quinta-feira, 8 de abril de 2021

O papa que decretou 'lockdown' em Roma para salvar população de peste no século 17

 Ele era intelectual, fã de arquitetura e arte, doutor em filosofia, teologia e direito. Quando o italiano Fabio Chigi (1599-1667) se tornou o papa Alexandre 7º, nem em seus piores pesadelos poderia vislumbrar que teria de enfrentar uma epidemia de peste.


O papa Alexandre 7º decretou medidas sanitárias que, para pesquisadores, contribuíram para que a letalidade de uma peste no século 17 fosse muito menor.(Crédito da foto: domínio público)

A resposta dele, no entanto, foi contundente.

Embora a ciência só tenha descoberto o bacilo causador da peste em 1894 — graças ao bacteriologista Alexandre Yersin (1863-1943) —, o papa decretou medidas sanitárias que, para pesquisadores, contribuíram para que a letalidade da doença fosse muito menor na população romana do que em outros lugares afetados pela mesma doença.

De acordo com levantamento realizado pelo historiador italiano Luca Topi, professor da Universidade de Roma La Sapienza, entre 1656 e 1657 a peste matou 55% da população da Sardenha, metade da população de Nápoles e 60% dos que habitavam Gênova.

Em Roma, contudo, foram 9,5 mil mortos em um universo de 120 mil pessoas — menos de 8%. Essas conclusões foram publicadas em uma revista científica italiana em 2017.

Calcula-se que a peste tenha dizimado cerca de metade da população europeia, em diversas ondas. Fazia um ano que Alexandre VII havia sido eleito papa quando começaram a chegar relatos de mortes pela doença no então reino de Nápoles.

Alexandre 7º não era somente o líder do catolicismo. Se hoje o papa é soberano de um estado diminuto encravado em Roma, o Vaticano, na época comandava os chamados Estados Pontifícios que compreendiam Roma e boa parte dos arredores — praticamente todo o centro da Itália atual.

A fascinante história a seguir mostra como medidas que geram controvérsia no Brasil da pandemia de covid-19, como proibição de circulação de pessoas, fechamento de fronteiras e de templos, rastreamento de casos, auxílio emergencial, debates sobre jejuns religiosos e outras, foram aplicadas há mais de 400 anos — e tiveram bons resultados.

Quais foram as medidas do papa?

Nos domínios papais, esse surto ocorreu de maio de 1656 a agosto de 1657.

Assim que as primeiras notícias da peste chegaram a Roma, Alexandre 7º colocou em alerta a então Congregação da Saúde, que havia sido criada em um surto anterior.

As medidas de contenção foram implementadas gradualmente, conforme a situação se tornava mais perigosa.

Em 20 de maio, foi promulgado um decreto que suspendia toda atividade comercial com o reino de Nápoles — já fortemente afetado. Na semana seguinte, o bloqueio se estendeu: ficava proibido também o acesso a Roma de qualquer viajante vindo de lá.

No dia 29, a cidade de Civitavecchia, dentro dos domínios dos Estados Pontifícios, registrou a chegada da peste e foi imediatamente colocada em quarentena.

"Nos dias e meses seguintes, muitas outras localidades dos Estados Papais foram colocadas em isolamento", detalha o historiador Topi, em seu artigo. Em Roma, a decisão foi radical: quase todos os portões que então davam acesso à cidade foram fechados. Apenas oito permaneceram abertos, mas eles eram protegidos 24 horas por dia por soldados, supervisionados por "um nobre e um cardeal".

A partir de então, qualquer entrada tinha de ser justificada e registrada.

Em 15 de junho, Roma teve o primeiro caso: um soldado napolitano que morreu em um hospital. As normas passaram a endurecer cada vez mais. Em 20 de junho, uma lei passou a obrigar que todo aquele que soubesse de um doente informasse autoridades.

Na sequência, um novo dispositivo papal passou a obrigar que todo pároco e seus ajudantes visitassem, a cada três dias, todas as casas de suas circunscrições para identificar e registrar os doentes.

Era a maneira, na época, de rastrear os infectados.

Aí veio a notícia de mais uma morte, um pescador que estava hospedado na região de Trastevere. "Toda a família que teve contato com essa vítima também se infectou e muitos foram a óbito", conta Raylson Araujo, membro do Núcleo de Diálogo Católico-Pentecostal e estudante de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que também pesquisou o assunto.

A primeira ideia foi tentar isolar a região. Na noite do dia 22 para o dia 23 de junho, sob as ordens de três cardeais, trabalhadores ergueram um muro de contenção após nove horas de trabalho.

Ilustração papa Alexandre 7o, feita por Andrea Sacchi

O endurecimento das regras impostas pelo papa Alexandre 7º foi gradual até chegar a um lockdown completo.

