terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Por que o Brasil não consegue erradicar o trabalho escravo?

Número de trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão dobrou em um ano, e só 4,2% dos denunciados pela prática foram condenados em 11 anos. Projetos de lei discutem expropriação de terras de empregadores.

Quase 2 mil trabalhadores foram resgatados em condições análogas à escravidão em 2021, segundo dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho. Além de um crescimento de 106% em relação a 2020, o número de resgates em 2021 foi o maior desde 2014.

A pena para quem submete alguém à escravidão moderna vai de dois a oito anos de reclusão e multa. O empregador também é incluído por dois anos em um documento público chamado de Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à escravidão, popularmente conhecido como Lista Suja.

Uma emenda constitucional de 2014 também prevê a expropriação de propriedade urbana e rural em que for constatada a exploração de trabalho em condições análogas à escravidão e a sua destinação à reforma agrária, no caso das rurais, ou aos programas de habitação popular, no caso das urbanas. Os trabalhadores resgatados seriam incluídos com prioridade em assentamentos ou nos programas habitacionais.

Gráfico mostra perfil dos trabalhadores em  condições análogas à escravidão resgatados em 2021Gráfico mostra perfil dos trabalhadores em  condições análogas à escravidão resgatados em 2021

Perfil dos trabalhadores em condições análogas à escravidão resgatados em 2021

Apesar de prevista na Constituição Federal há quase dez anos, a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT, explica que a emenda constitucional nunca foi aplicada e chegou a ser julgada ilegal.

"O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] chegou a usar a Lista Suja como documento oficial de que o empregador explorou o trabalho escravo para abrir um processo de expropriação das suas terra, mas a AGU [Advocacia Geral da União] entendeu que, por não ser regulamentada, a emenda era ilegal", diz Cardoso.

A pauta sobre a expropriação de terras como punição a quem pratica trabalho escravo é anterior à emenda de 2014. Segundo a procuradora do MPT, a discussão vem desde a década de 1990, com a Lei da Reforma Agrária (Lei 8.629), mas nunca avançou por causa de pressões da bancada ruralista.

Nos anos 2000, a questão chegou a ser pautada no Congresso, mas foi usada como barganha para se alterar a definição de trabalho escravo prevista no Código Penal.

"Os projetos de lei que surgiram naquela época propunham a expropriação das terras mediante alteração do conceito de trabalho escravo, reduzindo o conceito para somente 'trabalho forçado'", explica Cardoso.

Elogiado fora do Brasil, o artigo 149 do Código Penal estabelece que o trabalho análogo ao de escravo ocorre em quatro modalidades, bastando a ocorrência de uma delas para que seja configurado o crime. São elas:

submeter o trabalhador a trabalhos forçados;

submeter o trabalhador a jornadas exaustivas de trabalho;

sujeitar o trabalhador a condições degradantes de trabalho (ex: falta de acesso à água potável ao longo da jornada de trabalho ou nos períodos de descanso; falta de instalações sanitárias ou a impossibilidade de sua utilização em condições higiênicas ou de preservação da privacidade, etc.);

restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com empregador (ex: reter documentos ou objetos pessoais; isolamento geográfico ou o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, etc.).

Um projeto de lei de 2019 (PL nº 1.678) e outro de 2021 (PL nº 1.678) propõem regulamentar a emenda da expropriação sem alterar o conceito de trabalho escravo. Ambos os projetos tramitam no Senado.

Porém, o presidente Jair Bolsonaro já declarou várias vezes ser contrário à expropriação das propriedades como forma de punir quem pratica trabalho análogo à escravidão.

Em 2019, Bolsonaro afirmou que a emenda de 2014 não seria aprovada em seu governo e justificou que o empregador "não quer maldade para o seu funcionário nem quer escravizá-lo". "Isso não existe. Pode ser que exista na cabeça de uma minoria insignificante, aí tem que ser combatido", disse.

Latifúndios, escravidão e reforma agrária

Dos 1.937 trabalhadores resgatados em 2021, 89% (1.727) estavam no trabalho rural, e 11% no urbano. 

Entre as cinco atividades econômicas com maior ocorrência de trabalho análogo ao de escravo, todas estão ligadas à produção agrícola e agropecuária, segundo dados do MPT.

Os dados refletem, de acordo com a coordenadora do programa Direitos Socioambientais da Conectas, Julia Neiva, a relação histórica entre trabalho escravo e latifúndios no país.

"O Brasil foi construído a partir de grandes latifúndios baseados em trabalho escravo, com grandes proprietários de terra escravagistas. E até hoje setores fundamentais da economia brasileira, como a produção do café e a agropecuária, dependem de mão de obra escrava", diz Neiva.

Por isso, para a coordenadora, promover a reforma agrária para resgatados a partir de terras expropriadas de empregador que explorou o trabalho escravo "é reconhecer a divisão extremamente desigual de terras no Brasil".  

Para a procuradora Cardoso, também "não é coincidência que todos os anos a maioria dos trabalhadores resgatados esteja no meio rural".

"Esses trabalhadores não têm acesso nem ao mercado de trabalho formal e nem aos meios de produção, ou seja, a terra. Por isso, a reforma agrária voltada para essas pessoas teria o poder de erradicar o trabalho escravo no Brasil", afirma Cardoso.

Reparação insuficiente

Desde 2002, o trabalhador resgatado tem direito a três parcelas do seguro-desemprego, independentemente do tempo de serviço prestado, pagas no momento do resgate, assim como o direito à reparação pelos danos morais e materiais sofridos durante a exploração.

"Mas, uma vez na Justiça, não temos como dizer quando as reparações serão pagas ao trabalhador, sem dizer que temos casos em que, depois de muito tempo de espera, a indenização foi de R$1 mil, R$1,5 mil. Isso nem de perto é suficiente para uma pessoa vulnerável seguir adiante, quanto mais para reparar o dano grave sofrido durante a escravidão", explica Cardoso.

O Auditor-Fiscal do Trabalho Magno Riga, coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), conta que, por falta de suporte social e financeiro após os resgates, não é raro encontrar o mesmo trabalhador novamente em condição análoga ao de escravo em outros trabalhos.

"O objetivo dos grupos móveis de fiscalização é o de erradicar o trabalho escravo, mas, na verdade, o que fazemos é combatê-lo. Para erradicá-lo, precisamos de uma mudança estrutural econômica e socialmente profunda. Basta ver que somos um país rico, mas com muitos trabalhadores miseráveis", diz Riga.

"Além de ser uma medida pedagógica a todos que submetem o trabalhador a essas condições, destinar as terras expropriadas à vítima de escravidão é relevante principalmente porque tem o poder de quebrar o ciclo do trabalho escravo no Brasil", afirma o auditor-fiscal do trabalho.

Apenas 4,2% condenados

Os projetos de lei que tramitam atualmente no Senado preveem que a expropriação das propriedades onde houve trabalho escravo será aplicada somente após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Porém, para o auditor-fiscal Riga, esperar a sentença penal condenatória poderá contribuir para a impunidade na área.

"Basta olhar para os dados de quantas pessoas foram condenadas criminalmente em última instância por trabalho escravo nos últimos anos: pouco mais de 100. Se depender de condenação criminal, a expropriação será só mais uma exceção para os denunciados", diz Riga.

Um estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostrou que dos 2.679 denunciados por trabalho escravo entre 2008 e 2019, apenas 112 (4,2%) foram condenados em última instância.

Ou seja, se a emenda constitucional fosse regulamentada como os projetos de lei preveem, a expropriação seria possível em apenas 4,2% dos denunciados em 11 anos.

"A cada 100 réus acusados de trabalho escravo, cerca de quatro são condenados definitivamente. É mais que impunidade, chega a ser perda de tempo você movimentar a Justiça para condenar quatro pessoas", diz o coordenador da pesquisa, o juiz federal Carlos Haddad, professor da UFMG.

Alojamento de trabalhadores em situação análoga à de escravidão resgatados em uma fiscalização em novembro de 2021, em Porto Murtinho (MS)

Alojamento de trabalhadores em situação análoga à de escravidão resgatados em uma fiscalização em novembro de 2021, em Porto Murtinho (MS)Foto: Grupo Especial de Fiscalização Móvel

Mesmo se condenado criminalmente, Riga ainda lembra que o processo criminal é muito longo e correria o risco de prescrever.

"O processo criminal envolvendo trabalho escravo passa por julgamento na primeira e segunda instâncias, no STJ e no STF. Do jeito que estão os PLs, a ação de expropriação das terras teriam início somente após todo esse trâmite", diz Riga.

Por isso, para o Auditor-Fiscal do Trabalho, apenas o processo administrativo, já usado como elemento para incluir o nome do empregador na Lista Suja, deveria bastar para iniciar a ação de expropriação das propriedades com mão de obra análoga à escrava.

"Se os autos de infração feitos pelos fiscais [em campo] forem considerados válidos e o processo administrativo considerar o empregador culpado, mesmo após garantir ampla defesa ao denunciado, isso deveria bastar para dar início a ação de expropriação daquelas terras", defende Riga.

Lista Suja

Uma portaria interministerial instituiu a Lista Suja em 2004, um documento público com os nomes de empregadores que submeteram trabalhadores a condição análoga ao de escravo.

