terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

'Assombroso não é ter câncer, mas sim não ter'

 Pesquisador explica por que vê nossa sobrevivência como 'um milagre'

Carlos López-Otín pesquisa biologia de tumores há três décadas 

As células que provocam o câncer assim o fazem porque se tornam "egoístas", explica o professor espanhol de bioquímica e biologia molecular Carlos López-Otín, que chefia um laboratório de pesquisas dentro do Instituto Universitário de Oncologia do Principado de Astúrias, na Espanha.

O livro mais recente de López-Otín sobre o assunto se chama justamente Egoístas, Imortais e Viajantes - As chaves do câncer e de seus novos tratamentos: conhecer para curar (em tradução livre para o português).

No livro, ele descreve os processos tumorais e também a história do câncer, o turbulento caminho da ciência para desvendar sua origem e enfrentá-lo - a partir dos 30 anos de experiência do cientista na área.

De onde vem o câncer e por que não desapareceu com a evolução?

'Pior mito sobre câncer é achar que de alguma forma somos culpados', diz vencedor do Pulitzer

"Saio à rua, começo a caminhar, olho para os lados e vejo que por coincidência duas pessoas caminham no mesmo ritmo que eu. Não as conheço, mas sei que ao menos um deles vai desenvolver um câncer ao longo da vida. Esses são os números da virulência", diz ele em conversa à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

Leia os principais trechos da entrevista a seguir:

BBC - Por que o senhor diz que o câncer é uma tempestade perfeita?

Carlos López-Otín - Quando você entra (na tempestade), tudo é incerteza, mas as tormentas passam e hoje é mais fácil sobreviver ao câncer do que sucumbir a ele; há mais casos curados, mas ficam guardados os casos que não superam a tormenta.

Essa palavra é adequada porque o câncer, molecularmente, é uma tempestade de mutações, de danos no nosso material genético e seus arredores. Também é uma tempestade de medo, por causa do estigma (do câncer) se fala em sussurros. Às vezes me pergunto por quê, se tratando de uma doença tão frequente.

Já temos (incidência em) uma a cada três pessoas no mundo; delas, uma em cada dois, no mínimo, vai se curar completamente. E entre as que não se curam, muitas vão ter a doença cada vez mais controlada.

BBC - O câncer vai ser erradicado?

López-Otín - Eu acredito que não. O câncer forma parte da nossa essência biológica, é uma doença circunstancial à vida e à aquisição de complexidade celular. Enquanto tivermos componentes biológicos, células, tecidos e órgãos, haverá tumores.

Os vegetais também têm (câncer), os dinossauros tiveram, os homens das cavernas tiveram e os homens mais tecnológicos do mundo o terão, enquanto não forem substituídos por robôs.

BBC - Por que nossas células, que são generosas, altruístas e dão vida, escolhem o caminho da virulência? Como se tornam células egoístas?

López-Otín - Dependemos de as células se dividirem um determinado número de vezes, no máximo 60 ou 70, como mecanismo de segurança. Mas, de repente, uma célula sofre uma mutação. Uma só mudança nesses 3 bilhões de letras que compõem o genoma, neste longo verso interminável que é a vida, faz com que a célula adote uma estratégia egoísta: começa a se dividir e não responde a nenhum sinal de moderação.

Paciente fazendo mamografia; câncer é formado por uma 'tempestade de mutações', diz pesquisador (Getty Images)

Temos a esperança que isso se detenha aos 60 ou 70 ciclos, porque aí há um freio, mas ela comete mais erros, porque a sua divisão é urgente e a faz muito rapidamente.(...)

BBC - Qual o passo seguinte na sua transformação?

López-Otín - Ela (célula) necessita alcançar a imortalidade, que também está proibida. Somos mortais, e a cada segundo mais de 1 milhão de células se suicidam no nosso interior - morrem por apoptose, que é uma palavra grega (para morte celular programada).

(...) Com essas novas mutações nas células, algumas se tornam imortais e, uma vez que adquirem a imortalidade, ficam totalmente livres em sua capacidade de se dividir sem parar. Crescem tanto que esgotam os nutrientes do oxigênio.

BBC - É nesse momento que começam a viajar?

López-Otín - Elas precisam se alimentar, depois explorar outros territórios e aí é que começam com novas mutações. Esse afã viajante é uma exploração dentro do organismo. Elas usam a rodovia sanguínea e viajam até onde os nutrientes e o oxigênio não estejam comprometidos.

Por sorte, poucas - menos de 0,001% das que começam a viagem conseguem completá-la, mas, quando o fazem, começa sua aventura de colonização, como fazem as sociedades humanas quando buscam novos territórios. E, se são bem-sucedidas, criarão novas colônias, ocorrerão as metástases e aí nossa vida começa a ficar prejudicada.

Mas é uma viagem de condições incertas, não só pela dificuldade, mas porque está controlada pelo sistema imunológico.

BBC - Como esse sistema nos protege dessas células egoístas, imortais e viajantes?

López-Otín - O coronavírus retomou o interesse pelo entendimento do sistema imunológico como defesa contra micro-organismos, mas tem outra função decisiva: nos defender de nós mesmos, das células alteradas que estamos continuamente gerando, em um processo que chama imunovigilância tumoral.

Se você acorda com uma célula transformada, o sistema imunológico continuamente nos dá a oportunidade de reconhecê-la como estranha e eliminá-la; isso faz com que não tenhamos riscos extremos de ter tumores.

BBC - Quando o câncer se repete em uma família, o senhor recomenda investigar nossa herança genética para saber se somos propensos a gerar tumores?

López-Otín - Basicamente todos os tumores têm uma origem genética, porque surgem de danos nos nossos genes. Só alguns são infecciosos, como o vírus do papiloma ou algumas bactérias Helicobacter pylori que podem chegar a produzir câncer de estômago; são muito poucos os (tumores) que se devem a micro-organismos, que também acabam danificando ou confundindo nossos genes.

Todo câncer, portanto, é genético, mas só uma porcentagem mínima - menos de 10% - é hereditário, ou seja, os defeitos já trazemos de fábrica, de nossos progenitores, e isso nos torna suscetíveis a um tipo de tumor concreto.

Entre os mais comuns estão o câncer de mama e o câncer de cólon, mas há mais de 50 síndromes hereditárias de câncer.

Autor diz que células que causam o câncer assim o fazem porque se tornam 'egoístas, imortais e viajantes' (Capa do livro)

É bastante fácil reconhecer e é importante ir a uma consulta de aconselhamento genético.

BBC - Seu livro relata o caso de Angelina Jolie e comenta as críticas que ela recebeu por sua decisão de realizar uma dupla mastectomia preventiva.


López-Otín - A mãe, a tia e a avó dela tinham morrido de câncer de mama ou de ovário; é um caso paradigmático.

No entanto, ela, com grande acesso à informação e a tantos recursos, esperou ter mais de 40 anos e ter filhos biológicos para testar se havia herdado a aparente mutação que existia na sua família, com uns 50% de possibilidade de tê-la herdado. E de fato a tinha, por isso ela tomou medidas profiláticas, agressivas para alguns, mas muito necessárias para pacientes.

(...) Os exames de câncer de mama hereditário são simples, você pode dar prosseguimento e tomar medidas mais radicais. As doenças de câncer hereditário, que são interpretadas como uma desgraça, são as que podem ser erradicadas em uma família concreta, porque você sabe qual é o defeito e pode agir com a legislação adequada (em cada país).

BBC - Haverá pessoas que se sintam negativamente afetadas por saber que têm um risco maior (de desenvolver tumores), que prefiram não saber?

López-Otín - No caso do câncer, (é melhor) saber, sempre saber, porque há muitas medidas que podem ser tomadas

Angelina Jolie será a primeira na sua família a não morrer de câncer de mama ou ovário, apesar de ter a mutação para tal.

Outra questão são as doenças que ainda não nos dão uma oportunidade, como as neurodegenerativas.

Na Colômbia, há alguns núcleos com muitos casos de Alzheimer familiar e, na Venezuela, de doença de Huntington, para citar casos que vêm à mente. Neles, a possibilidade de intervenções são muito menores que no caso do câncer. Prefiro a informação, mas entendo que, se não há alternativas (de prevenção e cura), haja pessoas que não a queiram.

BBC - É relevante conhecer nosso genoma?

López-Otín - (...) Deciframos centenas de genomas completos de pacientes, especialmente com leucemia, mas também com tumores sólidos e toda a informação coletada tem sido extraordinária e gera mais alívio do que danos.

No entanto, no nosso genoma também temos escritas algumas predisposições - não mutações, mas sim predisposições -, que em determinados momentos podem favorecer o desenvolvimento de algum tipo de câncer, e também acho que seja muito importante saber.

Moléculas do câncer. 'Quando você conhece os detalhes da delicadeza molecular, percebe que a sobrevivência é um milagre', diz Carlos López-Otín (Science Photo Library)

BBC - Vai virar habitual analisar o próprio genoma, ou só algumas pessoas poderão fazer isso?

López-Otín - Não acho que esteja próximo que alguém diga 'vou fazer um exame para evitar o câncer', porque você não vai evitá-lo enquanto houver um componente de azar tão importante.

No nosso país (Espanha) deciframos centenas de genomas, encontramos mutações causadoras de tumores e, em alguns casos, pudemos desenvolver terapias específicas para os pacientes.

Isso não custou nem um euro, nada. Há sistemas muito simples que chamamos de painéis de genes que vão sendo implementados pouco a pouco em hospitais da rede pública - me refiro a sistemas baratos, simples, que garantem a justiça social.

BBC - Quando olhamos as possibilidades de modificação ou seleção genética, parece que poderia se abrir um novo sistema de desigualdades. É algo a se temer no futuro?

López-Otín - Teremos que ver qual será o alcance. A edição genética é outra das fronteiras que temos, ou seja, a modificação genética logo no início para evitar alguns males. É um passo a mais que gera muitíssimas dificuldades éticas.

Na China, foram violados, ao menos uma vez, todos os códigos a respeito disso, o que foi detido a tempo. Existe um grande consenso de que é preciso ter muito cuidado com intervenções.

Demoramos 3,5 bilhões de anos para sintonizar nosso genoma ao ambiente em que vivemos, e não é possível que em poucos anos, e por questões banais, estejamos dispostos a fazer modificações que não contribuem com nada essencial, mas que podem abrir brechas de discriminação.

Se fala também de neuroaumentação, o aumento das possibilidades neurológicas de uns e outros. A revista Time anunciou mais de dez anos atrás que em 2045 surgiriam os primeiros humanos imortais. Faltam só 23 anos, e nessa data haverá 100 milhões de seres humanos diagnosticados com Alzheimer.

Tudo o que tem a ver com o fato de que o cérebro segue sendo a última fronteira biológica de conhecimento.

