido, nas imediações do Kremlin (EPA)

O presidente Jair Bolsonaro começou nesta quarta-feira (16/2) sua programação oficial durante a visita à Rússia. O primeiro compromisso foi a entrega de uma coroa de flores no Túmulo do Soldado Desconhecido, nas imediações do Kremlin, sede do governo russo. No início da tarde, Bolsonaro vai se encontrar com o presidente russo Vladimir Putin.

A programação oficial de Bolsonaro em Moscou começou por volta das 9h (horário local). Ele se deslocou a pé do hotel no qual está hospedado e se dirigiu com sua comitiva para o local da homenagem.

O Túmulo do Soldado Desconhecido é um monumento em homenagem aos milhões de soldados soviéticos que morreram durante a Segunda Guerra Mundial.

Bolsonaro foi recebido por autoridades russas e participou da cerimônia, considerada uma formalidade em viagens oficiais de chefes de estado.

A partir das 13h (horário local), está previsto o encontro entre Bolsonaro e Putin, no Kremlin. O brasileiro será recebido pelo presidente russo após cumprir um rígido protocolo sanitário. As autoridades russas pediram que Bolsonaro fizesse até cinco exames do tipo PCR para que ele pudesse se aproximar de Putin durante o evento.

O primeiro encontro terá uma duração aproximada de 20 minutos e terá a presença apenas de Putin, Bolsonaro e seus respectivos intérpretes.

Após esse encontro, os dois participarão de um almoço com a presença de um grupo restrito de integrantes dos dois governos. Está prevista, também, uma declaração conjunta feita pelos dois presidentes.

Após esse evento, Bolsonaro vai visitar a Duma, a câmara baixa russa, o equivalente à Câmara dos Deputados do país.

Bolsonaro foi recebido por autoridades russas e participou da cerimônia no Túmulo do Soldado Desconhecido (EPA)

De lá, ele deverá participar de um encontro com empresários russos e brasileiros em um hotel próximo à Praça Vermelha. Este será o seu último compromisso oficial na Rússia antes de embarcar para a Hungria, na quinta-feira (17/02), onde deverá se encontrar com o primeiro-ministro do país, Viktor Orbán.

Visita em meio a tensão

A visita a Putin acontece em meio à tensão na fronteira da Rússia com a Ucrânia e o temor de uma invasão russa. Nas últimas semanas, a Rússia havia mobilizado pelo menos 100 mil soldados para a fronteira ucraniana. O movimento foi uma reação à possibilidade de que o país fosse incluído na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Os Estados Unidos e países europeus como Reino Unido e Alemanha reagiram indicando a possibilidade de impor sanções à Rússia. Na terça-feira, o governo russo anunciou a retirada de parte das tropas da região, numa sinalização de que um acordo poderia ser possível.

A confirmação da ida de Bolsonaro a Moscou causou reações no governo norte-americano. Nos bastidores, diplomatas dos EUA demonstraram contrariedade em relação à visita.

Há duas semanas, questionado sobre a visita de Bolsonaro a Putin, o Departamento de Estado dos Estados Unidos enviou uma nota à BBC News Brasil afirmando que o Brasil teria a "responsabilidade de defender os princípios democráticos e proteger a ordem baseada em regras, e reforçar esta mensagem para a Rússia em todas as oportunidades".

Leandro Prazeres, enviado especial da BBC News Brasil a Moscou. Em 16.02.2

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato 

O passarinho

Inflamado, o candidato eleva a fala no palanque. Argumentava que o povo livre sabe escolher seus governantes. Para entusiasmar a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do discurso. No momento certo, tirou o pássaro e com ele, na mão direita, bradou:

"a liberdade do homem é o sonho, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem subserviência. Deus (citar Deus é sempre oportuno) nos deu a liberdade para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos, hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal da liberdade. Para simbolizar esse compromisso, vamos aplaudir a soltura desse passarinho, que vai ganhar os céus".

Ao abrir a mão, viu que esmagara o passarinho. Apertara o bichinho. A frustração por ter matado o bichinho foi um anticlímax. Vaias substituíram os aplausos. Foi um desastre. Assim é o fim de candidatos que não controlam a emoção.

Visão da conjuntura

1. Nada decidido

Quem disser que fulano, beltrano ou sicrano ganhará o pleito de outubro próximo estará dando um chute. Não tem nada decidido. Vou tentar explicar as razões. Todas elas consideradas no conjunto das ideias-forças que movem uma campanha. Tenho dito e repetido: Somos frequentemente visitados pelo Senhor Imponderável dos Anjos. E este ano é especialmente um ciclo de excepcionalidades. Pandemia, gripes, desobediência às leis, cavalo sem arreios.

