segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

‘Judiciário não pode afagar delírios negacionistas’, diz juíza ao negar pedido para prender William Bonner por incentivo à vacinação contra a covid-19

 Gláucia Falsarella Pereira Foley, da Juizado Especial Criminal de Taguatinga, nega representação contra o apresentador do Jornal Nacional da TV Globo e destaca que o pedido, feito pelo advogado Wilson Koressawa, 'reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziando seu texto em mera panfletagem política'

O jornalista William Bonner, apresentador do Jornal Nacional, da TV Globo. Foto: Reprodução/Instagram

A juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, do Juizado Especial Criminal de Taguatinga, arquivou uma representação que pedia a prisão do jornalista e editor-chefe do Jornal Nacional William Bonner, por ‘incentivar a vacinação obrigatória de crianças e adolescentes e a exigência de passaporte sanitário’. “O Poder Judiciário não pode afagar delírios negacionistas, reproduzidos pela conivência ativa – quando não incendiados – por parte das instituições, sejam elas públicas ou não”, escreveu em despacho datado deste domingo, 16.

Em seu despacho, a juíza detalhou o pedido feito pelo advogado Wilson Koressawa, para dar a ‘exata dimensão do descabimento’ do mesmo. A magistrada indicou que, para o advogado, o jornalista comete crimes ao esclarecer os impactos positivos da vacina no combate à pandemia da covid-19. Segundo Foley, Koressawa ‘reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziando seu texto em mera panfletagem política’.

“Vivemos tempos obscuros traçados por uma confluência de fatores. É preciso coragem, maturidade e consistência política e constitucional para a apuração das devidas responsabilidades pelas escolhas que foram feitas. Nas palavras de Churchill, a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. Os inúmeros mecanismos de pesos e contrapesos da democracia nos colocaram na presente situação, mas será somente por meio dela que o Poder Judiciário, trincheira do Estado Democrático de Direito, poderá colaborar para que ensaiemos a superação da cegueira dos nossos tempos”, destacou a magistrada.

A juíza ainda lembrou que o Supremo Tribunal Federal consagrou o entendimento de que o exercício da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas, especialmente contra autoridades e agentes do Estado. Foley também citou o jornalista e professor Eugênio Bucci, que considera que a liberdade de informação é direito do cidadão e dever da imprensa.

Por considerar que o advogado não tem legitimidade para representar por uma prisão e que a análise do pedido não caberia ao Juizado Especial Criminal de Taguatinga, o Ministério Público Federal chegou a defender o envio do caso para uma das Varas Criminais de Taguatinga. No entanto, Foley entendeu que era necessário ‘promover segurança política e jurídica, impedindo decisões e atos teratológicos em detrimento das instituições’.

Leia a íntegra da Decisão judicial:

Poder Judiciário da União

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

Juizado Especial Criminal de Taguatinga

    Número do processo: 0722619-55.2021.8.07.0007

Classe judicial: NOTIFICAÇÃO PARA EXPLICAÇÕES (275)

NOTIFICANTE: WILSON ISSAO KORESSAWA

REQUERIDO: WILLIAM BONNER

DECISÃO

Cuida-se de representação pela decretação de prisão em flagrante ou preventiva de WILLIAM BONNER, formulada por WILSON KORESSAWA.

Aduz o requerente que “o representado, juntamente com diversos outros repórteres da mesma emissora, ao que tudo indica, participa de uma organização criminosa, definida na Lei 12.850/13"; que o  representado está "incurso nas penas dos art. 267 e 270, parágrafo primeiro, e 122, combinados com  art. 29, todos do Código Penal" e requer "O afastamento do representado do cargo ou a proibição de ele incentivar a vacinação obrigatória de crianças e adolescentes e a exigência de passaporte sanitário; determinação para a prisão em flagrante ou a decretação da prisão preventiva do representado; a  recomendação para a SUSPENSÃO DA VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA EM TODO O PAÍS, principalmente de crianças e adolescentes, bem como da EXIGÊNCIA DO PASSAPORTE SANITÁRIO, até que sejam realizados exames periciais dos componentes de todas as vacinas; a determinação para a realização de exames periciais para se constatar todos os componentes das vacinas e aferir se são benéficas ou prejudiciais à saúde de população, das crianças e adolescentes; a determinação para a juntada de todas as bulas das vacinas para se constatar que não são recomendadas para crianças e adolescentes; a determinação para a juntada de todos os contratos celebrados com todas as empresas farmacêuticas; a determinação para que o referido repórter divulgue toda a verdade sobre as reações adversas, sequelas e mortes decorrentes das vacinas e ouça os Médicos Pela Vida.”

Em manifestação de ID 112807061, a i. representante ministerial consignou que o requerente não possui legitimidade para o pedido de prisão preventiva, vez que os crimes citados são de ação penal pública. Além disso, os pedidos de 1.3 a 1.7 não estão previstas como medidas cautelares penais no CPP. 

Quanto à  competência, a pena privativa de liberdade máxima cominada aos delitos indicados pelo requerente supera o limite de dois anos estabelecido pelo artigo 61 da Lei n.º 9.099/1995, que disciplina a competência dos Juizados Especiais Criminais. Diante disso, pugnou pela declinação da competência e remessa dos autos para distribuição a uma das Varas Criminais de Taguatinga.

É o breve relatório. Decido.

O Ministério Público tem razão ao alertar que a representação em análise, além de ser subscrita por parte  ilegítima, veicula tipos penais formalmente incompatíveis com o procedimento deste Juizado, razão pela qual solicita a remessa dos autos à vara criminal competente.

No entanto, a apreciação deste Juízo deve ir além da questão meramente processual. Trata-se, aqui, de resgatar o mister constitucional do Poder Judiciário – por natureza, independente e contramajoritário –que é o de promover segurança política e jurídica, impedindo decisões e atos teratológicos em detrimento das instituições, incluída a imprensa. Vejamos.

A representação noticia a prática dos tipos penais dos artigos 122, 267 e 270, parágrafo primeiro, combinados com o artigo 29, todos do Código Penal.

Para que se tenha a exata dimensão do descabimento do pedido, é preciso traduzir, em linguagem acessível, o que isso significa: para o signatário da representação, o jornalista William Bonner, em conluio com outros profissionais da imprensa, ao esclarecer os impactos positivos da vacina no combate à pandemia da Covid-19, comete os crimes de indução de pessoas ao suicídio (art. 122 do CP) e de “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos” (art. 267); “envenenar água potável, de uso comum ou particular, ou substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo.”, sujeitando-se à mesma pena quem entrega a consumo ou tem em depósito, para o fim de ser distribuída, a água ou a substância envenenada (art. 270 do CP, parágrafo primeiro).

Como fundamento, reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziand seu texto em mera panfletagem política.

Vivemos tempos obscuros traçados por uma confluência de fatores. É preciso coragem, maturidade  consistência política e constitucional para a apuração das devidas responsabilidades pelas escolhas que  foram feitas. Nas palavras de Churchill, a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. Os inúmeros mecanismos de pesos e contrapesos da democracia nos colocaram na presente  situação, mas será somente por meio dela que o Poder Judiciário, trincheira do Estado Democrático de  Direito, poderá colaborar para que ensaiemos a superação da cegueira dos nossos tempos.

O Poder Judiciário não pode afagar delírios negacionistas, reproduzidos pela conivência ativa – quando não incendiados – por parte das instituições, sejam elas públicas ou não. Além disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 130/DF, consagrou o entendimento de que o exercício da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, especialmente contra autoridades e agentes do Estado. Para Eugênio Bucci, aliás, mais do que direito do jornalista, a liberdade de informação é direito do cidadão e dever da imprensa.

Para além disso, deve-se consignar que, nos termos do artigo 311 do Código de Processo Penal, “caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente ou por representação da autoridade policial.” Vê-se, pois, que falece legitimidade a representante para pleitear a prisão preventiva do representado, porquanto os crimes citados desafiam ação penal de natureza pública incondicionada e o representante não possui a condição de assistente.

Diante do exposto, em especial, da incontestável atipicidade dos fatos narrados, determino o arquivamento da presente representação, com base no artigo 395, II, do Código de Processo Penal.

Publique-se. Registre-se. Após, arquivem-se.

 TAGUATINGA-DF, 16 de janeiro de 2022

11:42:51.

GLÁUCIA FALSARELLA PEREIRA FOLEY

Juíza de Direito

Pepita Ortega para O Estado de São Paulo, em 17.01.2022

Envelhecer com saúde: hora de desenhar o novo mapa da vida

Encontrar quase centenários independentes e ativos será cada vez mais comum, graças a avanços da ciência e dos recursos da medicina

       Exercícios são necessidade diária e envolvem sentimento estético, afirma Luiz Carlos França, aos 94 anos Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 15/12/2021

Aos 94 anos, o engenheiro aposentado Luiz Carlos França Domingues demonstra aquilo que os franceses chamam de “joie de vivre”, a alegria de viver que muitos pesquisadores do envelhecimento saudável apontam como um dos segredos para uma vida longa, produtiva e feliz.

Todas as manhãs, ele salta cedo da cama, faz uma refeição leve e, apesar da preocupação dos filhos, dirige o próprio carro até o Esporte Clube Pinheiros, no Jardim Europa, zona oeste de São Paulo. Não perde as aulas de pilates. “Tenho vontade de viver por causa da serotonina que me traz bem-estar”, diz ele. “Para mim, os exercícios são uma necessidade diária e envolvem um sentimento estético. Gosto da elegância, da postura, da coordenação dos movimentos. Acho tudo isso muito bonito.”

                            

Em poucos anos, encontrar quase centenários ativos e independentes como Domingues deixará de ser surpresa. Metade das crianças que hoje têm 5 anos poderá chegar aos 100 anos nos Estados Unidos e em outros países desenvolvidos. E essa tem chance de se tornar a norma para recém-nascidos em 2050, segundo um relatório lançado recentemente pelo Centro de Longevidade da Universidade Stanford.

O engenheiro aposentado Luiz Carlos França Domingues, aos 94 anos, pratica Pilates todos os dias. Ele impressiona os outros alunos pela postura e exemplar execução dos movimentos. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO - 15/12/2021

Em três décadas, quase 30% da população brasileira será idosa, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um índice três vezes superior ao verificado em 2010. Para que a experiência do envelhecimento seja satisfatória, há muito o que aprender com exemplos como o de Domingues. Com 1,65 metro e 64 quilos, ele mantém o peso há 68 anos. Viúvo há nove anos, mora sozinho e tem boa condição geral de saúde.

A genética contribui para a longevidade – os avós paternos passaram dos 90 anos e o irmão morreu pouco antes de completar um século –, mas o aposentado também colhe os frutos de décadas de alimentação saudável. E de passar longe do cigarro, das bebidas alcoólicas e do sedentarismo. “Para envelhecer bem, é só fazer o básico e ter um casamento feliz como eu tive.”