Com isso, não entendo como o discurso vai sempre em direção a questões que nos fazem cair na arrogância, na prepotência. E na realidade estamos na ignorância, embora siga havendo iniciativas de investimentos multimilionários em busca da imortalidade.

BBC - O senhor compreende os que estão nessa corrida?

López-Otín - Quem quer ser imortal tem que lembrar que as verdadeiras imortais são as células egoístas que querem ser viajantes e criar tumores.

Estudamos a imortalidade para evitá-la. E, se não, que leiam o meu mestre imortal Jorge Luis Borges (escritor argentino), e em poucas páginas você se dá conta de que de nada vale ser imortal, porque em pouco tempo, em poucas centenas de anos, vai desejar voltar à fonte da mortalidade e ser como todo mundo, mortal.

BBC - O senhor teme o nada e o esquecimento, como chama a morte?

López-Otín - Não tenho medo do câncer nem de nenhuma outra doença; tomara que as que couberem a mim, como ser biológico, cheguem o mais tarde possível.

Tenho 63 anos, me parece uma façanha cósmica. Sessenta e três anos resistindo a milhares e milhares de mudanças diárias no meu genoma.

Me parece claro que o assombroso não é ter câncer, mas sim não tê-lo.

Quando você conhece os detalhes da delicadeza molecular, percebe que a sobrevivência é um milagre. Quando você observa as milhões de reações bioquímicas que fazem cada instante possível, o apreço pela vida é infinito.

O genoma está construído por 3 bilhões de peças em cada célula. E nesta noite, como em todas, o coloquei para replicar, porque cada célula que se divide faz uma cópia do material genético.

E despertei presumindo que não sofri nenhuma mutação significativa, me olhei no espelho e disse: "Nossa, hoje tampouco tenho câncer". Mas o azar pode tudo e de vez em quando ocorre alguma mudança que nos faz entrar na dinâmica de células egoístas, imortais e viajantes.

Ter completado dois terços da vida sem a chamada dessas células me parece uma grande conquista.

Não tenho medo da morte porque a considero parte da vida e, portanto, que uma doença nos roube a vida e nos converta em nada e em esquecimento me parece ser o mais natural.

Diana Massis, HayFestivalCartagena@BBCMundo, em 5 fevereiro 2022

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

A surpreendente queda na desigualdade no trabalho que mascara um problema econômico do Brasil

No terceiro trimestre de 2021, a diferença no nível de emprego entre brancos e negros no Brasil atingiu o menor patamar desde o terceiro trimestre de 2015.

Aumento da informalidade após pandemia explica fenômeno, que deve ser transitório, segundo economista (Getty Images)

Ocimar dos Santos Mattos Junior começou a trabalhar no ano passado como operador de serviços gerais, fazendo limpeza em uma empresa.

Morador do município de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, o rapaz de 20 anos é parte do contingente de quase 6 milhões de pessoas pretas ou pardas que conseguiram uma ocupação desde o segundo trimestre de 2020, quando a pandemia chegou com força ao país, interrompendo parte da atividade econômica e levando o desemprego a nível recorde.

Lei de Cotas ainda não cumpriu seu objetivo e precisa ser renovada em 2022, diz reitor da Zumbi dos Palmares

Mas, para Ocimar, isso não é motivo de comemoração, e sim uma consequência da crise.

Com a pandemia, seu pai perdeu o emprego de pintor automotivo. Diante disso e dos problemas de saúde da mãe, ele se viu forçado a abandonar o cursinho que fazia, sonhando em cursar Nutrição ou Fisioterapia.

"Tive que assumir o papel de homem da casa e correr atrás para ajudar. Isso acabou atrapalhando meus estudos", conta o jovem, que agora ajuda a sustentar a família, enquanto o pai faz bicos pintando carros quando aparece serviço.

O caso da família de Ocimar, que antes da pandemia tinha uma pessoa ocupada (o pai) e agora passou a ter duas (o filho e o pai, agora trabalhando informalmente), ajuda a explicar uma estatística inusitada.

No terceiro trimestre de 2021, a diferença no nível de emprego entre brancos e negros no Brasil atingiu o menor patamar desde o terceiro trimestre de 2015.

O dado surpreende porque, há menos de dois anos, em consequência da dinâmica desigual do desemprego na pandemia, essa diferença tinha atingido nível recorde.

Ocimar teve que deixar o cursinho para trabalhar porque seu pai perdeu o emprego (Getty Images)

Menor diferença entre brancos e negros desde 2015

No segundo trimestre de 2020, momento mais forte de paralisação da atividade econômica, o percentual de pessoas brancas ocupadas em relação à população branca total em idade de trabalhar era de 52,8%.

Entre os negros (soma de pretos e pardos), essa taxa chegou então a 46,9%.

Com o forte impacto da pandemia sobre o emprego informal e a população de baixa renda, a diferença no nível de ocupação entre brancos e negros chegou naquele momento a 5,9 pontos percentuais, maior nível da série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que teve início em 2012.

No terceiro trimestre de 2021, pouco mais de um ano depois, o nível de emprego dos brancos subiu para 55,8% e o dos negros, para 52,7%.

O dado do terceiro trimestre é o mais recente disponível da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Trimestral do IBGE, que traz estatísticas de emprego em mais detalhes do que o levantamento mensal, com dados por idade, gênero, raça e cor.

Assim, a diferença entre as taxas caiu a 3,1 pontos percentuais no terceiro trimestre de 2021, menor patamar desde os 2,9 pontos registrados em meados de 2015, quando o mercado de trabalho vinha de um dos momentos mais aquecidos de sua história, mas já começava a sentir os efeitos da recessão de 2015-2016.

Gráfico de linha mostra a diferença no nível de emprego entre brancos e negros no Brasil

Essa diferença chegou a 2,4 pontos no terceiro trimestre de 2014, logo antes de a taxa de desemprego atingir o patamar historicamente baixo de 6,6% ao fim daquele ano.

Lá em 2014, a redução da diferença no nível de emprego entre brancos e negros tinha uma explicação clara: com o mercado de trabalho superaquecido, era fácil tanto para brancos, como para negros — que tradicionalmente têm mais dificuldade para se empregar —, conseguir trabalho.

Mas e em 2021? O que explica a queda da diferença no nível de emprego entre brancos e negros, em um momento em que a taxa de desemprego estava em 12,6%, vindo de um recorde de 14,9% em 2020?

Aumento da informalidade na reabertura da economia

"Também foi uma surpresa para mim", diz Daniel Duque, pesquisador do mercado de trabalho no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).

Para ele, a explicação mais plausível é o aumento da informalidade na reabertura da economia, após a fase mais dura de distanciamento social.

"Analisando os dados por setores da economia, idade, gênero, nada disso explica a redução da diferença. O que explica de fato é que o emprego informal se recuperou muito mais rápido do que o formal", observa o economista.

Entre o terceiro trimestre de 2020 e igual período de 2021, foram criados 9,5 milhões de empregos no Brasil, segundo o IBGE. Mas, desse total de pessoas ocupadas a mais, 7 milhões estavam na informalidade.

País ganhou 7 milhões de trabalhadores informais em um ano e negros são maioria na informalidade (Getty Images)

"Como a população não branca geralmente acessa mais os empregos informais, isso acabou reduzindo a diferença no nível de emprego com relação à população branca, que em geral tem mais empregos formais, que não se recuperaram tão rapidamente."

Ou seja: a redução da diferença racial é resultado de uma piora na qualidade do emprego, com aumento da informalidade e queda da renda.

Essa situação deve ser transitória, explica Duque, e deve ser revertida quando o emprego formal se recuperar.

"A situação que estamos vendo agora não é estrutural, é uma circunstância devido ao momento da recuperação econômica do mercado de trabalho na pandemia", avalia.

Nos EUA, 'diferença racial' também está em baixa

A diferença no nível de emprego entre brancos e negros é um indicador bastante acompanhado nos Estados Unidos, onde o debate sobre igualdade racial no mercado de trabalho é mais avançado do que no Brasil.

Por lá, o Federal Reserve Bank of St. Louis — um dos 12 bancos regionais que compõem o sistema do Banco Central americano — mantém séries históricas do nível de emprego de brancos e pretos.

O dado observado é o chamado "Employment-Population Ratio", que é a proporção de pessoas ocupadas dentre o total de pessoas em idade de trabalhar para cada grupo racial.

Olhando para esse indicador, a diferença no nível de emprego entre brancos e negros nos Estados Unidos chegou logo antes da pandemia ao menor nível da história.

Com 60,9% de brancos ocupados em relação à população branca total em idade de trabalhar e 59% de pretos ocupados na mesma métrica, a diferença caiu a apenas 1,9 ponto percentual em dezembro de 2019.

Gráfico de linha mostra a diferença no nível de emprego entre brancos e negros nos Estados Unidos

Diferença no nível de emprego entre brancos e pretos nos EUA chegou ao menor nível da história antes da pandemia. (St. Louis Fed)

Na década de 1980, marcada por sucessivas recessões nos Estados Unidos, essa diferença atingiu quase 10 pontos.

Com a pandemia, a desigualdade entre brancos e negros voltou a crescer, e a diferença racial do mercado de trabalho americano bateu em quase 5 pontos em meados de 2020.

Mas, após a retomada das atividades, o indicador caiu novamente, o que os analistas creditam ao bom momento do mercado de trabalho, com forte criação de vagas e virtual pleno emprego, o que favorece a ocupação da população não branca.

"Se muita gente está conseguindo emprego, não há uma diferença grande entre grupos. Quando há uma situação em que falta mão de obra, fica mais difícil para os empregadores discriminar", observa Duque.

A origem da desigualdade racial no mercado de trabalho

Embora tanto no Brasil como nos Estados Unidos a diferença no nível de emprego entre brancos e negros esteja em patamares historicamente baixos, os motivos para isso são bastante diferentes

Primeiro, é preciso entender por que os negros historicamente têm mais dificuldade para encontrar trabalho do que os brancos. Isso tem origem na escravidão.

"A população branca teve acesso à educação muito mais do que a população não branca, desde há séculos. Isso só começou a se equalizar há poucas décadas e, até hoje, a desigualdade na educação entre jovens brancos e não brancos persiste, porque há uma transmissão geracional da educação", diz Duque.

Filhos de pais com ensino superior têm, por exemplo, mais chance de concluir uma faculdade. E até a expansão do ensino superior e da implementação da lei de cotas a desigualdade racial no acesso ao ensino universitário no Brasil era enorme.

'Cotas já, a USP vai ficar preta', diz faixa em manifestação a favor de cotas raciais na Universidade de São Paulo

Manifestação a favor de cotas raciais na Universidade de São Paulo (USP) (Divulgação).

"Além disso, a população branca tem mais conexões, tem mais acesso a recursos parentais e a toda uma série de benefícios que a população não branca não tem", acrescenta o economista.