"A Lista Suja é uma iniciativa pioneira no mundo todo, que traz transparência sobre o tema para a sociedade, nos mostra quem são as empresas que utilizam trabalho escravo, mas ela ainda é frágil e precisa de uma lei para que não seja extinta", diz Neiva.

Em 2016, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio, considerou que a Lista Suja se ampara na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11), uma vez que os autos de infração expedidos por auditores do trabalho são públicos.

Quem entra para a Lista Suja não tem acesso a créditos e financiamentos por dois anos, além de ser monitorado de perto pelos grupos de fiscalização móvel. Se constatada reincidência de trabalho escravo, o nome permanece no documento por mais dois anos.

"Não temos auditores nem estrutura para realizar o monitoramento nos locais incluídos na Lista Suja. Geralmente, quando fazemos, é porque recebemos informações novas, como uma nova denúncia de trabalho escravo no local", diz o auditor-fiscal Riga.

Dados do MPT mostram que cerca de 45% do quadro de auditores fiscais do trabalho estão vagos por falta de novas contratações. Nos últimos dez anos, a área também sofreu corte de quase 70% dos recursos orçamentários. 

"O principal pilar do combate ao trabalho escravo é a fiscalização. Sem ela, não tem Lista Suja, não tem resgates, não se tem políticas para enfrentamento", diz Neiva.

Laís Modelli para a Deutsche Welle Brasil, em 07/02/2022

Até que ponto as decisões judiciais são confiáveis?

A soberania estatal tem como uma de suas importantes vertentes a função judicial cuja precípua finalidade é a de conferir efetividade ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal).

Por José Rogério Cruz e Tucci

No âmbito das sociedades civilizadas, como é cediço, é defeso fazer justiça pelas próprias mãos. Assim, os litígios são resolvidos por um órgão predeterminado, dotado de jurisdição. Ao conduzir os processos e proferir as suas decisões, os tribunais devem agir de forma independente e imparcial.

Na mesma linha principiológica, que marca as denominadas "Normas Fundamentais do Processo Civil", constantes do preâmbulo do Código de Processo Civil em vigor, inspirando-se, por certo, na dogmática do Direito Privado, o legislador estabelece, no artigo 5º, uma cláusula geral de boa-fé processual, que deverá nortear a conduta, durante as sucessivas etapas do procedimento, de todos os protagonistas do processo: o juiz, as partes, o representante do Ministério Público, o defensor público e também os auxiliares da justiça (serventuários, peritos, intérpretes, etc.). O fundamento constitucional da boa-fé advém da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há se falar, com certeza, em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias constitucionais do devido processo legal.

Note-se que a boa-fé processual se desdobra nos deveres de veracidade e de lealdade na realização dos atos processuais, contemplados nos artigos 77 e 142 do Código de Processo Civil. O descumprimento destes deveres caracteriza ato atentatório à dignidade da justiça e litigância de má-fé, cujas sanções estão detalhadamente previstas no diploma processual.

Acrescente-se, por outro lado, que o Código de Processo Civil também impõe comportamento ético e leal aos órgãos jurisdicionais, coibindo-os, por exemplo, de proferir "decisão-surpresa" (artigo 9º). Exemplo marcante da lealdade do órgão jurisdicional em relação aos litigantes vem expresso na preciosa regra do parágrafo único do artigo 932 do diploma processual: "Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado o vício ou complementada a documentação exigível".

Bem é de ver, por outro lado, que os pronunciamentos judiciais se revestem da presunção de legalidade. É dizer: as decisões, em princípio, devem se conformar com as normas jurídicas. Enquanto permanecerem hígidos, os atos decisórios são eficazes e traduzem confiança aos seus destinatários. Tanto é verdade, que a própria legislação processual autoriza o cumprimento de decisões mesmo antes de seu respectivo trânsito em julgado.

Sob diferente perspectiva, a segurança jurídica, como relevante vetor social, decorre da certeza do direito, materializada nos julgamentos de nossos tribunais.

Confiança e segurança constituem destarte o binômio para um pacífico convívio em sociedade.

Saliente-se outrossim que no âmbito do processo de cunho cooperativo, entre os deveres do juiz, destaca-se o de "auxílio", no sentido de exortar ou facilitar às partes a superação de eventuais dificuldades ou obstáculos que impeçam o exercício de direitos ou faculdades (por exemplo: ao julgar os embargos de declaração, atender, tanto quanto possível, ao escopo da pretensão da parte, explicitando o fundamento que restou omisso, para que este reste efetivamente prequestionado na complementação do acórdão).

Ademais, nessa linha de raciocínio, não é incomum que da decisão colegiada conste um obiter dictum, ou seja, uma recomendação a latere que, embora não sendo parte do núcleo do julgamento, presta-se a esclarecer tanto o juiz de primeiro grau quanto as partes envolvidas na demanda.

A esse propósito, para evitar a oposição de embargos de declaração, que tem causado confessadamente enorme repugnância aos integrantes dos tribunais, a prática revela que algumas turmas julgadoras têm "ameaçado" os litigantes com potencial aplicação de sanção processual, caso sejam opostos embargos de declaração. E, assim, iludindo as partes — que, de resto, depositam confiança no Judiciário —, fazem constar do acórdão capciosa exortação, mais ou menos nos seguintes termos:

"... Por fim, para facultar eventual acesso às vias especial e extraordinária, considero prequestionada toda a matéria infraconstitucional e constitucional, observando a sedimentada orientação do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, na hipótese de prequestionamento, é desnecessária a citação numérica dos dispositivos legais, bastando que a questão colocada tenha sido decidida... Desse modo, na hipótese de oposição de aclaratórios, incidirá o disposto no artigo 1.026 do CPC, com a imposição de multa".

O advogado, muitas vezes incauto pela inexperiência, por um lado, temeroso da aplicação da referida sanção processual, e, de outro, fiando-se piamente na afirmação provinda de quem detém o poder de dizer o direito, deixa de provocar o tribunal para, em atendimento ao enunciado das Súmulas 211/STJ e 356/STF, buscar o prequestionamento da tese que restou omissa no acórdão.

A despeito da inequívoca denegação de justiça, o passo seguinte da parte que deseja se insurgir contra o acórdão é então o da interposição de recurso especial e/ou extraordinário.

Pois bem, qual não é a decepção (para dizer o mínimo) do cliente e, em particular, do causídico, ao se depararem com o seguinte pronunciamento do Supremo ou do Superior Tribunal de Justiça, que nega seguimento ao recurso, forte no argumento de que:

"Caberia à parte alegar violação do artigo 1.022 do CPC/2015, o que não ocorreu. Dessa forma, à falta do indispensável prequestionamento, incide a Súmula nº 211 do Superior Tribunal de Justiça.

(...)

Ressalte-se que esta Corte Superior perfilha o entendimento de que a admissão do prequestionamento ficto previsto no art. 1.025 do CPC/2015 exige que se aduza, no recurso especial, violação do art. 1.022 do diploma processual (art. 535 do CPC/1973), providência não adotada pelo recorrente".

Do cotejo de ambas as decisões, isto é, a do tribunal de origem e a da corte superior, fica patenteada a impressão de que aquela não ostenta valor algum..., não vale o preço do papel em que é lançada...

Sim, porque, primeiro, tal certificação no acórdão recorrido não tem o condão de suprir o efetivo prequestionamento; segundo, o tribunal superior, preferindo pautar-se pelo rigor técnico, não demonstra qualquer espírito cooperativo com a parte recorrente. Faz ouvido de mercador à "promessa" contida no acórdão impugnado, deixando de cumprir o mandamento do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, visto que não tem a mínima preocupação em justificar o motivo pelo qual a tese exposta nas razões recursais não foi prequestionada de forma satisfatória.

Entendo, contudo, com mais de 40 anos de efetivo exercício da advocacia, que, em prestígio à segurança jurídica, as coisas não podem ser assim... A credibilidade que as decisões infundem aos cidadãos não pode ser desmoralizada no próprio seio do Judiciário, pela famigerada e muito mal vista "jurisprudência defensiva"!

É por esta razão que o diálogo dos pronunciamentos judiciais deve ser regido por um grau de respeito, integridade e coerência, a evitar situações como estas, que, a um só tempo, acarretam notório desgaste institucional e, muito pior, produzem considerável prejuízo ao direito dos litigantes!

José Rogério Cruz e Tucci, o autor deste artigo, é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Publicado originalmente no Consultor Juridico, em 8 de fevereiro de 2022, 8h00

Zezinho Bonifácio,

Muitas histórias contavam-se do Zezinho e de seus discursos irônicos

Por José Sarney

Zé Bonifácio — Zezinho, entre os seus colegas de Parlamento, José Bonifácio Lafayette de Andrada —, que foi signatário do Manifesto dos Mineiros e presidente da Câmara dos Deputados, era tido como homem de muito bom humor que gostava de contar pilhérias e, não raro, fazia graça com seus colegas. Mas a mim sempre tratou muito bem e com grande amizade.

Era um político muito esperto, de tal modo que, depois de 1945, transitava entre os grupos dos dois líderes que comandavam a UDN mineira, Magalhães Pinto e Milton Campos, conseguindo não se envolver com nenhum dos lados, o que lhe acarretava vantagens e desvantagens. Uma delas é que nenhum deputado mineiro lhe emprestava solidariedade quando ele precisava, uma vez que não se sabia a que lado ele pertencia.

