segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

‘Judiciário não pode afagar delírios negacionistas’, diz juíza ao negar pedido para prender William Bonner por incentivo à vacinação contra a covid-19

 Gláucia Falsarella Pereira Foley, da Juizado Especial Criminal de Taguatinga, nega representação contra o apresentador do Jornal Nacional da TV Globo e destaca que o pedido, feito pelo advogado Wilson Koressawa, 'reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziando seu texto em mera panfletagem política'

O jornalista William Bonner, apresentador do Jornal Nacional, da TV Globo. Foto: Reprodução/Instagram

A juíza Gláucia Falsarella Pereira Foley, do Juizado Especial Criminal de Taguatinga, arquivou uma representação que pedia a prisão do jornalista e editor-chefe do Jornal Nacional William Bonner, por ‘incentivar a vacinação obrigatória de crianças e adolescentes e a exigência de passaporte sanitário’. “O Poder Judiciário não pode afagar delírios negacionistas, reproduzidos pela conivência ativa – quando não incendiados – por parte das instituições, sejam elas públicas ou não”, escreveu em despacho datado deste domingo, 16.

Em seu despacho, a juíza detalhou o pedido feito pelo advogado Wilson Koressawa, para dar a ‘exata dimensão do descabimento’ do mesmo. A magistrada indicou que, para o advogado, o jornalista comete crimes ao esclarecer os impactos positivos da vacina no combate à pandemia da covid-19. Segundo Foley, Koressawa ‘reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziando seu texto em mera panfletagem política’.

“Vivemos tempos obscuros traçados por uma confluência de fatores. É preciso coragem, maturidade e consistência política e constitucional para a apuração das devidas responsabilidades pelas escolhas que foram feitas. Nas palavras de Churchill, a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. Os inúmeros mecanismos de pesos e contrapesos da democracia nos colocaram na presente situação, mas será somente por meio dela que o Poder Judiciário, trincheira do Estado Democrático de Direito, poderá colaborar para que ensaiemos a superação da cegueira dos nossos tempos”, destacou a magistrada.

A juíza ainda lembrou que o Supremo Tribunal Federal consagrou o entendimento de que o exercício da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas, especialmente contra autoridades e agentes do Estado. Foley também citou o jornalista e professor Eugênio Bucci, que considera que a liberdade de informação é direito do cidadão e dever da imprensa.

Por considerar que o advogado não tem legitimidade para representar por uma prisão e que a análise do pedido não caberia ao Juizado Especial Criminal de Taguatinga, o Ministério Público Federal chegou a defender o envio do caso para uma das Varas Criminais de Taguatinga. No entanto, Foley entendeu que era necessário ‘promover segurança política e jurídica, impedindo decisões e atos teratológicos em detrimento das instituições’.

Leia a íntegra da Decisão judicial:

Poder Judiciário da União

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS

Juizado Especial Criminal de Taguatinga

    Número do processo: 0722619-55.2021.8.07.0007

Classe judicial: NOTIFICAÇÃO PARA EXPLICAÇÕES (275)

NOTIFICANTE: WILSON ISSAO KORESSAWA

REQUERIDO: WILLIAM BONNER

DECISÃO

Cuida-se de representação pela decretação de prisão em flagrante ou preventiva de WILLIAM BONNER, formulada por WILSON KORESSAWA.

Aduz o requerente que “o representado, juntamente com diversos outros repórteres da mesma emissora, ao que tudo indica, participa de uma organização criminosa, definida na Lei 12.850/13"; que o  representado está "incurso nas penas dos art. 267 e 270, parágrafo primeiro, e 122, combinados com  art. 29, todos do Código Penal" e requer "O afastamento do representado do cargo ou a proibição de ele incentivar a vacinação obrigatória de crianças e adolescentes e a exigência de passaporte sanitário; determinação para a prisão em flagrante ou a decretação da prisão preventiva do representado; a  recomendação para a SUSPENSÃO DA VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA EM TODO O PAÍS, principalmente de crianças e adolescentes, bem como da EXIGÊNCIA DO PASSAPORTE SANITÁRIO, até que sejam realizados exames periciais dos componentes de todas as vacinas; a determinação para a realização de exames periciais para se constatar todos os componentes das vacinas e aferir se são benéficas ou prejudiciais à saúde de população, das crianças e adolescentes; a determinação para a juntada de todas as bulas das vacinas para se constatar que não são recomendadas para crianças e adolescentes; a determinação para a juntada de todos os contratos celebrados com todas as empresas farmacêuticas; a determinação para que o referido repórter divulgue toda a verdade sobre as reações adversas, sequelas e mortes decorrentes das vacinas e ouça os Médicos Pela Vida.”