Os jovens brancos têm ainda desde cedo acesso a cursos extraescolares, como inglês e informática, e a recursos culturais, como idas ao cinema, compra de livros e intercâmbios no exterior, por exemplo.

"Adicionalmente a tudo isso, existe a discriminação racial, que é bem documentada tanto no Brasil, quanto fora, e exerce uma influência muito forte na probabilidade de contratação entre brancos e não brancos no país e no mundo", afirma.

Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, destaca que há também no Brasil um componente regional na desigualdade de acesso ao mercado de trabalho entre brancos e negros.

"A composição da população branca e negra é diferente no território brasileiro", observa.

"Os negros estão mais presentes nos Estados do Norte e Nordeste, enquanto o Sudeste tem o mercado de trabalho mais desenvolvido e aquecido. Só isso já gera disparidades raciais no mercado de trabalho, simplesmente pelo contexto regional."

Como diminuir a desigualdade racial do emprego de forma estrutural

Para Duque, diminuir a desigualdade racial no mercado de trabalho de forma permanente exige reduzir a disparidade educacional entre bancos e negros, já que a formação influencia a capacidade de conseguir emprego.

"Adicionalmente, é preciso uma mudança cultural, de reduzir a discriminação na contratação, que também é bastante relevante", afirma.

França avalia que são necessárias políticas de redução da desigualdade mais amplas.

"Faço parte do grupo que acredita que é preciso investir pesadamente em educação, porque nossa educação é muito ruim, com discrepâncias importantes entre ensino público e privado e, mesmo no sistema público, entre escolas centrais e as mais periféricas. Mas é utópico acreditar que investir só na educação vai resolver tudo", considera.

"São necessárias políticas de ação afirmativa em todos os campos da sociedade. Na política, no mercado de trabalho, na educação. Sem isso, o processo de inclusão será muito lento. Temos que botar cotas em tudo", defende.

Nos Estados Unidos, discute-se a importância do mandato de pleno emprego do Banco Central americano, o Fed, para a redução da desigualdade racial no mercado de trabalho.

Esse mandato estabelece que é obrigação da autoridade monetária perseguir "o máximo nível de emprego ou menor nível de desemprego que a economia pode sustentar mantendo uma taxa de inflação estável".

No Brasil, a lei que garantiu a autonomia do Banco Central, sancionada em fevereiro de 2021, estabeleceu o fomento do pleno emprego como um segundo objetivo da autoridade monetária, para além do combate à inflação.

Muitos economistas avaliam, porém, que isso tem sido ignorado e que o Banco Central continua atuando como se o controle da inflação fosse seu único objetivo.

A discussão tem ganhado espaço nos últimos meses, em meio ao ciclo de alta de juros, que alguns analistas avaliam que, se mal calibrado, pode levar o Brasil à recessão e ao aumento do desemprego em 2022.

"Agora que estamos com inflação alta, isso acaba sendo visto ainda como prioridade para o Banco Central, mas, sem dúvida, olhar para o emprego e para o combate ao desemprego através de ferramentas macroeconômicas seria bastante relevante para reduzir o hiato racial de empregos e salários no Brasil", conclui Duque.

Thais Carrança - @tcarran, de S. Paulo para a BBC News Brasil, em 04.02.22.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Descoberto uma nova variante do HIV mais contagiosa e virulenta

A descoberta, em cem pessoas na Holanda, é evidência de que os vírus podem evoluir para formas mais agressivas

Um teste rápido de diagnóstico de HIV, em uma imagem de arquivo.

Uma lenda urbana, popularizada durante a pandemia de covid, afirma que os vírus estão destinados a perder sua malignidade com o tempo. Não é certo. Uma equipe internacional de cientistas anunciou quinta-feira a descoberta de uma variante mais virulenta e contagiosa do HIV, o vírus que pode desencadear a AIDS se não for tratado. Os pesquisadores detectaram 109 casos até agora, praticamente todos na Holanda e a maioria (82%) em homens que fazem sexo com homens. A variante, chamada VB, triplica ou até quintuplica a quantidade usual de vírus no sangue.

O HIV saltou de chimpanzés para humanos por volta de 1920, no que hoje é a República Democrática do Congo, embora não tenha sido identificado até 1983 . Desde então, alguns dados da Europa e da América do Norte sugeriram que o vírus vem aumentando em virulência em algumas regiões. A variante VB é especialmente agressiva. O HIV destrói os linfócitos CD4, um tipo de glóbulo branco que protege as pessoas contra infecções. A Organização Mundial da Saúde considera “doença avançada”um número inferior a 350 linfócitos por milímetro cúbico de sangue. Homens na casa dos trinta com BV, na ausência de tratamento, atingiriam esse limiar perigoso cerca de nove meses após o diagnóstico, em comparação com uma média de 36 meses com a variante usual.

O epidemiologista Chris Wymant , da Universidade de Oxford (Reino Unido), destaca que o HIV afeta as pessoas de maneiras muito diferentes. Em alguns indivíduos, o vírus causa AIDS em apenas alguns meses. Em outros, leva décadas. A quantidade de vírus no sangue pode ser milhares de vezes maior em algumas pessoas. Convencidos de que essas diferenças poderiam ser explicadas em parte pelas mutações do vírus, a equipe de Oxford lançou um projeto em 2014 para buscar alterações genéticas no HIV associadas a um maior impacto da doença. Os últimos resultados são publicados esta quinta-feira na revista Science .

Wymant explica que o ser humano e o vírus se envolveram em "uma corrida armamentista". Atualmente, as pessoas com HIV podem viver normalmente graças a uma simples pílula diária de tratamento antirretroviral, que torna o vírus indetectável e intransmissível. Mas o HIV não para de sofrer mutações. “O pior cenário seria o surgimento de uma variante que combinasse maior virulência, maior transmissibilidade e resistência ao tratamento. A variante que descobrimos tem apenas as duas primeiras propriedades”, alerta o epidemiologista de Oxford.

O pior cenário seria o aparecimento de uma variante que combina maior virulência, maior transmissibilidade e resistência ao tratamento

Chris Wymant, epidemiologista

O BV possui mais de 500 mutações, quase 6% do genoma do vírus, por isso é difícil determinar quais alterações são responsáveis ​​por sua maior virulência. Uma das possibilidades contempladas pela comunidade científica é que a própria terapia antirretroviral favoreça o aparecimento de novas versões mais agressivas do HIV, mas Wymant descarta isso. Sua equipe estima que a variante surgiu em Amsterdã na década de 1990, pouco antes do advento de tratamentos mais eficazes. A Holanda é um dos países com maior disponibilidade de terapias antirretrovirais, o que teria impedido uma maior expansão desta variante e de qualquer outra. “Os vírus não podem sofrer mutações se não puderem se multiplicar”, lembram os autores.

Wymant transmite uma mensagem tranquilizadora. “As pessoas não precisam se preocupar. Encontrar essa variante reforça a importância das recomendações que já estavam em vigor: que as pessoas em risco de contrair o HIV tenham acesso a exames regulares que permitam diagnóstico precoce e tratamento imediato”, afirma o epidemiologista. O risco de contrair o HIV é 35 vezes maior entre pessoas que usam drogas injetáveis, 34 vezes maior para mulheres trans, 26 vezes maior para “profissionais do sexo” de ambos os sexos e 25 vezes maior para homens que fazem sexo com homens, segundo estatísticas da Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS.

A virologista Mari Carmen Puertas descreveu há alguns anos o primeiro caso de HIV resistente a todas as combinações de antirretrovirais em uso, o de um homem diagnosticado em 1989, aos 41 anos. A cientista também pede calma, após analisar o novo trabalho, do qual não participou. “Esse tipo de estudo não deve gerar alarme social. Não estamos diante de uma variante que representa um perigo iminente. Felizmente, a situação epidemiológica na Holanda, como na maioria dos países europeus, favorece o diagnóstico precoce e o tratamento precoce do HIV”, diz Puertas, do Instituto IrsiCaixa AIDS Research, em Badalona (Barcelona).

O pesquisador insta a melhorar os programas de prevenção, especialmente nos países em desenvolvimento. “A terapia antirretroviral retarda o vírus e, portanto, sua evolução no indivíduo e a possível transmissão para outras pessoas. Assim, a terapia antirretroviral é a melhor arma para combater o aparecimento de novas variantes do HIV”, diz Puertas.

A terapia antirretroviral é a melhor arma para combater o aparecimento de novas variantes do HIV

Mari Carmen Puertas, virologista

A pandemia de covid mostrou que uma nova variante de um vírus respiratório pode se espalhar pelo mundo em poucas semanas , mas o HIV se move mais em uma escala de anos. Os resultados da equipe de Wymant sugerem que a variante VB surgiu na década de 1990 em Amsterdã e se espalhou pela Holanda na década de 2000, mais rapidamente do que outros subtipos. Apesar de sua maior transmissibilidade, a variante começou a diminuir a partir de 2010, segundo o epidemiologista de Oxford. "É muito provável que essa queda seja consequência dos grandes esforços na Holanda para reduzir a transmissão de qualquer tipo de HIV, por meio da expansão de testes diagnósticos e tratamentos", hipotetiza Wymant.

O projeto Oxford analisou a sequência genética do vírus em cerca de 7.500 pessoas vivendo com HIV em oito países europeus (Alemanha, Bélgica, Finlândia, França, Holanda, Reino Unido, Suécia e Suíça) e Uganda. Além de 107 casos holandeses, os pesquisadores encontraram mais dois na Suíça e na Bélgica. Antes desse projeto, chamado BEEHIVE , era comum examinar apenas os fragmentos da sequência genética do HIV em que as mutações associadas ao aumento da resistência aos medicamentos tendem a aparecer. A equipe de Oxford, liderada pelo epidemiologista Christophe Fraser , diz que passou anos desenvolvendo as ferramentas de computação necessárias para fazer essa pesquisa.

O bioinformático Joel Wertheim , da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA), acredita que a descoberta de uma variante mais virulenta do HIV é uma lição importante para a pandemia de covid. "Embora seja certamente possível que o SARS-CoV-2 evolua para uma infecção mais benigna, como outros coronavírus responsáveis ​​pelo resfriado comum, esse resultado final não é de forma alguma predeterminado", disse Wertheim em um comentário também publicado na revista Science .. A variante delta do coronavírus, detectada na Índia no final de 2020, era mais transmissível e virulenta que as versões anteriores e foi a dominante no planeta até o final de 2021. “As pandemias de HIV e SARS-CoV-2 mostram que os vírus podem e vão evoluir por seleção natural para uma maior virulência”, alerta Wertheim.

Manuel Ansede é jornalista científico e anteriormente médico veterinário. É cofundador da Materia, a seção de Ciências do EL PAÍS. Licenciado em Medicina Veterinária pela Universidade Complutense de Madrid, fez mestrado em Jornalismo e Comunicação de Ciência, Tecnologia, Ambiente e Saúde na Universidade Carlos III. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 03.02.22.