O ramo mineiro dos Andrada vem de seu tetravô Martim Francisco Ribeiro de Andrada, casado com dona Gabriela Frederica, filha de seu irmão José Bonifácio, o Patriarca. Deles descenderam José Bonifácio, o Moço, o grande orador do 2o Império, e seu tio Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, presidente de Minas Gerais e da Constituinte de 34.

Após concluir seus estudos, Zezinho foi nomeado por Antônio Carlos para trabalhar com o secretário de Segurança, José Francisco Bias Fortes. Pouco depois os dois estavam casados com duas irmãs, dona Vera e dona Francisca, filhas do engenheiro Simão Gustavo Tamm.

Concorrentes e aliados em Barbacena, de onde ambos eram originários, se distanciaram com a Revolução de 30: Zé Bonifácio foi nomeado prefeito da cidade. A tradição era que os Bias Fortes tivessem o poder local, e os Andrada, o estadual e o federal. Seu cunhado não gostou, não compareceu à posse e tornou-se oposição violenta. Olegário Maciel e Arthur Bernardes tentaram um acordo: o Zezinho continuaria prefeito e o Bias Fortes receberia o título de chefe político de Barbacena. Não deu certo.

Em 1945, com a formação dos novos partidos, o Bias Fortes tornou-se chefe da máquina pessedista (PSD) e o Zezinho ficou com a UDN, consagrando o antagonismo.

Quando Bias Fortes visitava sua cunhada, Zezinho nunca estava presente em casa: ele arranjava sempre uma desculpa para não se encontrar com o Bias.

Essa luta continuou por muitos anos: quando eu era deputado federal, ainda encontrei o filho do Bias, o Biazinho, e o Zé Bonifácio na Câmara dos Deputados. Sem ser mineiro, consegui ser amigo dos dois, pendendo um pouco para os Andradas, que eram do meu partido.

Muitas histórias contavam-se do Zezinho e de seus discursos irônicos.

Quando Getúlio suicidou-se, houve um clima de grande consternação na Câmara dos Deputados. Zé Bonifácio pediu a palavra, foi à tribuna e começou seu discurso assim:

— PTB! PTB! O que fizestes de vosso chefe? Abandonastes-o na hora mais difícil! E ele morreu só!

O Lúcio Bittencourt, que era deputado por Minas Gerais, aparteou-o:

— Não faça isto! Respeite este momento: nós estamos solidários com o presidente.

O Zezinho, bom Parlamentar, perguntou:

— Onde o senhor estava?

O Lúcio Bittencourt respondeu-lhe:

— Em Minas.

Aí o Zezinho retrucou:

— Vejam: estava em Minas enquanto o presidente estava aqui às vésperas de colocar uma bala no coração! E como soube da morte do Getúlio?

Lúcio Bittencourt respondeu-lhe:

— Pelo rádio.

Foi um vexame tremendo, e o Zezinho conseguiu o que queria.

José Sarney, colega de José Bonifácio na mesma legislatura na Câmara Federal, foi Presidente da República. Publoicado originalmente n'O Estado do Maranhão, edição digital, em 06.02.22. 

'Assombroso não é ter câncer, mas sim não ter'

 Pesquisador explica por que vê nossa sobrevivência como 'um milagre'

Carlos López-Otín pesquisa biologia de tumores há três décadas 

As células que provocam o câncer assim o fazem porque se tornam "egoístas", explica o professor espanhol de bioquímica e biologia molecular Carlos López-Otín, que chefia um laboratório de pesquisas dentro do Instituto Universitário de Oncologia do Principado de Astúrias, na Espanha.

O livro mais recente de López-Otín sobre o assunto se chama justamente Egoístas, Imortais e Viajantes - As chaves do câncer e de seus novos tratamentos: conhecer para curar (em tradução livre para o português).

No livro, ele descreve os processos tumorais e também a história do câncer, o turbulento caminho da ciência para desvendar sua origem e enfrentá-lo - a partir dos 30 anos de experiência do cientista na área.

De onde vem o câncer e por que não desapareceu com a evolução?

'Pior mito sobre câncer é achar que de alguma forma somos culpados', diz vencedor do Pulitzer

"Saio à rua, começo a caminhar, olho para os lados e vejo que por coincidência duas pessoas caminham no mesmo ritmo que eu. Não as conheço, mas sei que ao menos um deles vai desenvolver um câncer ao longo da vida. Esses são os números da virulência", diz ele em conversa à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

Leia os principais trechos da entrevista a seguir:

BBC - Por que o senhor diz que o câncer é uma tempestade perfeita?

Carlos López-Otín - Quando você entra (na tempestade), tudo é incerteza, mas as tormentas passam e hoje é mais fácil sobreviver ao câncer do que sucumbir a ele; há mais casos curados, mas ficam guardados os casos que não superam a tormenta.

Essa palavra é adequada porque o câncer, molecularmente, é uma tempestade de mutações, de danos no nosso material genético e seus arredores. Também é uma tempestade de medo, por causa do estigma (do câncer) se fala em sussurros. Às vezes me pergunto por quê, se tratando de uma doença tão frequente.

Já temos (incidência em) uma a cada três pessoas no mundo; delas, uma em cada dois, no mínimo, vai se curar completamente. E entre as que não se curam, muitas vão ter a doença cada vez mais controlada.

BBC - O câncer vai ser erradicado?

López-Otín - Eu acredito que não. O câncer forma parte da nossa essência biológica, é uma doença circunstancial à vida e à aquisição de complexidade celular. Enquanto tivermos componentes biológicos, células, tecidos e órgãos, haverá tumores.

Os vegetais também têm (câncer), os dinossauros tiveram, os homens das cavernas tiveram e os homens mais tecnológicos do mundo o terão, enquanto não forem substituídos por robôs.

BBC - Por que nossas células, que são generosas, altruístas e dão vida, escolhem o caminho da virulência? Como se tornam células egoístas?

López-Otín - Dependemos de as células se dividirem um determinado número de vezes, no máximo 60 ou 70, como mecanismo de segurança. Mas, de repente, uma célula sofre uma mutação. Uma só mudança nesses 3 bilhões de letras que compõem o genoma, neste longo verso interminável que é a vida, faz com que a célula adote uma estratégia egoísta: começa a se dividir e não responde a nenhum sinal de moderação.

Paciente fazendo mamografia; câncer é formado por uma 'tempestade de mutações', diz pesquisador (Getty Images)

Temos a esperança que isso se detenha aos 60 ou 70 ciclos, porque aí há um freio, mas ela comete mais erros, porque a sua divisão é urgente e a faz muito rapidamente.(...)

BBC - Qual o passo seguinte na sua transformação?

López-Otín - Ela (célula) necessita alcançar a imortalidade, que também está proibida. Somos mortais, e a cada segundo mais de 1 milhão de células se suicidam no nosso interior - morrem por apoptose, que é uma palavra grega (para morte celular programada).

(...) Com essas novas mutações nas células, algumas se tornam imortais e, uma vez que adquirem a imortalidade, ficam totalmente livres em sua capacidade de se dividir sem parar. Crescem tanto que esgotam os nutrientes do oxigênio.

BBC - É nesse momento que começam a viajar?

López-Otín - Elas precisam se alimentar, depois explorar outros territórios e aí é que começam com novas mutações. Esse afã viajante é uma exploração dentro do organismo. Elas usam a rodovia sanguínea e viajam até onde os nutrientes e o oxigênio não estejam comprometidos.

Por sorte, poucas - menos de 0,001% das que começam a viagem conseguem completá-la, mas, quando o fazem, começa sua aventura de colonização, como fazem as sociedades humanas quando buscam novos territórios. E, se são bem-sucedidas, criarão novas colônias, ocorrerão as metástases e aí nossa vida começa a ficar prejudicada.

Mas é uma viagem de condições incertas, não só pela dificuldade, mas porque está controlada pelo sistema imunológico.

BBC - Como esse sistema nos protege dessas células egoístas, imortais e viajantes?

López-Otín - O coronavírus retomou o interesse pelo entendimento do sistema imunológico como defesa contra micro-organismos, mas tem outra função decisiva: nos defender de nós mesmos, das células alteradas que estamos continuamente gerando, em um processo que chama imunovigilância tumoral.

Se você acorda com uma célula transformada, o sistema imunológico continuamente nos dá a oportunidade de reconhecê-la como estranha e eliminá-la; isso faz com que não tenhamos riscos extremos de ter tumores.

BBC - Quando o câncer se repete em uma família, o senhor recomenda investigar nossa herança genética para saber se somos propensos a gerar tumores?

López-Otín - Basicamente todos os tumores têm uma origem genética, porque surgem de danos nos nossos genes. Só alguns são infecciosos, como o vírus do papiloma ou algumas bactérias Helicobacter pylori que podem chegar a produzir câncer de estômago; são muito poucos os (tumores) que se devem a micro-organismos, que também acabam danificando ou confundindo nossos genes.

Todo câncer, portanto, é genético, mas só uma porcentagem mínima - menos de 10% - é hereditário, ou seja, os defeitos já trazemos de fábrica, de nossos progenitores, e isso nos torna suscetíveis a um tipo de tumor concreto.

Entre os mais comuns estão o câncer de mama e o câncer de cólon, mas há mais de 50 síndromes hereditárias de câncer.

Autor diz que células que causam o câncer assim o fazem porque se tornam 'egoístas, imortais e viajantes' (Capa do livro)

É bastante fácil reconhecer e é importante ir a uma consulta de aconselhamento genético.

