segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Direita anti-Bolsonaro reúne poucos em protestos por impeachment

Atos tiveram apoio de parte da esquerda, mas tom "Nem Bolsonaro, Nem Lula" afastou PT. Analistas apontam erro tático do "centro democrático" e ressaltam diversidade ideológica na Paulista.

Ato na Avenida Paulista reuniu 6 mil, segundo Secretaria de Segurança Pública de São Paulo

As manifestações contra Jair Bolsonaro realizadas neste domingo (12/09), convocadas por grupos de direita como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem pra Rua, tiveram baixa adesão. Os atos foram menores do que os organizados pela esquerda contra o presidente em maio e junho e dos realizados em apoio a Bolsonaro no feriado de 7 de Setembro.

O MBL convocou atos em 16 capitais, e em nenhuma delas houve multidões. Na manifestação pró-Bolsonaro de 7 de Setembro, cerca de 125 mil pessoas foram à Avenida Paulista, segundo a Polícia Militar de São Paulo, abaixo da estimativa de 2 milhões do presidente, mas o suficiente para encher diversos quarteirões. Neste domingo, a Secretaria de Segurança Pública paulista estimou o público em 6 mil pessoas – havia três trios elétricos e a aglomeração não preenchia o vazio entre eles.

Foi a primeira vez que movimentos de direita que organizaram grandes atos pelo impeachment de Dilma Rousseff realizaram uma manifestação de rua contra Bolsonaro. Apesar de eles terem retirado o apoio ao presidente já no ano passado, a pandemia e o receio de engrossar atos que fortalecessem Lula o afastaram de atos oposicionistas anteriores.

Tentativa de agregar esquerda e direita

Os atos desde domingo mobilizaram expectativas após sinalizações dos organizadores para tentar atrair movimentos e partidos de esquerda. O MBL retirou o mote "Nem Bolsonaro, nem Lula" de sua convocatória e convidou Ciro Gomes, do PDT, para falar em seu caminhão de som na Paulista.

A iniciativa teve recepção mista na esquerda. Além do PDT, o PCdoB também decidiu apoiar o ato deste domingo. A presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz, filiada ao PCdoB, chamou pessoas ao protesto e defendeu a necessidade de unir pessoas de correntes ideológicas diversas para pressionar pelo impeachment de Bolsonaro.

O PT, o PSOL e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) decidiram não participar. Mas houve algumas exceções, como a deputada estadual por São Paulo Isa Penna, do PSOL, que foi à Paulista.

Ciro Gomes discursou no caminhão de som do MBL

Em sua fala, Ciro referiu-se aos familiares de vítimas da pandemia de covid-19, aos brasileiros desempregados e às pessoas sem direitos, e afirmou: "Essa é a minha razão moral superior de amar o Brasil, e de correr qualquer risco de assumir qualquer contradição para defender o povo trabalhador (...) Nós somos diferentes, temos caminhadas diferentes, temos um olhar sobre o futuro do Brasil diferente, mas o que nos reúne é a ameaça da morte da democracia".

Além de Ciro, discursaram em São Paulo o governador paulista, João Doria (PSDB), o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM), a senadora Simone Tebet (MDB-MS), a deputada Tábata Amaral (Sem partido-SP) e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP).

Algumas centrais sindicais, como Força Sindical, Nova Central Sindical Trabalhadores (NCST) e União Geral dos Trabalhadores (UGT), também aderiram aos atos, mas não houve presença em massa de seus membros.

Agressões a Lula

Apesar da decisão do MBL de tirar foco de Lula em sua convocação, houve diversas manifestações agressivas contra o petista nas manifestações. Na Avenida Paulista, havia ao lado do trio elétrico do Vem Pra Rua um grande boneco inflável com a representação de Lula em roupa de presidiário como gêmeo siamês de Bolsonaro em uma camisa de força.

Uma tenda erguida pelo Partido Novo na Paulista trazia a faixa "Nem Lula, nem Bolsonaro". Discursos no carro de som do Vem Pra Rua também criticaram o convite a Ciro e ao PCdoB para se juntarem no protesto.

No Rio de Janeiro, o Vem Pra Rua trazia a imagem Bolsonaro e Lula em roupas de presidiário e atrás das grades, e a convocatória para o ato de Florianópolis mostrava ambos os políticos como equivalentes e alertando para o risco de um "bolsopetismo".

"Centro erra ao submergir na pauta do MBL"

O sociólogo Marco Aurélio Ruediger, da FGV, afirma à DW Brasil que a baixa adesão aos atos deste domingo indica que o "centro político democrático" errou ao "submergir" na pauta do MBL e do Vem Pra Rua, "que colocam Bolsonaro e Lula no mesmo nível". "Como é que o PT iria aderir a um movimento liderado pelo MBL e cuja palavra de ordem era 'Nem Lula, Nem Bolsonaro'?", questiona.

Apesar de decisão do MBL, mote "Nem Lula, nem Bolsonaro" apareceu nos atos nas capitais, como em Brasília

A participação de Ciro, diz, faz parte do seu esforço para crescer na corrida ao Planalto, mas ele considera que o pedetista tem pouco espaço à esquerda, devido à presença de Lula na disputa, e terá dificuldade à direita, que nutre "desconfiança" sobre seu projeto.

Ele afirma que os atos esvaziados também revelam a dificuldade que o "centro político" tem hoje para mobilizar uma base relevante para ir às ruas. "O centro não está conseguindo se constituir como força política. Há nomes esparsos, que não conseguem crescer", como Doria e Eduardo Leite, governador tucano do Rio Grande do Sul, ambos com dificuldade para se projetar para fora de seus estados.

Ele avalia que Bolsonaro não sofrerá impeachment se não "avançar decisivamente" contra as instituições, e que a esquerda tende a "caminhar para o centro à medida que o centro não conseguir consolidar um nome". A interrogação que fica, diz, é a capacidade que a esquerda terá para mobilizar pessoas em seus próximos atos de rua.

"Ato mais diverso desde 2013/4"

O cientista político Pablo Ortellado, professor da EACH-USP e coordenador do Monitor do Debate Político Digital, foi à Paulista neste domingo para fazer uma pesquisa de campo sobre o perfil das pessoas que participaram do ato, cujo resultado ainda não foi tabulado. A partir de uma análise visual, ele diz que foi uma manifestação "bem mais jovem" do que a de 7 de Setembro.

Ele também avalia que o ato foi "bem menor" do que os da esquerda em maio e junho e do que o ato pró-governo da terça passada, mas ficou surpreso com a diversidade dos participantes. "Do ponto de vista ideológico, foi a manifestação mais diversa que vi desde 2013/14. Mais diversa que eu esperava. Um fenômeno novo", diz.

Ortellado fazia referência aos atos de junho de 2013, que começaram com grande diversidade ideológica e assim seguiram por mais um período, até se polarizarem com o início dos protestos pelo impeachment de Dilma. Hoje, diz, a direita formada nos atos contra a petista está rachada, e a parte mais mobilizada segue com Bolsonaro, mas a parte que se voltou contra o presidente "não é insignificante".

Contudo, ele vê grandes obstáculos para a formação de uma "frente ampla" pelo impeachment do presidente, tanto à esquerda, manifestada pela recusa do PT e da CUT em participar dos atos deste domingo, como à direita, como mostraram os ataques contra Lula.

Deutsche Welle Brasil, em 13.09.2021

Os bastidores do impacto no Supremo de carta 'apaziguadora' de Bolsonaro

Dois dias depois de fazer ameaças ao Supremo Tribunal Federal e chamar o ministro Alexandre de Moraes de "canalha", Bolsonaro divulgou carta em tom "apaziguador", declarando que nunca "teve a intenção de agredir quaisquer Poderes".

Bolsonaro atacou o STF em atos do 7 de setembro (Reuters)

O recuo do presidente surpreendeu ministros do STF, mas não convenceu, segundo apurou a BBC News Brasil. Para um grupo de integrantes do Supremo, a "pisada no freio" de Bolsonaro é, provavelmente, temporária, para reduzir pressões.

"Acho que o presidente teve medo momentâneo de alguma coisa grave, mas em breve voltará a ser o que era. Ele não existe sem conflito", disse um ministro à BBC News Brasil.

Em 4 pontos, os recuos de Bolsonaro entre os dias 7 e 9 de setembro

A carta foi redigida pelo ex-presidente Michel Temer, que voou de São Paulo a Brasília para mediar o conflito entre o presidente e os demais Poderes, depois das ameaças feitas por Bolsonaro em discursos nas manifestações populares do dia 7 de setembro.

Ele chegou dizer que Moraes não tinha mais condições de permanecer no Supremo, afirmou que não respeitaria decisões do ministro e exigiu que o presidente do STF, Luiz Fux, "enquadrasse" o colega, o que seria inconstitucional.

Diante da repercussão negativa das falas tanto no mundo político, que retomou as discussões sobre o impeachment do presidente, como no mercado, que reagiu com alta do dólar e despencada da bolsa de valores, Bolsonaro deu um passo atrás:

"Quero declarar que minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum", disse, em "carta à nação", divulgada nesta quinta (9/9).

Telefonema a Fux

Fux teria dito que carta é 'bom sinal', mas que é preciso 'esperar para ver' (Reuters)

Responsável pela indicação de Alexandre de Moraes ao Supremo, o ex-presidente Michel Temer viabilizou uma ligação telefônica entre o ministro e Bolsonaro, após redigir a carta para o presidente assinar. A conversa teria sido curta e protocolar.

Logo em seguida, segundo apurou a BBC News Brasil, Temer telefonou ao presidente do STF, Luiz Fux, para contar que haveria a divulgação de uma nota em que Bolsonaro faria um aceno de respeito às instituições democráticas.

Fux teria reagido dizendo que a carta é um "bom sinal" e que apreciava os esforços de Temer, mas destacou que é preciso "esperar para ver" se o presidente está, de fato, comprometido com o seu teor.

Outros ministros do Supremo também reagiram com incredulidade. Dois comentaram que o repertório de Bolsonaro até o momento não deixa margem para confiar em mudanças. Um deles ironizou dizendo que, se os ataques foram fruto do "calor do momento", nada impedia que o presidente voltasse a ameaçar as instituições diante de um "novo calor".

Reação no Congresso

No Congresso Nacional, as reações foram mistas. O presidente da Câmara, Arthur Lira, que é aliado de Bolsonaro, afirmou desejar que "a carta do presidente seja uma oportunidade de recomeço de conversas para estabilização da política na vida do povo brasileiro".