Brasil volta a registrar mais de mil mortes por covid em 24h

Patamar de mil mortes diárias não era superado desde agosto passado. Número de novos casos chega a 298,4 mil e bate recorde. Fiocruz afirma que ocupação de UTIs é crítica em 9 unidades da Federação.

O Brasil registrou oficialmente nesta quinta-feira (03/02) 1.041 novas mortes ligadas à covid-19, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass).

É a primeira vez que o Conass registra mais de mil mortes por covid-19 em 24 horas no país desde 18 de agosto, há mais de cinco meses. A alta de novos casos e mortes se relaciona à disseminação da variante ômicron, mais transmissível.

Nesta quinta, também foram registrados 298.408 novos casos de covid-19, quebrando o recorde anterior, de 28 de janeiro. Com isso, o total de infecções registradas no país chega a a 26.091.520, e os óbitos oficialmente identificados somam 630.001.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Uma pesquisa Datafolha publicada em 15 de janeiro apontou que um entre quatro brasileiros com 16 ou mais anos de idade afirma ter ter sido diagnosticado com covid-19 desde o início da pandemia no país. O número representa quase o dobro dos casos oficialmente notificados.

A média móvel de casos, que avalia os últimos sete dias, também é recorde, com 189.526 infecções. A média móvel de óbitos aumentou para 702, patamar verificado pela última vez em agosto passado.

Já a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes está em 299,8 no Brasil, a 14ª mais alta do mundo, atrás de alguns pequenos países europeus e do Peru.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 894,3 mil óbitos, mas têm população bem maior. É ainda o terceiro país com mais casos confirmados, depois de EUA (75,7 milhões) e Índia (41,8 milhões).

Ao todo, mais de 386,9 milhões de pessoas contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e foram notificadas 5,7 milhões de mortes associadas à doença, segundo dados da Universidade Johns Hopkins.

Ocupação de UTIs é crítica em nove unidades da Federação

Nesta quinta, uma nota técnica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) informou que a taxa de ocupação de leitos de UTIs dedicados à covid-19 é considerada crítica, com mais de 80% de ocupação, em nove unidades da Federação: Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal, Piauí, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Espírito Santo.

Segundo a publicação, em 13 unidades da Federação houve aumento recente das taxas de ocupação dos leitos de UTI para covid-19. Entre 25 capitais com dados disponíveis, 13 estão na zona de alerta crítico, nove na zona de alerta intermediário e oito fora da zona de alerta.

Os pesquisadores do Observatório Covid-19 da Fiocruz avaliam que o comportamento das taxas de ocupação em estados e capitais "parece apontar para a interiorização de casos da doença". Algumas capitais já apresentam mais estabilidade ou mesmo queda nas suas taxas, enquanto as taxas dos estados crescem expressivamente. 

A nota técnica da Fiocruz ressalta que o cenário atual não é o mesmo registrado entre março e junho de 2021, a fase mais crítica da pandemia, e que mesmo com o acréscimo de leitos para covid-19 ocorrido nas últimas semanas, a disponibilidade de leitos é hoje bem menor.

Os pesquisadores alertam para a baixa cobertura vacinal em diversas áreas do país, onde os recursos assistenciais são mais precários, e lembram que uma proporção considerável da população que não recebeu a dose de reforço ou não se vacinou é mais suscetível a formas mais graves da infecção com a ômicron.

A Fiocruz destaca que a "elevadíssima" transmissibilidade da variante pode resultar em números expressivos de internações em leitos de UTI, mesmo com uma probabilidade mais baixa de ocorrência de casos graves.

Deutsche Welle Brasil, em 03.02.22. 

Relator do Refis diz que votação de veto de Bolsonaro deve ocorrer ainda este mês

Segundo ele, 600 mil empresas aderiram ao Simples até 31 de janeiro, sendo 437 mil com dívidas. "Se não houver parcelamento de dívidas até 31 de março, serão excluídas do Simples. Isso significa fechamento. Dá no mínimo 1 milhão de empregos ameaçados".

O deputado federal Marco Bertaiolli (PSD), à dir., quando era prefeito de Mogi das Cruzes (SP), em 2013 - Jorge Andrade/Brazil Photo Press/Folhapress

Relator do Refis na Câmara, o deputado federal Marco Bertaiolli (PSD-SP) diz que conversou com seu colega de partido Rodrigo Pacheco (MG), presidente do Senado, para que o veto presidencial à adesão de empresas do Simples seja votado ainda este mês pelo Congresso.

A tendência é de que o veto seja derrubado facilmente pelas duas Casas do Congresso, mas o relator alerta que é preciso uma solução com urgência.

Segundo ele, 600 mil empresas aderiram ao Simples até 31 de janeiro, sendo 437 mil com dívidas. "Se não houver parcelamento de dívidas até 31 de março, serão excluídas do Simples. Isso significa fechamento. Dá no mínimo 1 milhão de empregos ameaçados".

Publicado originalmente pela Folha de S. Paulo, em 03.02.22.

Como ser resiliente em tempos difíceis

Os sete passos para seguir em frente em meio às dolorosas perdas do momento

Resiliência pode ser conquistada ao longo da vida Foto: André Mello/ Editoria de Arte

Nova alta de casos de Covid-19. Volta ao home office. Como lidar com os problemas que têm se mantido nesses dois anos e seguir em frente?  Uma maneira é recorrer a uma característica milenar que nos permite enfrentar a adversidade: a resiliência. Resiliência é a capacidade de lidar com os golpes.

— Se você for frágil, você quebrará — disse Pauline Boss, professora emérita da Universidade de Minnesota e autora do livro recém-publicado nos Estados Unidos “The Myth of Closure”.  

Boss, terapeuta, educadora e pesquisadora, é mais conhecida pelo trabalho pioneiro sobre “perda ambígua”, que também é o título de seu livro de 1999 que descreve perdas físicas ou emocionais não resolvidas e muitas vezes insolúveis. 

— Com tudo o que aconteceu durante a pandemia, não podemos esperar voltar ao normal que tínhamos — afirmou Boss que, aos 87 anos, passou por várias reviravoltas, a começar pela Segunda Guerra Mundial.  

Em uma entrevista, ela me disse:

— As coisas estão sempre mudando, e se você não muda, você não cresce. Nunca mais seremos os mesmos. A pandemia é épica, um poder maior que nós, e temos que ser flexíveis, resilientes o suficiente para sobreviver. E vamos sobreviver, mas nossas vidas serão mudadas para sempre.

A resiliência nos permite adaptar-nos ao estresse e encontrar equilíbrio diante da adversidade: 

— Quando as pessoas resilientes são confrontadas com uma crise que tira sua capacidade de controlar suas vidas, elas encontram algo que podem controlar — afirma Boss. — No início da pandemia, as pessoas podiam organizar a casa, assar um pão, arrumar as gavetas dos armários, cuidar dos parentes próximos. Eram mecanismos de enfrentamento funcionais.

Agora o cenário é outro. Muitas pessoas não conseguem se adaptar a um problema que não podem resolver, e essa realidade cresceu durante a pandemia. As soluções absolutas não existem mais.  

Embora a resiliência seja frequentemente vista como um traço de personalidade inerente que as pessoas têm ou não, estudos mostraram que é uma característica que pode ser adquirida. As pessoas podem adotar comportamentos, pensamentos e ações que ajudam a construir resiliência, em qualquer idade. 

Boss costuma afirmar aos pais para ficarem tranquilos nesse aspecto, em especial a questões relacionadas à pandemia — medos, insegurança, isolamento.

— As crianças são naturalmente resilientes e serão mais fortes por terem sobrevivido a essa coisa ruim que aconteceu com elas. Eles vão se recuperar e crescer com isso — afirma.

Mais do que nas crianças, “precisamos nos concentrar nos adultos”, diz.

— Não estou dizendo que o cenário é semelhante ao de uma Guerra Mundial ou represente uma ameaça global. Mas temos de nos preocupar muito com os adultos — diz Boss.

 Ela se preocupa que alguns pais possam estar protegendo demais seus filhos, o que pode corroer sua capacidade natural de resolver problemas e lidar com a adversidade. 

Em seu novo livro, a pesquisadora oferece diretrizes para aumentar a resiliência de uma pessoa para superar as adversidades e viver bem apesar de experiências dolorosas. Ela cita o Viktor E. Frankl, um neurologista, psiquiatra e sobrevivente do Holocausto, que escreveu:

— Quando não somos mais capazes de mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós mesmos.

Ela recomenda que as pessoas usem cada diretriz conforme necessário, em nenhuma ordem específica, dependendo das circunstâncias.

Ninguém se torna resiliente do dia para noite. Trata-se de um exercício e de um esforço contínuo. A seguir, alguns caminhos que podem ajudar.  

Rumo à resiliência 

Encontre significado

A orientação mais desafiadora para muitas pessoas é encontrar significado, dar sentido a uma perda e, quando isso não for possível, realizar algum tipo de ação, como buscar justiça, trabalhar por uma causa ou tentar corrigir um erro. Quando o irmão mais novo da pesquisadora morreu de poliomielite, sua família, com o coração partido, foi de porta em porta para arrecadar dinheiro para financiar a pesquisa de uma vacina contra a doença. E isso não só ajudou às pesquisas, como os confortou.

Não controle seus sentimentos

Em vez de tentar controlar a dor da perda, deixe a tristeza fluir, continue o melhor que puder e, eventualmente, os altos e baixos serão menos frequentes.

— Não temos poder para destruir o vírus, mas temos o poder de diminuir seu impacto sobre nós — afirma Boss.

Reconstrua sua identidade

É útil adotar uma nova identidade mais em sintonia com as circunstâncias atuais. Quando o marido de Boss ficou doente terminal, por exemplo, sua identidade foi mudando de esposa para cuidadora e, após sua morte em 2020, gradualmente ela foi tentando se considerar viúva. 

Aceite a ambivalência

Quando você não tem clareza sobre uma perda, é normal se sentir ambivalente em relação às situações. Ter dúvidas. E não paralise frente a elas.

— É melhor tomar decisões não tão perfeitas do que não fazer nada. A vida não pode esperar — diz Boss.

Não tenha medo de mudar, mas vá com calma

Se tiver que romper com uma condição ou um propósito, faça isso gradualmente e reconstrua aos poucos sua vida de uma nova maneira, com um novo senso de propósito. Mudanças são importantes, elas impactam a mente, dão novo sentido à vida, trazem novos amigos, novos projetos.  

Descubra uma nova esperança

Comece a esperar por algo novo que permita seguir em frente com sua vida de uma nova maneira. Depois, pare de esperar, aja e busque novas conexões que possam minimizar o isolamento e promover o apoio que, por sua vez, nutre sua resiliência. 

Talvez o conselho mais valioso da pesquisadora, no entanto, seja esse:

— O que precisamos esperar não é voltar ao que tínhamos, mas ver o que podemos criar agora e no futuro. Espere por algo novo e com propósito que o sustente e lhe dê alegria pelo resto de sua vida.