Domingues não sente dores nem sofre de osteoporose. “Nunca tive problema de coluna. Isso é falta de exercício e de ter uma musculatura abdominal forte”, afirma. “Tomo sol enquanto leio o Estadão na beira da piscina. Quer receita melhor para os ossos?”

Frequentador de vários grupos de terceira idade, ele acha que é importante manter um convívio social ativo. Lamenta quando vê idosos que não saem de casa. “Ficam ranzinzas, emburrecendo com o controle remoto da TV na mão e dizendo que no tempo deles as coisas eram diferentes”, afirma. “O nosso tempo é agora.”

Uma nova vida

Graças aos avanços da ciência e aos recursos da Medicina, viver décadas a mais com qualidade será possível, mas o mundo está preparado para os centenários? Não exatamente, segundo a professora Laura Carstensen, diretora do Centro de Longevidade da Universidade Stanford.

“A nossa cultura evoluiu em torno de vidas com a metade desse tempo”, diz ela. “Isso não funciona mais. Precisamos criar normas sociais que acomodem trajetórias muito mais longas.”

Nos últimos três anos, a equipe liderada por Laura criou recomendações reunidas no relatório O Novo Mapa da Vida. O texto sugere mudanças na educação, nas carreiras e nas transições de vida para que elas sejam compatíveis com existências de um século ou mais.

A vida moderna tem um problema de ritmo, aponta o estudo. A faixa dos 40 anos é um período abarrotado de demandas profissionais e de cuidado dos familiares. Uma fase estressante, principalmente para as mulheres, que suportam uma carga desproporcional de tarefas domésticas e atenção aos dependentes.

Enquanto isso, grande parte dos idosos se vê sem atividade, propósito, conexão ou renda suficiente para viver bem os muitos anos que tem pela frente. Se não fossem precocemente expulsos do mercado de trabalho, esses profissionais maduros poderiam seguir contribuindo para a geração de riqueza.

“A diversidade etária é uma rede positiva. A velocidade, a força e o entusiasmo dos jovens, combinados com a inteligência emocional e a sabedoria prevalente entre as pessoas mais velhas, criam possibilidades para famílias, comunidades e locais de trabalho que não existiam antes”, salienta o relatório.

Com saúde

A grande virada no perfil da população brasileira deve acontecer em 2030, quando o País terá mais pessoas a partir de 60 anos do que crianças e adolescentes de 14 anos. O Brasil precisa criar condições para que essa população seja respeitada e participe ativamente da sociedade.

Um passo importante é combater os mitos que cercam o processo de envelhecimento. “Os idosos não vivem mal. É preciso desmistificar isso”, garante a professora Yeda Duarte, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

“Não é verdade que quem envelhece fica doente”, complementa. “O idoso pode ter doenças, mas, se elas forem controladas, ele tem uma vida absolutamente normal.” Como coordenadora do estudo Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (Sabe), uma pesquisa que acompanha mais de mil idosos na capital paulista desde 2000, Yeda conhece bem os desafios dessa faixa etária. A amostra foi ajustada de forma a representar a realidade dos mais de 1,8 milhão de idosos que vivem em São Paulo.

“Pouco menos de 25% da população idosa de São Paulo e do Brasil tem alguma limitação funcional”, afirma Yeda. De acordo com ela, a grande maioria é autônoma, independente e contribui para muita coisa em casa, em vez de ser dependente de cuidados. “Na pandemia, muitas famílias puderam sobreviver graças aos idosos”, explica. “Os filhos perderam o emprego e foram mantidos pelas aposentadorias e pensões deles.”

Embora a maioria dos idosos seja saudável, é preciso garantir atenção adequada ao quarto da população que não é. Essas pessoas precisam de cuidadores e de outros recursos de longa duração, mas há poucas políticas públicas e programas municipais para isso. São Paulo e Belo Horizonte oferecem cuidadores no sistema público, mas esses programas são exceção no País.

“Não adianta as pessoas viverem mais de 100 anos, se não criarmos condições para que elas vivam com qualidade”, afirma Yeda. Nesse aspecto, o Brasil precisa evoluir muito, mas na esfera individual há um conjunto de atitudes e escolhas que favorecem o envelhecimento saudável.

Motivação

A partir da meia-idade, muitas pessoas passam por uma reavaliação geral de seus objetivos por novas circunstâncias. Surgem outras metas e funções em relação à família (divórcio ou novo casamento), ao trabalho (mudança de empresa, desemprego ou aposentadoria), à comunidade (mudança de endereço, trabalho voluntário, novos círculos sociais) e à saúde.

“Ao longo do envelhecimento, a motivação é um fator fundamental para o sucesso na mudança de comportamento”, salientam a psicóloga Jutta Heckhausen, professora da Universidade da Califórnia, e colegas em um artigo publicado recentemente no Journals of Gerontology, da Sociedade Americana de Gerontologia.

Segundo o trabalho, as razões para a mudança e a forma como as pessoas desejam realizá-la é altamente variável. Por isso, é preciso focar na identificação individual de objetivos de curto e de longo prazo para facilitar a adoção de novos comportamentos e alcançar os resultados esperados.

“É preciso reavaliar o que é realmente importante na vida, o senso de propósito ou as prioridades”, destacam os autores. “Se houver um declínio geral de energia e vitalidade, por exemplo, talvez seja possível encontrar satisfação em uma ocupação relacionada às habilidades, mas não tão exigente ou que consuma menos horas de trabalho.”

Nova missão

Quando chegou à maturidade, a relações-públicas Adriana Vilhena Townson, de 58 anos, que trabalhava dez horas por dia, fez uma pausa estratégica. “Mergulhei em um autoconhecimento geral. Analisei minhas raízes, fiz terapia, cuidei da alma. Estava em busca de uma missão”, diz.

Ao fazer um trabalho para uma paciente de 95 anos que falava quatro línguas, tinha doutorado na Alemanha e sofria de Alzheimer, Adriana recebeu uma grande lição para as décadas seguintes. “Com ela aprendi a contemplar e a viver o momento presente”, diz ela. Novas necessidades e objetivos vieram à tona. “Hoje, minha meta é seguir a minha missão”, afirma. “Sempre fui muito empática, mas entendi o valor de perceber o próximo.”

Adriana pretende voltar ao mundo corporativo, desde que consiga enxergar sentido no novo trabalho. Paralelamente, está inscrita em uma agência de modelos maduros. “Fiz fotos para demarcar esse meu momento de plenitude. Hoje, me sinto muito bem comigo mesma, visto o que quero”, afirma Adriana.

Como modelo 50+, ela sonha fazer uma campanha com mulheres maduras. “É preciso disparar o movimento de plenitude dessas mulheres. Precisa ser um movimento de massa para que, nessa faixa etária, elas percebam que podem ser plenas e realizadas”, acredita. Para os novos maduros como Adriana, o importante é o que vivemos no presente e o que projetamos de positivo para o futuro. Uma boa forma de chegar bem aos 100 ou até onde a natureza permitir.

Profissional maduro precisará de condições de trabalho adequadas

Ao longo de uma vida de 100 anos, será normal trabalhar por seis décadas, afirmam os pesquisadores do Centro de Longevidade da Universidade Stanford no relatório O Novo Mapa da Vida. Para o bem dos que viverão nesse novo mundo, é preciso redesenhar as condições de trabalho.

Uma das mudanças sugeridas pelo relatório seria permitir que os profissionais aumentassem ou diminuíssem horas de trabalho ao longo de suas carreiras. Um casal que acaba de ter filhos deveria, por exemplo, poder reduzir a jornada por um período. E mais tarde voltar ao período integral. 

Outra mudança sugerida é investir no aprendizado dos futuros centenários. A educação formal não deve continuar concentrada nas primeiras duas décadas de vida, como é hoje, e precisaria haver opções de aperfeiçoamento contínuo.

O tipo de vida sugerido pelo relatório está longe de ser acessível à maioria. É mais fácil alcançar as condições para o envelhecimento saudável se não faltar dinheiro. Outra razão para criar condições para que os maduros sigam ativos e produtivos por mais décadas. 

Como viver melhor

Mexa o corpo: Exercícios ajudam a manter corpo e mente funcionais.

Cuide da alimentação: Coma de forma saudável e não abuse do álcool. 

Durma bem: E procure não fumar.

Aprenda sempre: Vá além da educação formal.

Cultive amizades: Elas ajudam na motivação.

Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.01.2022 / Cristiane Segatto

A resiliência da democracia

Nada indica que os brasileiros não estejam dispostos a proteger o regime democrático de ataques cada vez mais audaciosos

 O País chega ao último ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro exaurido após tantos desmandos, tanta incompetência e tantas manifestações de descaso pelas aflições de milhões de brasileiros. No meio dessa travessia acidentada, a eclosão da pandemia de covid-19, que no Brasil matou mais de 620 mil pessoas, lançou luzes ainda mais fortes sobre as flagrantes deficiências administrativas e de caráter do atual mandatário.

A história da República não registra um presidente que tenha rebaixado tanto a instituição que representa. Sob Jair Bolsonaro, o deboche, a mentira, a violência e o linguajar chulo, entre outras descargas de falta de decoro, foram convertidos em instrumentos de governo, vendidos aos incautos e aos convertidos como traços da “simplicidade” ou da “autenticidade” do presidente.

De seu gabinete no Palácio do Planalto, das praias do exuberante litoral brasileiro ou da beira de estradas País afora, Bolsonaro tem trabalhado duro para erodir os pilares do Estado Democrático de Direito e semear a desconfiança entre os cidadãos e entre estes e as instituições democráticas. Seu governo não tem medido esforços para esgarçar ainda mais o tecido social e dividir os brasileiros em falanges. Nunca o grau de confiança dos cidadãos, entre si e em relação ao governo, foi tão baixo, como apontou um recente estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Diante desse cenário de aparente terra arrasada, é compreensível, pois, a falta de confiança de muitas pessoas na capacidade do País de parar, refletir e traçar novas rotas para sair dessa crise de múltiplas dimensões da qual parece ser um prisioneiro. Mas, por incrível que pareça, há razões para otimismo, ainda que cauteloso e vigilante. Há dados objetivos para acreditar que a sociedade será capaz, se quiser, de virar uma das páginas mais sombrias da história nacional.

Nos últimos três anos, a democracia brasileira foi submetida ao maior teste de estresse desde 1985, quando a liberdade foi reconquistada após longos 21 anos de ditadura militar. Nenhum presidente da República desde a redemocratização pregou e atuou com tanto afinco como Bolsonaro para desacreditar o valor do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso, dos partidos políticos, da imprensa livre e profissional, da educação, da ciência e da cultura como elementos essenciais para a construção de um país livre, justo e desenvolvido.

Não obstante as agressões, há vibrantes sinais de resistência que demonstraram a resiliência do regime democrático no Brasil, ora sob ataque. No STF, no Congresso e nas organizações da sociedade civil não foram poucas as ações que se contrapuseram às investidas liberticidas de Bolsonaro e seus esbirros espalhados por diferentes órgãos do governo e fora dele.