'Game over': a decepção e revolta de bolsonaristas com recuo de Bolsonaro

O presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM), disse que a carta é louvável, se se for "genuína". Ele lançou uma desconfiança de que ela possa ser uma jogada de Bolsonaro, o que, em suas palavras, seria "lastimável".

Bolsonaristas foram às ruas por pautas antidemocráticas (Reuters)

As avaliações mais desconfiadas no STF e no Congresso vão ao encontro do que pensam especialistas que acreditam que o presidente está recuando momentaneamente.

O cientista político Claudio Couto, da Fundação Getúlio Vargas, avalia que a carta de Bolsonaro faz parte de uma tática frequentemente utilizada pelo presidente ao longo da sua trajetória: atacar, recuar para ganhar espaço e reduzir pressões, para depois atacar de novo.

"É um padrão reiterado. Ele sempre agiu assim, desde que era deputado federal. Ele ataca, sofre reação, simula um certo comedimento, até um relativo mea-culpa, e volta ao ataque com mais vantagem ainda. Ele vai ganhando terreno paulatinamente. Sempre dois passos à frente, dois atrás", disse à BBC News Brasil.

Segundo o professor, Bolsonaro está recuando momentaneamente das agressões ao Supremo por causa de três fatores:

Primeiro, para reduzir pressões pela abertura de um processo de impeachment. Segundo, evitar decisões contra os filhos dele em investigações no STF. O tribunal vai avaliar em breve, por exemplo, se o senador Flavio Bolsonaro terá direito a foro privilegiado no caso de suposta apropriação de salários de assessores, conhecido como esquema das rachadinhas - prática que o senador nega.

A terceira razão, segundo Couto, é reduzir o grande impacto negativo do 7 de setembro sobre a economia. O dólar subiu e a bolsa caiu fortemente depois do discurso do presidente. Além disso, a economia sofre com racionamento de energia e inflação alta.

"Quando ele recua, de alguma forma ele passa a impressão para uma série de atores de que houve uma moderação e, portanto, não se justificariam os ataques ele vinha sofrendo. Aí ele ganha espaço e pode, depois, retomar as ações anteriores", disse o professor da FGV.

"Não é verossímil que alguém que tenha tido um discurso tão violento no dia 7 de setembro escreva uma carta sincera com aquele teor", avalia.

Nathalia Passarinho, de Londres para a BBC News Brasil, em 10.09.2021

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

O Monstro do Lago Ness

Por Edson Vidigal

Bolsonaro divulgou carta recuando, o que nem por isso o exime dos crimes comuns, eleitorais e de responsabilidade que já cometeu.

Esse recuo é tática maoísta - se o inimigo avança, você recua; se o inimigo para, você avança. 

Nesse vai e vem, avança e para, recua e avança, ele segue manipulando seus seguidores, amostras vivas do quanto à ignorância e a boçalidade untadas a proposições malucas podem transmudar-se em fanatismo talibã, disseminando-se em megatons de mentiras, instaurando o desassossego, implodindo a racionalidade.

E assim o demônio e seus agentes infiltrados nas instituições republicanas, legitimados pelos cânones da democracia,  aboletados nas cumeadas, realizam o seu mutirão.

Coesão social, paz na família, solidariedade, valores éticos e morais, igualdade de todos perante a lei, direitos de todos às mesmas oportunidades, isso tudo, na lógica deles, os degenerados cívicos, tem que ser destruído para que instituída a desordem absoluta, criado o clima propício, a crueldade injetada no autoritarismo de um capitão tangido da farda possa, enfim, triunfar.

Bolsonaro e sua horda, que não chega a somar um terço da população, mas aguerrida e sem temor de consequências porque irracional, decerto não pensam nos milhões e milhões de vidas sacrificadas nos embates do último século contra os totalitarismos de direita e de esquerda que engolfaram o mundo civilizado em duas grandes guerras mundiais. 

Eles negam o globo terrestre, o holocausto, e até a vacina.  Daqui a pouco negarão também os quase seiscentos mil mortos na atual pandemia que a omissão deliberada do chefe de governo patrocinou. 

Não lhes interessa fazer o trabalho sério e honesto contra a inflação que já ensaia galopes nem contra a fome sentada nas panelas dos mais de quinze milhões de brasileiros desempregados. Nem contra o apagão elétrico já próximo à reta de chegada.

Não lhes interessa trabalhar contra o ensino público sem qualidade, pelos direitos humanos ignorados no cotidiano das penitenciárias e aqui fora também. Muito menos os preocupa o sistema judiciário se inviabilizando a cada dia.

Não lhes interessa corrigir as rotas dos partidos políticos, os quais distanciados de suas funções programáticas,  consumindo cifras milionárias dos pagantes de impostos, ocupam-se montando candidaturas que resultam nessa ilegitimidade de representação, que pelo aboletamento da mediocridade só ampliam o fosso entre a sociedade que produz trabalhando e o Estado no lado contra a cidadania gastando.

Questões climáticas não interessam. Que passem pelas entranhas da Amazônia, em todos os Estados, as bolas de fogo e os pelotões do desmatamento. Que os rios pereçam, os riachos sequem. Sigam as estradas mal acabadas sorvendo perigosamente suas tragadas de vidas.

Empatia? Aquele sentimento definido pelos léxicos como a capacidade de sentir o que a outra pessoa sente, de querer igualmente o que ela quer, de aprender o modo como ela apreende, ah isso nem pensar. Nem de longe pensar. 

Essa carta do Temer que Bolsonaro assinou faz lembrar aquele bilhete que Chamberlain exibiu orgulhosamente ao descer de um avião em Londres apontando a assinatura de Hitler na promessa de que não invadiria a Inglaterra. Até Stálin, que se achava um gênio político, caiu numa esparrela semelhante com aquele pacto de não agressão.

Está na cara que ele não acredita em nada do que assinou. É mero recuo tático a lá Mao Tse Tung.

E assim segue ganhando tempo, entretendo a maioria silenciosa, até a volta mais ruidosa e ameaçadora com novas cenas e mesmos enredos na sua próxima atração – o monstro do lago Ness no lago Paranoá.

Edson Vidigal, Advogado, foi Presidente do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho da Justiça Federal.

10.09.2021

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Esticando a agonia

O País inteiro é refém de forças políticas que só pensam no custo de oportunidade

Jair Bolsonaro conseguiu no 7 de Setembro tirar o último resquício de medo que se pudesse ter dele como personagem político capaz de levar adiante qualquer operação golpista de grande porte. Ele demonstrou não comandar instrumentos de força que, no fim das contas, acabam sendo decisivos em embates nos quais se antecipa possível emprego de violência física.

Chamam a atenção dois aspectos. O primeiro é o fato de que não ocorreu a temida insubordinação das PMs contra os governadores, que Bolsonaro ataca como inimigos. Confirmaram-se as avaliações de serviços de inteligência militares segundo os quais haveria apenas participação pontual de policiais no delírio de rua bolsonarista. Somado à recusa das cadeias de comando das Forças Armadas a embarcar na aventura política, fica evidente que o presidente não manda nas armas.

Talvez o que mais desespere Bolsonaro seja o segundo aspecto associado ao 7 de Setembro: o fato de ele não ter comando também sobre a Polícia Federal. Em qualquer projeto de golpe é essencial algum tipo de ferramenta de intimidação judicial e/ou policial sobre adversários (além da força militar), e o que está acontecendo é exatamente o contrário. A PF, que é uma polícia judicial, obedece meticulosamente ao STF (na cabeça de Bolsonaro leia-se Alexandre de Moraes). E intimidados estão sendo os bolsonaristas.

Vem daí a certa tranquilidade dos ministros do STF em assumir, nas deliberações internas, que a melhor resposta aos desafios de Bolsonaro ainda é “trabalhar dentro do processo”. Preocupado em não criar o fato jurídico contra si mesmo, Bolsonaro está sendo levado a cometer o erro básico de diletantes em golpes, que consiste em proferir ameaças sem a indicação de atos concretos para realizá-las. Sim, o palavrório consegue excitar a imbecilidade dos fanáticos. Mas, ao contrário de muitos juristas, e em parte do próprio STF, no entender da PGR até aqui “ameaça verbal” não é “atentado ao estado de direito” – portanto, denunciar Bolsonaro por crime de responsabilidade cabe à esfera política. Foi o que Aras e Fux fizeram na quarta-feira.

É nesse âmbito que o esbravejador desprovido de qualquer senso de estratégia está criando o “momento” contra si mesmo. Diminuiu o conforto do Centrão em apoiá-lo, embora sejam esses caciques os donos do cofre e da agenda política. Esses agentes políticos não são totalmente imunes à perda de apoio das elites empresariais, que está se alastrando para os segmentos médios da economia. O cálculo político nos setores dirigentes da economia é brutalmente simples: há perspectivas ainda de melhora da situação sob Bolsonaro? O “não” como resposta está crescendo.

Pior ainda para Bolsonaro e para o Centrão: a imprevisibilidade e a turbulência políticas dos últimos meses tiveram impacto na confiança em geral dos agentes econômicos. Desconfiança e incertezas se traduziram em números (como expectativa de inflação, juros e crescimento medíocre do PIB) que, por sua vez, reforçam o desânimo, a apatia e o sentimento generalizado nesses mesmos agentes. Bolsonaro não está atuando para quebrar essa espiral. Ao contrário, o 7 de Setembro acentuou a noção subjetiva de que pela frente só teremos tempos ainda piores do ponto de vista político.

Diante desse cenário, o 7 de Setembro transformou em ator central e decisivo o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. É ele quem pode apressar o fim da agonia da qual Bolsonaro virou sinônimo. Mas, pela sua biografia e posturas políticas, Lira é a personificação do patrimonialismo, do regionalismo da política, do corporativismo e da incapacidade das elites políticas em particular e das elites dirigentes em geral de estabelecer qualquer coisa parecida com um projeto de nação. Seria ilusório esperar dele um gesto de coragem.

Assim, não só Bolsonaro, mas o Brasil inteiro, tornou-se refém do Centrão – entendido como um conjunto de forças políticas amorfas que cuidam apenas de seus interesses políticos imediatos. Para as quais o único custo que importa é o de oportunidade. Bolsonaro, pelo jeito, ainda vale a pena. Agonia alheia não dói.

William Waack, o autor deste artigo, é Jornalista e apresentador do Jornal da CNN. Publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, em 09.09.2021.