Jane E. Brody, do NYT. Publicado no Brasil pelo O Globo, em 03/02/2022.

Bolsonaro se diz ‘perseguido’ por delegada da PF e manda recado a ministros do Supremo

 Membros do governo se queixaram da maneira como a delegada conduz as investigações envolvendo o presidente e seus aliados e afirmam que Bolsonaro se sente “perseguido” por Denisse.

Delegada da PF Denisse Ribeiro | Foto: Reprodução

As reclamações do presidente Bolsonaro sobre a delegada da Polícia Federal Denisse Ribeiro chegaram aos ouvidos dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Membros do governo se queixaram da maneira como a delegada conduz as investigações envolvendo o presidente e seus aliados e afirmam que Bolsonaro se sente “perseguido” por Denisse.

Além de estar à frente da apuração sobre o suposto vazamento de documentos sigilosos envolvendo ataque ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ela conduz os inquérito das fake news, das milícias digitais e da live em que o presidente atacou as urnas eletrônicas.

Na sexta-feira, o presidente não compareceu ao depoimento marcado na PF pelo ministro Alexandre de Moraes. Auxiliares de Bolsonaro afirmaram que um dos motivos de não ir à oitiva era que ele não queria depor para Denisse, porque tinha como certo que seria indiciado.

Nesta semana, a delegada enviou ao STF a conclusão do inquérito sobre o vazamento da investigação do ataque hacker ao TSE e afirmou que o presidente cometeu crime ao vazar documentos sigilosos de uma investigação policial. Denisse, no entanto, não o indiciou formalmente por entender que ele tem foro privilegiado. Com o relatório final da PF, o caso deve ser concluído. Na corte, a avaliação é que Denisse faz um trabalho sério e técnico. 

Agora, Moraes encaminhará o documento para a Procuradoria-Geral da República, que vai decidir se abre uma ação contra Bolsonaro. No STF, a avaliação é que o PGR Augusto Aras não dará andamento ao caso, mesmo com a indicação da PF de que o presidente cometeu crime. 

Por Bela Megale. Publicado originalmente n'O Globo, em 03.02.22.

Waack: Jair imponderável

Adversários de Bolsonaro se perguntam se ele vai tentar a reeleição


Nas condições atuais os profissionais da política admitem que as chances de Bolsonaro se reeleger são remotas. Foto: Adriano Machado/Reuters

Jair Bolsonaro é no momento o fator imponderável das próximas eleições. O comportamento de Lula, seu principal adversário, é o que se esperava e previa. Idem para os demais concorrentes, nenhum deles até aqui uma formidável surpresa – mesmo considerando o “efeito Moro”, em parte já dissipado.

O imponderável associado ao presidente tem menos a ver com a possibilidade de uma “ruptura” institucional, como a pantomima ensaiada no último 7 de setembro. E muito mais com seu notório desequilíbrio pessoal, pautado em grande medida pelo medo de ele ou de seus filhos acabarem presos em caso de derrota eleitoral. Temer foi preso quando deixou a Presidência, e Bolsonaro acha que corre o mesmo risco.

Nas condições atuais os profissionais da política admitem que as chances de Bolsonaro se reeleger são remotas. Seus “aliados” do Centrão o apoiam sobretudo como nome para ajudar na formação de bancadas – o principal foco dos caciques dos partidos, convencidos de que não importa o vencedor, o jogo de governabilidade para valer será na Câmara dos Deputados.

Bolsonaro percebe a iminência da derrota e vem daí a possibilidade que alguns de seus adversários, como Ciro Gomes, do PDT, tratam já abertamente como probabilidade: a de que o “mito” não tente a reeleição. A questão seria, então, negociar algum tipo de “proteção” no caso de perda da prerrogativa por função.

Para concorrer a deputado ou senador, eleições que venceria facilmente, Bolsonaro precisa se desincompatibilizar (os prazos são motivo de diferentes interpretações). O problema está aí: saindo do cargo para concorrer a eleições corre o risco de ser preso.

“Aqui não há nada contra ele”, diz veterano integrante do STF. Mas, incentivada ou não por Bolsonaro, chegou a ministros da Corte a demanda por saber qual seria o regime jurídico que permitiria ao presidente, por exemplo, ocupar uma embaixada e permanecer “protegido” podendo disputar eleições. 

“Ler” o comportamento de Bolsonaro para tentar antecipar suas decisões tem sido atividade com baixa taxa de sucesso, tal o desequilíbrio com o qual age em questões como a vacinação de crianças, que se empenhou em atrapalhar (difícil de entender até pela “racionalidade cínica” do cálculo político-eleitoreiro). Quem tratou com ele recentemente relata certo desinteresse em participar de grandes articulações eleitorais.

“Nunca exclua aquilo que não se sabe”, diz o mantra da antiga KGB – que foi, antes de mais nada, uma escola de especialistas em informação. O problema, no caso de Bolsonaro, é que talvez nem ele mesmo saiba. 

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02.02.22.

Em um mês, Ômicron faz média de mortes por covid subir 566% no Brasil

Média avançou nesta quarta-feira a 653 óbitos diários, ante 98 no início de janeiro; expectativa é de que o avanço em óbitos, internações e novos casos continue pelas próximas duas semanas

Paciente é submetida a teste de covid-19; após explosão de casos da Ômicron, média de mortes por covid sobe 566% no Brasil Foto: André Coelho/EFE

Apesar de considerada menos letal, a variante Ômicron do coronavírus fez a média móvel de mortes pela doença aumentar 566% no último mês, saltando de 98 para 653 óbitos diários nesta quarta-feira. Mesmo com mais de 70% da população brasileira já imunizada com duas doses ou a vacina de aplicação única, a alta transmissibilidade da cepa tem aumentado as internações em leitos de enfermaria e UTI, enquanto gestores de saúde apontam que a maioria dos quadros graves está concentrada em idosos, pessoas com comorbidades e não vacinados.

“A subida foi bem lenta na primeira (onda), rápida na segunda e meteórica com a Ômicron”, explica Luiz Carlos Zamarco, secretário adjunto de Saúde de São Paulo. “A partir daí, a curva de internações e infecções se estabilizou, com casos de menor complexidade, o que facilitou o giro de leitos”, diz. “Hoje temos de maneira clara que podemos estar muito próximos do chamado platô, para que entre 15 e 20 de fevereiro haja estabilidade”, explica o secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido.

Segundo ele, um terço dos óbitos pelo coronavírus é de pessoas que não completaram o esquema vacinal. O restante ele atribui a pacientes com alguma comorbidade grave, cujo quadro é agravado pela covid.

Esse é o mesmo perfil dos óbitos que têm impulsionado a média móvel da Bahia. Nesta quarta, o Estado registrou 45 mortes por covid, o maior total diário desde 7 de agosto – e a média móvel de casos ativos e novas notificações gira em torno dos 30 mil, o maior patamar de toda a pandemia. “Temos mais casos, porém um quarto dos óbitos de março do ano passado”, observa Izabel Marcílio, coordenadora de Operações de Emergência. 

O cenário se repete no Distrito Federal, onde a letalidade é menor, mas a alta nas transmissões tem pressionado as unidades de atendimento primário e desfalcado equipes médicas. “Essa característica avassaladora de transmissibilidade é sem precedentes”, diz Fernando Erick Damasceno, secretário adjunto de Saúde. Dos 40 óbitos por covid deste ano, Damasceno afirma que 34 foram em pessoas que não completaram o esquema vacinal. 

No Mato Grosso do Sul, a onda de transmissão tem forçado o Estado a abrir novos leitos para dar conta da demanda. Cerca de 30% dos profissionais da saúde se infectaram com a nova variante. “Para um Estado pequeno como o nosso, isso é muito”, diz Geraldo Resende, secretário estadual de Saúde. 

Incerteza

Em todos os Estados, a expectativa é de que esse aumento em óbitos, internações e novos casos permaneça pelas próximas duas semanas, até atingir um platô. Mas isso não significaria o fim da pandemia. “Estaríamos mais uma vez vencendo uma etapa, fazendo com que todas as pessoas sejam atendidas e medicadas”, frisa Aparecido.

A incerteza se explica pela ausência de parâmetros como a taxa de positividade, explica Isaac Schrarstzhaupt, analista de dados e coordenador na Rede Análise Covid-19, formada por pesquisadores voluntários. Essa taxa é obtida quando se divide o número de testes positivos pelo número de testes realizados. “Isso permite prever a tendência do comportamento da doença. Se tivéssemos, poderíamos apostar no pico ou no platô”, diz. No País, porém, a testagem é baixa

Para a epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Ethel Maciel, a desigualdade nos índices de vacinação entre os Estados é outro fator a dificultar predição. “Acredito que em alguns Estados como o Rio já passamos pelo pico, mas há uma diferença de desenvolvimento da Ômicron e da vacinação pelo País de pelo menos de duas a três semanas”, afirma. “Acabamos olhando para dados de outros países em que essa variante levou de 25 dias a 45 dias para atingir o pico.”

A falta de investimentos federais em campanhas de divulgação da necessidade de reforço na vacinação também não contribui, diz a epidemiologista . “A gente já sabia que seria preciso a dose de reforço para essa variante e ainda estamos muito atrás, com porcentual muito baixo quando comparado com outros países como o Reino Unido e a Dinamarca, que começam a retirar as restrições”, afirma.

Síndrome Respiratória Aguda Grave

O diagnóstico do Infogripe, da Fiocruz, divulgado ontem, também não é animador. Os casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) têm sinal forte de crescimento nas tendências de longo prazo (seis semanas) e de curto prazo (três semanas). Essa tendência deve se manter em 23 Estados brasileiros. Do total, quase 80% dos casos neste ano são decorrentes da covid-19.

João Ker e Emílio Sant'Anna, O Estado de S.Paulo, em 03 de fevereiro de 2022 | 05h00

Porandubas Políticas

Por Gaudêncio Torquato 

Começo a coluna pinçando historinhas do ex-governador de MG, o folclórico Newton Cardoso.

Pasteurizar

Preocupado com as notícias de que o leite estava contaminado, Newton pegou um pastel e começou a mexer dentro da xícara. Um assessor perguntou:

- "Por que você está fazendo isso?" Respondeu:

- "Para pasteurizar o leite."

Porquinos

Newton no palanque: "Minas sempre se preocupou mais com a criação de bovinos e equinos. Agora, eu vou cuidar também da criação de porquinos".

Uso o M

Newton, numa entrevista: "Precisamos acabar com a fila do IMPS."

O assessor cochicha:

- "Não é IMPS, é INPS."

- "Nada disso. Desde lá de Brumado que eu aprendi que antes de P se usa M."