No curso da pandemia, foi notável a reação ao negacionismo mortal do presidente empreendida pelo STF, pelo Congresso, pelos entes da Federação e, principalmente, pelos cidadãos. Não é exagero dizer que todas essas instituições reagiram como reagiram porque souberam aferir o pulso dos cidadãos, majoritariamente contrários à “gestão” federal da emergência sanitária.

A agenda reacionária encampada por Bolsonaro, que lhe serviu para angariar votos na campanha eleitoral, teve pouco espaço para avançar na atual legislatura. Bolsonaro é o presidente que menos conseguiu aprovar projetos de sua iniciativa, mesmo sendo o recordista em pagamento de emendas parlamentares. Com todos os seus erros e acertos, o Congresso está em pleno funcionamento. Sinal mais vigoroso de resistência democrática não há.

Graças à imprensa livre e profissional, a sociedade tomou conhecimento de escândalos que rondam o presidente e pessoas de seu entorno, como as “rachadinhas”, o “orçamento secreto” e as interferências ilegais em órgãos da administração pública e instituições de Estado.

Como já foi dito nesta página, a democracia não se sustenta por si só, apenas pela força de suas virtudes. É preciso batalhar por ela. E diante de tudo o que o País viveu nesses três últimos anos, nada indica que os brasileiros não estejam dispostos a protegê-la de ataques cada vez mais audaciosos.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 17 de janeiro de 2022

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A precariedade dos jovens ameaça a democracia

A falta de expectativas no local de trabalho e a imobilidade política estão lançando os jovens de forma alarmante em um novo paradigma anti-sistema, individualista e reacionário. 

Um jovem espera para entrar em um Escritório de Emprego em Valência no ano passado. (Rober Solsona / Europa Press).

Um menino de cerca de 22 anos se aproximou de mim para me perguntar se eu acreditava que a democracia representativa estava "exaurida" para defender os interesses dos jovens, e ao me recuperar do meu espanto pensei que, de repente, as piores previsões que eu havia exposto para eles foram confirmados durante a pré-palestra. Ou seja, a tese de que estamos criando uma geração de jovens anti-sistema , porque eles não se sentem vinculados ao sistema, lançando-os numa espécie de noventayochismo juvenil, que mais cedo ou mais tarde estourará diante de nossa estupidez democrática.

Basta observar o coquetel que nossos jovens vivenciam no dia a dia (niilismo, frustração, raiva, tristeza ...) ao assumir que não existem instituições ou grupos sociais capazes de oferecer uma alternativa à sua precariedade. Esse abandono está se traduzindo gradativamente em um paradigma de para si mesmo que pode , de um individualismo flagrante, não encontrar soluções aplicadas, não para a direita, mas não para a esquerda, onde se refugiar. Embora o segundo, é claro, seja aquele que vai acabar fracassando ainda mais antes da imolação do ideal de progresso comunitário.

Talvez a política espanhola possa encher a boca de ter encontrado remédios eficazes, senão curas paliativas, para o drama das rendas ou do trabalho. Talvez o sindicalismo seja o seu referencial hoje, sabendo que se não se quer certas condições de trabalho, alguém na fila atrás dele as vai querer, cheio de garotos do mesmo grau e desespero. A maioria acenou para mim que não confiava nesses agentes sociais como intermediários.

O problema com a representação juvenil é de tal calibre que até transcende fronteiras. Na Alemanha, abriu-se o debate sobre a redução da idade para votar, como forma de corrigir seu desamparo, por meio de incentivos eleitorais. Não seja ingênuo: se a política investe tanto esforço na previdência, é porque os boomers e os aposentados colocam e levam governos em todo o continente, inclusive na Espanha.

Porém, ser um jovem da classe abastada nunca significará o mesmo que o da classe humilde, porque o primeiro verá sua situação aliviada no longo prazo pelo patrimônio familiar. Embora seja enganoso confiar o drama juvenil a uma mera questão de classe ou status. Há indícios para intuir a formação de uma nova cultura ou socialização entre os jovens, o que até quebra padrões em outra área da vida social como o emprego.

Amostra é o chamado fenômeno da Grande Renúncia. Milhares de jovens deixam seus empregos nos Estados Unidos, atolados em uma mistura entre a exaustão emocional e a falta de sentido de resistir em condições miseráveis. Por que deixar sua pele naquela empresa que não se adapta às suas necessidades por mais tempo ou flexibilidade no ambiente de trabalho, se em troca não terá estabilidade ou garantias de longo prazo. O emprego deixou, portanto, de ser um dos pilares sólidos aos quais se agarrar, mesmo em um contexto de incerteza como a pandemia.

Em nosso país, as consequências desse noventayochismo são evidenciadas pela desconfiança no futuro. Se a nostalgia reacionária prolifera, é porque explodiu a ideia clássica do progresso como motor de obtenção do bem-estar. Poucos jovens hoje pensam que o amanhã será melhor que o presente, por isso olham para o passado na busca incessante daquela prosperidade que uma sociedade que agora lhes dá as costas promete.

Soma-se a isso a suposição de que a política, como eles a conhecem, é irreformável. Apenas 10 anos se passaram desde o 15-M, um marco que com perspectiva deve ser entendido como um apelo reformista final sobre os pilares do nosso sistema político. No entanto, o desapontamento com esse fracasso pode, doravante, assumir outras formas destrutivas. O principal risco é que muitos jovens hoje tomem a democracia como um dado adquirido, borrando o medo de uma possível involução, uma vez que não vivenciaram o clima da Transição.

Apesar disso, há janelas para otimismo. Os jovens lutam coletivamente em causas como o feminismo, as alterações climáticas ... porque aí eles acreditam que o sistema pode ser ainda diferente. Protestos recentes, como o do setor siderúrgico, trouxeram até uma memória comum que estava enterrada, fator fundamental para combater sua atomização social: direitos ou melhorias salariais, antes, eram travados juntos. Embora, a esperança sempre possa ser frustrada.

De repente, a menina que acompanhava o menino interveio. Ambos sugeriram, se não fosse um problema, que a democracia era "cada vez mais uma luta entre grupos de identidade", em detrimento da questão econômica. Eu respondi que se eles tivessem um irmão, um primo, um amigo ou um vizinho que fosse LGTBI ... eles não iriam remar com eles por sua liberdade? Eles acenaram com a cabeça, para meu descanso, porque a reclamação nunca será a reivindicação dos direitos dos grupos vulneráveis.

O verdadeiro perigo é que, uma vez que os nossos jovens sintam que nada podem fazer para melhorar as suas condições materiais de vida ou de trabalho, abraçem aquela anti-política que os convida a lutar contra os diferentes, com medo de continuar a perder alguma coisa. "Pelo menos a identidade que ninguém tira de mim." Talvez assim pensem alguns, de maneira tão errônea quanto falsa, naquele novo paradigma anti-sistema , individualista e reacionário, ao qual os estamos lançando de forma alarmante.

Estefanía Molina, a autora deste artigo, é cientista política e jornalista. Ela é a autora de The political tantrum (Destiny). O texto acima foi publicado originalmente no EL PAÍS, em 04 de aneiro de 2022.

A ética da responsabilidade dos intérpretes da Constituição

A Suprema Corte e os magistrados constitucionais devem agir de forma que suas resoluções sejam percebidas como justas, e não como resultado de convicções partidárias ou cego voluntarismo doutrinário.

O trabalho dos intérpretes da Constituição está sujeito à observância inequívoca, verificada e incondicional de um conjunto de valores e princípios de natureza material ou substantiva, que constituem a base ideológica do Estado Constitucional, e cuja afirmação está ligada a a definição da Constituição Constituição feita pelos nossos constituintes como “Carta Magna de dignidade, harmonia civil, liberdade e justiça social”.

No preâmbulo da Constituição e nos seus artigos, é proclamado um núcleo de valores, que são expressão dos limites do Estado constitucional, que é estabelecer a justiça, a liberdade e a segurança, promover o bem comum de todos nós que constituem a nação e garantem a convivência democrática dentro da Constituição e das leis de acordo com uma ordem econômica e social justa, que compõem a ideologia coletiva que compartilhamos como membros da comunidade política decorrente de um cenário de liberdade sob a proteção de nossa Lei Básica.

Os valores de liberdade, igualdade, justiça e pluralismo político, consagrados como valores superiores do ordenamento jurídico no artigo 1º da Constituição , enquadram a função hermenêutica dos intérpretes da Constituição, que não podem ignorar ou se furtar a qualquer desses valores na resolução de litígios de qualquer natureza que surjam antes de sua sede.

A par destes valores constitucionais, que estão na base do Estado constitucional, concebido como Estado social e democrático de direito, se descobre no texto constitucional um conjunto de valores, entre os quais vale destacar a dignidade humana, o espírito do a abertura e a tolerância, o Respeito pela liberdade dos outros, a diversidade ideológica e cultural, a solidariedade, a justiça social, a coesão social e territorial, que definem o âmbito de ação de todos os poderes do Estado e a conduta da cidadania.

Mas, para além destes valores, a Constituição estabelece princípios éticos expressamente dirigidos aos chefes das instituições do Estado, constituídas sob a sua tutela, incluindo os órgãos que constituem o aparelho judicial: o princípio da submissão à Constituição e às leis, o princípio da lealdade constitucional, o princípio da transparência, o princípio da responsabilidade ou o princípio da interdição da arbitrariedade, que procuram limitar o exercício da autoridade pública e prevenir o uso abusivo do poder.

A função desses princípios e valores é dignificar as instituições do Estado, na medida em que atuam como guardas que protegem a sobrevivência do sistema democrático, que seria seriamente corroído se comportamentos dos funcionários públicos contrários à Constituição fossem impostos no âmbito político. realidade e estatuto jurídico do Estado de Constituição.

É indiscutível que a democracia constitucional se desenvolve, se fortalece e resiste quando todos os atores constitucionais exercem suas funções conscientes do peso da responsabilidade que assumem no acesso a cargos e cargos públicos. O Estado constitucional falha e a Constituição perece num cenário potencial de flagrante desprezo ou desrespeito pelo círculo virtuoso dos valores éticos referidos às ideias de honestidade, exemplaridade, responsabilidade e responsabilização.

Estes deveres éticos são particularmente exigíveis dos poderes que lhe são conferidos de forma proeminente a missão de interpretar a Constituição, - juízes e magistrados membros do judiciário e magistrados do Tribunal Constitucional - que devem exercer as suas funções jurisdicionais com retidão, temperança, profissionalismo, com extremo rigor jurídico, com sentido de ponderação, para que as suas resoluções sejam percebidas como justas, fruto de um bom trabalho judicial, assente na correta aplicação dos métodos de interpretação do Direito Constitucional, e não como consequência das convicções partidárias, do mero subjetivismo ideológico ou do voluntarismo doutrinário cego.