O País não vai se intimidar

O palavrório golpista e as ameaças de Jair Bolsonaro não passam de esperneio, diante da constatação de que encontram firme resistência institucional

O objetivo do presidente Jair Bolsonaro ao convocar as manifestações do 7 de Setembro foi tão somente intimidar os outros Poderes constituídos. Embora tenha jurado respeitar a Constituição quando tomou posse, o presidente avisou que não pretende cumprir ordens do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), o que, na prática, significa afrontar o Supremo e a própria Constituição. E ainda desafiou, para delírio de seus adoradores: “Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso”. Ressalte-se que Bolsonaro não disse que sua conduta não é criminosa. Ele apenas se recusa a se submeter a eventuais medidas judiciais restritivas de liberdade porque não reconhece, liminarmente, a legitimidade do juiz que eventualmente vier a condená-lo.

Felizmente, contudo, a julgar pelo que se vê desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, o palavrório golpista e o espetáculo das ameaças aos outros Poderes não passam de esperneio, diante da constatação de que as bravatas bolsonaristas têm encontrado firme resistência institucional.

Em enérgico discurso como resposta ao repto de Bolsonaro, o presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, disse que “o STF não tolerará ameaças à autoridade de suas decisões” e que, havendo desobediência por parte de um chefe de Poder, como é Bolsonaro, “além de representar atentado à democracia, configura crime de responsabilidade, a ser analisado pelo Congresso”. Para completar, dirigiu-se aos golpistas bolsonaristas que, incitados pelo presidente, atacam o Supremo: “Este Supremo jamais aceitará ameaças à sua independência nem intimidações ao exercício regular de suas funções”.

Tal disposição indica que, malgrado a tensão causada pelas inúmeras bravatas de Jair Bolsonaro desde que chegou ao Palácio do Planalto, a marcha golpista do presidente continuará a ser obstada pelas instituições que, exercendo sua independência constitucional, se empenham em preservar a normalidade democrática.

São muitos os casos em que o Legislativo e o Judiciário recordaram ao presidente da República seus limites constitucionais. Por exemplo, o Congresso não apenas rejeitou inúmeras medidas provisórias (MPs) editadas desde 2019, como a presidência do Senado, em junho de 2020, devolveu de pronto a MP 979/2020, sobre a nomeação de reitores, em razão de sua evidente inconstitucionalidade.

Merece menção especial o papel do Senado na contenção dos arroubos presidenciais. No mês passado, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, rejeitou a denúncia de Bolsonaro contra o ministro Alexandre de Moraes, em razão de ausência de justa causa. Ontem, Rodrigo Pacheco mostrou especial prudência com a suspensão das sessões deliberativas desta semana.

No STF, destacam-se três decisões especialmente relevantes para o País. No ano passado, o Supremo rejeitou a tentativa de centralização do Palácio do Planalto e, em uma defesa histórica do princípio federativo, reconheceu a competência de Estados e municípios para editar medidas relativas à saúde pública no enfrentamento da pandemia de covid-19.

Em corajosa defesa do princípio da separação dos Poderes, o STF reconheceu o dever da presidência do Senado de instaurar a CPI da Covid, uma vez que estavam preenchidos os requisitos constitucionais. Os interesses do Palácio do Planalto não poderiam prevalecer sobre a vontade dos parlamentares e, principalmente, sobre a Constituição. Essa decisão do Supremo permitiu que a população conhecesse não apenas a extensão das omissões do Palácio do Planalto, mas também como se deram algumas negociações no Ministério da Saúde.

Destaca-se ainda, no âmbito do Supremo, a manutenção das investigações sobre atos e organizações contrários ao regime democrático. Apesar das várias ameaças bolsonaristas, os trabalhos para apurar eventuais condutas ilícitas estão avançando. Ao investigar, entre outros, o presidente Bolsonaro e seus filhos, o Supremo revela a qualidade, tão valorizada na Operação Lava Jato, de que o sistema de Justiça não deve fazer distinção de pessoas. Bolsonaro pode não gostar, mas todos devem se submeter à mesma lei.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 09.09.2021

As entrelinhas do que disseram Mourão e Lira

Leituras atentas, feitas por quem conhece os bastidores de Brasília, do que disseram Arthur Lira e Hamilton Mourão no day after dos atos: o vice/general deixou claro que está ligado no mapa da guerra do impeachment na Câmara e tem a planilha de votos na ponta da língua.

O presidente da Câmara se esforçou sobremaneira para transmitir a imagem de fiador da estabilidade “socioeconômica”. Sem algum momento decidir se colocar publicamente como alternativa de poder, Mourão quer antes ver transformado em votos na planilha o apoio indicado pelos partidos de centro ao impeachment. Sem cheiro de vitória, queimará a largada e ganhará a pecha de traidor.

Usando um inédito teleprompter, Lira acenou para o mercado financeiro e o setor produtivo como alternativa de estabilidade política e econômica se a chapa Bolsonaro-Mourão for cassada.

Como mostrou a Coluna, Mourão e Lira estão com antenas ligadas. Os dois se encontram diante caminhos inversamente atraentes para cada um deles que podem colocá-los na cadeira de presidente da República. O vice pode chegar ao Planalto pela via do impeachment, que depende de Lira. O presidente da Câmara tem brechas para assumir o País se o TSE impugnar a chapa eleitoral de Bolsonaro-Mourão.

Alberto Bombig - Coluna do Estadão / O que você precisa saber, mas ninguém quer contar sobre os bastidores do Poder. Publicada originalmenre n'O Estado de São Paulo, em 09.09.2021.

Nota do editor do blog - Na hipótese de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão pelo TSE, o que pode, sim, acontecer, o Presidente da Câmara assumirá a Presidência da Republica apenas interinamente. A Constituição Federal determina no 

Art. 81 - "Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.

§ 1º. Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.

§ 2º. Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores.

O imbloglio subsequente será saber que lei complementar será essa para reger o colégio eleitoral dessa eleição indireta.

Pausa para a meditação. 

Dilema que atormenta muitos parlamentares é se vale a pena ajudar Bolsonaro

Quanto maior a dificuldade de aprovar os projetos econômicos de seu interesse, maior será a tentação do governo de adotar medidas fora do Orçamento

É inegável que o agravamento da tensão política após as manifestações antidemocráticas de 7 de Setembro piora o ambiente para a aprovação completa (Câmara e Senado) de projetos econômicos de interesse do governo. Mas essa é uma avaliação de curtíssimo prazo e o pragmatismo político (o do dinheiro) deve falar mais alto.

Não é do interesse de deputados e senadores, que disputarão as eleições em 2022, implodir por completo a pauta econômica a ponto de inviabilizar o Orçamento do governo no ano que vem.

Os parlamentares querem emendas, recursos para obras nos seus redutos e um fundo eleitoral rechonchudo para enfrentar com posição privilegiada a campanha de 2022.

Esse ponto vale para os parlamentares de todos os partidos: governistas e opositores do presidente Bolsonaro. O dilema que atormenta hoje muitos parlamentares é avaliar até que ponto vale a pena ajudar Bolsonaro com uma solução para o pagamento da dívida de precatórios e dar a ele o novo Bolsa Família. Ninguém acredita que haverá corte das emendas parlamentares para reforçar o programa social.

Se morreu a agenda legislativa do ministro da Economia, Paulo Guedes, a pauta do Orçamento será tocada pelo Congresso, com a equipe econômica e o governo num papel secundário.

Quanto maior a dificuldade de aprovar os projetos econômicos de seu interesse no Congresso, maior será a tentação do governo de adotar medidas criativas e fora do orçamento oficial.

Uma dessas tentativas já está quase na rua. Poucos se deram conta do que representa o programa de microcrédito da Caixa que se propõe a conceder empréstimos de R$ 200, R$ 300 à população de baixa renda. 

Como revelou a colunista do Estadão/Broadcast, Irany Tereza, é a tal “revolução do mercado financeiro” prometida pelo presidente do banco, Pedro Guimarães, conhecido em Brasília como PG2 de tão próximo que é do presidente Bolsonaro.

O programa, que visa a atingir 100 milhões de pessoas, na prática, funcionará com uma extensão do auxílio emergencial. Uma forma encontrada para viabilizar recursos fora do orçamento via banco público, dando mais tempo para o governo resolver o problema político para entrar com o seu novo programa social. Sem falar que o público do microcrédito será muito maior do que o do Auxílio Brasil, como foi batizado o substituto do programa Bolsa Família. 

O limite para os financiamentos foi avaliado em R$ 3 mil por CPF, e os recursos para a nova linha, estipulados inicialmente em R$ 10 bilhões, com margem para ir a R$ 20 bilhões, com funding no lucro da própria Caixa.

Em caso de inadimplência, porém, é muito pouco provável que o banco vá conseguir cobrar. Dificilmente valerá a pena ir atrás de devedores de valores tão baixos. Tudo isso pode significar necessidade de provisionamento, prejuízo lá na frente e capitalização da Caixa no futuro com recursos do Orçamento e fora do teto de gastos. É que os aportes do governo a empresas estatais ficam fora do teto constitucional para as despesas do governo. 

A ideia inicial do governo, antecipada pelo Estadão em novembro passado, era mais tímida; atingir em torno de 20 milhões de trabalhadores de baixa renda como alternativa na época para o fim do auxílio emergencial. Os valores dos empréstimos eram outros e não tão baixos. Mas o cenário político eleitoral mudou o curso da história.

O espírito desse novo microcrédito lembra muito o programa Minha Casa Melhor, linha de crédito para a compra de móveis, computadores e eletrodomésticos lançada em 2013, um ano antes das eleições de 2014.

Na época, a Caixa ignorou a análise técnica e jurídica do próprio banco, que mostrava o risco elevado de calote, e bancou o programa, considerado uma vitrine eleitoral da presidente Dilma Rousseff.

Documentos mostravam que o programa já nasceu deficitário e a possibilidade de calote da linha, direcionada para os mutuários do Minha Casa, Minha Vida, chegava a 50,73% na faixa das famílias mais pobres da população. Se não quiser aumentar a desconfiança com as contas do governo, a Caixa terá de provar a viabilidade do seu novo programa. Se for para nascer deficitário, o subsídio do governo terá de estar claro e no Orçamento. A ver.

Adriana Fernandes, a autora deste artigo, é Repórter Especial d'O Estado de São Paulo, em Brasília. Publicado originalmente em 09.09.2021

*É REPÓRTER ESPECIAL DE ECONOMIA EM BRASÍLIA

Com crise política, Congresso deve segurar reformas e priorizar Orçamento

Percepção é a de que atos de teor antidemocrático do 7 de Setembro devem escantear de vez a agenda econômica de Paulo Guedes; proposta orçamentária foi entregue pelo governo com rombo de R$ 70 bilhões

Parlamento deve deixar de lado os debates da pauta econômica: matérias não devem avançar com crise. Foto: Gabriela Biló/Estadão - 20/8/2020

O agravamento da crise política e institucional, após as manifestações de teor antidemocrático no 7 de Setembro, deve escantear de vez a agenda econômica do ministro Paulo Guedes da pauta do Congresso Nacional. Os parlamentares vão centrar esforços na aprovação do Orçamento de 2022, que precisa ser votado para não comprometer a execução de despesas no ano que vem, mas a tarefa não será fácil. Economistas do mercado estimam que a proposta enviada pela equipe econômica tem um “buraco” de cerca de R$ 70 bilhões.