Raposa e leão

"Um príncipe precisa usar bem a natureza do animal; deve escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos." Conselho de Maquiavel, que arremata: "não é necessário ter todas as qualidades, mas é indispensável parecer tê-las."

Breve leitura

Fevereiro começa com a temperatura eleitoral um pouco mais elevada. A corrida eleitoral ganha volume, os protagonistas se movimentam, o eleitorado começa a tomar pé nas ondas que se formam nos Estados, onde os partidos focam nas composições e alas. Na linha de frente da política, o ator Luiz Inácio continua a ter o maior desempenho no palco, recebendo a maior atenção midiática.

O arco de Lula

É evidente que seu favoritismo chama a atenção dos próceres da política, eis que a ideia que os move é a conquista do poder, custe o que custar. O Centrão não tem tanta certeza de que perfilará ao lado de Jair Bolsonaro até o fim da corrida. Agirá sob os impulsos do pragmatismo, o que abre grandes dúvidas em seus líderes. Isso significa a alternativa de poder se bandear para o lado vencedor, lá mais adiante. Haverá, claro, a correia partidária que segurará os indecisos, mas sempre aparecerá uma saidinha à brasileira, que é a de piscar um olho para a direita, outro para a esquerda. Lula se aproveita dessa tendência para fechar um arco de alianças com os centristas.

A nova carta aos brasileiros

Esta é a nova carta de Lula aos brasileiros: alianças aqui e acolá, diluindo o vinagre petista, que parte considerável do eleitorado se recusa a provar. Com o aceno ao centro e à direita, Lula espera quebrar as barreiras que ainda restam como oposição ao petismo. As massas não estão preocupadas com ideologia, indo ao encontro do perfil que restaure para elas a esperança. Mas os setores médios, integrados por fortes correntes de profissionais liberais, pequenos e médios proprietários, setores da intelligentzia, núcleos da educação e da mídia, executivos da iniciativa privada, entre outros, ainda exibem rejeição ao lulopetismo.

O Busílis

O problema do PT ainda se concentra no território da confiabilidade. Escrevo há tempos sobre o refrão: primeiro, eu, segundo eu, terceiro, eu. Assim raciocina o PT. Tornou-se uma religião fechada. Quem não é petista, é inimigo que merece o fogo do inferno. Os outros é que roubam, praticam ilegalidades. Por quatro décadas, temos visto este manto sagrado cobrindo o PT. Como confiar no fato de que não mais prega a luta rancorosa de classes, a velha clivagem ideológica, a defesa intransigente do regime cubano, o elogio à "democracia" venezuelana? Para efeito eleitoral, o PT é mutante. Porém, e depois? Lula se esforça para retocar as paredes do petismo.

Conservadorismo radical

Já o contraponto é o presidente Jair Bolsonaro, que deseja ressuscitar a polarização de 2018. Sim, teremos uma campanha muito polarizada, em alguns aspectos até mais contundente que a de 2018. É a alternativa que sobra a Bolsonaro: ele e o outro, o outro, representando a maldade e ele, representando o dragão montado no cavalo de São Jorge. Radicalizar, para ele, significa ganhar visibilidade, apresentar-se como o guerreiro que luta contra o comunismo, combate a ciência e defende obscurantismo.

O paradoxo

Eis o paradoxo de nossos tempos: nunca a ciência avançou tanto no campo das descobertas das vacinas, nunca os laboratórios se dedicaram com tanto afinco às pesquisas científicas. Nunca os conhecimentos foram tão repartidos pelos habitantes do planeta. A Sociedade da Informação nos acolhe. No entanto, mesmo vivenciando esse Novo Iluminismo, propagam-se a mentira, as falsas versões, as inverdades, a desinformação. A ignorância se alastra formando camadas de estupidez aqui e alhures. Populistas se aproveitam da incerteza das massas para jogar iscas e atrair os incautos. Esse é o paradoxo desse novo mundo que se descortina.

A construção da racionalidade

Tempo de eleição é tempo de emoção. O engajamento de um eleitor se dá, inicialmente, pelo coração. O eleitor descobre em seu candidato preferido elementos que os torna próximos, designados pela psicologia como identificação e projeção. Os candidatos escolhidos são aqueles que mais se identificam com as demandas dos eleitores, aqueles que são os mais aptos a suprir as carências dos conjuntos sociais. Esse processo tem muito a ver com emoção. Mas também há uma dose de racionalidade, que serve para efeito de comparação entre perfis e decisão de voto. A construção da racionalidade emerge, não com tanto ímpeto, mas começa a brotar nas searas sociais.

A terceira via

Diante dessa moldura, pode ocorrer uma decisão coletiva que tenha como foco uma via que se afaste do único corredor do pleito. Essa via dependerá das circunstâncias, entre elas, o esgotamento dos palanques radicais, a exaustão de discursos polarizados, a fragilidade da economia, menos dinheiro no bolso das massas, a estética da miséria aumentando seus pontos de visibilidade.

Miséria

A moldura da miséria se apresenta na paisagem destroçada que se torna mais nítida nesses tempos de pandemia e chuvas torrenciais que matam famílias e destroem seu habitat. A pandemia continua subindo ao teto, com a variante ômicron massificando a contaminação. Mas o cidadão já não tem tanto medo como na primeira onda da variante delta. Já a paisagem de desolação e destruição por causa das chuvas é a estética que toma conta dos meios de comunicação. O problema será jogado no colo dos governantes, que mostram suas caras nos espaços destruídos, mas não foram capazes de implantar programas de prevenção.

A economia

Já a economia aparece com dados que sinalizam soerguimento, recuperação. As contas públicas reagem com um saldo positivo de mais de R$ 64 bilhões. Os dados do PIB tendem a subir um pouco. O emprego começa a reagir, quadro mostrado pelo aumento no número de carteiras de trabalho assinadas. O tal auxílio Brasil acalma os ânimos das populações mais carentes. Ou seja, a economia se mostra reagindo bem às intempéries.

Segundo turno

Esse é o desenho que anima Bolsonaro e suas bases. Daí sua confiança em entrar no segundo turno. Lula sabe que se for para uma segunda rodada, com a economia em recuperação, será difícil levar a melhor. As pesquisas, hoje, o apresentam como favorito. Hoje, repito. Tendências eleitorais são como nuvens. Mostram figuras diferentes de minuto a minuto. Mas este analista acredita que se um novo figurante entrar em um segundo turno, com ele estarão as chances de vitória.

Fecho a coluna com uma observação sobre o marketing de campanha.

Marketing não ganha campanha

Marketing não ganha campanha. Quem ganha campanha é o candidato. Marketing ajuda um candidato a ganhar a campanha, ao procurar maximizar seus pontos fortes e atenuar seus pontos fracos. O profissional de marketing é importante, na medida em que funciona como um estrategista a definir linhas de ação, orientando a escolha do discurso, ajustando a linguagem, definindo padrões de qualidade técnica, sugerindo iniciativas e ponderando sobre o programa do candidato, os compromissos e ações a serem empreendidas. Esse figurante precisa, sobretudo, ser um profissional com visão sistêmica abarcando todos os eixos do marketing. Que não entenda uma campanha apenas como apelo publicitário, proposta de programa televisivo. Que seja capaz de visualizar os novos nichos de interesse de uma sociedade exigente, crítica e sensível aos mandos e desmandos.

O protagonismo capenga

Não adianta um bom marketing se o candidato é um boneco sem alma. Candidato não é sabonete. Tem vida, sentimentos, emoção, tristeza e alegria. Muita coisa depende dele, de sua alma, de seu fervor, de suas crenças, enfim, de sua identidade. Protagonistas da política não são produtos de gôndolas de supermercado. As inserções publicitárias na mídia até podem exibir um candidato de forma genérica, por falta de tempo para expor conteúdo. Mas o eleitor não se conformará com meros apelos emotivos e chavões antigos, como aqueles que embalam perfis saturados - candidatos beijando crianças e apertando a mão de pessoas, tomadas em câmera lenta mostrando o candidato no meio do povo.

Torquato Gaudêncio, cientista político, é Professor Titular na Universidade de São Paulo e consultor de Marketing Político.

--------------------------------------------------
Livro Porandubas Políticas
A partir das colunas recheadas de humor para uma obra consagrada com a experiência do jornalista Gaudêncio Torquato.
Em forma editorial, o livro "Porandubas Políticas" apresenta saborosas narrativas folclóricas do mundo político acrescidas de valiosas dicas de marketing eleitoral.
Cada exemplar da obra custa apenas R$ 60,00. Adquira o seu, clique aqui.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Moro evita confronto em reduto de Doria e terceiriza críticas a governos do PSDB

Questionado sobre gestões tucanas em SP, ex-juiz passou a palavra a Arthur do Val, pré-candidato ao governo paulista

Sergio Moro inicia pré-campanha no interior de São Paulo e visita o Hospital de Base me São José do Rio Preto nesta terça-feira (1º) Crédito: Hospital de Base / Divulgação - Hospital de Base / Divulgação

Em agenda no interior de São Paulo nesta quarta-feira (2), o pré-candidato à Presidência Sergio Moro (Podemos) fez crítica ao ex-presidente Lula (PT), ao STF (Supremo Tribunal Federal) e ao presidente Jair Bolsonaro (PL).

O ex-juiz evitou confronto com o governador João Doria (PSDB), seu potencial adversário na disputa nacional, e terceirizou a um aliado as críticas aos governos tucanos.

Questionado sobre sua avaliação sobre os governos do PSDB, partido que comanda o estado de São Paulo desde 1995, o ex-ministro de Bolsonaro preferiu não responder e encaminhou a pergunta ao deputado estadual e pré-candidato ao governo paulista Arthur do Val (Podemos).

"Na verdade, quem tem que falar sobre o governo do estado é o nosso Arthur do Val aqui, acho que vou passar para você, Arthur, a resposta para essa pergunta", afirmou Moro, ex-juiz da Lava Jato.

Arthur do Val então bateu firme no PSDB. Atacou o discurso de "governar para os brasileiros de São Paulo" de Doria, classificou o governo tucano com um desastre e disse que esta é a primeira chance em três décadas de "chutar o PSDB do governo".

Ele deve enfrentar nas urnas o atual vice-governador Rodrigo Garcia (PSDB), candidato apoiado por Doria, que deve renunciar ao governo paulista em abril para concorrer ao Planalto.

Em complemento à resposta do colega paulista, Moro disse que, neste momento, o que interessa é priorizar a aliança "com as pessoas" em detrimento da conversa com partidos.

"Nenhuma aliança vai ser construída em um gabinete de Brasília a portas fechadas", declarou Moro, destacando que o Podemos tem consolidado bases em todo no Brasil para um projeto nacional.

As declarações foram dadas em Bebedouro (379 km de São Paulo), onde o ex-juiz participou de uma reunião com líderes partidários, prefeitos e vereadores da região.