A caracterização dos intérpretes da Constituição como independentes e imparciais exige uma predisposição para exercer as suas atribuições de forma objetiva, com plena submissão ao Estado de Direito e ao direito, sem estar condicionada pelos interesses das partes no processo ou por terceiros persuadidos. dos deveres legais que implica o cumprimento dessas garantias processuais para preservar a confiança dos cidadãos nas instâncias jurisdicionais.

O espírito de temperança e moderação exige dos intérpretes constitucionais o esforço intelectual de contenção necessário para que suas decisões não contribuam para a politização da justiça ou a indesejável judicialização da política, que degradam o bom funcionamento do Estado democrático.

Em particular, aos juízes constitucionais, que têm a missão de controlar, na perspetiva e na dinâmica jurídica, a submissão à Constituição do poder legislativo, do poder executivo e do poder judicial, através do prosseguimento dos processos constitucionais, em Defesa do A própria ordem constitucional, a comunidade jurídica e a sociedade em geral exigem que exerçam a sua função de vigilância e fiscalização, conscientes de que as possibilidades de intervenção não são ilimitadas - como advertiu o ilustre jurista presidente do Tribunal Constitucional, Manuel García Pelayo-. Os juízes constitucionais estão proibidos de impor seus critérios acima ou fora dos desígnios ou mandatos da Constituição, mas também de usurpar os poderes que correspondem ao poder constituinte.

A justiça constitucional não pode negar ou obscurecer o papel que cabe ao Parlamento e ao Governo, conforme argumentado pelo juiz da Suprema Corte do Reino Unido Jonathan Sumption, no cumprimento dos direitos políticos, econômicos, sociais, culturais e ecológicos reconhecidos no Constituição.

É responsável por construir uma base jurídica sólida o suficiente para construir uma democracia avançada, plena e forte, apoiada na proteção dos direitos humanos, dotada da autoridade necessária para ser governada de forma eficaz na busca do interesse geral e do bem comum.

A ética comunicativa, no sentido de Jürgen Habermas, exige que os intérpretes constitucionais desempenhem suas funções no contexto da racionalidade argumentativa e com total transparência, para que os cidadãos possam ver que a justiça é feita.

O discurso da ética pública fornece aos intérpretes da Constituição uma base legitimadora de suas ações, na medida em que suas resoluções só são lícitas quando se baseiam na busca da extensão da liberdade, da igualdade e da justiça e buscam e promovem a paz social.

Sabendo o que significa a Constituição, o intérprete constitucional deve buscar a defesa da democracia entendida como razão pública, preconizada por Amartya Sen, estando plenamente comprometidos com a ideia de que, ao decifrar o conteúdo dos dispositivos constitucionais e resolver tensões e conflitos, contribuem de forma decisiva caminho para o desenvolvimento e consolidação do Estado constitucional, uma vez que o seu trabalho visa estabelecer o sentido das normas constitucionais, estando em jogo a determinação, o sentido e o conteúdo dos valores democráticos que regulam as condições de liberdade dos cidadãos e definem o poderes dos órgãos constitucionais.

A boa governação do Estado constitucional exige que os órgãos constitucionais com competência para interpretar a Constituição respeitem de forma absoluta os imperativos de natureza substantiva e ética que regem a sua actividade, ajudando assim a iluminar o universo axiológico da democracia, constituído pelos valores da democracia. • a coexistência, o respeito mútuo e a fraternidade e o fortalecimento da democracia jurídica, que constitui um dos componentes do Estado constitucional essencial para garantir a estabilidade institucional, combater a desigualdade e a injustiça e gerar bem-estar e prosperidade.

José Manuel Bandrés, o autor deste artigo, é magistrado do Supremo Tribunal do Reino da Espanha. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 04 de janeiro de 2022.

Brasil, cada vez mais distante do resto da América Latina

O país celebra este ano 200 anos da sua independência de Portugal com um presidente que só está interessado em manter boas relações com a extrema direita

A rejeição do presidente brasileiro, o de extrema direita Jair Bolsonaro, à oferta de ajuda do governo argentino ao Brasil devido às graves enchentes que atingiram o Estado da Bahia com dezenas de mortos e mais de meio milhão de desprotegidos no meio do Natal São mais um sintoma de como o Bolsonaro está distanciando o Brasil da América Latina e, em geral, do mundo. A desculpa dada pelo Chefe de Estado foi que seu homólogo argentino "está de esquerda".

Neste momento em que o Brasil parece estar mais centrado nas suas origens coloniais portuguesas com as classes altas comprando ali uma segunda casa e com visitas mais frequentes ao local, o jornalista Carlos Fino, uma das figuras mais proeminentes do jornalismo português, acaba de lançar o livro Brasil: Raizes do Estranhamento , para demonstrar o contrário. Segundo Fino, 73, a chamada “Russofobia” está crescendo no Brasil, alimentada por uma visão negativa de Portugal presente na imprensa, em livros e até em filmes e novelas: “O Brasil tem vergonha da herança de Portugal. E isso até pelas elites mais iluminadas ”.

Se a isso se acrescenta que o Bolsonaro nada fez, ao contrário, para fortalecer os laços do Brasil com o resto da América Latina, nem mesmo com a América do Sul, que nunca foi idílica, fica mais claro o perigo de o Brasil ficar cada vez mais isolado. o mundo trancado em si mesmo.

Quando cheguei ao Brasil, há 20 anos, o que mais me impressionou foi ver que entre as pessoas comuns e entre os estudantes pouco ou nada se sabia sobre o resto do continente americano . E quando perguntei aos intelectuais o que eles sentiam no mundo, eles me olharam de forma estranha e responderam: "Brasileiros". Muito poucas elites falavam espanhol e durante 10 anos houve uma batalha no Parlamento para tornar o ensino da língua Cervantes obrigatório nas escolas. Foi inútil . A lei foi esquecida sob a desculpa de que não havia professores suficientes e eles ganhavam menos do que em outras partes do mundo.

A isso se soma a escassa informação que a grande mídia, com pequenas exceções, oferece sobre a América Latina. Isso explica porque os brasileiros se sentem apenas brasileiros, pertencentes a um império próprio, cientes de sua grande riqueza, de ser o quinto maior território do planeta a ter 16% da água potável do mundo. Isso junto com a incrível diversidade da Amazônia que este Governo está fazendo de tudo para destruir para dar lugar à pecuária e ao cultivo da soja, sacrificando se necessário os povos indígenas que sempre foram os donos desses territórios.

Esse isolamento desde as origens leva o Brasil a não saber com quem se identificar ou com quem compartilhar sua história. O resultado é o empobrecimento e o crescente isolamento do mundo.

O Brasil vai comemorar os 200 anos da Independência de Portugal este ano com um governo que empobrece o país cada vez mais. Em vez de transformar esta data em um momento de reflexão para saber de onde veio e para onde quer ir, o Brasil convive com ansiedade e ameaças à sua democracia, acossado por um governo golpista cujo presidente só tem interesse em manter boas relações com ele. Trump, de extrema direita americana, com a esperança de retornar ao poder.

Segundo estudo do Instituto Cervantes no Brasil, apenas 6,7% conhecem ou estudam espanhol no Brasil e 3% não sabem quais são os países da América Latina. E, no entanto, assim como o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura português José Saramago foi irônico que os espanhóis continuassem a manter Portugal no mapa porque se o retirassem sentiriam um “complexo de castração”, pode-se dizer do Brasil em comparação com o resto do continente. Se isolarmos o Brasil da América Latina, que faz fronteira com 10 de seus países, o mapa ficaria muito feio.

O Brasil será apenas a potência geográfica e econômica que representa enxertada no continente e só poderá ser visto como uma força mundial dentro de sua região. Isso só acontecerá se as ideias mais abertas de alguns políticos brasileiros do passado, que sonhavam com um continente rico, unido e com uma moeda única, uma espécie de Estados Unidos latino-americanos, voltassem a ser levantadas.

Se a desunião dos povos só cria pobreza, violência e deserto, a união dos povos acaba enriquecendo a todos. A experiência da União Europeia pode ser criticada , mas a verdade é que, enquanto antes da união o continente sempre viveu em guerras, hoje, desde então, nunca sofreu um conflito violento entre os seus Estados e tem uma moeda forte.

Bolsonaro chegou ao poder com o vírus da separação, ódio e isolamento do Brasil do resto do mundo. Hoje a única possibilidade de voltar a sonhar com um Brasil enxertado no resto do mundo, especialmente na América Latina, é que o segundo centenário de sua independência seja também o da libertação daquele que já foi considerado o "pior governo", o mais empobrecedor e isolacionista de sua história.

Juan Árias, o autor deste artigo, integra a equipe do EL PAÍS no Brasil. Publicado originalmente em 03 de janeiro de 2022.

A falência do ex-presidente e ícone polonês Lech Walesa

Após deixar de viajar para proferir palestras por causa da covid-19, o ex-presidente polonês Lech Walesa diz que está falido. Mas o líder do movimento Solidariedade enfrenta problemas financeiros já há algum tempo.

Até meados de 2020, o ex-presidente e ícone do movimento anticomunista Solidarnosc (Solidariedade) dos anos 1980 na Polônia, Lech Walesa, ganhava a vida no lucrativo circuito internacional de palestras.

Desde então, porém, as restrições por causa da covid-19 o deixaram à beira da falência, relatou ao tabloide polonês Super Express: "Eu tinha muitas viagens planejadas e deveria ter voado para Itália, Alemanha, EUA e outros países, mas infelizmente todas falharam".

Os falantes de polonês são poucos e distantes do circuito internacional de palestras em língua inglesa, mas Walesa lidera entre os reconhecidos no exterior. Além dele, há Donald Tusk e Robert Lewandowski, dizem pessoas ligadas ao setor. E antes deles houve o papa João Paulo 2º.

A expertise polonesa em "questões do Leste", como a Ucrânia, elevou o preço dos dois palestrantes políticos desde 2014. Mas o que fontes do setor chamam de "cansaço da guerra cultural" diminuiu a demanda por opiniões tidas como partidárias, seja de um lado, seja do outro. E Walesa nunca deixou de dizer o que pensa, por vezes de maneiras que podem não ser consideradas politicamente corretas.

Além disso, a covid-19 levou os países a imporem restrições de viagens.

Tempos difíceis para Walesa

"Estou falido agora, porque recebo 6 mil zlotys  [R$ 8.400] mensais de aposentadoria, e minha esposa gasta 7 mil zlotys cada mês", disse Walesa ao jornal. Após reformas em agosto, o valor da aposentadoria aumentou para 18 mil zlotys por mês.

"Palestras no Ocidente? De 10 mil a 100 mil euros [R$ 64 mil a R$ 640 mil]", disse Walesa ao tabloide. "Ganhei dinheiro com capitalistas ocidentais." Um serviço de contratação de oradores estaria oferecendo palestras de Walesa a preços entre 50 mil e 100 mil dólares (R$ 283 mil a R$ 566 mil).