O valor descoberto inclui a ampliação do Bolsa Família, ainda sem espaço certo no Orçamento, a fatura adicional provocada pela repercussão da inflação maior sobre benefícios pagos pelo governo e negociações políticas, como a renovação da política de desoneração da folha para empresas e maior volume de emendas parlamentares. A dúvida agora é quanto o Congresso vai abrir de espaço para novos gastos em ano eleitoral, o que provoca volatilidade adicional no mercado financeiro.

Segundo parlamentares, o governo dificilmente terá condições de conseguir aprovar na Câmara e no Senado propostas antes consideradas prioritárias pela equipe econômica, como o projeto que muda o Imposto de Renda e as reformas administrativa e tributária.

Os ataques disparados pelo presidente Jair Bolsonaro, que defendeu inclusive o descumprimento de decisões do STF, empurraram partidos como MDB, Solidariedade, Cidadania, PSDB e PSD para uma postura mais refratária aos projetos do governo. Várias dessas legendas passaram a discutir o impeachment de Bolsonaro, e o PSDB anunciou que a partir de agora será oposição ao governo.

Sem essas siglas, será bem mais difícil o governo formar maioria para aprovar os projetos, e mais ainda para passar as Propostas de Emenda à Constituição, que precisam de quórum de 3/5 para aprovação em dois turnos de votação. São PECs a reforma administrativa e a proposta para mudar o pagamento de precatórios. Mesmo sem parcelamento, uma PEC para resolver o "meteoro" de R$ 89,1 bilhões em dívidas judiciais voltou como alternativa depois de Bolsonaro queimar a “ponte” para uma solução via Judiciário.

O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), afirma que o presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL), “perde cartuchos” para aprovar as pautas de interesse do governo. “Diante de tantas trapalhadas e tanto descumprimento de compromissos por parte do governo, o presidente Lira, que até aqui tem usado todo o seu prestígio, vai perdendo os seus cartuchos para garantir sozinho as votações, que até hoje são total e exclusivamente fruto da liderança dele”, diz. Para ele, o ano legislativo morreu para o governo após os atos do último feriado.

Com o novo cenário depois das manifestações, o vice-presidente da Câmara avalia se apresenta ou não uma PEC para retirar as despesas com precatórios do teto de gastos, a regra que limita o crescimento das despesas à inflação. O texto da proposta está praticamente pronto e daria uma folga de R$ 20 bilhões ao governo, o que viabilizaria a implementação do Auxílio Brasil com um benefício médio de R$ 300, como quer Bolsonaro. A animosidade das manifestações do presidente da República, porém, tem deixado lideranças do Congresso reticentes em adotar uma medida para ajudá-lo, embora a revisão da política social seja considerada meritória.

O tamanho do Bolsa Família é hoje o fator de maior incerteza para os agentes do mercado, que nesta quarta-feira, 8, reagiu negativamente à escalada da crise com o STF. A Bolsa brasileira (B3) fechou em forte queda de 3,78%, aos 113.412,84 pontos, no menor nível desde março. Já o dólar registrou ganho de 2,89%, encerrando na máxima do dia, a R$ 5,3261 - maior valor desde 23 de agosto.

Agenda econômica

O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR), minimiza o impacto do acirramento de tensões sobre a agenda econômica. Segundo ele, as pautas devem continuar sendo votadas normalmente. Mas Barros reconhece que o clima pode continuar ruim. Crítico do STF, ele diz ao Estadão/Broadcast que, com as manifestações, o “recado está dado” ao Supremo e, sem mudanças na postura da Corte, “vamos continuar com a corda esticando”. “Acho que vai continuar como está. O ambiente não é bom”, afirma.

Um termômetro do apoio ao governo poderá ser observado durante audiência na Câmara para debater a PEC dos precatórios, marcada para esta quinta-feira, 9, e que terá a presença de integrantes do Ministério da Economia.

No Senado, onde o governo já vem acumulando derrotas expressivas, lideranças aliadas do Palácio do Planalto fizeram um apelo ao presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), para que projetos da agenda econômica sejam pautados, como a reforma do Imposto de Renda e a privatização dos Correios. Não houve, porém, compromisso definitivo com avanços.

O presidente do MDB, deputado Baleia Rossi (SP), diz que “não há uma agenda certa” para o pós-manifestações. “Acho que há clima para aprovar o Refis (parcelamento de débitos tributários), e dificilmente passa o projeto do Imposto de Renda no Senado, pois o projeto é muito ruim”, diz. Segundo ele, uma solução para os precatórios que implique num calote é improvável.  “Já o Orçamento acho que o próprio Congresso tem interesse, senão não executa no início de 2022”, avalia.

Mercado

Há uma percepção no próprio mercado que é melhor focar no Orçamento do que seguir aprovando projetos considerados ruins, como a reforma do Imposto de Renda. Ainda assim, segundo apurou o Estadão, o nervosismo do mercado é maior porque, mesmo com uma solução para os precatórios, o Orçamento continuará muito apertado para tantas demandas eleitorais. Só a alta recente da inflação deve elevar o custo com benefícios sociais em R$ 17 bilhões, devido ao maior reajuste que terá de ser dado. Além disso, não foram previstos recursos para as chamadas emendas de relator, pelas quais os parlamentares enviam recursos adicionais às suas bases eleitorais e que têm crescido nos últimos anos. O mercado teme a repetição do filme de 2021, em que houve maquiagem de despesas obrigatórias para acomodar interesses políticos.

Depois do duro pronunciamento do presidente do STF, Luiz Fux, em resposta a Bolsonaro, o mercado também passou a ver risco de a Corte prejudicar o processo de privatização da Eletrobras. Partidos de oposição ao governo ingressaram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) para tentar derrubar a lei que autoriza a operação.

A economista e colunista do Estadão, Ana Carla Abrão, alerta para o risco de o Congresso aprovar reformas com mais retrocessos e esvaziamento, como a administrativa, cujo parecer foi apresentado na semana passada. “Essa boiada está passando”, diz ela, que considera que o relator, deputado Arthur Maia (DEM-BA), cedeu às pressões das corporações de servidores e esvaziou o texto.


Conheça a agenda econômica do governo no Legislativo:

PEC dos precatórios:

O governo precisa de solução para "meteoro" de R$ 89,1 bilhões em dívidas judiciais previstas para serem quitadas em 2022, sob pena de não ter espaço para outras políticas em ano eleitoral. Solução via Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ficou mais difícil diante de embates entre o presidente Jair Bolsonaro e o STF.

Auxílio Brasil: 

Versão turbinada do Bolsa Família, precisa sair do papel ainda neste ano para não esbarrar nas limitações da lei eleitoral. No entanto, reajustes previstos nos benefícios dependem da solução dos precatórios.

Orçamento de 2022: 

Única medida com maior chance de avançar, carrega, porém, dificuldades, como a própria fatura dos precatórios e a falta de espaço para o Auxílio Brasil. 

Reforma do IR: 

Aprovada na Câmara dos Deputados, deve enfrentar resistência no Senado e acumula críticas de especialistas por distorcer ainda mais a tributação sobre a renda no País.

Reforma tributária: 

Reúne mudanças para além do IR, também depende de maior consenso entre parlamentares, o que pode ser difícil em meio a ambiente político conturbado.

Reforma administrativa:

Muda as regras no serviço público, mas não foi aprovada nem na Câmara nem no Senado. Pode acabar perdendo força

Adriana Fernandes e Idiana Tomazelli, O Estado de S.Paulo, em 09.09.2021.

Entre o golpe e o fiasco, o processo contínuo de governar pelo medo e a ameaça

Eventos como o desta terça são parte de um ‘continuum’ de mobilização e devem ser encarados como um processo. Isso não significa dar mais importância aos atos do que eles têm: eles são um fator de mobilização e corrosão democrática. Têm poder capital para desembocar em 2022

Jair Bolsonaro durante ato em São Paulo.DPA VÍA EUROPA PRESS / EUROPA PRESS

O método Bolsonaro: um assalto à democracia em câmera lenta

Na oposição, as reações às manifestações bolsonaristas do 7 de Setembro foram divididas entre aqueles que temiam que o evento poderia marcar o início de (mais) um golpe de Estado e os que apostavam que o evento “flopou” — para usar a expressão das redes sociais. Ambas as teses antagônicas deixam de lado tudo que estava no meio do caminho entre o golpe e o fiasco. As manifestações tiveram um papel fundamental na continuidade de um processo que é marcado pela produção permanente do medo, da ameaça e na corrosão democrática que se intensifica desde o dia em que Bolsonaro assumiu a presidência.

Aqui o importante não é analisar um possível golpe ou um único evento de uma data específica, mas a capacidade de Bolsonaro de continuar zombando das instituições democráticas deste país. Ele age na produção permanente do terror autoritário. Ele não tem medo de punição ou investigação. Desde as manifestações do início da pandemia, ele desafia as instituições e pouco teme que algo vá lhe barrar. Os efeitos disso no processo de redemocratização do país é um enorme passo atrás na confiança democrática.

Mais uma vez, em plena crise econômica e sanitária, Bolsonaro conseguiu mobilizar toda a imprensa e a oposição por dias antes ― e seguirá pautando por muitos dias ainda, mantendo-se em estado permanente de campanha presidencial ― e espalhando o terror do golpe. Sádico como é, o bravateiro deve se divertir fazendo isso.

Um outro ponto importante a se notar é o próprio discurso conferido em Brasília em que Bolsonaro afirma que, dentro dos princípios da Constituição, enquadrará o Supremo. Isso nos leva a dois pontos importantes.O primeiro é a capacidade que a extrema-direita global tem de se apropriar de certos conceitos e pautas e esvaziá-los, deixando apenas a carcaça, desviando seus significados e, assim, despolitizando-os. É assim quando a ministra Damares diz que defende os direitos humanos. É assim quando o ex ministro Ernesto Araújo fala em soberania. É assim quando Ricardo Salles falava de sustentabilidade ou bioeconomia. E é também assim quando Bolsonaro fala em Constituição em um discurso golpista baixo e cheio de ambiguidade. Mais grave do que isso, é quando ele se apropria da expressão “presos políticos” para questionar as recentes prisões de pessoas como Roberto Jefferson, que é acusado de cometer crimes digitais e atos antidemocráticos.