Em manifestação de ID 112807061, a i. representante ministerial consignou que o requerente não possui legitimidade para o pedido de prisão preventiva, vez que os crimes citados são de ação penal pública. Além disso, os pedidos de 1.3 a 1.7 não estão previstas como medidas cautelares penais no CPP. 

Quanto à  competência, a pena privativa de liberdade máxima cominada aos delitos indicados pelo requerente supera o limite de dois anos estabelecido pelo artigo 61 da Lei n.º 9.099/1995, que disciplina a competência dos Juizados Especiais Criminais. Diante disso, pugnou pela declinação da competência e remessa dos autos para distribuição a uma das Varas Criminais de Taguatinga.

É o breve relatório. Decido.

O Ministério Público tem razão ao alertar que a representação em análise, além de ser subscrita por parte  ilegítima, veicula tipos penais formalmente incompatíveis com o procedimento deste Juizado, razão pela qual solicita a remessa dos autos à vara criminal competente.

No entanto, a apreciação deste Juízo deve ir além da questão meramente processual. Trata-se, aqui, de resgatar o mister constitucional do Poder Judiciário – por natureza, independente e contramajoritário –que é o de promover segurança política e jurídica, impedindo decisões e atos teratológicos em detrimento das instituições, incluída a imprensa. Vejamos.

A representação noticia a prática dos tipos penais dos artigos 122, 267 e 270, parágrafo primeiro, combinados com o artigo 29, todos do Código Penal.

Para que se tenha a exata dimensão do descabimento do pedido, é preciso traduzir, em linguagem acessível, o que isso significa: para o signatário da representação, o jornalista William Bonner, em conluio com outros profissionais da imprensa, ao esclarecer os impactos positivos da vacina no combate à pandemia da Covid-19, comete os crimes de indução de pessoas ao suicídio (art. 122 do CP) e de “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos” (art. 267); “envenenar água potável, de uso comum ou particular, ou substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo.”, sujeitando-se à mesma pena quem entrega a consumo ou tem em depósito, para o fim de ser distribuída, a água ou a substância envenenada (art. 270 do CP, parágrafo primeiro).

Como fundamento, reproduz teorias conspiratórias, sem qualquer lastro científico e jurídico, esvaziand seu texto em mera panfletagem política.

Vivemos tempos obscuros traçados por uma confluência de fatores. É preciso coragem, maturidade  consistência política e constitucional para a apuração das devidas responsabilidades pelas escolhas que  foram feitas. Nas palavras de Churchill, a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais. Os inúmeros mecanismos de pesos e contrapesos da democracia nos colocaram na presente  situação, mas será somente por meio dela que o Poder Judiciário, trincheira do Estado Democrático de  Direito, poderá colaborar para que ensaiemos a superação da cegueira dos nossos tempos.

O Poder Judiciário não pode afagar delírios negacionistas, reproduzidos pela conivência ativa – quando não incendiados – por parte das instituições, sejam elas públicas ou não. Além disso, a decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 130/DF, consagrou o entendimento de que o exercício da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, especialmente contra autoridades e agentes do Estado. Para Eugênio Bucci, aliás, mais do que direito do jornalista, a liberdade de informação é direito do cidadão e dever da imprensa.

Para além disso, deve-se consignar que, nos termos do artigo 311 do Código de Processo Penal, “caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente ou por representação da autoridade policial.” Vê-se, pois, que falece legitimidade a representante para pleitear a prisão preventiva do representado, porquanto os crimes citados desafiam ação penal de natureza pública incondicionada e o representante não possui a condição de assistente.

Diante do exposto, em especial, da incontestável atipicidade dos fatos narrados, determino o arquivamento da presente representação, com base no artigo 395, II, do Código de Processo Penal.

Publique-se. Registre-se. Após, arquivem-se.

 TAGUATINGA-DF, 16 de janeiro de 2022

11:42:51.

GLÁUCIA FALSARELLA PEREIRA FOLEY

Juíza de Direito

Pepita Ortega para O Estado de São Paulo, em 17.01.2022

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