2. O caráter do ano

O ano de 2002 será muito diferente dos anos anteriores. Transição de um ciclo, não apenas de um governo. Se persistir o governo, o ciclo não se repetirá. Explico. A esfera política não se mantém no atual prumo. Um remelexo geral mexerá as pedras do tabuleiro. Um maremoto na política tem condições de repaginar o que desenhamos. Se o Brasil for de Bolsonaro, a direita se fixará no poder. A bússola entorta. Se o Brasil for de Lula, a incerteza continuará ante as curvas e retas do petismo. Lula não controlará suas bases.

3. O fim de um ciclo

Seja qual for a vereda a seguir, à direita ou à esquerda, o Brasil fechará um ciclo. Haverá interesse de se manter a atual estrutura de poder, com a concentração de postos e cargos no Centrão. Mas é viável pensar em uma onda centrípeta – das margens para os centros - que poderá destronar os atuais mandatários do poder do Executivo. Essa onda aparece no meio do oceano turbulento das relações internacionais, com lideranças dispersas e líderes sem legitimidade.

4. O fracasso dos grandes

Veremos, um pouco mais adiante, os atuais condutores da política mundial em declínio. Joe Biden não garantirá a supremacia norte-americana. O novo primeiro ministro alemão, Olaf Scholz, não tem o carisma de Angela Merkel. Do Reino Unido, não esperemos decisões de impacto, mas apenas a estética voante dos cabelos de Boris Johnson. Macron tem limitações, Erdoğan é um direitista isolado. E a Itália não terá envergadura para enfrentar os rolos compressores da Europa. Ou você, amigo Wálter Maierovitch, discorda?

5. A alma do tempo

Para não repetir meu refrão, passo a adotar o termo a "alma do tempo". Todo tempo tem o seu clima, a sua alma, o seu espírito, as suas circunstâncias. E o que explica os cenários descritos? A alma do tempo. Um misto de silêncio e grito, a imbricação de demandas reprimidas com promessas não cumpridas, uma revolta interior que queima os nossos neurônios, uma vontade louca de dormir e acordar em outro espaço, que não seja esse carcomido por impurezas.

6. Um mundo em avanços

Seremos pacientes e alguns, parceiros, de um mundo em avanços. A inteligência artificial estará cada vez mais abraçada à tecnologia da informação, suprindo-nos com os alimentos da modernidade, ferramentas que transformarão nosso modo de operar, nossa maneira de pensar, alterando costumes e tradições. Uma grande mudança.

7. Eis, então, a grande ameaça

Os avanços civilizatórios esbarrarão nas fronteiras do passado, onde os exércitos com sangue em dinastias históricas persistirão em suas lutas pela manutenção do poder. O mundo muçulmano fará arrebentar suas ondas nas plagas ocidentais, devastando pedaços de tempo e monumentos de cultura. O paradigma do caos tende a ficar sobre nossas cabeças.

8. E por aqui?

Somos um pequeno pedaço de terra integrada à civilização ocidental. Vamos influir? Até poderíamos, caso usássemos nossos potenciais para fazer valer nossa condição de seres livres e armados com as ferramentas da liberdade. Nossa visão turva, porém, encurta nosso ciclo. Não enxergamos um palmo à frente do nariz. E caímos na precária luta entre grupos que se opõem: uma direita, que não sabe distinguir um valor do passado tradicional e uma esquerda, que ainda sonha com os teares da revolução industrial.

9. Os novos sinais

O mundo exibe uma monumental engenharia de mudanças. Os polos da Guerra Fria, mesmo abrigando arsenais superiores aos da década de 50, já não agem à moda antiga. Essa querela envolvendo a OTAN, a Ucrânia e a Rússia, não será o estopim de uma terceira Guerra Mundial. O bom senso, sob a égide da diplomacia, dará os ditames. Mas a tensão subirá aos píncaros. A Humanidade não mais aceita ser governada por déspotas. O mundo recebe sinais de que a temperança cobrirá as nuvens dos novos tempos.

10. O Brasil, um país acidental

Isso mesmo. Um país integrado aos trópicos acidentais. Uma região rica de nosso planeta, farta de riquezas minerais, porém povoada de pequenos e grandes acidentes que maltratam a condição de seu povo. Todos os anos, ouvimos a crônica das mortes anunciadas nos desastres provocados pelas chuvas. Em algumas regiões, elas são escassas, noutras, inundam. Mas os tropeços e acidentes no território da política, estes, sim, são devastadores para o nosso corpo pátrio. Por corroerem a alma da política, por atrasarem o fluxo civilizatório.

11. O que pode nos acontecer?

Estamos em plena selva eleitoral. Usando armas da mentira, das acusações, das denúncias, das falsas versões. Não há justiceiro nessa guerra. Nem heróis. Há, e muito, gente desonesta, que elege o dinheiro, o poder, a força monetária como motor da guerra. Este escriba não acredita que os exércitos em disputa possam estabelecer a paz, sob a égide da liberdade e da justiça.

Hoje é aniversário de um ente querido, que pensa bem. A quem desejo felicidades. Muita saúde. Prosperidade.

Fecho a coluna com o absolutismo.