A médio prazo, o poder desse tipo de contra narrativa é devastador, pois esvazia e distorce pautas e valores consolidados pela luta da ação coletiva ao longo de décadas. Isso também gera uma legião de seguidores que, mesmo que carregue faixas golpistas, procura se apagar em algum verniz humanista para justificar sua violência e autoritarismo.

O segundo ponto é que, também a médio prazo, estamos diante de algo inédito, que é a popularização da desconfiança e o ódio ao Supremo Tribunal Federal ― ao menos na sua extensão. E como brincou recentemente o professor de Relações Internacionais da UFMG, Dawison Belem Lopes ― em um live comigo―, hoje todo mundo sabe o nome de muitos ministros do Supremo e podem até fazer apostas com as decisões de cada um. Isso era impensável há poucos anos. Assim como se aumenta a consciência sobre o trabalho do STF, cresce a hostilidade contra ele, transformando o Supremo no novo inimigo comum da nação: o espantalho contra o qual se jogam todas as frustrações e culpas de um governo fracassado.

Cabe a Bolsonaro, em sua infindável incompetência, continuar jogando a culpa no STF e seguir na bravata ameaçadora para não se passar por um fracote fracassado que se curvaria a uma suposta tirania do Supremo. Se os tolos soldados invadirem algum Poder numa possível derrota eleitoral, ele já tem o seu casulo (i)moral pronto para se refugiar.

No curto prazo, a organização desses eventos é também uma forma de produção incessante de política em movimento. Os comboios e organização de categorias profissionais em torno do bolsonarismo forma redes e conecta pessoas ao longo do processo. E não é pouca coisa. Formam novos líderes, sindicalistas e vereadores justamente na escala em que o bolsonarismo atua melhor: na capilaridade de sua ação pequena e municipal. Sabemos que, ainda que Bolsonaro se desidrate nas pesquisas eleitorais, é o policial militar, é o sindicalista rural, é o grileiro, é o dono da pequena propriedade e é o pastor que pode jogar o terror ― de forma silenciosa e longe dos holofotes ― nas comunidades em que atuam na hora da eleição.

Eventos como o desta terça são parte de um continuum de mobilização e devem ser encarados como um processo ― e não um ato isolado. Isso não significa dar mais importância aos atos do que eles têm: eles são um fator de mobilização e corrosão democrática. Por mais autoritárias ou ridículas que sejam algumas imagens, talvez o ponto não seja ir do golpe ao fisco, mas se manter atento ao poder capital que a sua base pode desempenhar em 2022. Isso se torna fundamental para que não tenhamos surpresas no ano que vem e que este 7 de Setembro seja página virada de nossa história o mais rápido possível.

Rosana Pinheiro-Machado, a autora deste artigo, é antropóloga e professora de desenvolvimento internacional da Universidade de Bath, no Reino Unido. É autora de ‘Amanhã vai ser maior’ (Planeta). Publicado originalmente n'o EL PAÍS, em 08.09.21

O misterioso pênis gigante verde e amarelo na manifestação golpista da avenida Paulista

Mais do que o pênis gigante, símbolo de uma masculinidade violenta e vulgar, me fez pensar o fato de estar apoiado sobre um carrinho vazio de supermercado. Comentário de Juan Arias n'o EL PAÍS.

O objeto inflado durante as manifestações do 7 de Setembro.REPRODUÇÃO DE VÍDEO/TWITTER

Na manifestação golpista da emblemática avenida Paulista, onde se concentra boa parte do PIB do Brasil, havia muito mais homens do que mulheres. Homens brancos e mais velhos, cheios de raiva. Poucos jovens. É que, segundo uma sondagem do Atlas Político, 73% dos jovens entre 16 e 24 anos desaprovam Bolsonaro, o que constitui uma esperança nestas horas sombrias que o Brasil vive vendo sua democracia ser bombardeada a cada hora por quem deveria defendê-la.

Ontem, na avenida Paulista, um dos muitos detalhes simbólicos foi o surgimento na cena de um pênis gigante com as cores verde e amarelo da bandeira do Brasil, que foi apropriada pelas forças mais golpistas do país. O pênis inflado estava colocado sobre um carrinho vazio de supermercado. Estava rodeado por homens de idade. Quem deu destaque nas redes àquele curioso objeto no lugar em que se perpetrava a liturgia de um golpe de Estado por parte de um presidente que gritava como se estivesse possuído pelos demônios do ódio, do rancor e da violência, foi a ex-deputada federal Manuela d’Ávila, que compartilhou o vídeo e indagou sobre o estranho objeto. “Gostaria, escreveu ela na rede, que me ajudassem a traduzir o simbolismo de um objeto fálico gigante inflado na Paulista”.

O vídeo do pênis gigante acabou viralizando com respostas criativas à pergunta da ex-deputada, algumas bem humoradas e outras ferozes e até não reproduzíveis. A verdade é que todas as manifestações convocadas pelo genocida tiveram um aspecto masculino, com poucas mulheres, muita raiva e nenhuma alegria. Sem crianças. O clima estava mais para guerra e ameaças. E isso no aniversário de uma data que deveria ser uma festa para todos em comemoração aos 199 anos da Independência do Brasil. Era o aniversário da maior idade da nação já livre de sua colonização. Uma festa que acabou prostituída pelo presidente, não apenas incapaz de governar e de enfrentar os graves problemas que abalam o país em um dos momentos mais dramáticos de sua história, mas que insiste em arrastar o país não só a uma ditadura como também a uma guerra civil, com sua obsessão pela violência e pelas armas.

Não saberia responder àqueles que ontem se perguntavam na avenida Paulista sobre o simbolismo daquele pênis gigante verde e amarelo, mas o que me impressionou foi o fato de que estava apoiado em um carrinho vazio de supermercado. Isso me fez lembrar a fotografia, semanas atrás, de uma senhora idosa que, em um supermercado, enquanto esperava na fila para pagar suas compras, começou a chorar. Ao jornalista que a surpreendeu, ela explicou o motivo de suas lágrimas: “É que está tudo muito caro”. Seu carrinho estava meio vazio.

Mais do que o pênis gigante, símbolo de uma masculinidade violenta e vulgar, me fez pensar o fato de estar apoiado sobre um carrinho vazio de supermercado, pois hoje o drama de milhões de brasileiros, dos mais pobres, dos desempregados, é não conseguir encher esse carrinho com comida suficiente para alimentar a família.

E esse foi o maior drama das manifestações golpistas da extrema direita machista e bolsonarista: o presidente da nação, em seus discursos inflamados, não soube ter nem uma palavra de esperança e consolo sobre o verdadeiro drama que aflige o país não apenas por sua incapacidade de governar, mas também pela ausência em sua alma de um único sentimento de empatia pela dor alheia.

Foi certamente essa falta de compaixão pelos que sofrem seus abusos o que fez com que nas manifestações não abordasse nem uma vez os graves problemas que afligem o país, como a fome que voltou a açoitar milhões de famílias, a inflação galopante, as ameaças de falta de energia elétrica, a crise hídrica, a desvalorização da moeda, a total ausência de sinais de esperança e o perigo de que os investidores acabem buscando países mais seguros para investir, sem ameaças de golpes de Estado.

Dizem que o presidente não sabe chorar, e muito menos pela dor alheia. Sua melhor identidade é a raiva; seu lema, a destruição; sua vocação, a terrorista; sua sexualidade, misteriosa; seu sonho de poder absoluto depois de ter ameaçado todas as instituições, com o agravante de que essas instituições parecem amedrontadas e acovardadas pelas ameaças fanfarronas do aprendiz de ditador e terrorista.

Melhor, mais simbólico e mais real do que o pênis gigante e grotesco verde e amarelo da avenida Paulista teria sido uma fila de carrinhos vazios de supermercado para simbolizar o drama que aflige e faz chorar em silêncio tantas famílias vítimas da incapacidade de governar de quem há muito deveria estar fora do poder para permitir que o país recupere a esperança que lhe foi tragicamente roubada. E como ensina a psicologia, nada é mais difícil para uma pessoa e para uma nação do que a desesperança que seca a alma e arrasta para a depressão.

Juan Arias, o autor deste artigo, é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente. Publicado em 08.09.21

"Judiciário busca o contragolpe para conter Bolsonaro"

Para professor de Direito, sistema de contrapesos entre os Poderes deixou de funcionar e, se Legislativo não reagir, caminho inevitável será a ruptura: "Judiciário determinará a saída do presidente, e ele não aceitará".    

O presidente Jair Bolsonaro

As instituições brasileiras se jogaram num labirinto cuja saída inevitável poderá ser, de fato, uma ruptura, analisa, em entrevista à DW Brasil, Diogo Rais, professor de Direito Eleitoral e Direito Digital na Universidade Presbiteriana Mackenzie e cofundador do Instituto Liberdade Digital.

Segundo ele, o sistema de freios e contrapesos idealizado na Constituição de 1988 para os Três Poderes da República não funciona mais no Brasil: nem o presidente da República, nem os presidentes da Câmara e do Senado, e tampouco o procurador-geral da República exercem seus devidos papéis.

"O sistema de contrapesos está totalmente desbalanceado. E isso exige freios. O Judiciário, ao promover esse freio, está num papel ingrato, ocupa o papel de julgador e vítima. O Judiciário vem abrindo mão da sua própria autocontenção e esse processo desequilibra todas as instituições; cada vez mais tem dado um passo além da própria norma quando ele é a própria vítima."

E que cenário nos espera? Se o Legislativo não reagir à altura, afirma Rais, "o caminho inevitável será uma ruptura, em que o Judiciário determinará a saída do presidente da República, e ele não aceitará".

"O Judiciário tem buscado uma espécie de contragolpe. Tem preparado uma atuação mesmo fora de sua própria força para evitar o que tem entendido como um golpe", diz o professor, que vê indícios de crime de responsabilidade nos discursos de Jair Bolsonaro nos atos de 7 de Setembro.

DW Brasil: Considerando o conteúdo dos discursos de Jair Bolsonaro no 7 de Setembro, com novos ataques ao STF em que assume que descumprirá decisões judiciais, a contenção a ele é possível só no campo jurídico ou precisa ser também política?

Diogo Rais: Acredito que, pelo teor dos discursos, é possível sim enquadrar crime de responsabilidade do presidente da República. Em especial pelo embaraçamento do livre exercício dos Três Poderes, no caso o Judiciário, e também pelo constrangimento de um juiz, um ministro do Supremo, o ministro Alexandre de Moraes. Se uma decisão judicial for descumprida, e usada a Presidência da República para seu descumprimento, também se caracteriza aí um crime de responsabilidade. Crime de responsabilidade tem processamento jurídico e político. Depende do presidente da Câmara para ser processado. Porém, não se anula a possibilidade de apuração de crime na justiça comum após o mandato. O campo jurídico se alia ao político para a contenção dessa espécie de ação, contra o exercício de um dos Poderes.