Além de Arthur do Val, acompanhou Moro no evento o deputado federal Júnior Bozzella (PSL), um dos principais entusiastas da União Brasil, partido que surgirá da fusão entre PSL e DEM.

Em discurso para líderes políticos, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro criticou o presidente, a quem acusou de "não ter os mesmos planos" que ele para combater a corrupção, repetindo que o presidente prioriza a própria família em detrimento da lei.

Disse ainda que Bolsonaro não tem culpa pela pandemia, mas que sua má gestão, com desincentivo ao uso de máscaras e da vacinação, levou ao quadro de 620 mil mortes no país.

No mesmo evento, também disparou críticas ao ex-presidente Lula (PT), também seu potencial adversário nas eleições de outubro: "O Lula fala e parece que vai chover picanha e cerveja do céu", disse.

Moro ainda fez críticas a decisões do STF e afirmou que se sentiu "revoltado de ver o trabalho da Lava Jato" sendo desmontado.

"Começo a ver anulações de condenações criminais e a pensar se a lei vale mesmo para todos. Qual mensagem parte do Supremo e, infelizmente, do Congresso [com isso]"?

O resgate da Lava Jato deve ser o mote de toda a pré-campanha de Moro ao Planalto.

Com sua foto ao lado da bandeira brasileira como fundo, Moro discursou para cerca de 150 pessoas – com direito a trilha sonora e relatos no microfone de jovens inspirados no trabalho do ex-juiz e pessoas que percorreram 600 km para estar no evento.

Moro também reforçou temas como segurança pública, citando sua atuação no Ministério da Justiça. No evento, foram exibidas em um painel frases do ex-juiz defendendo os direitos das mulheres, o combate à violência doméstica e liberdade de imprensa.

Danielle Castro, de Bebedouro (SP) para a Folha de S. Paulo, em 02.02.22. Reproduzido do UOL.

Brasil registra 893 mortes e 172 mil novos casos em 24h

Desde o início da pandemia, em março de 2022, o país totaliza 25.793.112 casos oficiais de covid.

O Brasil registrou 893 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, segundo o boletim do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) desta quarta-feira (2/2). Com isso, o país totaliza 628.960 vítimas da pandemia até o momento.

Nos últimos dias, o país bateu recordes sucessivos de novos casos, no momento em que o nível de infecções está no patamar mais alto de toda a pandemia até agora. Nas últimas 24 horas, o Brasil registrou oficialmente 172.903 novas infecções.

Desde o início da pandemia, em março de 2022, o país totaliza 25.793.112 casos oficiais de covid.

Vale lembrar que, no fim de semana e às segundas-feiras, os números costumam ser mais baixos, pela demora em contabilizar casos. Por conta disso, a média móvel dos últimos sete dias costuma ser um indicador mais fiel do retrato atual da pandemia - embora a escassez de testes e o apagão de dados do Ministério da Saúde apontem que até mesmo esse indicador não retrata plenamente a situação real de contágio do país.

A média móvel de casos dos últimos sete dias é de 179,6 mil casos diários - o recorde mais recente foi em 28 de janeiro, quando o Conass contabilizou 269.969 casos, número mais alto de toda a pandemia até agora.

A média móvel de óbitos nos últimos sete dias é de 650 mortes diárias. Esse foi o 22º dia consecutivo de alta na média móvel de óbitos — em comparação, em 11 de janeiro, o valor foi de 122. Com isso, o Brasil volta a índices semelhantes aos de setembro de 2021 em termos de média móvel de mortes diárias.

Ainda assim, o patamar hoje é mais baixo em relação aos picos de mortes da pandemia, em abril de 2021, quando a média ultrapassou 3,1 mil mortes diárias.

O crescente índice de novas infecções nas últimas semanas tem acendido o alerta em diversas regiões do país, que anunciaram a retomada de medidas sanitárias para tentar conter a propagação do coronavírus.

Desde o início de janeiro, a média e o número de casos da doença estão em franca ascensão, o que é atribuído em grande parte à variante ômicron.

De acordo com o painel da Universidade Johns Hopkins, os Estados Unidos lideram globalmente em número de casos (75,5 milhões) e óbitos (893 mil).

Em relação aos casos oficialmente registrados, em 2ª lugar vem a Índia (41,6 milhões), e depois o Brasil. Em mortes, o Brasil está, de acordo com dados oficiais, em segundo lugar o mundo — embora a subnotificação de casos e mortes em diversos países (como Brasil, Rússia e Índia) torne as comparações mais complexas.

BBC News Brasil, em 02.02.22

O crime no comando

Na farsa democrática, perde tempo o gestor público que tentar governar com planos e projetos

Neste País, Bolsonaro manda às favas o Supremo Tribunal Federal (STF), que desconhece a Constituição para tudo permitir aos donos da lei.

A democracia é o império da lei. Na sexta-feira 28, esse truísmo foi falsificado pela maior autoridade da República. Ou não vigora nela o que possa ser definido como governo do povo. Pois Bolsonaro não depôs na Polícia Federal, órgão do Estado, e não de seu governo particular, sob acusação de vazar inquérito sigiloso, a cargo da mesma. Agiu como se estivesse acima da norma legal. O que significa além ou fora dela.

O relator do inquérito no STF, Alexandre de Moraes, determinou que ele contasse de corpo presente à autoridade da polícia judiciária o que tem a informar a respeito. “Não impugnar os termos da intimação que lhe foi feita pelo relator, depois de pedir prorrogação, e na última hora dizer que não vai, foi acintoso”, disse o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do STF Ayres Britto, em entrevista à CNN. Acintoso, doutor? Convenhamos, “de propósito” (Aurélio, p. 36) é muito pouco, quase nada. “De caso pensado”?!

Alguém, em sã consciência, imaginaria que o capitão reformado, por menos inteligente que seja, tenha faltado ao compromisso com as leis da República, à qual jurou servir no dia da posse em seu maior cargo, sem “saber”?

Por mais néscio que o chefe do governo venha a ser, ninguém imagina que ele não seja capaz de fazer um raciocínio simples, como o de situar quem se comporta “acima da lei” à margem, portanto, fora dela, ou seja, violando-a como um punguista, um assassino ou um gatuno. De fato, o fora da lei em questão tem avançado em “provocações” (aí até o substantivo usado por Britto cabe) contra as instituições democráticas, e não tem tido seus avanços e arreganhos detidos ou punidos para valer. Resta saber o que pode o STF fazer para recuperar a prerrogativa republicana de última instância de julgamento dos mandatários dos outros dois Poderes. Nas outras vezes em que foi testado, recuou. Na presidência do Senado, Renan Calheiros descumpriu decisão de deixá-la e ganhou a queda de braço. O próprio atual chefe do Poder Executivo compareceu a outro depoimento na mesma instituição policial (autônoma por definição), após longa espera de meses por decisão do nada excelso pretório sobre se deveria fazê-lo por escrito ou, como se diz no jargão jurídico, de forma presencial: depôs quando quis, onde escolheu, diante de quem preferiu e dispensou a presença de advogados de seu ex-ministro Sérgio Moro.

O servidor presidencial Bruno Bianco Leal, que não se perderá negando o que insinua o segundo sobrenome, no papel oficial de advogado-geral da União, apresentou ao STF “agravo regimental”, alegando “direito de ausência”. Certamente, sem querer, o douto funcionário definiu o estilo de desgovernar o País do chefe-mor, pois este abusa da ausência como ninguém o fez e dificilmente alguém o fará. Certo estará ele de que a dita Suprema Corte não poderá recorrer ao vulgar “sob vara” para submeter o número um a uma condução coercitiva.

Após ter submetido a Nação impotente a um espetáculo de baixo circo, anulando processos que tramitaram cinco anos numa vara criminal em Curitiba, num tribunal regional em Porto Alegre e em mais dois tribunais das alturas em Brasília, sempre por unanimidade, e nos quais o ex-presidente Lula foi condenado, zerou penas. Agora, livre das amarras da Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, o petista prepara-se para esmagar o foragido da PF em eleição na qual o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) promete rigor contra as fake news, indultados na de 2018, em que o vencedor usou disparos ilegais de WhatsApp.

Na prevista disputa de reeleições remota e recente, o presidente não precisa de mais nada para assegurar o direito de se ausentar do cumprimento do dura lex sed lex. Basta um voto, e ele tem dois no STF, para tornar a votação plenária exigida pela Advocacia-Geral da União (AGU) uma farsa sem dilema atroz. Se André Mendonça, primeiro a votar, pedir vista, dispensará o segundo, Nunes Marques, de prestar o mesmo inestimável e facílimo serviço sujo de protelar para o chefão ficar pairando sobre a lei, tal qual abutre sinistro.

Ao contrário de Dilma Rousseff, que perdeu a impunidade de monarca por brigar com o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o Caranguejo da Odebrecht, Bolsonaro instalou o que o professor da Universidade de São Paulo (USP) José Augusto Guilhon Albuquerque, no Nêumanne Entrevista no Portal do Estadão, batizou de “presidencialismo de orçamento”. Na farsa democrática, em que o presidente eleito legitimamente trata as instituições republicanas qual lixo tóxico, perde tempo o gestor público que tentar governar com planos e projetos. Basta destinar verbas bilionárias aos Fundos Eleitoral e Partidário e às emendas do relator e, assim, garantir o anonimato de seus beneficiários e a comunidade de interesses escusos na garantia da harmonia dos Três Poderes. Nesse sistema, como disse em outra entrevista no Blog do Nêumanne o deputado federal Julian Lemos, Arthur Lira não é base do presidente na Câmara, mas Bolsonaro sim é “base” do Centrão no Executivo. O resto é lorota para bovino dormitar. E, desse jeitinho, o crime, e não a lei, impera por aqui.

José Nêumanne, o autor deste artigo, é jornlista, poeta e escritor. Publicado originalmente pelo O Estado de S. Paulo, em 02.02.22.

Corrida bolsonarista por uma boquinha

Com a perspectiva de derrota de Bolsonaro, aliados do presidente tentam garantir preciosas vagas e avançar sobre a estrutura do governo

  A corrida pelas últimas vagas de emprego no governo começou cedo em 2022. No primeiro mês daquele que, ao que parece, será o último ano de mandato de Jair Bolsonaro, aliados iniciaram um já tradicional movimento de tentar garantir espaço em órgãos públicos e estatais antes que o atual presidente perca o poder que ainda tem. É o caso do Ministério de Minas e Energia (MME), que, segundo revelou o Estadão, tentou criar nada menos que 200 cargos na Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBpar), companhia cuja razão de existência é permitir a privatização da Eletrobras.

A ENBpar, em tese, apenas assumiria atividades que precisam continuar sob domínio da União, como as usinas de Angra, dado que a exploração das atividades nucleares é monopólio constitucional, e Itaipu, usina binacional regida por um tratado entre Brasil e Paraguai. Há também políticas públicas coordenadas pela Eletrobras que seriam repassadas à nova empresa. O fato de que a estrutura interna de Itaipu e da Eletronuclear não passará por mudanças e será simplesmente transferida da Eletrobras para outra holding garantiria uma “estrutura enxuta”, segundo anunciou no início de janeiro o próprio CEO da companhia, Ney Zanella dos Santos, vice-almirante da Marinha.