O ditador

O ditador vai ao médico:

– E a pressão, doutor?

– O senhor sabe o que faz, meu general. Neste momento, ela é imprescindível para manter a ordem.

O nome de Deus em vão

Deus é sempre a referência de homens que carregam em sua alma a pretensão da onipotência. Franco usava a Providência Divina para se afirmar: "Deus colocou em nossas mãos a vida de nossa Pátria para que a governemos". Não satisfeito, mandou cunhar nas moedas: "Caudilho da Espanha pela graça de Deus". Idi Amin Dada, o cabo que se tornou marechal de Uganda, ditador sanguinário, dizia ao povo que falava com Deus nos sonhos. Um dia, um jornalista fez uma inquietante pergunta: "o senhor tem com frequência esses sonhos? Conversa muito com Deus?". Lacônico, o cara de pau respondeu: "Só quando necessário".

Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

‘Janela partidária’ deturpa a política

Muitos enxergam na maioria dos partidos políticos merasestruturas administrativo-financeiras para viabilizar a eleição de pessoa

Fortalecidos pela fraqueza de um presidente da República que tem aversão ao trabalho, não sabe o que é governar e jamais deu sinais de que gostaria de aprender, os partidos políticos que compõem o Centrão, sobretudo PL, Progressistas e Republicanos, aumentaram muito seu poder de barganha para atrair parlamentares durante a chamada janela partidária, período em que deputados podem trocar de partido sem perder o mandato.

O PL, ao qual Jair Bolsonaro se filiou recentemente, deve ser o partido com a maior bancada na Câmara ao final da janela partidária, que vai de 3 de março a 1.º de abril. Estima-se que a legenda, um protetorado do notório Valdemar Costa Neto, deverá saltar de uma bancada de 43 para 65 deputados federais, enquanto o recém-criado União Brasil, quando as negociações terminarem, poderá ter uma bancada de até 61 deputados. O Progressistas, partido do atual presidente da Câmara, Arthur Lira, e do ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, deverá ter uma bancada de 52 deputados, 10 a mais do que tem hoje. Já a bancada do Republicanos deverá crescer de 31 para 34 deputados.

Partidos outrora mais consistentes, como MDB e PSDB, deverão perder deputados. O caso do PSDB é paradigmático. A despeito de ter realizado prévias e ter um pré-candidato à Presidência da República, próceres tucanos cogitam a céu aberto renunciar à candidatura presidencial para privilegiar a formação de bancadas no Congresso, sobretudo na Câmara.

Há razão para isso, nada nobre, mas há. Como fio condutor de todas as negociações para o troca-troca de partidos durante a janela de março está o dinheiro dos fundos públicos que irrigam as contas das legendas – o Fundo Partidário e o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, o chamado fundo eleitoral –, além dos recursos bilionários do “orçamento secreto”, mecanismo que forjou a compra de uma tênue base de apoio ao presidente Jair Bolsonaro no Congresso. Tudo mais é periférico nas conversas.

Para os caciques partidários, o que está em jogo é a formação de bancadas na Câmara, pois, quanto maior a bancada, maior o quinhão que a legenda recebe dos fundos públicos e, não menos importante, maior é seu poder sobre o próximo presidente da República, seja quem for. Os deputados que tentarão a reeleição neste ano, por sua vez, não são movidos por sentimentos mais altaneiros: estão atrás de recursos que viabilizem as suas campanhas. E nesse jogo de interesses a orientação ideológica ou a consistência programática dos partidos são as menores preocupações dos candidatos.

A descaracterização da política partidária não é um fenômeno recente no Brasil, mas chegou ao paroxismo nos últimos anos, à vista de todos. Hoje, em prejuízo da democracia representativa no País, não são poucos os partidos políticos que se converteram, na prática, em “empresas” cujo principal objetivo é assegurar os interesses de seus donos, servindo apenas como meras estruturas administrativo-financeiras para viabilizar eleições de pessoas.

Não é ruim, nem sequer errado, enxergar os partidos políticos como meios de obtenção de poder político. Seria até uma incongruência, haja vista que a filiação partidária é uma das condições de elegibilidade determinadas pela Constituição. O problema reside na má concepção do papel dos partidos políticos – que vai muito além do caráter instrumental da obtenção de mandatos eletivos – e no animus que permeia o processo de filiação partidária.

É triste, mas é a realidade tal como está posta. A democracia no Brasil será tanto mais vigorosa quanto mais fortes se tornarem os partidos políticos em termos de orientação ideológica e consistência programática, além, evidentemente, de propiciarem maior coesão entre seus filiados. Contudo, nada indica que, às vésperas da abertura da janela partidária e em meio às negociações para formação das federações, o País esteja caminhando nessa direção.

O quadro só será revertido com a aprovação de uma reforma política que melhore as condições de representação e dê fim à excrescência do financiamento público dos partidos, aproximando-os, afinal, de seus eleitores.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, Impresso, em 15.02.22