Ele ainda complementa sua renda de orador oferecendo sessões de liderança, reuniões motivacionais para empresas e serviços de publicidade. Uma reunião de uma a duas horas tem o preço mínimo de 20 mil zlotys.

Esta não é a primeira vez que Walesa enfrenta problemas financeiros. Em fevereiro, disse que estava à procura de trabalho adicional, uma vez que a pandemia estava afetando sua renda.

"Seis meses mais disso [pandemia] e vou pedir dinheiro na frente da igreja", afirmou Walesa, ou retornar ao trabalho de eletricista – a profissão que adotou no estaleiro de Gdansk em 1967, antes de fundar o movimento Solidariedade, 13 anos mais tarde.

Em abril, Walesa escreveu que estava procurando emprego e postou seu anúncio no site polonês flexi.pl, um portal para maiores de 50 anos em busca de ocupação. 

"Um líder experiente, grande orador, vencedor do Prêmio Nobel da Paz, presidente da República da Polônia entre 1990 e 1995, cofundador e primeiro presidente do Solidariedade, conduz reuniões e formação para lideranças, aceita convites para reuniões de incentivo em empresas, mas também em famílias, possíveis serviços publicitários adicionais, fotos conjuntas e autógrafos", diz o texto.

Circuito de palestrantes

Muitos dos contemporâneos de Walesa na década de 1990 – como Bill Clinton, Gerhard Schroeder e Tony Blair – se beneficiaram do circuito de palestras e suas listas de contatos de alto nível, incluindo aí apresentações para regimes não totalmente democráticos e financiados por combustíveis fósseis.

Os arranjos podem ser bastante lucrativos: Hillary Clinton ingressou no circuito após deixar o cargo de secretária de Estado dos EUA, em 2013. Seu preço? Um mínimo de 225 mil dólares por palestra.

A secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, supostamente ganhou 7 milhões de dólares em dois anos, em honorários de palestras em grandes corporações, fundos de investimentos e bancos de Wall Street.

Os fundos soberanos são grandes pagadores e buscam uma combinação de conhecimento do mercado e anedotas de bastidores. O banco de investimentos Goldman Sachs é um dos mais renomados clientes de palestrantes. Mas sua série Talks with GS não incluiu nenhum político desde, pelo menos, o início de 2021.

"É um grande mercado, de vários bilhões de dólares, globalmente. O maior mercado é o dos EUA", diz Tom Kenyon-Slaney, presidente do London Speaker Bureau. "Corporações e governos gostam de receber gente experiente e de alto gabarito para falar ou mesmo aconselhá-los."

"Nosso setor fez a transição para o virtual durante a covid-19, e isso tem sido bom para todos. Mesmo que os honorários dos palestrantes tenham diminuído, os eventos e as conferências continuam acontecendo, embora online", acrescenta.

Segundo Nick Gold, diretor-geral do Speakers Corner, o setor está estimado em cerca de 5 bilhões de dólares. "Não há uma tabela de classificação de palestrantes. Em última análise, trata-se de um mercado onde não há barreiras de entrada. Afinal, qualquer um pode se proclamar palestrante. E, como todos nós temos nossas próprias experiências e conhecimentos únicos, pode ser considerado uma proclamação legítima."

Ele ressalva que ninguém poderia prever a pandemia e o impacto que ela teria sobre o setor: "Isso gerou uma grande instabilidade e um abalo sísmico para palestrantes, escritórios de oradores, organizadores de eventos e todos ligados ao setor de palestras."

"O mundo virtual abriu uma nova plataforma para os palestrantes apresentarem seu conteúdo. Não se trata de uma mudança para palestras online, mas o desenvolvimento de uma nova plataforma para transmitir uma mensagem. Os oradores tiveram que reinventar e reimaginar sua apresentação levando em conta essa nova plataforma virtual, de modo a dar ao público os melhores resultados possíveis", acrescenta Gold.

Problemas no instituto de Walesa

Mas os problemas de Walesa com dinheiro têm uma longa história. O Instituto Lech Walesa – uma organização não governamental e sem fins lucrativos criada em 1995 por Walesa e inspirada no Carter Center, dos EUA – mudou seu nome para Centro de Solidariedade Europeia depois que seu presidente de 2000 a 2014, Piotr Gulczynski, foi acusado de prevaricação financeira.

A promotoria de Varsóvia recebeu uma relação de possíveis crimes cometidos por Gulczynski e outra sobre o ex-presidente do instituto, Mieczyslaw Wachowski, ex-motorista e confidente de Walesa. Em 2014, o instituto apresentou um lucro de 3,7 milhões de zlotys. Em 2017, seus cofres estavam vazios.

De acordo com investigações do portal de notícias Gazeta, Wachowski usou os fundos principalmente para dar "prêmios" para si mesmo. Ele também perdeu um processo contra a empresa energética Energa e tem que pagar 825 mil zlotys.

O porta-voz do Grupo Energa, Adam Kasprzyk, disse que o instituto não prestou nenhum dos serviços de marketing com os quais se comprometera em nome da Energa.

Em 2017, o instituto viu uma onda de demissões e a renúncia de seu então presidente após uma auditoria – que ele encomendou – revelar dívidas de mais de 1 milhão de zlotys.

Em abril, o portal de notícias TVN24.pl relatou o pedido de entidades vinculadas a empresas do Tesouro do Estado para a devolução de subsídios no valor de 1,7 milhão de zlotys concedidos ao instituto para a realização de projetos.

Bryan Harper escreveu este artigo para a Deutsche Welle, que o publicou em 04.01.22

Emprego fraco e dólar nas alturas: o que vem por aí na economia em 2022

Saiba o que esperar para PIB, emprego, inflação, câmbio, economia mundial, contas públicas e política monetária em 2022, na visão de um time de especialistas que inclui os economistas Daniel Duque e André Braz (FGV), Silvio Campos Neto (Tendências), Vilma Pinto (IFI) e Rafaela Vitória (Banco Inter).

Inflação deve perder força, mas PIB tende a ficar estagnado, preveem economistas para o próximo ano (Paulo PInto / Fotos Públicas)

O ano de 2022 deve trazer pelo menos uma boa notícia na economia: a inflação tende a perder um pouco de força, como resultado da safra recorde de alimentos, redução de preço dos combustíveis e diminuição da demanda, resultado da forte alta dos juros e da atividade fraca.

No entanto, para além dessa perda de ímpeto dos preços, o ano eleitoral tende a ser mais um período difícil para a economia brasileira.

PIB recua 0,1% no 3º tri e Brasil entra em 'recessão técnica'. E agora?

Para o PIB (Produto Interno Bruto), indicador que soma todos os bens e serviços produzidos no país, a expectativa dos economistas é de estagnação.

Os analistas divergem se o número vai ser um pouco negativo ou um pouco positivo, mas todos concordam que, no azul ou no vermelho, o desempenho deve ficar muito próximo de zero.

Como consequência, o mercado de trabalho tende a perder ímpeto, com a taxa de desemprego caindo mais devagar e a geração de vagas formais mais fraca.

Já o câmbio — relação entre o valor da moeda brasileira e as moedas de outros países — deve ter um ano bastante volátil (isto é, deve variar bastante, ser inconstante), reagindo à corrida eleitoral e à provável alta de juros para conter a inflação nos mercados desenvolvidos.

Esse movimento tende a atrair investimentos principalmente aos Estados Unidos, enfraquecendo as moedas de países emergentes, como o Brasil, e já há quem aposte em um dólar encostando nos R$ 6 ao longo do próximo ano.

Nas contas públicas, a arrecadação de impostos deve perder força, enquanto o custo da dívida pública tende a continuar em alta, devido ao aumento dos juros.

E para coroar esse cenário desfavorável, a economia mundial pode perder força, com destaque para a China, principal parceira comercial do Brasil.

Saiba o que esperar para PIB, emprego, inflação, câmbio, economia mundial, contas públicas e política monetária em 2022, na visão de um time de especialistas que inclui os economistas Daniel Duque e André Braz (FGV), Silvio Campos Neto (Tendências), Vilma Pinto (IFI) e Rafaela Vitória (Banco Inter).

Com dois resultados negativos no segundo e terceiro trimestres de 2021, a economia brasileira entrou este ano em "recessão técnica" — termo usado pelos economistas quando são registrados dois trimestres seguidos de PIB em queda.

No quarto trimestre, a coisa não melhorou, com indústria (-0,6%), varejo (-0,1%) e serviços (-1,2%) em retração em outubro, na comparação com setembro, sugerindo que a atividade econômica continuou em baixa nos últimos três meses do ano.

As vendas da Black Friday em novembro e do Natal em dezembro, com crescimento fraco em relação a 2020, reforçaram a sensação de falta de ímpeto da economia.

É em meio a esse desânimo que o país adentra 2022, ano que os economistas preveem que será de estagnação para o PIB brasileiro.

Segundo o boletim Focus do Banco Central (de 27/12), que reúne as expectativas de diversos analistas do mercado, o PIB brasileiro deve crescer apenas 0,4% em 2022, após avançar cerca de 4,5% este ano, recuperando a queda de 3,9% de 2020, quando a pandemia fez seu maior estrago.

Conforme Alberto Ramos, diretor de pesquisa econômica para América Latina do banco Goldman Sachs, o ano de 2022 deve ser marcado pela continuidade da recuperação do setor de serviços no Brasil, em meio ao avanço da vacinação.

"No entanto, a inflação em dois dígitos, a taxa de juros em alta, o aumento do ruído e da incerteza política, o alto nível de endividamento das famílias e a deterioração da confiança de consumidores e empresários são ventos contrários significativos para a atividade", escreve Ramos, em relatório.

Mercado de trabalho perde força

O ano de 2021 foi de recuperação para o mercado de trabalho, após o forte baque registrado no ano anterior.

A taxa de desemprego, que começou o ano em 14,5%, chegou a outubro em 12,1%, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Até novembro, haviam sido criadas no país quase 3 milhões de vagas com carteira assinada, conforme dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) do Ministério da Economia.

Recuperação do emprego deve perder ritmo em 2022, diz Daniel Duque, do Ibre-FGV (Agência Sindical).

"Devemos chegar ao primeiro trimestre de 2022 com uma taxa de desemprego já bem próxima da que tínhamos no início da pandemia", prevê Daniel Duque, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

Em fevereiro de 2020, quando foi identificado o primeiro caso de coronavírus no Brasil, a taxa de desemprego estava em 11,8%.

"A partir daí, no entanto, essa recuperação deve perder ritmo", diz Duque, explicando que há sempre um atraso entre a atividade econômica e o mercado de trabalho.

"A desaceleração da atividade que sofremos no segundo semestre de 2021, que foi bem forte, deve começar a ter um impacto no emprego a partir do primeiro trimestre de 2022 e a renda do trabalho deve continuar bem baixa, sofrendo com os efeitos da inflação e com reajustes nominais abaixo da alta de preços", avalia o pesquisador.