Na semântica da ala militar do governo, 200 cargos aparentemente representam uma estrutura enxuta, mas essa interpretação não é compartilhada pela Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest) do Ministério da Economia (ME), que deu aval a apenas 27. Questionado, o MME disse ter solicitado o que julgava ser “suficiente”, afirmou que o número final de funções a serem criadas ainda estava em análise e não explicou o motivo que justificaria um quantitativo de funcionários sete vezes maior que o autorizado pelo ME. É preciso lembrar que se trata da segunda empresa pública que nasce em uma gestão que prometia arrecadar R$ 1 trilhão com a venda de estatais, e que a capitalização da Eletrobras ainda precisa do aval do Tribunal de Contas da União (TCU) para se concretizar.

Não é um caso isolado. Em um País que registrou uma taxa de desemprego de 11,6% no trimestre encerrado em novembro e a menor renda da série histórica, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia, Carlos Da Costa, teve o mérito de criar um emprego para si mesmo e quadruplicar seu salário. Ele vai chefiar um escritório de representação da pasta em Washington, nos Estados Unidos, cujo objetivo será “fortalecer a interlocução com investidores, consolidando o País como ambiente seguro para se fazer negócios”, de acordo com a Secretaria-Geral da Presidência da República.

Parece uma estrutura redundante, já que essa atribuição pertence à Embaixada do Brasil na capital norte-americana. E de fato é, tanto que Da Costa terá remuneração equiparada à função de embaixador, algo em torno de R$ 75 mil mensais. O decreto estabelece ainda que a “duração da missão” será de dois anos e poderá ser prorrogada uma vez. Com isso, o secretário garantiu um cargo com o qual atravessará, ao menos, o primeiro ano de mandato do próximo governo.

Com a consolidação do resultado das pesquisas eleitorais, a tendência é que o mundo político em Brasília antecipe o fenômeno do “café frio”, expressão que descreve os últimos meses de mandato de um presidente, quando ninguém mais procura o mandatário e nem os garçons se esforçam para agradar-lhe. Mas enquanto o café estiver morno, aqueles que tiveram o nome associado à gestão bolsonarista tentarão avançar sobre a estrutura do Executivo com tanto ou mais apetite que seus antecessores para garantir os últimos nacos de poder. Em seguida, passarão a trabalhar com afinco para se desvincular da tragédia que foi a administração de Bolsonaro e se colocarão como técnicos a serviço do País. São os mesmos que falavam em “despetizar” o governo e que abandonaram a reforma administrativa.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 02 de fevereiro de 2022 | 03h00


Fome ‘made in Brazil’

A catástrofe alimentar no 'celeiro do mundo' não é um revés precipitado pela pandemia, mas o resultado de uma persistente precarização das políticas sociais

O Brasil voltou ao mapa da fome. O alerta foi cada vez mais repetido ao longo da pandemia e deve ser ainda mais. Mas seria ruim se ele servisse para disfarçar, sob o manto da excepcionalidade, uma degradação que, malgrado ter sido agravada pela crise sanitária, começou bem antes dela. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que, entre 2013 e 2018, a população urbana em insegurança alimentar aumentou de cerca de 20% para 35%, e a rural, de 35% para 47%. A insegurança alimentar grave nas cidades cresceu de 2,8% para 4,1%, e no campo, de 5,5% para 7,1%.

O escândalo é ainda maior porque a fome é amargada em pleno “celeiro do mundo”. Os focos mais graves de insegurança alimentar no planeta são países com escassez de recursos naturais ou atingidos por guerras, conflitos civis e catástrofes naturais, tudo aquilo de que o Brasil sempre foi poupado.

Ao contrário, nos últimos 40 anos, a revolução agrícola catapultou espetacularmente a produção de alimentos. A oferta no mercado internacional também cresceu, e o preço dos alimentos caiu. Ou seja, a causa da fome no País nunca foi, e hoje é menos ainda, a escassez de alimentos, mas sim de renda. Entre 2013 e 2018, a insegurança alimentar grave cresceu 8% ao ano. Em 2013, o brasileiro consumia em média 96,7 quilos de carne por ano, e hoje consome pouco mais de 25 quilos. A fome nacional não foi construída do dia para a noite nem é uma condição extraordinária causada pelo vírus, mas é resultado do fracasso retumbante das políticas sociais.

O governo lançou recentemente o programa Brasil Fraterno, para mobilizar doações de alimentos de empresas em troca de isenções fiscais. Também tramitam no Congresso propostas de incentivos para restaurantes e supermercados doarem alimentos excedentes ou com prazo de validade próximo. Evidentemente, são estímulos bem-vindos. Tanto mais se considerando estimativas que apontam que o Brasil desperdiça cerca de 30% de seus alimentos. Segundo o Programa da ONU para o Meio Ambiente, o Brasil ocupa a 10.ª posição entre os países que mais jogam comida fora. Mas restringir as ações de combate à fome à redução do desperdício é só uma folha de figueira para disfarçar a única coisa no Brasil tão abundante quanto a comida: a incompetência.

A causa principal do desperdício, por exemplo, não está no varejo e muito menos nos hábitos familiares, mas na infraestrutura precária e sistemas de transporte atrasados, que progressivamente drenam alimentos entre a colheita e a comercialização.

A inflação dos gêneros alimentícios básicos, muito maior que a inflação média, tem entre suas causas principais o aumento do dólar, a instabilidade política e o aumento do desemprego, fatores made in Brazil, especialmente pelos atos e palavras irresponsáveis do atual presidente da República.

Tampouco o crescimento da extrema pobreza ou o desmonte das políticas públicas de segurança alimentar na última década são fruto de alguma conjuntura internacional e muito menos de reveses naturais. Políticas como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, o Programa de Alimentação Escolar, o Programa de Cisternas ou o Programa de Restaurantes Populares foram depauperados a olhos vistos para acomodar verbas clientelistas e eleitorais no Orçamento público.

Mesmo com o agravamento da crise na pandemia, além de programas de incentivo a doações, o máximo que Brasília produziu foram propostas natimortas de tabelamento de preços. De investimentos robustos em programas de distribuição de cestas básicas, medidas para reforçar o abastecimento, uso de estoques públicos, modelos de operações bem conduzidas de importação ou incentivos à agricultura familiar não se viu praticamente nada.

O combate à fome é do tipo que pode ser classificado como uma “guerra total”. Cada indivíduo, cada empresa, deve empunhar suas armas e fazer o que estiver ao seu alcance. Cada centavo doado, cada iniciativa social, por mais improvisada que seja, são valiosos. Mas somente o Estado pode evitar uma catástrofe maior.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 02 de fevereiro de 2022 | 03h00

Moro chama Petrobras de atrasada e fala em privatizar todas as estatais

Presidenciável iniciou pré-campanha em cidades do interior paulista, tradicional reduto do PSDB

Sergio Moro inicia pré-campanha no interior de São Paulo e visita o Hospital de Base me São José do Rio Preto nesta terça-feira (1º) Crédito: Hospital de Base / Divulgação - Hospital de Base / Divulgação

O pré-candidato a presidente Sergio Moro (Podemos) classificou a Petrobras como uma empresa atrasada e disse que, caso seja eleito, poderá privatizar todas as estatais, incluindo a petroleira e bancos públicos.

A declaração foi dada em uma palestra para empresários em São José do Rio Preto (415 km de São Paulo), onde o ex-juiz deu início à sua pré-campanha ao Planalto no interior paulista, reduto de seu potencial adversário e governador do estado João Doria (PSDB).

"A Petrobras teve papel importante para o país, mas é uma empresa atrasada, que ainda vive da exploração do petróleo, um combustível que o resto do mundo já não está mais usando. Hoje estamos discutindo outras formas de energias limpas, mais ambientalmente corretas, energias limpas como a energia solar", disse.

Entre 2014 e 2018, Moro foi o responsável por julgar processos por suspeitas de corrupção na Petrobras e apresenta sua atuação como juiz como trunfo eleitoral. Das suas 45 sentenças, contudo, 8 foram anuladas em instâncias superiores. Ele deixou o cargo e a magistratura em 2018 para assumir o posto de ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro (PL).

Moro ainda fez referência aos bancos públicos como o Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, indicando que os privatizaria caso seja eleito presidente da República no pleito de outubro.

"Cada privatização precisa avaliar o momento, mas meu viés é positivo. O assunto não pode ser um tabu, o Brasil precisa quebrar esses tabus. Outro exemplo são os bancos, a Caixa e o Banco do Brasil. Hoje temos os bancos digitais que é [sic] um modelo que deu certo. E estamos presos ao passado. Se for possível privatizar tudo, que se privatize tudo", afirmou.

Moro cumpre agenda de três dias no interior paulista, tradicional reduto do PSDB, e priorizou encontros com empresários e pastores evangélicos, setores que em 2018 apoiaram majoritariamente o então candidato Jair Bolsonaro.

Acompanha nas agendas no interior o ex-juiz o deputado estadual Arthur do Val (Podemos), pré-candidato ao governo de São Paulo.

Nesta segunda-feira (31), em sabatina ao jornal Diário da Região, de São José do Rio Preto, disse prever um cenário catastrófico em caso de um segundo turno entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Lula (PT).

"Eu votaria em qualquer pessoa que não fosse Lula ou Bolsonaro. Votaria numa cabra se fosse o caso. Mas jamais em um ou outro. Nosso projeto tem melhores chances de vitória", disse.

Na manhã desta terça-feira (1º), o pré-candidato participou de um café da manhã no Hospital de Base de São José do Rio Preto, se encontrou com um grupo de cerca de 40 pastores e participou com um grupo de 150 empresários do Lide Noroeste Paulista (Grupo de Líderes Empresariais).

O Lide foi fundado em 2003 pelo hoje governador e presidenciável João Doria, que liderou a entidade nos anos seguintes até afastar-se para a assumir a prefeitura de São Paulo em 2017.

Questionado sobre a visita em redutos de João Doria, Moro não citou o governador paulista, mas disse que vai trabalhar para conquistar o eleitorado do estado de São Paulo.

"São Paulo é muito parecido com o meu estado, o Paraná. Tem muitas similitudes. Nós vamos fazer a mesma coisa que vamos fazer no restante do país: conversar com as pessoas, falar a verdade e ouvir as demandas", disse.

Nesta quarta-feira (2), Moro segue em agenda pelo interior paulista e visita a cidade de Bebedouro (384 km de São Paulo). Lá, ele vai participar de um encontro com líderes do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo).

Simone Machado originalmente para a Folha de S. Paulo, em 01.02.22