BBC - Seu livro relata o caso de Angelina Jolie e comenta as críticas que ela recebeu por sua decisão de realizar uma dupla mastectomia preventiva.


López-Otín - A mãe, a tia e a avó dela tinham morrido de câncer de mama ou de ovário; é um caso paradigmático.

No entanto, ela, com grande acesso à informação e a tantos recursos, esperou ter mais de 40 anos e ter filhos biológicos para testar se havia herdado a aparente mutação que existia na sua família, com uns 50% de possibilidade de tê-la herdado. E de fato a tinha, por isso ela tomou medidas profiláticas, agressivas para alguns, mas muito necessárias para pacientes.

(...) Os exames de câncer de mama hereditário são simples, você pode dar prosseguimento e tomar medidas mais radicais. As doenças de câncer hereditário, que são interpretadas como uma desgraça, são as que podem ser erradicadas em uma família concreta, porque você sabe qual é o defeito e pode agir com a legislação adequada (em cada país).

BBC - Haverá pessoas que se sintam negativamente afetadas por saber que têm um risco maior (de desenvolver tumores), que prefiram não saber?

López-Otín - No caso do câncer, (é melhor) saber, sempre saber, porque há muitas medidas que podem ser tomadas

Angelina Jolie será a primeira na sua família a não morrer de câncer de mama ou ovário, apesar de ter a mutação para tal.

Outra questão são as doenças que ainda não nos dão uma oportunidade, como as neurodegenerativas.

Na Colômbia, há alguns núcleos com muitos casos de Alzheimer familiar e, na Venezuela, de doença de Huntington, para citar casos que vêm à mente. Neles, a possibilidade de intervenções são muito menores que no caso do câncer. Prefiro a informação, mas entendo que, se não há alternativas (de prevenção e cura), haja pessoas que não a queiram.

BBC - É relevante conhecer nosso genoma?

López-Otín - (...) Deciframos centenas de genomas completos de pacientes, especialmente com leucemia, mas também com tumores sólidos e toda a informação coletada tem sido extraordinária e gera mais alívio do que danos.

No entanto, no nosso genoma também temos escritas algumas predisposições - não mutações, mas sim predisposições -, que em determinados momentos podem favorecer o desenvolvimento de algum tipo de câncer, e também acho que seja muito importante saber.

Moléculas do câncer. 'Quando você conhece os detalhes da delicadeza molecular, percebe que a sobrevivência é um milagre', diz Carlos López-Otín (Science Photo Library)

BBC - Vai virar habitual analisar o próprio genoma, ou só algumas pessoas poderão fazer isso?

López-Otín - Não acho que esteja próximo que alguém diga 'vou fazer um exame para evitar o câncer', porque você não vai evitá-lo enquanto houver um componente de azar tão importante.

No nosso país (Espanha) deciframos centenas de genomas, encontramos mutações causadoras de tumores e, em alguns casos, pudemos desenvolver terapias específicas para os pacientes.

Isso não custou nem um euro, nada. Há sistemas muito simples que chamamos de painéis de genes que vão sendo implementados pouco a pouco em hospitais da rede pública - me refiro a sistemas baratos, simples, que garantem a justiça social.

BBC - Quando olhamos as possibilidades de modificação ou seleção genética, parece que poderia se abrir um novo sistema de desigualdades. É algo a se temer no futuro?

López-Otín - Teremos que ver qual será o alcance. A edição genética é outra das fronteiras que temos, ou seja, a modificação genética logo no início para evitar alguns males. É um passo a mais que gera muitíssimas dificuldades éticas.

Na China, foram violados, ao menos uma vez, todos os códigos a respeito disso, o que foi detido a tempo. Existe um grande consenso de que é preciso ter muito cuidado com intervenções.

Demoramos 3,5 bilhões de anos para sintonizar nosso genoma ao ambiente em que vivemos, e não é possível que em poucos anos, e por questões banais, estejamos dispostos a fazer modificações que não contribuem com nada essencial, mas que podem abrir brechas de discriminação.

Se fala também de neuroaumentação, o aumento das possibilidades neurológicas de uns e outros. A revista Time anunciou mais de dez anos atrás que em 2045 surgiriam os primeiros humanos imortais. Faltam só 23 anos, e nessa data haverá 100 milhões de seres humanos diagnosticados com Alzheimer.

Tudo o que tem a ver com o fato de que o cérebro segue sendo a última fronteira biológica de conhecimento.

Com isso, não entendo como o discurso vai sempre em direção a questões que nos fazem cair na arrogância, na prepotência. E na realidade estamos na ignorância, embora siga havendo iniciativas de investimentos multimilionários em busca da imortalidade.

BBC - O senhor compreende os que estão nessa corrida?

López-Otín - Quem quer ser imortal tem que lembrar que as verdadeiras imortais são as células egoístas que querem ser viajantes e criar tumores.

Estudamos a imortalidade para evitá-la. E, se não, que leiam o meu mestre imortal Jorge Luis Borges (escritor argentino), e em poucas páginas você se dá conta de que de nada vale ser imortal, porque em pouco tempo, em poucas centenas de anos, vai desejar voltar à fonte da mortalidade e ser como todo mundo, mortal.

BBC - O senhor teme o nada e o esquecimento, como chama a morte?

López-Otín - Não tenho medo do câncer nem de nenhuma outra doença; tomara que as que couberem a mim, como ser biológico, cheguem o mais tarde possível.

Tenho 63 anos, me parece uma façanha cósmica. Sessenta e três anos resistindo a milhares e milhares de mudanças diárias no meu genoma.

Me parece claro que o assombroso não é ter câncer, mas sim não tê-lo.

Quando você conhece os detalhes da delicadeza molecular, percebe que a sobrevivência é um milagre. Quando você observa as milhões de reações bioquímicas que fazem cada instante possível, o apreço pela vida é infinito.

O genoma está construído por 3 bilhões de peças em cada célula. E nesta noite, como em todas, o coloquei para replicar, porque cada célula que se divide faz uma cópia do material genético.

E despertei presumindo que não sofri nenhuma mutação significativa, me olhei no espelho e disse: "Nossa, hoje tampouco tenho câncer". Mas o azar pode tudo e de vez em quando ocorre alguma mudança que nos faz entrar na dinâmica de células egoístas, imortais e viajantes.

Ter completado dois terços da vida sem a chamada dessas células me parece uma grande conquista.

Não tenho medo da morte porque a considero parte da vida e, portanto, que uma doença nos roube a vida e nos converta em nada e em esquecimento me parece ser o mais natural.

Diana Massis, HayFestivalCartagena@BBCMundo, em 5 fevereiro 2022

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A surpreendente queda na desigualdade no trabalho que mascara um problema econômico do Brasil

No terceiro trimestre de 2021, a diferença no nível de emprego entre brancos e negros no Brasil atingiu o menor patamar desde o terceiro trimestre de 2015.

Aumento da informalidade após pandemia explica fenômeno, que deve ser transitório, segundo economista (Getty Images)

Ocimar dos Santos Mattos Junior começou a trabalhar no ano passado como operador de serviços gerais, fazendo limpeza em uma empresa.

Morador do município de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, o rapaz de 20 anos é parte do contingente de quase 6 milhões de pessoas pretas ou pardas que conseguiram uma ocupação desde o segundo trimestre de 2020, quando a pandemia chegou com força ao país, interrompendo parte da atividade econômica e levando o desemprego a nível recorde.

Lei de Cotas ainda não cumpriu seu objetivo e precisa ser renovada em 2022, diz reitor da Zumbi dos Palmares

Mas, para Ocimar, isso não é motivo de comemoração, e sim uma consequência da crise.

Com a pandemia, seu pai perdeu o emprego de pintor automotivo. Diante disso e dos problemas de saúde da mãe, ele se viu forçado a abandonar o cursinho que fazia, sonhando em cursar Nutrição ou Fisioterapia.

"Tive que assumir o papel de homem da casa e correr atrás para ajudar. Isso acabou atrapalhando meus estudos", conta o jovem, que agora ajuda a sustentar a família, enquanto o pai faz bicos pintando carros quando aparece serviço.

O caso da família de Ocimar, que antes da pandemia tinha uma pessoa ocupada (o pai) e agora passou a ter duas (o filho e o pai, agora trabalhando informalmente), ajuda a explicar uma estatística inusitada.

No terceiro trimestre de 2021, a diferença no nível de emprego entre brancos e negros no Brasil atingiu o menor patamar desde o terceiro trimestre de 2015.

O dado surpreende porque, há menos de dois anos, em consequência da dinâmica desigual do desemprego na pandemia, essa diferença tinha atingido nível recorde.

Ocimar teve que deixar o cursinho para trabalhar porque seu pai perdeu o emprego (Getty Images)

Menor diferença entre brancos e negros desde 2015

No segundo trimestre de 2020, momento mais forte de paralisação da atividade econômica, o percentual de pessoas brancas ocupadas em relação à população branca total em idade de trabalhar era de 52,8%.

Entre os negros (soma de pretos e pardos), essa taxa chegou então a 46,9%.

Com o forte impacto da pandemia sobre o emprego informal e a população de baixa renda, a diferença no nível de ocupação entre brancos e negros chegou naquele momento a 5,9 pontos percentuais, maior nível da série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que teve início em 2012.