Segundo o boletim Salariômetro da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), em 12 meses até novembro de 2021, apenas 19,4% das negociações salariais entre sindicatos patronais e de trabalhadores resultaram em reajustes acima da inflação, enquanto para 50,8% os reajustes foram inferiores e 29,8% conseguiram ao menos repor a alta de preços.

Já conforme o IBGE, em outubro, o rendimento médio dos brasileiros caiu 11,1% na comparação anual, para R$ 2.449. Com isso, a renda no país descontada a inflação se encontra no menor patamar da série histórica, que tem início em 2012.

Ainda de acordo com Duque, a recuperação modesta do emprego que deve ocorrer em 2022 tende a ser puxada pelos trabalhadores informais e por conta própria.

"O emprego formal tem uma correlação bem forte com o PIB", explica o economista. "Como estamos vendo uma estagnação nos últimos trimestres, que deve continuar em 2022, principalmente devido à alta dos juros, muito provavelmente veremos em breve o fim da expansão dos empregos formais."

Inflação perde força, mas 2021 deixa herança

Segundo o boletim Focus, a inflação medida pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) deve desacelerar de cerca de 10% no acumulado de 12 meses até dezembro de 2021, para algo em torno de 5% ao fim de 2022.

No entanto, o indicador ainda tende a ficar acima da meta para o próximo ano, que é de 3,5%.

Boa parte da inflação de 2022 vai ser influenciada pela alta de preços de 2021, diz André Braz, da FGV (Agência France Press)

"Dado que a nossa economia ainda é muito indexada [quando os preços são reajustados de acordo com a inflação do período anterior], boa parte da inflação de 2022 vai ser influenciada pela inflação de 2021", diz André Braz, coordenador de índices de preços na FGV.

Um exemplo disso é o salário mínimo, que deve passar de R$ 1.100 em 2021 para R$ 1.212 em 2022, acompanhando a alta da inflação. O salário básico serve de referência para os salários do setor privado e também define o valor de benefícios sociais e aposentadorias.

Também os aluguéis, mensalidades escolares e impostos como IPVA e IPTU devem ser influenciados pela inflação do ano passado em seus reajustes, cita o economista.

Segundo Braz, boa parte da pressão inflacionária só deve perder forçar a partir do segundo semestre, já que a alta da taxa básica de juros leva de seis a nove meses para ter efeito sobre a economia.

"O efeito colateral disso vai ser um crescimento menor e isso vai bater direto no mercado de trabalho e nas oportunidades de emprego, contribuindo de forma mais aguda no segundo semestre para diminuir a demanda, que já está enfraquecida, mas que tende a se enfraquecer ainda mais", prevê Braz.

Comida, gasolina, conta de luz: por que está tudo tão caro no Brasil?

Segundo o economista, a inflação de alimentos deve desacelerar de uma alta acima de 7% em 2021, para avanço entre 3,5% e 4% em 2022, devido à safra agrícola recorde esperada.

"Uma oferta maior de alimentos pode contribuir para uma inflação mais baixa", diz Braz.

Ele pondera, no entanto, que o câmbio é um risco para essa previsão, já que a moeda brasileira desvalorizada incentiva a exportação de alimentos, o que reduz a oferta no mercado interno.

O real fraco também eleva o preço dos produtos no país, já que commodities como soja e milho são cotadas no mercado internacional em dólar.

Ano eleitoral desfavorece reajustes nos transportes, diz economista (Elineudo Meira / Fotos Públicas)

Para os preços administrados — aqueles controlados pelo poder público, como combustíveis, contas de luz e tarifas de transporte —, Braz prevê uma pressão menor devido à queda de preços do petróleo e à expectativa de uma bandeira menos onerosa nas contas de luz, graças à normalização das chuvas e dos reservatórios hidrelétricos nos últimos meses.

Já no transporte público, pressionado pela alta de quase 50% do diesel nos últimos 12 meses, joga a favor dos usuários o fato de 2022 ser um ano eleitoral, o que desincentiva o reajuste de tarifas pelas prefeituras e governos estaduais.

Em São Paulo, por exemplo, a Secretaria Municipal de Transporte e Mobilidade Urbana e a SPTrans avaliam que a tarifa de ônibus precisaria subir dos atuais R$ 4,40 para R$ 5,08 para recompor a inflação desde o último reajuste.

O prefeito Ricardo Nunes (MDB), no entanto, adiou a correção até fevereiro, enquanto aguarda o Senado votar projeto que passaria o custeio da gratuidade para idosos ao governo federal.

Câmbio pressionado e mundo menos favorável

Para Silvio Campos Neto, economista da Tendências Consultoria, dois fatores principais devem influenciar a cotação da moeda brasileira em 2022: as eleições presidenciais no Brasil e a alta dos juros nos Estados Unidos.

'Processo eleitoral sempre gera muita volatilidade e apreensão', diz Silvio Campos Neto, da Tendências (Sam Cowiw)

"A perspectiva de que o Fed [Federal Reserve, o banco central americano] eleve as taxas de juros por lá é um sinal de dólar forte no mundo todo", diz Campos Neto.

Isso acontece porque os juros mais altos nos EUA atraem investimentos para os papeis do Tesouro americano, valorizando o dólar e diminuindo os recursos disponíveis para aportes em países emergentes, que são considerados mais arriscados.

"Por aqui, o processo eleitoral sempre gera muita volatilidade e muita apreensão", acrescenta.

Segundo o economista, nos últimos anos, o real brasileiro teve comportamento atípico em relação às outras moedas de países emergentes, como o peso mexicano, colombiano e chileno, o rand sul-africano e o rublo russo.

Embora todas essas moedas tenham perdido valor com a pandemia, o real não se recuperou, ao contrário das demais, devido a fatores internos.

Pesou sobre a moeda brasileira principalmente o descontrole fiscal, com o calote nos precatórios — dívidas da União reconhecidas pela Justiça — e a mudança na regra do teto de gastos com a justificativa de pagar o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família.

"O câmbio realmente está fora de lugar, mas para ele voltar para um patamar mais baixo teria que ter uma mudança de sinalização em termos de política macroeconômica, especialmente um comprometimento maior na questão fiscal", diz Campos Neto.

"Isso é algo que não deve vir de nenhum dos dois candidatos mais cotados. Então, em 2022, esperamos pressões renovadas [sobre o câmbio]. Ao longo do ano, podemos perfeitamente observar novos picos, até próximos de novo a R$ 6", prevê.

Ao fim do ano, no entanto, o economista avalia que o câmbio deve ceder de volta aos R$ 5,70, já que o vencedor das eleições tende a tentar amenizar o ambiente adverso, fazendo acenos mais responsáveis em relação à agenda econômica.

Além do câmbio volátil, Campos Neto prevê um "mundo mais desafiador" para o Brasil.

"Será um mundo que ainda cresce, especialmente nos Estados Unidos, mas com início de retirada dos estímulos monetários, com destaque para o Fed, que deve começar a subir juros entre março e junho", diz o economista.

Outro ponto de atenção é a China, cuja economia já dá sinais de desaceleração, devido a um rearranjo do setor imobiliário do país asiático, que cresceu muito nos últimos anos com base em um forte avanço do endividamento.

Por que Brasil pode ser um dos países mais afetados por crise na empresa chinesa Evergrande

"Essa desaceleração já está acontecendo e já se reflete, por exemplo, no preço do minério de ferro", diz Campos Neto.

Ele destaca que o efeito da desaceleração chinesa sobre os preços das commodities é positivo para a inflação brasileira, mas negativo para a balança comercial, já que o país é um grande exportador de produtos básicos.

Nas contas públicas, arrecadação menor e dívida mais cara

A política fiscal — ramo da política econômica que trata do gasto público e da arrecadação de impostos — deve ser um dos grandes temas das eleições de 2022.

Isso porque a corrida eleitoral deve acontecer em meio a um ano de piora no quadro das contas públicas.

Segundo Vilma Pinto, diretora da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado Federal, em 2022 tende a haver uma expansão da despesa, por conta do Orçamento aprovado — que prevê mudanças no pagamento dos precatórios e no teto de gastos para permitir maiores despesas, além de acomodar gastos como o aumento do fundo eleitoral e o reajuste dos salários de policiais federais, definido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

Já a arrecadação recorde observada em 2021 deve perder força, já que ela foi impulsionada pela recuperação da atividade e pela alta de preços dos produtos e serviços, devido ao aumento da inflação. Com PIB e inflação mais fracos em 2021, esses efeitos se perdem.

"Outra questão importante — que reforça o pessimismo para o quadro fiscal — são os juros e seu impacto para a dívida pública. Em dezembro, o Tesouro divulgou dados da dívida federal, que já mostram um crescimento na margem do custo médio da dívida", observa Vilma.

Conforme o Tesouro, o custo médio acumulado em 12 meses do estoque da dívida pública federal subiu de 8,02% ao ano em outubro para 8,62% em novembro, maior valor desde outubro de 2020.

No mesmo período, o custo médio das emissões em oferta pública da dívida interna aumentou de 7,48% ao ano para 8,02%.

A relação entre dívida e PIB, observada pelos economistas como sinal da saúde das contas públicas de um país, deve voltar a subir em 2022, nas projeções da IFI.

O indicador chegou a 88,6% em dezembro de 2020, devido ao aumento de gasto em resposta à pandemia da covid-19. Em 2021, deve cair a 82,1%, voltando a subir para 84,8% em 2022.

Essa elevação da dívida/PIB deve acontecer devido à combinação de piora do resultado primário do governo, aumento do custo da dívida e PIB mais fraco.

A saúde das contas públicas é um tema importante para a população em geral porque ela define a capacidade do governo de gastar e, consequentemente, a qualidade dos serviços públicos oferecidos.

Além disso, a percepção do mercado com relação à capacidade do governo de honrar suas dívidas influencia variáveis como o risco-país e o câmbio, que têm efeito direto sobre a inflação, já que muitos insumos da indústria são importados e as commodities são cotadas em dólar.

Atividade fraca pode pôr fim a alta dos juros

Em sua reunião de dezembro, o Copom (Comitê de Política Monetária) elevou a taxa básica de juros da economia brasileira em 1,5 ponto percentual (p.p.), para 9,25%.

Foi o sétimo aumento seguido da Selic, que ao fim de 2020 estava em 2%, menor nível da história.

Selic começou o ano em 2% e chegou a 9,25% em 2021. Novas altas de juros são esperadas para 2022 (Marcelo Casal Jr. / Agência Brasil)

Em sua última reunião do ano, o Copom também indicou mais um aumento de 1,5 p.p. para sua próxima reunião, em fevereiro de 2022.

No entanto, os sinais de fraqueza da atividade e os últimos dados de inflação abaixo do esperado fazem alguns economistas acreditarem que a autoridade monetária pode optar por subir menos os juros no início deste ano.

"Temos visto diversos sinais de desaceleração da economia, na indústria, nos investimentos e nos indicadores de confiança, que mostram um empresário mais cauteloso para 2022", diz Rafaela Vitoria, economista-chefe do Banco Inter.