Porém, no Brasil hoje, temos portas de entrada comprometidas, como a Procuradoria-Geral da República, no caso de crimes comuns do presidente, e a Câmara dos Deputados, no caso de impeachment. As portas políticas, ao que parece, podem não funcionar. Daí, excepcionalidades podem surgir como, por exemplo, o Judiciário substituir a inação dessas portas políticas. Não é comum, não está previsto na lei, mas já tivemos exemplos, como agora no inquérito [das fake news] quando o Supremo decide prosseguir mesmo sem a PGR fazer esse papel. É possível que haja uma construção jurídica de defesa da Constituição e que haja alguma ponte para esses entraves políticos. Pelo perfil [do presidente] e pelos precedentes que temos, é possível que o Supremo passe por cima dos entraves políticos e crie uma contenção jurídica para dar efetividade ao crime de responsabilidade.

Grupos bolsonaristas que protestaram no 7 de Setembro dizem ser vítimas de censura e alegam que a liberdade de expressão está sendo desrespeitada. Esse tipo de manifestação pode ser encoberta por essa narrativa?

Temos algumas dificuldades no sistema brasileiro de delimitar exatamente o que é liberdade de expressão. Alguns países têm isso muito claro. Os EUA, por exemplo. A maioria dos países não tem essa clareza. O Brasil, no momento em que está, tem menos clareza ainda. A ideia de liberdade de expressão é mais do que um direito: é o direito ao direito de se manifestar. É uma garantia, uma proteção. Manifestação política é permitida, opiniões e ideias devem ser protegidas e garantidas. O discurso em si é legítimo até o momento em que se transforma em potencial de violência, seja física, moral ou discriminatória. Quando alguém faz discurso enérgico contra uma pessoa, uma ideologia, perde a sua proteção quando ameaça, ou convoca grupos a provocarem determinada violência. Esse é o desenho do limite. Perde a proteção da liberdade de expressão aquele que resolve dar um passo a mais, incentivando qualquer tipo de violência.

Há uma linha tênue entre opinião, discurso, e incitação ao golpe, à violência, ao ódio? Como diferenciar isso no campo jurídico?

Por que não se tem uma lei dizendo exatamente o que vai para violência e o que não vai? Porque não é possível definir, em abstrato, um parâmetro. O contexto é um dos fatores mais importantes do que o próprio discurso. Exemplo: um sujeito diz: "Eu quero comprar uma bazuca e explodir a cabeça de outra pessoa". Qual é a chance real de isso acontecer? Dependendo do contexto, seria pior se ele dissesse que vai dar um soco na boca da pessoa. É menos lesivo, mas muito mais provável. Então o contexto é determinante. Quem decide isso? O Judiciário, ciente de um caso concreto.

No momento em que vivemos, a única instituição capaz de decidir isso é justamente a mesma instituição que tem sido vítima desse processo. Temos aí uma mistura de papéis que talvez tenha nos levado a esse momento sem freios das instituições. Talvez isso seja mais sintoma do que a causa. Talvez tenhamos perdido a autocontenção justamente por essa confusão de papéis entre vítima e agente disciplinador, julgador. 

A liberdade de expressão está prevista na Constituição. As punições para tentativas de golpe ou incitação à violência também?

A liberdade de expressão está expressa na Constituição, mas também espalhada em diversas legislações infraconstitucionais. Na Constituição temos a proteção à democracia, as cláusulas pétreas, que são conteúdos imutáveis. O que acontece é que o que tem sido utilizado nesses procedimentos é a Lei de Segurança Nacional, que agora foi revogada, mas prevê o ataque contra as instituições. Curiosamente, a LSN foi utilizada de forma bilateral. O Executivo a utiliza para buscar o processamento e punição de pessoas que tenham chamado o presidente de genocida, como no caso do [youtuber] Felipe Neto, e o STF usa a mesma norma para buscar pessoas que falam contra o próprio Supremo ou as urnas eletrônicas, como fez com o [deputado] Daniel Silveira e outros.

Com a atualização da LSN, podemos ter vários questionamentos, inclusive sobre o próprio inquérito vigente [das fake news, no STF]. Quando não há amparo legal preciso, como aquela decisão sobre a desmonetização de canais bolsonaristas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que segundo a PF disseminavam fake news – o Judiciário constrói isso com base em normas abstratas, como a proteção ao Estado democrático. Isso mostra que, neste processo, a falta de autocontenção dos Poderes tem feito as instituições alargarem seus próprios poderes.

Qual sua opinião sobre o novo texto da LSN aprovado? Há críticas de que alguns artigos são muito amplos e vagos.

Imagina a gente ter que medir se determinado conteúdo pretende abolir o Estado de direito, enfraquecê-lo ou colocá-lo em dúvida? A estratégia foi deixar a norma elástica, e isso pode trazer problemas. Considero perigoso para Estados democráticos porque amplia demais a possibilidade de enquadramento. A lei atual acaba dependendo muito do Judiciário para a sua construção. Quando as instituições estão sadias e funcionam bem, provavelmente esta seria a lei ideal. Agora, com as instituições sob ameaça, ou se contendo demais, ou abrindo mão da sua autocontenção, podemos ter desvios ao ponto desse conteúdo se transformar em perseguição de opinião de fato. É como se a lei fosse incompleta e dependesse do Judiciário, ao analisar casos concretos, a sua completude. Isso é bom ou ruim? Depende. Cria incerteza e insegurança diante de um ponto tão sensível. Concordo com a nova LSN, o novo texto é melhor do que o que tínhamos, mas há pontos vagos.

Quando um presidente ou um parlamentar adota discurso de ódio contra uma instituição ou membros dela, ou quando um militar, que detém o uso da força letal, vai para as ruas armado, é algo distinto da "tia do WhatsApp" que só repassa mensagens. Como o Judiciário interpreta a questão do emissor?

A característica do emissor normalmente é resolvida por normas interna corporis de determinada categoria. No Legislativo, temos o Código de Ética. Algumas infrações podem não ser ilegais, mas ferem o decoro, embora os parlamentares tenham a imunidade parlamentar, ou seja, a possibilidade de não serem perseguidos por sua opinião, desde que no exercício da função. No caso dos militares, o Código Penal Militar prevê a impossibilidade de eles participarem de manifestações políticas. É condição, para ser militar no Brasil, ter a diminuição de direitos políticos. Isso se justifica pelo uso da arma, pela letalidade, e também pelo poder investigativo que os militares têm. O Judiciário tende a olhar isso com muito rigor. Não se pode abrir mão disso. O caso do Pazuello [general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde e da ativa] feriu a regra militar. Contrariou todas as leis.

Pegando esse exemplo do Pazuello: a corporação militar não o puniu por uma atuação política. No Congresso, parlamentares, incluindo os filhos do presidente, ultrapassam limites e não são alvos do Conselho de Ética. Falta a contenção das instituições?

Essa falta de autocontenção das instituições tem relativizado a sua forma de atuação. Cada vez mais, isso tem colaborado até para uma ruptura institucional. A instituição é sempre a responsável por sua própria ruptura quando ela não se autocontém, é sempre uma implosão, e não explosão. O procurador-geral da República não parece fazer seu papel. O presidente da Câmara também não faz o seu papel de modo pleno. O Judiciário não faz seu papel de modo pleno ou contido, me parece exagerado. E o presidente da República também. Temos um abalo das estruturas por dentro das próprias instituições. Por mais curioso que seja, os ataques internos é que são os verdadeiros problemas.

Considerando o contexto atual, com instituições no vácuo e o Judiciário tentando responder a Bolsonaro com freios que caberiam a outros Poderes, para que cenário caminhamos? O Judiciário mexeu num vespeiro?

Sinceramente, acho que o Judiciário já entrou nesse vespeiro. Nosso desenho constitucional, quando pensou os Três Poderes, distribuiu freios e contrapesos a todos eles. O Executivo tem um freio do Legislativo, com o poder de impeachment e de agente fiscalizador. O Executivo está sujeito à contenção do Judiciário, que o limita e pode anular seus atos. Ao Legislativo, embora seja um colegiado, cabe a autocontenção, além de também haver o Judiciário para contê-lo. Já o Judiciário tem a autocontenção como seu maior valor, o maior freio e contrapeso. Cabe a ele a última palavra, a "coisa julgada", a possibilidade de encerrar um assunto. O Legislativo tem o poder de conter o Judiciário, com o impeachment de ministros, mas é um poder limitado. Basicamente, o que faz segurar o Executivo? O Judiciário mais o Legislativo. O que faz segurar o Legislativo? Ele próprio e o Judiciário. E o que faz segurar o Judiciário? O próprio Judiciário e o Legislativo. E temos a Procuradoria-Geral da República, que faz esse controle do Judiciário à Presidência da República.

O que acontece hoje? A presidência da Câmara é ocupada por Arthur Lira (PP-AL), que demonstra sintonia forte com Bolsonaro. O presidente da República não é uma pessoa autocontida. A PGR tem se demonstrado favorável ao presidente da República e adversa a seus compromissos constitucionais. O sistema de contrapesos está totalmente desbalanceado. E isso exige freios. O Judiciário, ao promover esse freio, está num papel ingrato, ocupa o papel de julgador e vítima. E é muito difícil você não decidir as coisas com o fígado quando você é a própria vítima. O Judiciário vem abrindo mão da sua própria autocontenção e esse processo desequilibra todas as instituições. Na hora de acionar os freios, é necessário ter legitimidade. O Judiciário cada vez mais tem dado um passo além da própria norma quando ele é a própria vítima. Por outro lado, o presidente da República faz campanha eleitoral antecipada com recursos públicos. Isso dá ao Judiciário uma carta na manga que poderá declará-lo inelegível, por abuso do poder econômico. Bolsonaro, a cada dia, cria mais provas contra si mesmo. E o Judiciário, a cada dia, dá um passo a mais para enfrentar esse jogo perigoso do presidente. Daí a preocupação com a ruptura institucional cresce, porque não temos mais nenhum tipo de equilíbrio. Só o Legislativo teria condições de fazer essa ponte. Senão, o caminho inevitável será uma ruptura, em que o Judiciário determinará a saída do presidente da República, e ele não aceitará.

Mas não temos um Ulysses Guimarães no Congresso hoje...