No terceiro trimestre de 2021, pouco mais de um ano depois, o nível de emprego dos brancos subiu para 55,8% e o dos negros, para 52,7%.

O dado do terceiro trimestre é o mais recente disponível da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Trimestral do IBGE, que traz estatísticas de emprego em mais detalhes do que o levantamento mensal, com dados por idade, gênero, raça e cor.

Assim, a diferença entre as taxas caiu a 3,1 pontos percentuais no terceiro trimestre de 2021, menor patamar desde os 2,9 pontos registrados em meados de 2015, quando o mercado de trabalho vinha de um dos momentos mais aquecidos de sua história, mas já começava a sentir os efeitos da recessão de 2015-2016.

Gráfico de linha mostra a diferença no nível de emprego entre brancos e negros no Brasil

Essa diferença chegou a 2,4 pontos no terceiro trimestre de 2014, logo antes de a taxa de desemprego atingir o patamar historicamente baixo de 6,6% ao fim daquele ano.

Lá em 2014, a redução da diferença no nível de emprego entre brancos e negros tinha uma explicação clara: com o mercado de trabalho superaquecido, era fácil tanto para brancos, como para negros — que tradicionalmente têm mais dificuldade para se empregar —, conseguir trabalho.

Mas e em 2021? O que explica a queda da diferença no nível de emprego entre brancos e negros, em um momento em que a taxa de desemprego estava em 12,6%, vindo de um recorde de 14,9% em 2020?

Aumento da informalidade na reabertura da economia

"Também foi uma surpresa para mim", diz Daniel Duque, pesquisador do mercado de trabalho no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).

Para ele, a explicação mais plausível é o aumento da informalidade na reabertura da economia, após a fase mais dura de distanciamento social.

"Analisando os dados por setores da economia, idade, gênero, nada disso explica a redução da diferença. O que explica de fato é que o emprego informal se recuperou muito mais rápido do que o formal", observa o economista.

Entre o terceiro trimestre de 2020 e igual período de 2021, foram criados 9,5 milhões de empregos no Brasil, segundo o IBGE. Mas, desse total de pessoas ocupadas a mais, 7 milhões estavam na informalidade.

País ganhou 7 milhões de trabalhadores informais em um ano e negros são maioria na informalidade (Getty Images)

"Como a população não branca geralmente acessa mais os empregos informais, isso acabou reduzindo a diferença no nível de emprego com relação à população branca, que em geral tem mais empregos formais, que não se recuperaram tão rapidamente."

Ou seja: a redução da diferença racial é resultado de uma piora na qualidade do emprego, com aumento da informalidade e queda da renda.

Essa situação deve ser transitória, explica Duque, e deve ser revertida quando o emprego formal se recuperar.

"A situação que estamos vendo agora não é estrutural, é uma circunstância devido ao momento da recuperação econômica do mercado de trabalho na pandemia", avalia.

Nos EUA, 'diferença racial' também está em baixa

A diferença no nível de emprego entre brancos e negros é um indicador bastante acompanhado nos Estados Unidos, onde o debate sobre igualdade racial no mercado de trabalho é mais avançado do que no Brasil.

Por lá, o Federal Reserve Bank of St. Louis — um dos 12 bancos regionais que compõem o sistema do Banco Central americano — mantém séries históricas do nível de emprego de brancos e pretos.

O dado observado é o chamado "Employment-Population Ratio", que é a proporção de pessoas ocupadas dentre o total de pessoas em idade de trabalhar para cada grupo racial.

Olhando para esse indicador, a diferença no nível de emprego entre brancos e negros nos Estados Unidos chegou logo antes da pandemia ao menor nível da história.

Com 60,9% de brancos ocupados em relação à população branca total em idade de trabalhar e 59% de pretos ocupados na mesma métrica, a diferença caiu a apenas 1,9 ponto percentual em dezembro de 2019.

Gráfico de linha mostra a diferença no nível de emprego entre brancos e negros nos Estados Unidos

Diferença no nível de emprego entre brancos e pretos nos EUA chegou ao menor nível da história antes da pandemia. (St. Louis Fed)

Na década de 1980, marcada por sucessivas recessões nos Estados Unidos, essa diferença atingiu quase 10 pontos.

Com a pandemia, a desigualdade entre brancos e negros voltou a crescer, e a diferença racial do mercado de trabalho americano bateu em quase 5 pontos em meados de 2020.

Mas, após a retomada das atividades, o indicador caiu novamente, o que os analistas creditam ao bom momento do mercado de trabalho, com forte criação de vagas e virtual pleno emprego, o que favorece a ocupação da população não branca.

"Se muita gente está conseguindo emprego, não há uma diferença grande entre grupos. Quando há uma situação em que falta mão de obra, fica mais difícil para os empregadores discriminar", observa Duque.

A origem da desigualdade racial no mercado de trabalho

Embora tanto no Brasil como nos Estados Unidos a diferença no nível de emprego entre brancos e negros esteja em patamares historicamente baixos, os motivos para isso são bastante diferentes

Primeiro, é preciso entender por que os negros historicamente têm mais dificuldade para encontrar trabalho do que os brancos. Isso tem origem na escravidão.

"A população branca teve acesso à educação muito mais do que a população não branca, desde há séculos. Isso só começou a se equalizar há poucas décadas e, até hoje, a desigualdade na educação entre jovens brancos e não brancos persiste, porque há uma transmissão geracional da educação", diz Duque.

Filhos de pais com ensino superior têm, por exemplo, mais chance de concluir uma faculdade. E até a expansão do ensino superior e da implementação da lei de cotas a desigualdade racial no acesso ao ensino universitário no Brasil era enorme.

'Cotas já, a USP vai ficar preta', diz faixa em manifestação a favor de cotas raciais na Universidade de São Paulo

Manifestação a favor de cotas raciais na Universidade de São Paulo (USP) (Divulgação).

"Além disso, a população branca tem mais conexões, tem mais acesso a recursos parentais e a toda uma série de benefícios que a população não branca não tem", acrescenta o economista.

Os jovens brancos têm ainda desde cedo acesso a cursos extraescolares, como inglês e informática, e a recursos culturais, como idas ao cinema, compra de livros e intercâmbios no exterior, por exemplo.

"Adicionalmente a tudo isso, existe a discriminação racial, que é bem documentada tanto no Brasil, quanto fora, e exerce uma influência muito forte na probabilidade de contratação entre brancos e não brancos no país e no mundo", afirma.

Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, destaca que há também no Brasil um componente regional na desigualdade de acesso ao mercado de trabalho entre brancos e negros.

"A composição da população branca e negra é diferente no território brasileiro", observa.

"Os negros estão mais presentes nos Estados do Norte e Nordeste, enquanto o Sudeste tem o mercado de trabalho mais desenvolvido e aquecido. Só isso já gera disparidades raciais no mercado de trabalho, simplesmente pelo contexto regional."

Como diminuir a desigualdade racial do emprego de forma estrutural

Para Duque, diminuir a desigualdade racial no mercado de trabalho de forma permanente exige reduzir a disparidade educacional entre bancos e negros, já que a formação influencia a capacidade de conseguir emprego.

"Adicionalmente, é preciso uma mudança cultural, de reduzir a discriminação na contratação, que também é bastante relevante", afirma.

França avalia que são necessárias políticas de redução da desigualdade mais amplas.

"Faço parte do grupo que acredita que é preciso investir pesadamente em educação, porque nossa educação é muito ruim, com discrepâncias importantes entre ensino público e privado e, mesmo no sistema público, entre escolas centrais e as mais periféricas. Mas é utópico acreditar que investir só na educação vai resolver tudo", considera.

"São necessárias políticas de ação afirmativa em todos os campos da sociedade. Na política, no mercado de trabalho, na educação. Sem isso, o processo de inclusão será muito lento. Temos que botar cotas em tudo", defende.

Nos Estados Unidos, discute-se a importância do mandato de pleno emprego do Banco Central americano, o Fed, para a redução da desigualdade racial no mercado de trabalho.

Esse mandato estabelece que é obrigação da autoridade monetária perseguir "o máximo nível de emprego ou menor nível de desemprego que a economia pode sustentar mantendo uma taxa de inflação estável".

No Brasil, a lei que garantiu a autonomia do Banco Central, sancionada em fevereiro de 2021, estabeleceu o fomento do pleno emprego como um segundo objetivo da autoridade monetária, para além do combate à inflação.

Muitos economistas avaliam, porém, que isso tem sido ignorado e que o Banco Central continua atuando como se o controle da inflação fosse seu único objetivo.

A discussão tem ganhado espaço nos últimos meses, em meio ao ciclo de alta de juros, que alguns analistas avaliam que, se mal calibrado, pode levar o Brasil à recessão e ao aumento do desemprego em 2022.

"Agora que estamos com inflação alta, isso acaba sendo visto ainda como prioridade para o Banco Central, mas, sem dúvida, olhar para o emprego e para o combate ao desemprego através de ferramentas macroeconômicas seria bastante relevante para reduzir o hiato racial de empregos e salários no Brasil", conclui Duque.

Thais Carrança - @tcarran, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 04.02.22.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Descoberto uma nova variante do HIV mais contagiosa e virulenta

A descoberta, em cem pessoas na Holanda, é evidência de que os vírus podem evoluir para formas mais agressivas

Um teste rápido de diagnóstico de HIV, em uma imagem de arquivo.