"Ao mesmo tempo, a inflação dá bons sinais de desaceleração", observa. Tanto o IPCA de novembro, como IPCA-15 de dezembro, apesar de altos, vieram abaixo das expectativas dos economistas.

"O consumo mais fraco acaba não alimentando a demanda e a gente pode ter uma inércia inflacionária bem menor, por conta da economia mais fraca. Isso pode resultar em uma política monetária um pouco mais gradual", acredita a economista.

Ela aposta em uma alta de 1 p.p. para Selic em fevereiro e outra de 0,75 p.p. em março, o que encerraria o ciclo de alta dos juros em 11%, abaixo dos 11,75% esperados pela maioria do mercado.

Para a analista, passadas as eleições e com o candidato eleito dando sinais de retomada das reformas macroeconômicas, o BC poderá voltar a reduzir a Selic, encerrando 2022 com a taxa em 10,5%.

No boletim Focus, o mercado também aposta em um início do corte de juros já no próximo ano, mas mais modesto, para 11,5%.

Thais Carrança - @tcarran, de São Paulo para a BBC News Brasil, em 3 janeiro 2022

Bolsonaro internado de novo: o que é obstrução intestinal?

O quadro de suboclusão intestinal seria decorrente da facada e das quatro cirurgias a que ele foi submetido desde então.

Bolsonaro foi internado após passar mal no último domingo (Reprodução Twitter

O presidente Jair Bolsonaro (PL) foi internado na madrugada de segunda-feira (3/1) na cidade de São Paulo por causa de uma obstrução intestinal, de acordo com um boletim médico.

Bolsonaro informou no Twitter que começou a se sentir mal depois do almoço de domingo.

Bolsonaro joga com religiões por popularidade, diz 1ª mulher a liderar conselho de igrejas cristãs

Ele foi transportado por um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) de Santa Catarina, onde passava férias, ao hospital Vila Nova Star, onde foi colocado em uma sonda nasogástrica.

Em nota na noite de segunda-feira (3), a assessoria de imprensa do hospital afirmou que o presidente "apresentou melhora clínica após a passagem da sonda nasogástrica, evoluindo sem febre ou dor abdominal".

"O presidente fez uma curta caminhada pelo corredor do hospital e permanece em tratamento clínico", completou a instituição, acrescentando que ainda não foi decidido se haverá necessidade de cirurgia.

Também não há previsão de alta.

O médico Antônio Luiz de Vasconcellos Macedo, que estava viajando, está retornando ao Brasil para atender o presidente. Macedo foi quem operou Bolsonaro após o atentado a facada que o feriu no abdômen, em setembro de 2018, em um ato de sua campanha eleitoral.

Segundo o próprio Bolsonaro, esta é a segunda internação pelo mesmo motivo.

O presidente ficou quatro dias internado no mesmo hospital em julho do ano passado para se tratar.

Uma intervenção cirúrgica chegou a ser considerada, mas não foi necessária porque o intestino do presidente voltou a funcionar normalmente.

O quadro de suboclusão intestinal seria decorrente da facada e das quatro cirurgias a que ele foi submetido desde então.

O que é obstrução intestinal?

A obstrução pode ocorrer em qualquer parte do intestino (Getty Images)

Como o próprio nome já diz, o quadro está relacionado ao bloqueio de parte do intestino delgado ou do intestino grosso.

Essa obstrução impede a passagem de alimentos e enzimas digestivas que, ao longo dos intestinos, estão envolvidos em uma série de processos para extrair nutrientes e descartar aquilo que não será aproveitado pelo corpo, formando as fezes.

O gastroenterologista e cirurgião Flávio Quilici, professor da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, explica que os intestinos têm uma estrutura parecida a de canos ou mangueiras.

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"Se você pisar na mangueira ou entrar alguma pedra ali dentro, isso causa um entupimento que não deixa a água passar", diz.

O mesmo raciocínio se aplica ao nosso tubo digestivo: caso alguma coisa fique emperrada ali dentro, não há como o conteúdo transitar pelos órgãos e seguir adiante.

Esse entupimento pode ser provocado por uma série de fatores, como doenças inflamatórias (caso de Crohn e diverticulite), tumores e até alimentos secos e duros (como sementes de jabuticaba, por exemplo).

No caso específico de Bolsonaro, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o quadro está de fato possivelmente relacionado às várias cirurgias que ele precisou passar após sofrer a facada em 2018.

De acordo com o médico Lúcio Lucas, chefe do centro cirúrgico do Hospital Sírio-Libanês em Brasília, as operações no abdômen levam a um processo de cicatrização, que pode resultar na perda da movimentação do intestino.

"Para funcionar a contento, o tubo digestivo se mexe constantemente. E essa mobilidade pode ser prejudicada pela formação do processo cicatricial após os procedimentos cirúrgicos", contextualiza.

Um intestino mais "rígido" e com algumas estruturas cicatrizadas que grudam umas nas outras, portanto, pode sofrer uma espécie de torção, que obstrui parcialmente ou totalmente a passagem dos alimentos — é como se a mangueira do exemplo anterior se dobrasse por completo.

Vale ressaltar que essa é uma hipótese provável no caso do presidente, mas que ainda precisa ser confirmada pelos profissionais que o acompanham.

Problema intestinal de Bolsonaro pode estar relacionado com as cirurgias que ele realizou após sofrer a facada.

Esse problema pode evoluir aos poucos e só dar sinais mais contundentes no momento em que a situação está mais grave.

"Os soluços são um sintoma da obstrução, especialmente quando ela acontece em algumas regiões do intestino delgado", observa Lucas.

Essa condição também costuma estar relacionada com inchaço e dores fortes na barriga.

Quilici diz que é possível detectar a obstrução intestinal no exame físico, feito no próprio consultório, especialmente quando o paciente tem um histórico de cirurgias na região do abdômen.

"Podemos também fazer uma radiografia ou uma tomografia para encontrar essa obstrução", complementa.

Esses exames são de rotina quando um paciente é internado com os sintomas de Bolsonaro, segundo médicos ouvidos pela BBC News Brasil.

O que é feito após o diagnóstico?

Dependendo da causa, da gravidade e do local onde a obstrução ocorreu, o médico opta pelo tratamento conservador ou pela cirurgia.

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Lucas explica que, nos casos menos graves, é possível recorrer ao jejum, a algumas medicações específicas e a determinados procedimentos menos invasivos, como a aspiração do líquido acumulado em razão do entupimento.

O paciente então é monitorado por um tempo, até que sua situação melhore.

Quando o bloqueio do tubo digestivo é maior, geralmente é preciso abrir a barriga para desfazer a obstrução ou remover a estrutura que bloqueia e aflige o intestino.

Quilici e Lucas concordam que a cirurgia é relativamente simples e não costuma estar relacionada a complicações ou a um pós-operatório muito difícil.

"Quando a operação consiste em apenas desfazer a dobra no intestino, a recuperação é rápida, e o quadro costuma evoluir muito bem", aponta Lucas.

"Agora, se o diagnóstico e a intervenção demoram muito a acontecer, há o risco de a região intestinal afetada sofrer uma necrose, o que exige a remoção desse pedaço", acrescenta Quilici.

Com reportagem de André Biernath, da BBC News Brasil em São Paulo.

Bolsonaro faz lembrar que a história é feita também do 'imponderável' e golpes de sorte ou azar

O retrato de hoje é um, mas o filme da eleição é dinâmico como a política, as campanhas e a própria vida. Leia aqui o comentário de Eliane Cantanhede publicado hoje n'O Estado de S. Paulo.
 
A nova crise, a nova hospitalização e a possível nova cirurgia do presidente Jair Bolsonaro são um alerta: a eleição não está decidida e muita água ainda vai rolar embaixo da ponte até outubro, desde puros golpes de sorte a ataques sórdidos, sem descartar o “imponderável”, tão presente na história brasileira.

O próprio Bolsonaro é um exemplo de que o “imponderável” pode alterar o rumo de uma eleição, depois de sofrer em 2018 uma facada que, na mesma intensidade, ameaçou sua vida e sedimentou sua vitória.

José Sarney virou presidente porque Tancredo Neves morreu. Fernando Collor criou a ficção do “caçador de marajás” e foi o primeiro presidente eleito depois da ditadura militar. Itamar Franco jamais seria presidente pelas urnas, mas apostou certo ao virar vice de Collor e foi o homem certo na hora certa.

Fernando Henrique Cardoso, então senador, discutia se se elegeria deputado quando Itamar assumiu, delegou a ele o Itamaraty e a formação da equipe econômica e chancelou o Plano Real, que empurrou FHC rampa acima.

O ex-sindicalista Lula não se elegeu por um golpe de sorte, um plano bombástico ou o imponderável. Ele caiu de maduro. Depois de tentar em 1989, 1994 e 1998, o País e FHC julgaram em 2002 que chegara sua vez. A primeira ação de Lula foi a fake news da “herança maldita”, mas isso é outra história.

Dilma Rousseff não caiu de madura, como Lula, mas caiu de paraquedas, como Collor e, mais adiante, Jair Bolsonaro. Os improváveis. Primeira mulher presidente do Brasil, ela foi candidata com a queda em dominó de petistas como José Dirceu e Antonio Palocci... E porque Lula quis. Na campanha, teve uma mãozinha de mais um “imponderável”: a morte de Eduardo Campos num acidente aéreo.

Depois de recordes de popularidade, Dilma esfarelou pela personalidade, isolamento, erros crassos na política e na economia, até as pedaladas que a levaram ao impeachment. E veio Michel Temer, que foi presidente do MDB e, como FHC, tinha biografia, livros publicados e era forte no mundo político, não nas urnas. Chegou lá porque trocou os tucanos pelo PT e aboletou-se na vice de Dilma.

Em 2022, Bolsonaro, fruto de internet, marketing e desgaste da política, agora tem sequelas. Lula, que foi preso, tem mensalão e petrolão nas costas. Sérgio Moro virou, simultaneamente, fato novo e vidraça. Ciro Gomes parece andar para trás. Governador do principal Estado, João Doria enfrenta forte rejeição.

O retrato de hoje é um, mas o filme da eleição é dinâmico como a política, as campanhas e a própria vida. Ninguém ganha ou perde eleição de véspera, muito menos dez meses antes.

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado (SP), da Rádio Jornal (PE) e do TeleJornal "Globo News Em Pauta". 

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Bolsonaro joga com religiões por popularidade, diz 1ª mulher a liderar conselho de igrejas cristãs

Os evangélicos no Brasil são classicamente divididos entre os grupos de heranças protestantes mais tradicionais (como metodistas, batistas e presbiterianos) e os neopentecostais e pentecostais (igrejas como a Assembleia de Deus e a Universal).