Não temos lideranças no Congresso, nem nos postos-chave, na PGR, nas presidências da Câmara e do Senado. Enquanto não tiver um movimento que busque a estabilização política, caminhamos, sim, para uma ruptura. Talvez o maior perigo em matéria de militarização esteja nos estados, com polícias militares, e não no âmbito federal, com as Forças Armadas.

Nesse contexto, a atuação do Judiciário é compreensível?

Claro. Às vezes parece que estou contra o Judiciário, mas acredito que ele tem buscado uma espécie de contragolpe. Sabe aquela frase: se for jogar, jogue limpo; mas se for jogar contra alguém que joga sujo, também jogue sujo. Estou achando que as instituições no Brasil entraram nessa. O Judiciário tem preparado uma atuação mesmo fora de sua própria força para evitar o que tem entendido como um golpe. Não é talvez um espaço de culpados. Ninguém foi enganado. Sinceramente, Bolsonaro talvez seja o presidente que menos mudou depois de eleito. O problema é que ele continua em campanha, e tinha que ter se transformado num governante.

Deutsche Welle Brasil, em 09.09.2021

Se Bolsonaro descumprir decisão do STF, pode ser afastado da Presidência

Em sua extensa lista de ataques e ameaças ao sistema democrático brasileiro, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou a apoiadores durante os atos de 7 de setembro que não iria cumprir eventuais decisões judiciais do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Alexandre de Moraes, ministro do STF, é responsável por apurar suspeitas contra o presidente Bolsonaro (Adriano Machado / Reuters)

"Dizer a vocês, que qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou. Ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais."

Moraes é responsável por inquéritos na Corte que investigam apoiadores, familiares e o próprio presidente por suspeitas como a participação em atos antidemocráticos, a disseminação de informações falsas e o vazamento de informações sigilosas.

Bolsonaro poderia acabar alvo, por exemplo, de buscas e apreensões. Além disso, pessoas próximas ao presidente afirmam, segundo diversas reportagens da imprensa brasileira, que ele teme que seu filho Carlos, vereador no Rio de Janeiro, acabe sendo preso.

Em agosto, Bolsonaro ironizou os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso sobre investigações abertas contra ele no STF e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), neste por ataque infundados contra a urna eletrônica.

"Olha o que é a ditadura da toga. O que dois ministros estão fazendo no Supremo, Barroso e Alexandre de Moraes. Vão me investigar. Será que vão dar uma sentença? Fazer uma busca e apreensão no Alvorada como fazem com o povo comum aí? Será que vão fazer isso? Vão mandar quem: a PF ou as Forças Armadas?"

O que pode acontecer afinal a um presidente da República que decide descumprir uma decisão judicial no Brasil?

Segundo três especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, ele poderia ser acusado de dois crimes: um comum e outro de responsabilidade. Em tese, ambos poderiam levar ao afastamento de Bolsonaro da Presidência da República.

Há, por fim, uma terceira consequência indireta a um eventual descumprimento de ordem judicial: a aceleração conveniente do julgamento que poderia levar à cassação da chapa Jair Bolsonaro-Hamilton Mourão pelo TSE por abuso econômico na eleição de 2018.

"O descumprimento de uma decisão judicial pode ser a peça que falta para desmoronar o castelo de cartas que sustenta o presidente no cargo", afirma o advogado criminalista Davi Tangerino, professor de direito da FGV-SP e da Uerj.

1. Desobediência: crime comum

A Constituição Federal traz as bases que poderiam orientar ações contra Bolsonaro caso ele se recuse a cumprir uma decisão judicial.

Bolsonaro fez desfile em carro aberto em Brasília, pouco antes de discursar com ameaças ao Supremo Tribunal Federal e à realização de eleições. (Reuters)

O artigo 86 explica que um presidente da República pode ser acusado tanto de crime comum quanto de crime de responsabilidade, mas ambos, se ocorrerem, tramitariam de formas distintas num regime de responsabilização especial do chefe do Poder Executivo.

"Um presidente da República não tem imunidade total, mas para quem uma responsabilização aconteça é preciso a atuação da Câmara dos Deputados em ambos os casos", explica a constitucionalista Eloísa Machado, professora e pesquisadora da FGV-SP.

No caso de um crime comum, Bolsonaro poderia acabar acusado de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal. Segundo o texto, trata-se de "desobedecer a ordem legal de um funcionário público". A pena prevista é de 15 dias a seis meses de prisão, e multa.

Mas como transcorreria esse processo? Primeiro, o procurador-geral da República precisaria oferecer denúncia ao STF imputando o presidente do crime comum. Mas o atual PGR, Augusto Aras, tem adotado ações e posturas consideradas como uma espécie de proteção a Bolsonaro.

Mas caso ele apresente a denúncia, o caso em seguida seria remetido à Câmara dos Deputados. Ali, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), não teria poder de barrar a ação como ocorre com os pedidos de impeachment, mas o andamento da investigação também precisaria ser chancelado por pelo menos três quintos dos deputados, ou 342 votos do total de 513.

Esse desenho institucional da tramitação do processo tem como um de seus objetivos proteger o presidente de uma eventual perseguição indevida do Ministério Público e do Judiciário.

Se a Câmara aprovar o andamento do caso, o processo é encaminhado ao plenário do Supremo, que decide então se torna o presidente da República réu. Caso os 11 ministros decidam nesse sentido, ele é afastado do cargo por 180 dias.

Se ele for absolvido em eventual processo, retoma o comando do país.

Para Tangerino, da FGV-SP, o fato de o crime de desobediência ser de menor potencial ofensivo serviria de "gasolina" para argumento bolsonarista de perseguição judicial, caso um processo do tipo prospere a ponto de levar a seu afastamento. Segundo ele, o mais adequado para o regime democrático do país seria afastar Bolsonaro por crime de responsabilidade, caso ele descumpra uma ordem judicial.

2. Recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário: crime de responsabilidade

O segundo tipo de imputação a Bolsonaro caso ele descumpra uma ordem judicial seria um crime de responsabilidade, detalhado na chamada Lei do Impeachment (n. 1.079/50).

O artigo 12 desta lei lista quatro tipos de crimes contra o cumprimento de decisões judiciais, entre eles "impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário" e "recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo".

Nesse caso, qualquer pessoa poderia apresentar um pedido de impeachment contra Bolsonaro à Câmara dos Deputados, mas o andamento dependeria da vontade política do presidente da Câmara, Arthur Lira. Há mais de 100 pedidos esperando análise dele, mas até agora ele não vê fundamento jurídico para dar prosseguimento a nenhum deles.

Resta saber se o mesmo se daria com a concretização do descumprimento de uma ordem judicial do STF.

Caso Lira dê seguimento ao pedido de abertura de processo de impeachment, a tramitação seria semelhante à de Dilma Rousseff. O afastamento do cargo precisaria do apoio de 342 dos 513 deputados, e a saída definitiva dependeria de apoio equivalente no julgamento no Senado Federal.

Público na Avenida Paulista foi estimado em 125 mil pessoas pela Secretaria de Segurança Pública (AFP)

Para a advogada constitucionalista Vera Chemim, o caso levaria a uma grave instabilidade institucional no país, mas provavelmente não avançaria na Câmara porque Bolsonaro está próximo do final de mandato. "A tendência é que eles (magistrados de tribunais superiores e parlamentares) tolerarem essas atitudes do presidente até a eleição. A menos que ele cometa um ato muito grave, daí não é possível prever o que pode acontecer."

A ameaça de Bolsonaro suscita diversas dúvidas porque não há precedente de chefe de Poder se recusar a cumprir decisões judicial na história recente do país. Em 2016, o então presidente do Senado Federal e hoje adversário de Bolsonaro, Renan Calheiros (MDB-AL), chegou próximo disso.

Ele se recusou a ser notificado de uma decisão liminar do então ministro do STF Marco Aurélio Mello que levaria a seu afastamento do cargo. O caso levou a um impasse institucional, mas antes que o descumprimento da decisão judicial se concretizasse de fato o plenário da Corte derrubou a decisão do ministro e garantiu a permanência de Renan no cargo.

Matheus Magenta, de Londres para a BBC News Brasil, em 08.09.2021 

Em reação a Bolsonaro, Fux fala em crime de responsabilidade, mas Lira não cita impeachment

Um dia após os protestos em apoio a Jair Bolsonaro (sem partido), em que o presidente voltou a atacar o Supremo Tribunal Federal (STF) e a colocar em dúvida a segurança da votação eletrônica, os presidentes da Câmara dos Deputados e do STF fizeram críticas às atitudes de Bolsonaro.

Fux fez duras críticas a Bolsonaro (STF)

O discurso mais duro veio do ministro Luiz Fux. Atualmente à frente do STF, ele alertou Jair Bolsonaro que sua ameaça de descumprir decisões da mais alta corte do Judiciário configuraria crime de responsabilidade e que, caso ele venha a agir assim, poderá se tornar alvo de um processo de impeachment no Congresso Nacional.

Se Bolsonaro descumprir decisão do STF, pode ser afastado da Presidência

Por sua vez, o deputado Arthur Lira (PP-AL), aliado do Palácio do Planalto e presidente da Câmara, falou pela primeira vez contra gestos do presidente de forma direta e pública e pediu um fim à escalada de tensão entre os poderes e das bravatas em redes sociais.

Por sua vez, o vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB), ao comentar a crise entre Executivo e Judiciário, fez coro com Bolsonaro nas críticas ao STF e minimizou o risco de que o presidente possa vir a sofrer um impeachment, porque o Planalto teria apoio no Congresso para barrar o processo.

Já o chefe da Procuradoria-Geral da República (PGR), Augusto Aras, não fez menções diretas ao presidente nem às suas ameaças contra o Judiciário e, embora tenha elogiado os protestos que pediram o fechamento do STF e do Congresso Nacional, defendeu o respeito à Constituição.

Fux: 'Ninguém vai fechar essa Corte'

Na terça-feira (7/9), em discursos durante os atos de 7 de setembro, Bolsonaro voltou a atacar o ministro Alexandre de Moraes, a quem chamou de "canalha".

O ministro é relator de investigações no STF contra o presidente e seus apoiadores por supostos ataques criminosos às instituições democráticas, cobrou que o presidente do STF o "enquadre", caso contrário tomaria medidas "indesejadas", e afirmou que poderá não cumprir decisões de Moraes.

Em reação a isso, o presidente do STF elevou o tom, defendeu a Corte e enfatizou que ignorar decisões judiciais configuraria crime de responsabilidade, o que poderia culminar na a abertura de um processo de cassação contra Bolsonaro.