Uma lenda urbana, popularizada durante a pandemia de covid, afirma que os vírus estão destinados a perder sua malignidade com o tempo. Não é certo. Uma equipe internacional de cientistas anunciou quinta-feira a descoberta de uma variante mais virulenta e contagiosa do HIV, o vírus que pode desencadear a AIDS se não for tratado. Os pesquisadores detectaram 109 casos até agora, praticamente todos na Holanda e a maioria (82%) em homens que fazem sexo com homens. A variante, chamada VB, triplica ou até quintuplica a quantidade usual de vírus no sangue.

O HIV saltou de chimpanzés para humanos por volta de 1920, no que hoje é a República Democrática do Congo, embora não tenha sido identificado até 1983 . Desde então, alguns dados da Europa e da América do Norte sugeriram que o vírus vem aumentando em virulência em algumas regiões. A variante VB é especialmente agressiva. O HIV destrói os linfócitos CD4, um tipo de glóbulo branco que protege as pessoas contra infecções. A Organização Mundial da Saúde considera “doença avançada”um número inferior a 350 linfócitos por milímetro cúbico de sangue. Homens na casa dos trinta com BV, na ausência de tratamento, atingiriam esse limiar perigoso cerca de nove meses após o diagnóstico, em comparação com uma média de 36 meses com a variante usual.

O epidemiologista Chris Wymant , da Universidade de Oxford (Reino Unido), destaca que o HIV afeta as pessoas de maneiras muito diferentes. Em alguns indivíduos, o vírus causa AIDS em apenas alguns meses. Em outros, leva décadas. A quantidade de vírus no sangue pode ser milhares de vezes maior em algumas pessoas. Convencidos de que essas diferenças poderiam ser explicadas em parte pelas mutações do vírus, a equipe de Oxford lançou um projeto em 2014 para buscar alterações genéticas no HIV associadas a um maior impacto da doença. Os últimos resultados são publicados esta quinta-feira na revista Science .

Wymant explica que o ser humano e o vírus se envolveram em "uma corrida armamentista". Atualmente, as pessoas com HIV podem viver normalmente graças a uma simples pílula diária de tratamento antirretroviral, que torna o vírus indetectável e intransmissível. Mas o HIV não para de sofrer mutações. “O pior cenário seria o surgimento de uma variante que combinasse maior virulência, maior transmissibilidade e resistência ao tratamento. A variante que descobrimos tem apenas as duas primeiras propriedades”, alerta o epidemiologista de Oxford.

O pior cenário seria o aparecimento de uma variante que combina maior virulência, maior transmissibilidade e resistência ao tratamento

Chris Wymant, epidemiologista

O BV possui mais de 500 mutações, quase 6% do genoma do vírus, por isso é difícil determinar quais alterações são responsáveis ​​por sua maior virulência. Uma das possibilidades contempladas pela comunidade científica é que a própria terapia antirretroviral favoreça o aparecimento de novas versões mais agressivas do HIV, mas Wymant descarta isso. Sua equipe estima que a variante surgiu em Amsterdã na década de 1990, pouco antes do advento de tratamentos mais eficazes. A Holanda é um dos países com maior disponibilidade de terapias antirretrovirais, o que teria impedido uma maior expansão desta variante e de qualquer outra. “Os vírus não podem sofrer mutações se não puderem se multiplicar”, lembram os autores.

Wymant transmite uma mensagem tranquilizadora. “As pessoas não precisam se preocupar. Encontrar essa variante reforça a importância das recomendações que já estavam em vigor: que as pessoas em risco de contrair o HIV tenham acesso a exames regulares que permitam diagnóstico precoce e tratamento imediato”, afirma o epidemiologista. O risco de contrair o HIV é 35 vezes maior entre pessoas que usam drogas injetáveis, 34 vezes maior para mulheres trans, 26 vezes maior para “profissionais do sexo” de ambos os sexos e 25 vezes maior para homens que fazem sexo com homens, segundo estatísticas da Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS.

A virologista Mari Carmen Puertas descreveu há alguns anos o primeiro caso de HIV resistente a todas as combinações de antirretrovirais em uso, o de um homem diagnosticado em 1989, aos 41 anos. A cientista também pede calma, após analisar o novo trabalho, do qual não participou. “Esse tipo de estudo não deve gerar alarme social. Não estamos diante de uma variante que representa um perigo iminente. Felizmente, a situação epidemiológica na Holanda, como na maioria dos países europeus, favorece o diagnóstico precoce e o tratamento precoce do HIV”, diz Puertas, do Instituto IrsiCaixa AIDS Research, em Badalona (Barcelona).

O pesquisador insta a melhorar os programas de prevenção, especialmente nos países em desenvolvimento. “A terapia antirretroviral retarda o vírus e, portanto, sua evolução no indivíduo e a possível transmissão para outras pessoas. Assim, a terapia antirretroviral é a melhor arma para combater o aparecimento de novas variantes do HIV”, diz Puertas.

A terapia antirretroviral é a melhor arma para combater o aparecimento de novas variantes do HIV

Mari Carmen Puertas, virologista

A pandemia de covid mostrou que uma nova variante de um vírus respiratório pode se espalhar pelo mundo em poucas semanas , mas o HIV se move mais em uma escala de anos. Os resultados da equipe de Wymant sugerem que a variante VB surgiu na década de 1990 em Amsterdã e se espalhou pela Holanda na década de 2000, mais rapidamente do que outros subtipos. Apesar de sua maior transmissibilidade, a variante começou a diminuir a partir de 2010, segundo o epidemiologista de Oxford. "É muito provável que essa queda seja consequência dos grandes esforços na Holanda para reduzir a transmissão de qualquer tipo de HIV, por meio da expansão de testes diagnósticos e tratamentos", hipotetiza Wymant.

O projeto Oxford analisou a sequência genética do vírus em cerca de 7.500 pessoas vivendo com HIV em oito países europeus (Alemanha, Bélgica, Finlândia, França, Holanda, Reino Unido, Suécia e Suíça) e Uganda. Além de 107 casos holandeses, os pesquisadores encontraram mais dois na Suíça e na Bélgica. Antes desse projeto, chamado BEEHIVE , era comum examinar apenas os fragmentos da sequência genética do HIV em que as mutações associadas ao aumento da resistência aos medicamentos tendem a aparecer. A equipe de Oxford, liderada pelo epidemiologista Christophe Fraser , diz que passou anos desenvolvendo as ferramentas de computação necessárias para fazer essa pesquisa.

O bioinformático Joel Wertheim , da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA), acredita que a descoberta de uma variante mais virulenta do HIV é uma lição importante para a pandemia de covid. "Embora seja certamente possível que o SARS-CoV-2 evolua para uma infecção mais benigna, como outros coronavírus responsáveis ​​pelo resfriado comum, esse resultado final não é de forma alguma predeterminado", disse Wertheim em um comentário também publicado na revista Science .. A variante delta do coronavírus, detectada na Índia no final de 2020, era mais transmissível e virulenta que as versões anteriores e foi a dominante no planeta até o final de 2021. “As pandemias de HIV e SARS-CoV-2 mostram que os vírus podem e vão evoluir por seleção natural para uma maior virulência”, alerta Wertheim.

Manuel Ansede é jornalista científico e anteriormente médico veterinário. É cofundador da Materia, a seção de Ciências do EL PAÍS. Licenciado em Medicina Veterinária pela Universidade Complutense de Madrid, fez mestrado em Jornalismo e Comunicação de Ciência, Tecnologia, Ambiente e Saúde na Universidade Carlos III. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 03.02.22.

Brasil volta a registrar mais de mil mortes por covid em 24h

Patamar de mil mortes diárias não era superado desde agosto passado. Número de novos casos chega a 298,4 mil e bate recorde. Fiocruz afirma que ocupação de UTIs é crítica em 9 unidades da Federação.

O Brasil registrou oficialmente nesta quinta-feira (03/02) 1.041 novas mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

É a primeira vez que o Conass registra mais de mil mortes por covid-19 em 24 horas no país desde 18 de agosto, há mais de cinco meses. A alta de novos casos e mortes se relaciona à disseminação da variante ômicron, mais transmissível.

Nesta quinta, também foram registrados 298.408 novos casos de covid-19, quebrando o recorde anterior, de 28 de janeiro. Com isso, o total de infecções registradas no país chega a a 26.091.520, e os óbitos oficialmente identificados somam 630.001.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Uma pesquisa Datafolha publicada em 15 de janeiro apontou que um entre quatro brasileiros com 16 ou mais anos de idade afirma ter ter sido diagnosticado com covid-19 desde o início da pandemia no país. O número representa quase o dobro dos casos oficialmente notificados.

A média móvel de casos, que avalia os últimos sete dias, também é recorde, com 189.526 infecções. A média móvel de óbitos aumentou para 702, patamar verificado pela última vez em agosto passado.

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 299,8 no Brasil, a 14ª mais alta do mundo, atrás de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 894,3 mil óbitos, mas têm população bem maior. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (75,7 milhões) e Índia (41,8 milhões).

Ao todo, mais de 386,9 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 5,7 milhões de mortes associadas à doença, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

Ocupação de UTIs é crítica em nove unidades da Federação

Nesta quinta, uma nota técnica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) informou que a taxa de ocupação de leitos de UTIs dedicados à covid-19 é considerada crítica, com mais de 80% de ocupação, em nove unidades da Federação: Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Espírito Santo.