A pastora luterana Romi Márcia Bencke, que estuda o diálogo interreligioso (Arquivo Pessoal)

A pastora luterana Romi Márcia Bencke defende que o termo "evangélicos" é mal compreendido no Brasil contemporâneo. "Quem são os sujeitos desse universo gigantesco chamado evangélico?", diz a líder religiosa, reconhecida pela postura progressista.

"Assim como a Igreja Católica é extremamente plural com infinitas igrejas dentro de uma grande igreja, também temos (evangélicos) conservadores, tradicionais, progressistas… Tem de tudo."

Bencke afirma que o segmento se tornou amplamente conhecido com o advento das chamadas igrejas neopentecostais, mas os protestantes já estão presentes há muito tempo no Brasil. Ela cita dificuldades para a denominação ser reconhecida no período do império e a repressão ocorrida no governo Getúlio Vargas. "Isso fez com que tivéssemos uma presença muito discreta na sociedade brasileira, embora não menos relevante", explica.

Os evangélicos no Brasil são classicamente divididos entre os grupos de heranças protestantes mais tradicionais (como metodistas, batistas e presbiterianos) e os neopentecostais e pentecostais (igrejas como a Assembleia de Deus e a Universal).

A líder religiosa observa que os mais conservadores chamam mais atenção, mas recorda que, ao longo da carreira, trabalhou em comunidades temas como direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. "E isso nunca foi problema", ressalta. "Tem abertura para debate."

Para ela, dentro das igrejas a polarização ideológica e política do país está presente "muito fortemente". E isso tem afetado principalmente as igrejas menores. "Tudo é ideologizado. Por exemplo: tu vais falar do Evangelho e que Jesus caminhava com as pessoas pobres e perdoava a mulher pega em adultério, coisa e tal, aí já vira um 'ó, o que está defendendo'. É um negócio difícil hoje você conseguir fazer um trabalho comunitário", afirma.

Ao longo da carreira, a gaúcha atuou em defesa de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres desde os tempos em que liderava uma comunidade em São Sepé (RS), atuou no auxílio a migrantes e trouxe para a pauta de suas comunidades temas ligados à cidadania, às relações de gênero e à modernidade desde que foi ordenada sacerdote da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, em 1999.

Em 2012, Bencke se tornou a primeira mulher a assumir a secretaria geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic). Tornou-se, então, uma voz pública nos debates brasileiros.

"A sociedade brasileira no dia a dia tem uma tendência mais conservadora. Ou da dupla moral, que é pior do que o conservadorismo. O conservador diz o que pensa. Eu posso não concordar, mas é o que ele pensa. O problema é a dupla moral: o sujeito que defende a família e tem duas famílias desconhecidas", argumenta.

A pastora luterana afirma que a polarização no Brasil está gerando "uma teologia bem vazia" que não abarca as contradições humanas da realidade. "A gente ter divergências, posições diferentes, visões de mundo diferentes é ok. Mas tem ido além do pensar diferente."

"A polarização gera violência, divide comunidades, divide famílias: essa é a realidade que estamos vivendo hoje. As pessoas que têm papel de liderança preferem não tocar nesses temas. Só que as pessoas se alimentam por redes sociais, entram no YouTube do influencer não sei das quantas, circulam nesses grupos do Telegram, do WhatsApp. E isso se reflete no convívio das igrejas."

Bencke conta que muitos pastores preferem não tocar em temas considerados delicados para evitar cisões em suas comunidades.

Ideologias

Bencke explica que os evangélicos que estão no alto escalão da política são os conservadores das igrejas protestantes tradicionais. (Arquivo Pessoal)

A pastora relata que missionários conservadores têm recorrido a ferramentas didáticas para incutir conceitos como "ideologia de gênero" e "ameaça comunista" na sociedade.

"Dizem: 'toma cuidado, querem que seu filho vire menina'. Claro, uma mãe que não está muito instruída e não está a par desses debates não vai querer isso. E eles (os missionários) manipulam muito e nisso têm muita força. Fazem cartilha, desenho animado, tudo para explicar. Usam metodologia da educação popular. Usam a linguagem popular e vão inflando o temor nas pessoas. Eu não responsabilizo a trabalhadora doméstica que pensa 'meu Deus, querem que a menina vire menino'", conta.

Bencke afirma que responsabiliza, sim, "quem, de maneira muito consciente, muito ideológica, promove esse tipo de insegurança e de medo na sociedade".

"A sociedade teve mudanças e esses temas estão no dia a dia. As pessoas têm de falar sobre eles. Temos de conversar sobre esses assuntos, mas esses grupos (conservadores) impedem aquilo que é o mais importante numa sociedade democrática: a gente poder falar, debater livremente sobre todos os temas. E eles impedem com muito autoritarismo e repressão que essa discussão aconteça", diz.

"A Frente Parlamentar Evangélica, quando o [presidente Jair] Bolsonaro ganhou, lançou um documento que era como se fosse uma proposta de governo. E o foco era a educação e a cultura. Que é bem o que a gente está vendo: eles estão fazendo todo o desmonte da educação e da cultura. São as pautas prioritárias deles e isso é pensado", comenta. "Não é ingênuo."

Política e fé

Bencke argumenta que os evangélicos que estão no alto escalão da política são os conservadores das igrejas protestantes tradicionais, e não os representantes das igrejas neopentecostais.

"O ministro da Educação (Milton Ribeiro) é da IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil). André Mendonça (novo ministro do Supremo Tribunal Federal) também. Quer dizer: são do presbiterianismo histórico os que estão lá", diz. "A gente tende a responsabilizar Edir Macedo, Silas Malafaia — e não estou aqui defendendo esses líderes, são pessoas muito controversas."

Bencke define a IPB como uma igreja "bem conservadora mas muito intelectualizada". "Pode ser uma intelectualidade que a gente discorda, mas é intelectualizada. E classe média alta. Esse é o estilo da IPB. Já as igrejas pentecostais, elas servem mais como curral eleitoral, espaço para fazer propaganda política. Mas quem pensa e ocupa (o poder) é uma determinada elite de protestantes. Uma parcela masculina, branca, com dinheiro. É essa que pensa", afirma.

Em sua visão, o presidente Bolsonaro joga com as religiões, pois não se define entre católicos e evangélicos, é "um híbrido".

"Eu acho que o Bolsonaro é um baita de um esperto. Vem de uma tradição católica, daqueles católicos como tem muitos no Brasil que se dizem católicos mas não são frequentadores. Então se batizou nas águas do Rio Jordão (em cerimônia conduzida pelo político e pastor Everaldo, da Assembleia de Deus, em 2016, durante viagem a Israel) um pouquinho antes de se tornar candidato, como se tivesse recebido uma unção para isso", recorda a pastora.

"Mas olha só: quando um novo fiel pentecostal quer ser batizado, tem de renunciar ao seu batismo anterior para poder aceitar o novo, porque isso simboliza a conversão. Bolsonaro não fez isso. Ele manteve um pé no catolicismo e um pé no pentecostalismo. Com isso ele consegue jogar com as duas maiores vertentes do cristianismo no Brasil. Ele representa bem esse híbrido religioso do Brasil, um pouco disso, um pouco daquilo", reflete a pastora.

"E joga também com os grupos ultraconservadores da Igreja Católica Romana, tem adesão desses grupos. Isso garante a ele a popularidade, garante para ele um certo aspecto de que ele é popular. Quando vai aos cultos, diz que é evangélico, não é católico. Quando vai à Igreja Católica, diz que é católico, e não evangélico."

Ministro "terrivelmente evangélico"

Em 2012, Bencke se tornou a primeira mulher a assumir a secretaria geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) (Arquivo Pessoal)

Ainda sobre o avanço de grupos cristãos nas esferas de poder sob o governo Bolsonaro, ela diz que a escolha de André Mendonça como o "ministro terrivelmente evangélico" vai contra a exigência de competências técnicas e pré-requisitos constitucionais.

"Como seria se o presidente fosse candomblecista e dissesse que 'quero um ministro terrivelmente candomblecista'? Ou 'uma ministra terrivelmente feminista?' Não. A pessoa tem de estar preparada para exercer o cargo", comenta.

"Isso é muito complicado aqui no Brasil. A gente fala sobre laicidade do Estado, mas isso é um monstro que ninguém sabe o que é que significa", comenta.

Mulheres à frente das igrejas

Como a primeira mulher à frente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, Bencke afirma não sentir discriminação no dia a dia. Mas ressalta que "há contextos que precisam ser considerados".

Ela relata que assumiu o cargo em um cenário de crise institucional da entidade e acha que isso facilitou sua entrada. "Eu vejo que, no que diz respeito às igrejas, esses ambientes de crise são quando elas se abrem para a mulher. Quando está tudo bem, geralmente são os homens que ocupam os espaços", analisa.

Não porque esperam que só uma mulher pode resolver. "Mas se não resolver, é muito fácil dizer que 'a fulana afundou o projeto'. Que é de todos, né? Há uma visão bem patriarcal, bem machista sobre o papel das mulheres. Mas, no convívio do dia a dia, nunca me senti desrespeitada."

Na Campanha da Fraternidade lançada no início deste ano, a pastora se viu alvo de manifestações de ódio de grupos conservadores. Projeto anual da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), organismo católico, a campanha tem caráter ecumênico e teve Bencke como uma das articuladoras.

O texto-base da campanha trouxe a necessidade de defesa de minorias — pessoas LGBT, populações indígenas, violência contra mulheres, perseguição a defensores dos direitos humanos.

"Teve umas lives que foram feitas pelo Centro Dom Bosco (organização católica conhecida por posturas ultraconservadoras). Eles colocavam minha imagem e chamavam (os seguidores) para uma guerra, uma cruzada, a ideia de banir o inimigo — o inimigo era personalizado simbolicamente pela minha pessoa. Isso foi muito forte, muito impactante", recorda ela.

Meses depois, ela avalia o episódio como "um processo de aprendizagem", embora enfatize que as agressões — suscitadas pela exposição nas redes sociais — foram "bem violentas".

Procurado pela reportagem, o Centro Dom Bosco enviou uma nota assinada por Alvaro Mendes, vice-presidente da entidade e autor dos vídeos sobre a pastora. Segundo ele, "o Conic é uma organização revolucionária minúscula de extrema-esquerda e não representa nem os católicos nem os evangélicos".

"O texto-base foi elaborado com o intuito de difundir as ideologias da Teologia Ecofeminista da Libertação dentro das paróquias e ofendeu os católicos de todo o país. Nós só queremos que a Igreja seja respeitada e que a quaresma seja vivida de uma forma santa e não politizada", afirmou Mendes.

"Somos contra qualquer tipo de agressão. Ao mesmo tempo acreditamos que o argumento de 'agressões virtuais' soa como um vitimismo que deve ser desconsiderado. Trata-se de um recurso utilizado para tentar desqualificar qualquer argumento contrário. O foco do debate deve ser mantido dentro do campo argumentativo e nos causa estranheza o fato de a Romi Bencke nunca ter vindo a público para defender a sua versão do texto-base", completou.

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 25 dezembro 2021