"O Supremo Tribunal Federal jamais aceitará ameaças à sua independência nem intimidações ao exercício regular de suas funções", disse Fux, ao abrir a sessão na quarta-feira no STF.

"O Supremo Tribunal Federal também não tolerará ameaças à autoridade de suas decisões. Se o desprezo às decisões judiciais ocorre por iniciativa do Chefe de qualquer dos Poderes, essa atitude, além de representar um atentado à democracia, configura crime de responsabilidade, a ser analisado pelo Congresso Nacional", reforçou.

"O Supremo Tribunal Federal jamais se negou — e jamais se negará — ao aprimoramento institucional em prol do nosso amado país. No entanto, a crítica institucional não se confunde — e nem se adequa — com narrativas de descredibilização do Supremo Tribunal e de seus membros, tal como vem sendo gravemente difundidas pelo Chefe da Nação", declarou Fux.

"Ofender a honra dos ministros, incitar a população a propagar discursos de ódio contra a instituição do Supremo Tribunal Federal e incentivar o descumprimento de decisões judiciais são práticas antidemocráticas, ilícitas e intoleráveis, em respeito ao juramento constitucional que fizemos ao assumirmos uma cadeira na Corte", continuou.

"Ninguém, ninguém fechará esta Corte. Nós a manteremos de pé, com suor, perseverança e coragem."

Protestos a favor de Bolsonaro ecoaram ataques contra o STF (Getty)

Fux ainda alertou contra o que chamou de "falsos profetas do patriotismo, que ignoram que democracias verdadeiras não admitem que se coloque o povo contra o povo, ou o povo contra as suas instituições". "Todos sabemos que quem promove o discurso do "nós contra eles" não propaga democracia, mas a política do caos", afirmou

"Povo brasileiro, não caia na tentação das narrativas fáceis e messiânicas, que criam falsos inimigos da nação. Mais do que nunca, o nosso tempo requer respeito aos poderes constituídos."

Os atos bolsonaristas de 7 de setembro tiveram como foco principal os ataques ao STF, com frequentes pedidos de fechamento da Corte. O presidente e seus apoiadores consideram que Moraes tem cometido abusos ao determinar a prisão de seus aliados, inclusive porque algumas dessas decisões foram tomadas sem participação da PGR.

Por que Alexandre de Moraes virou a 'bola da vez' dos ataques de Bolsonaro

Já os que apoiam a atuação do ministro dizem que os investigados nesses inquéritos cometem crimes ao ameaçar ministros do STF e defender o fechamento da Corte e do Congresso Nacional.

Apesar do predomínio de mensagens autoritárias contra o Supremo, Fux não criticou diretamente os manifestantes, elogiando em sua fala o fato de os atos terem ocorrido sem registro de "incidentes graves" e reconhecendo que, nos atos, os participantes fizeram "duras críticas à Corte e a seus membros".

"Com efeito, os participantes exerceram as suas liberdades de reunião e de expressão — direitos fundamentais ostensivamente protegidos por este Supremo Tribunal Federal", ressaltou.

Por outro lado, ele cobrou de Bolsonaro solução para os "problemas reais" do país, como a pandemia de coronavírus e a crise econômica.

"Em nome das ministras e dos ministros desta Casa, conclamo os líderes do nosso país a que se dediquem aos problemas reais que assolam o nosso povo: a pandemia, que ainda não acabou e já levou 580 mil vidas brasileiras", destacou.

"Devemos nos preocupar com o desemprego, que conduz o cidadão ao limite da sobrevivência biológica; a inflação, que corrói a renda dos mais pobres; e a crise hídrica, que se avizinha e que ameaça a nossa retomada econômica."

Lira: 'A Constituição jamais será rasgada'

Arthur Lira, um dos líderes do Centrão, bloco informal de partidos que hoje dá sustentação política ao presidente, fez críticas diretas a gestos de Bolsonaro.

"Diante dos acontecimentos de ontem, quando abrimos as comemorações de 200 anos como nação livre e independente, não vejo como possamos ter ainda mais espaço para radicalismo e excessos", disse Lira na abertura de seu pronunciamento na tarde de quarta-feira (8/9), explicando em seguida que havia esperado para fazer isso para não ser "contaminado pelo calor de um ambiente já por demais aquecido".

"É hora de dar um basta a esta escalada, em um infinito looping negativo", afirmou. "A Constituição jamais será rasgada."

"Bravatas em redes sociais, vídeos e um eterno palanque deixaram de ser um elemento virtual e passaram a impactar o dia a dia do Brasil de verdade. O Brasil que vê a gasolina chegar a R$ 7 reais, o dólar valorizado em excesso e a redução de expectativas. Uma crise que, infelizmente, é superdimensionada pelas redes sociais, que apesar de amplificar a democracia estimula incitações e excessos."

Em outra crítica a gestos de Bolsonaro nos atos de 7 de setembro, Lira disse que os poderes "têm limitações". É "o tal quadrado, que deve circunscrever seu raio de atuação", declarou. Isso define respeito e harmonia."

Em seguida ele disse que "não pode admitir questionamentos sobre decisões tomadas e superadas" e esclareceu claramente que falava sobre a proposta de Bolsonaro de que fosse implantado um voto impresso, que foi rejeitada duas vezes pela Câmara em agosto, primeiro na comissão especial e depois no plenário.

O presidente da Câmara tem o poder de abrir um processo de impeachment contra o presidente (Getty)

"Uma vez definida, vira-se a página", enfatizou o deputado. "Assim como também vou seguir defendendo o direito dos parlamentares à livre expressão - e a nossa prerrogativa de puni-los internamente se a Casa com sua soberania e independência entender que cruzaram a linha."

O presidente da Câmara também se distanciou do presidente, que disse em um protesto pelo voto impresso no início de agosto que "sem eleição limpa, não terá eleição", ao afirmar que a votação em 2022 é "o único compromisso inadiável e inquestionável em nosso calendário" e reforçou: "Com as urnas eletrônicas".

"São nas cabines eleitorais, com sigilo e segurança, que o povo expressa sua soberania", disse.

Ao mesmo tempo, Lira se colocou à disposição para mediar o diálogo entre o Executivo e o Judiciário para dar fim à escalada de tensão entre os poderes a fim de elaborar medidas que combatam a crise socioeconômica a qual o país atravessa.

"Esta Casa tem prerrogativas que seguem vivas e quer seguir votando e aprovando o que é de interesse público. E estende a mão aos demais Poderes para que se voltem para o trabalho, encerrando desentendimentos", disse Lira.

"A Câmara dos Deputados está aberta a conversas e negociações para serenarmos. Para que todos possamos nos voltar ao Brasil Real que sofre com o preço do gás, por exemplo", declarou, dizendo que a Casa que preside é hoje um "motor de pacificação" do país e ressaltando que, com a crise institucional que está instaurado, "todos perdem".

"Conversarei com todos e com todos os poderes", afirmou. "Nossa Casa tem compromisso com o Brasil real - que vem sofrendo com a pandemia, com o desemprego e a falta de oportunidades."

O presidente da Câmara evitou no entanto criticar diretamente os protestos em si ou seus participantes, muitos dos quais reivindicaram pautas antidemocráticas, entre elas o fechamento do STF e do Congresso Nacional, do qual Lira faz parte,

"Em tempo, quero aqui enaltecer a todos os brasileiros que foram às ruas de modo pacífico. Uma democracia vibrante se faz assim: com participação popular e liberdade e respeito à opinião do outro."

Mourão: 'Não há clima para impeachment'

O vice-presidente disse não enxergar que Bolsonaro corra risco de ser alvo de um processo de impeachment. Em declarações feitas antes de embarcar para a Amazônia, ele declarou: "Eu não vejo que haja clima para o impeachment do presidente, tanto na população como um todo como dentro do próprio Congresso".

Mourão disse que o Planalto tem uma "maioria confortável, de mais de 200 deputados" na Câmara, o que não seria suficiente para aprovar projetos do governo, mas que seria o bastante para barrar um processo contra o presidente.

O vice havia dito inicialmente que não estaria nos atos de 7 de setembro, mas acabou comparecendo e esteve ao lado de Bolsonaro enquanto ele fazia ameaças ao Supremo. Mourão não quis, no entanto, comentar as declarações do presidente alegando que isso seria antiético.

Mas reconheceu a crise instaurada e fez, assim como Bolsonaro, críticas ao ministro Alexandre de Moraes. "Na minha visão existe um tensionamento principalmente entre o Judiciário e o Executivo", declarou.

"Eu tenho a ideia muito clara que o inquérito que é conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes não está correto, juiz não pode conduzir inquérito. Eu acho que tudo se resolveria se o inquérito passasse para a mão da PGR e acabou. Isso aí distensionaria todos os problemas."'

Mourão fez críticas ao STF, assim como Bolsonaro (Getty)

O procurador-geral da República fez breve pronunciamento sobre o 7 de Setembro logo depois da fala de Luiz Fux e adotou um tom elogioso em relação aos protestos.

"Acompanhamos ontem uma festa cívica, com manifestações pacíficas, que ocorreram hegemonicamente de forma ordeira pelas vias públicas do Brasil. As manifestações do 7 de setembro foram uma expressão de uma sociedade plural e aberta, característica de um regime democrático", disse Aras, ao iniciar sua fala.

Augusto Aras detém a autoridade de propor um eventual processo criminal contra Bolsonaro, mas assim como Arthur Lira, é considerado nos bastidores de Brasília um aliado do presidente.

O procurador-geral deu declarações vagas sobre a atuação do Ministério Público neste momento de instabilidade institucional.

"Como previsto na Constituição Federal de 1988 e no ordenamento jurídico erigido a partir dela, quando discordâncias vão para além de manifestações críticas, merecendo alguma providência, hão de ser encaminhadas pelas vias adequadas, de modo a não criarem constrangimentos e dificuldades, quiçá injustiças, ao invés de soluções", ressaltou.

"Eis o primado do devido processo em face do voluntarismo: construir decisões legítimas, respeitáveis, sólidas, ainda que não sejam unânimes. O Ministério Público brasileiro, como instituição constitucional permanente, segue trabalhando pela sustentação da ordem jurídica e democrática, pois não há estabilidade e legitimidade fora dela", acrescentou.

No entanto, Aras saiu em defesa das instituições, ao afirmar que elas são assim como o povo "a voz da liberdade" e exaltou a separação e a harmonia entre os poderes.

Aras também citou um discurso histórico de Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, ao promulgar a Constituição de 1988, marco da redemocratização do Brasil.

"A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca", disse o procurador-geral, reproduzindo a palavras de Guimarães.

Rafael Barifouse e Mariana Schreiber, de São Paulo e Brasília para a BBC News Brasil, em 08.09.21