Segundo a publicação, em 13 unidades da Federação houve aumento recente das taxas de ocupação dos leitos de UTI para covid-19. Entre 25 capitais com dados disponíveis, 13 estão na zona de alerta crítico, nove na zona de alerta intermediário e oito fora da zona de alerta.

Os pesquisadores do Observatório Covid-19 da Fiocruz avaliam que o comportamento das taxas de ocupação em estados e capitais "parece apontar para a interiorização de casos da doença". Algumas capitais já apresentam mais estabilidade ou mesmo queda nas suas taxas, enquanto as taxas dos estados crescem expressivamente. 

A nota técnica da Fiocruz ressalta que o cenário atual não é o mesmo registrado entre março e junho de 2021, a fase mais crítica da pandemia, e que mesmo com o acréscimo de leitos para covid-19 ocorrido nas últimas semanas, a disponibilidade de leitos é hoje bem menor.

Os pesquisadores alertam para a baixa cobertura vacinal em diversas áreas do país, onde os recursos assistenciais são mais precários, e lembram que uma proporção considerável da população que não recebeu a dose de reforço ou não se vacinou é mais suscetível a formas mais graves da infecção com a ômicron.

A Fiocruz destaca que a "elevadíssima" transmissibilidade da variante pode resultar em números expressivos de internações em leitos de UTI, mesmo com uma probabilidade mais baixa de ocorrência de casos graves.

Deutsche Welle Brasil, em 03.02.22. 

Relator do Refis diz que votação de veto de Bolsonaro deve ocorrer ainda este mês

Segundo ele, 600 mil empresas aderiram ao Simples até 31 de janeiro, sendo 437 mil com dívidas. "Se não houver parcelamento de dívidas até 31 de março, serão excluídas do Simples. Isso significa fechamento. Dá no mínimo 1 milhão de empregos ameaçados".

O deputado federal Marco Bertaiolli (PSD), à dir., quando era prefeito de Mogi das Cruzes (SP), em 2013 - Jorge Andrade/Brazil Photo Press/Folhapress

Relator do Refis na Câmara, o deputado federal Marco Bertaiolli (PSD-SP) diz que conversou com seu colega de partido Rodrigo Pacheco (MG), presidente do Senado, para que o veto presidencial à adesão de empresas do Simples seja votado ainda este mês pelo Congresso.

A tendência é de que o veto seja derrubado facilmente pelas duas Casas do Congresso, mas o relator alerta que é preciso uma solução com urgência.

Segundo ele, 600 mil empresas aderiram ao Simples até 31 de janeiro, sendo 437 mil com dívidas. "Se não houver parcelamento de dívidas até 31 de março, serão excluídas do Simples. Isso significa fechamento. Dá no mínimo 1 milhão de empregos ameaçados".

Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo, em 03.02.22.

Como ser resiliente em tempos difíceis

Os sete passos para seguir em frente em meio às dolorosas perdas do momento

Resiliência pode ser conquistada ao longo da vida Foto: André Mello/ Editoria de Arte

Nova alta de casos de Covid-19. Volta ao home office. Como lidar com os problemas que têm se mantido nesses dois anos e seguir em frente?  Uma maneira é recorrer a uma característica milenar que nos permite enfrentar a adversidade: a resiliência. Resiliência é a capacidade de lidar com os golpes.

— Se você for frágil, você quebrará — disse Pauline Boss, professora emérita da Universidade de Minnesota e autora do livro recém-publicado nos Estados Unidos “The Myth of Closure”.  

Boss, terapeuta, educadora e pesquisadora, é mais conhecida pelo trabalho pioneiro sobre “perda ambígua”, que também é o título de seu livro de 1999 que descreve perdas físicas ou emocionais não resolvidas e muitas vezes insolúveis. 

— Com tudo o que aconteceu durante a pandemia, não podemos esperar voltar ao normal que tínhamos — afirmou Boss que, aos 87 anos, passou por várias reviravoltas, a começar pela Segunda Guerra Mundial.  

Em uma entrevista, ela me disse:

— As coisas estão sempre mudando, e se você não muda, você não cresce. Nunca mais seremos os mesmos. A pandemia é épica, um poder maior que nós, e temos que ser flexíveis, resilientes o suficiente para sobreviver. E vamos sobreviver, mas nossas vidas serão mudadas para sempre.

A resiliência nos permite adaptar-nos ao estresse e encontrar equilíbrio diante da adversidade: 

— Quando as pessoas resilientes são confrontadas com uma crise que tira sua capacidade de controlar suas vidas, elas encontram algo que podem controlar — afirma Boss. — No início da pandemia, as pessoas podiam organizar a casa, assar um pão, arrumar as gavetas dos armários, cuidar dos parentes próximos. Eram mecanismos de enfrentamento funcionais.

Agora o cenário é outro. Muitas pessoas não conseguem se adaptar a um problema que não podem resolver, e essa realidade cresceu durante a pandemia. As soluções absolutas não existem mais.  

Embora a resiliência seja frequentemente vista como um traço de personalidade inerente que as pessoas têm ou não, estudos mostraram que é uma característica que pode ser adquirida. As pessoas podem adotar comportamentos, pensamentos e ações que ajudam a construir resiliência, em qualquer idade. 

Boss costuma afirmar aos pais para ficarem tranquilos nesse aspecto, em especial a questões relacionadas à pandemia — medos, insegurança, isolamento.

— As crianças são naturalmente resilientes e serão mais fortes por terem sobrevivido a essa coisa ruim que aconteceu com elas. Eles vão se recuperar e crescer com isso — afirma.

Mais do que nas crianças, “precisamos nos concentrar nos adultos”, diz.

— Não estou dizendo que o cenário é semelhante ao de uma Guerra Mundial ou represente uma ameaça global. Mas temos de nos preocupar muito com os adultos — diz Boss.

 Ela se preocupa que alguns pais possam estar protegendo demais seus filhos, o que pode corroer sua capacidade natural de resolver problemas e lidar com a adversidade. 

Em seu novo livro, a pesquisadora oferece diretrizes para aumentar a resiliência de uma pessoa para superar as adversidades e viver bem apesar de experiências dolorosas. Ela cita o Viktor E. Frankl, um neurologista, psiquiatra e sobrevivente do Holocausto, que escreveu:

— Quando não somos mais capazes de mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós mesmos.

Ela recomenda que as pessoas usem cada diretriz conforme necessário, em nenhuma ordem específica, dependendo das circunstâncias.

Ninguém se torna resiliente do dia para noite. Trata-se de um exercício e de um esforço contínuo. A seguir, alguns caminhos que podem ajudar.  

Rumo à resiliência 

Encontre significado

A orientação mais desafiadora para muitas pessoas é encontrar significado, dar sentido a uma perda e, quando isso não for possível, realizar algum tipo de ação, como buscar justiça, trabalhar por uma causa ou tentar corrigir um erro. Quando o irmão mais novo da pesquisadora morreu de poliomielite, sua família, com o coração partido, foi de porta em porta para arrecadar dinheiro para financiar a pesquisa de uma vacina contra a doença. E isso não só ajudou às pesquisas, como os confortou.

Não controle seus sentimentos

Em vez de tentar controlar a dor da perda, deixe a tristeza fluir, continue o melhor que puder e, eventualmente, os altos e baixos serão menos frequentes.

— Não temos poder para destruir o vírus, mas temos o poder de diminuir seu impacto sobre nós — afirma Boss.

Reconstrua sua identidade

É útil adotar uma nova identidade mais em sintonia com as circunstâncias atuais. Quando o marido de Boss ficou doente terminal, por exemplo, sua identidade foi mudando de esposa para cuidadora e, após sua morte em 2020, gradualmente ela foi tentando se considerar viúva. 

Aceite a ambivalência

Quando você não tem clareza sobre uma perda, é normal se sentir ambivalente em relação às situações. Ter dúvidas. E não paralise frente a elas.

— É melhor tomar decisões não tão perfeitas do que não fazer nada. A vida não pode esperar — diz Boss.

Não tenha medo de mudar, mas vá com calma

Se tiver que romper com uma condição ou um propósito, faça isso gradualmente e reconstrua aos poucos sua vida de uma nova maneira, com um novo senso de propósito. Mudanças são importantes, elas impactam a mente, dão novo sentido à vida, trazem novos amigos, novos projetos.  

Descubra uma nova esperança

Comece a esperar por algo novo que permita seguir em frente com sua vida de uma nova maneira. Depois, pare de esperar, aja e busque novas conexões que possam minimizar o isolamento e promover o apoio que, por sua vez, nutre sua resiliência. 

Talvez o conselho mais valioso da pesquisadora, no entanto, seja esse:

— O que precisamos esperar não é voltar ao que tínhamos, mas ver o que podemos criar agora e no futuro. Espere por algo novo e com propósito que o sustente e lhe dê alegria pelo resto de sua vida.

Jane E. Brody, do NYT. Publicado no Brasil pelo O Globo, em 03/02/2022.

Bolsonaro se diz ‘perseguido’ por delegada da PF e manda recado a ministros do Supremo

 Membros do governo se queixaram da maneira como a delegada conduz as investigações envolvendo o presidente e seus aliados e afirmam que Bolsonaro se sente “perseguido” por Denisse.

Delegada da PF Denisse Ribeiro | Foto: Reprodução

As reclamações do presidente Bolsonaro sobre a delegada da Polícia Federal Denisse Ribeiro chegaram aos ouvidos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Membros do governo se queixaram da maneira como a delegada conduz as investigações envolvendo o presidente e seus aliados e afirmam que Bolsonaro se sente “perseguido” por Denisse.

Além de estar à frente da apuração sobre o suposto vazamento de documentos sigilosos envolvendo ataque ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ela conduz os inquérito das fake news, das milícias digitais e da live em que o presidente atacou as urnas eletrônicas.

Na sexta-feira, o presidente não compareceu ao depoimento marcado na PF pelo ministro Alexandre de Moraes. Auxiliares de Bolsonaro afirmaram que um dos motivos de não ir à oitiva era que ele não queria depor para Denisse, porque tinha como certo que seria indiciado.

Nesta semana, a delegada enviou ao STF a conclusão do inquérito sobre o vazamento da investigação do ataque hacker ao TSE e afirmou que o presidente cometeu crime ao vazar documentos sigilosos de uma investigação policial. Denisse, no entanto, não o indiciou formalmente por entender que ele tem foro privilegiado. Com o relatório final da PF, o caso deve ser concluído. Na corte, a avaliação é que Denisse faz um trabalho sério e técnico. 

Agora, Moraes encaminhará o documento para a Procuradoria-Geral da República, que vai decidir se abre uma ação contra Bolsonaro. No STF, a avaliação é que o PGR Augusto Aras não dará andamento ao caso, mesmo com a indicação da PF de que o presidente cometeu crime. 

Por Bela Megale. Publicado originalmente n'O Globo, em 03.02.22.

Waack: Jair imponderável

Adversários de Bolsonaro se perguntam se ele vai tentar a reeleição


Nas condições atuais os profissionais da política admitem que as chances de Bolsonaro se reeleger são remotas. Foto: Adriano Machado/Reuters

Jair Bolsonaro é no momento o fator imponderável das próximas eleições. O comportamento de Lula, seu principal adversário, é o que se esperava e previa. Idem para os demais concorrentes, nenhum deles até aqui uma formidável surpresa – mesmo considerando o “efeito Moro”, em parte já dissipado.

O imponderável associado ao presidente tem menos a ver com a possibilidade de uma “ruptura” institucional, como a pantomima ensaiada no último 7 de setembro. E muito mais com seu notório desequilíbrio pessoal, pautado em grande medida pelo medo de ele ou de seus filhos acabarem presos em caso de derrota eleitoral. Temer foi preso quando deixou a Presidência, e Bolsonaro acha que corre o mesmo risco.

Nas condições atuais os profissionais da política admitem que as chances de Bolsonaro se reeleger são remotas. Seus “aliados” do Centrão o apoiam sobretudo como nome para ajudar na formação de bancadas – o principal foco dos caciques dos partidos, convencidos de que não importa o vencedor, o jogo de governabilidade para valer será na Câmara dos Deputados.

Bolsonaro percebe a iminência da derrota e vem daí a possibilidade que alguns de seus adversários, como Ciro Gomes, do PDT, tratam já abertamente como probabilidade: a de que o “mito” não tente a reeleição. A questão seria, então, negociar algum tipo de “proteção” no caso de perda da prerrogativa por função.

Para concorrer a deputado ou senador, eleições que venceria facilmente, Bolsonaro precisa se desincompatibilizar (os prazos são motivo de diferentes interpretações). O problema está aí: saindo do cargo para concorrer a eleições corre o risco de ser preso.

“Aqui não há nada contra ele”, diz veterano integrante do STF. Mas, incentivada ou não por Bolsonaro, chegou a ministros da Corte a demanda por saber qual seria o regime jurídico que permitiria ao presidente, por exemplo, ocupar uma embaixada e permanecer “protegido” podendo disputar eleições. 

“Ler” o comportamento de Bolsonaro para tentar antecipar suas decisões tem sido atividade com baixa taxa de sucesso, tal o desequilíbrio com o qual age em questões como a vacinação de crianças, que se empenhou em atrapalhar (difícil de entender até pela “racionalidade cínica” do cálculo político-eleitoreiro). Quem tratou com ele recentemente relata certo desinteresse em participar de grandes articulações eleitorais.

“Nunca exclua aquilo que não se sabe”, diz o mantra da antiga KGB – que foi, antes de mais nada, uma escola de especialistas em informação. O problema, no caso de Bolsonaro, é que talvez nem ele mesmo saiba. 

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02.02.22.

Em um mês, Ômicron faz média de mortes por covid subir 566% no Brasil

Média avançou nesta quarta-feira a 653 óbitos diários, ante 98 no início de janeiro; expectativa é de que o avanço em óbitos, internações e novos casos continue pelas próximas duas semanas

Paciente é submetida a teste de covid-19; após explosão de casos da Ômicron, média de mortes por covid sobe 566% no Brasil Foto: André Coelho/EFE

Apesar de considerada menos letal, a variante Ômicron do coronavírus fez a média móvel de mortes pela doença aumentar 566% no último mês, saltando de 98 para 653 óbitos diários nesta quarta-feira. Mesmo com mais de 70% da população brasileira já imunizada com duas doses ou a vacina de aplicação única, a alta transmissibilidade da cepa tem aumentado as internações em leitos de enfermaria e UTI, enquanto gestores de saúde apontam que a maioria dos quadros graves está concentrada em idosos, pessoas com comorbidades e não vacinados.

“A subida foi bem lenta na primeira (onda), rápida na segunda e meteórica com a Ômicron”, explica Luiz Carlos Zamarco, secretário adjunto de Saúde de São Paulo. “A partir daí, a curva de internações e infecções se estabilizou, com casos de menor complexidade, o que facilitou o giro de leitos”, diz. “Hoje temos de maneira clara que podemos estar muito próximos do chamado platô, para que entre 15 e 20 de fevereiro haja estabilidade”, explica o secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido.

Segundo ele, um terço dos óbitos pelo coronavírus é de pessoas que não completaram o esquema vacinal. O restante ele atribui a pacientes com alguma comorbidade grave, cujo quadro é agravado pela covid.

Esse é o mesmo perfil dos óbitos que têm impulsionado a média móvel da Bahia. Nesta quarta, o Estado registrou 45 mortes por covid, o maior total diário desde 7 de agosto – e a média móvel de casos ativos e novas notificações gira em torno dos 30 mil, o maior patamar de toda a pandemia. “Temos mais casos, porém um quarto dos óbitos de março do ano passado”, observa Izabel Marcílio, coordenadora de Operações de Emergência. 

O cenário se repete no Distrito Federal, onde a letalidade é menor, mas a alta nas transmissões tem pressionado as unidades de atendimento primário e desfalcado equipes médicas. “Essa característica avassaladora de transmissibilidade é sem precedentes”, diz Fernando Erick Damasceno, secretário adjunto de Saúde. Dos 40 óbitos por covid deste ano, Damasceno afirma que 34 foram em pessoas que não completaram o esquema vacinal. 

No Mato Grosso do Sul, a onda de transmissão tem forçado o Estado a abrir novos leitos para dar conta da demanda. Cerca de 30% dos profissionais da saúde se infectaram com a nova variante. “Para um Estado pequeno como o nosso, isso é muito”, diz Geraldo Resende, secretário estadual de Saúde. 

Incerteza

Em todos os Estados, a expectativa é de que esse aumento em óbitos, internações e novos casos permaneça pelas próximas duas semanas, até atingir um platô. Mas isso não significaria o fim da pandemia. “Estaríamos mais uma vez vencendo uma etapa, fazendo com que todas as pessoas sejam atendidas e medicadas”, frisa Aparecido.

A incerteza se explica pela ausência de parâmetros como a taxa de positividade, explica Isaac Schrarstzhaupt, analista de dados e coordenador na Rede Análise Covid-19, formada por pesquisadores voluntários. Essa taxa é obtida quando se divide o número de testes positivos pelo número de testes realizados. “Isso permite prever a tendência do comportamento da doença. Se tivéssemos, poderíamos apostar no pico ou no platô”, diz. No País, porém, a testagem é baixa

Para a epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Ethel Maciel, a desigualdade nos índices de vacinação entre os Estados é outro fator a dificultar predição. “Acredito que em alguns Estados como o Rio já passamos pelo pico, mas há uma diferença de desenvolvimento da Ômicron e da vacinação pelo País de pelo menos de duas a três semanas”, afirma. “Acabamos olhando para dados de outros países em que essa variante levou de 25 dias a 45 dias para atingir o pico.”

A falta de investimentos federais em campanhas de divulgação da necessidade de reforço na vacinação também não contribui, diz a epidemiologista . “A gente já sabia que seria preciso a dose de reforço para essa variante e ainda estamos muito atrás, com porcentual muito baixo quando comparado com outros países como o Reino Unido e a Dinamarca, que começam a retirar as restrições”, afirma.

Síndrome Respiratória Aguda Grave

O diagnóstico do Infogripe, da Fiocruz, divulgado ontem, também não é animador. Os casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) têm sinal forte de crescimento nas tendências de longo prazo (seis semanas) e de curto prazo (três semanas). Essa tendência deve se manter em 23 Estados brasileiros. Do total, quase 80% dos casos neste ano são decorrentes da covid-19.

João Ker e Emílio Sant'Anna, O Estado de S.Paulo, em 03 de fevereiro de 2022 | 05h00