"O papa era também a autoridade civil. Conforme a doença começou a se espalhar, ele passou a implementar medidas de isolamento. Depois que proibiu o comércio com Nápoles, passou a decretar outros meios de distanciamento social: foi proibindo encontros, procissões, todo o devocional mais popular", pontua Araujo.

O endurecimento das regras foi gradual até o lockdown completo.

"Conforme o tempo foi passando, ele [o papa] foi adotando novas proibições. Congregações [da Igreja] foram suspensas, todas as visitas diplomáticas também, encontros religiosos e reuniões públicas… Estradas foram vigiadas", enumera Araujo. "Todas as aglomerações civis acabaram suspensas."

"Foram banidas várias atividades econômicas e sociais. Festas e cerimônias públicas, civis e religiosas foram canceladas", diz o seminarista Gustavo Catania, filósofo pelo Mosteiro de São Bento de São Paulo. "Mercados foram suspensos e algumas pessoas que moravam na rua foram retiradas, porque podiam ser causas de contágio. A travessia noturna do Rio Tibre foi proibida."

"Com quase toda a cidade fechada, os cultos inevitavelmente se transformaram em privados. Quase todos tinham alguém da família com a doença", completa Catania.

O papa também determinou que naquele período ninguém deveria fazer jejum, numa tentativa de que as pessoas não se privassem de alimentos e, assim, se mantivessem mais saudáveis para o caso de serem infectadas.

Todos aqueles que tinham pelo menos um contaminado na família eram proibidos de sair de casa. Para garantir a assistência, Alexandre 7º separou os padres e os médicos em dois grupos — aqueles que teriam contato com os doentes e os que não teriam, encarregando-se de zelar pelo restante da população.

"Havia uma preocupação que os padres não se transformassem em vetores da doença", diz Araujo.

"Os médicos foram proibidos [por lei] de fugir de Roma", atenta Catania, lembrando que muitos tinham receio de se contaminarem com a peste. Como os doentes eram isolados, foi montada uma rede de apoio assistencialista. "Houve a previsão de ajuda financeira às famílias que não podiam sair de casa e algumas pessoas recebiam comida pela janela", diz o seminarista.

Nos meses de outubro e novembro, quando a incidência da doença foi maior, chegou-se a prever pena de morte para quem descumprisse as regras.

Negacionistas e fake news

Mas nem todos acreditavam na gravidade da situação.

Havia quem desdenhasse e até as hoje chamadas fake news foram espalhadas. "O papa chegou a ser acusado de ter inventado a doença em benefício próprio, para ganhar popularidade", conta a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

"[Muitos] não queriam que o pontífice adotasse tais medidas [de restrição] para não alarmar a população", complementa. "Até seus colaboradores mais próximos o aconselharam a não fazê-lo. Temiam que, a partir do momento em que ele levasse a público a gravidade da situação, por meio de decretos e divulgação, a economia passasse a sentir os efeitos desse tipo de postura. No entanto, ele [o papa] foi firme e seguiu com sua política sanitária."

Talvez Alexandre 7º possa ser considerado uma espécie de padroeiro do lockdown.

Araújo compara o acontecido no século 17 com o "movimento de hoje, com a resistência das pessoas" a aceitarem a gravidade da pandemia de covid-19. "[Na época,] primeiro os comerciantes quiseram aconselhar o papa para que ele não adotasse as medidas, pois [o fechamento] iria prejudicar o comércio, a colheita", comenta o pesquisador. "Parte do povo foi murmurar contra as decisões do papa."

"Grupos procuraram o papa, aconselhando-o para não decretar medidas de isolamento. Queriam que ele acobertasse, maquiasse um pouco a doença para que o pânico não se espalhasse e o comércio não fosse fechado", prossegue.

Há relatos de que um médico teria divulgado fake news acerca das reais motivações do lockdown. "Ele espalhou que essas decisões do papa escondiam interesses políticos", diz o historiador Victor Missiato, professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Brasília) e pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

"Foi acusado de calúnia e acabou condenado a trabalhar em um hospital voltado para a cura da peste."

Outro caso emblemático foi o do religioso Gregorio Barbarigo (1625-1697). Quando foi eleito, o papa Alexandre VII nomeou-o prelado da Casa Pontifícia, conselheiro e, em seguida, referendário do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica. Isso tudo em 1655, mesmo ano em que Barbarigo havia se tornado sacerdote.

Mas o conselheiro acabou sendo uma voz contrária ao lockdown de Alexandre 7º. "Ele questionava as medidas, dizia que elas provocavam mais mortes do que a peste, porque causavam mortes pela fome e pelo medo. Mesmo próximo ao papa, ele tinha um olhar crítico", frisa Araujo.

Alexandre 7º não parece ter guardado rancor. Tanto que, anos mais tarde, em consistório de abril de 1660, fez de Barbarigo cardeal.

Vitória contra a doença

Quando esse surto foi vencido em agosto de 1657, a celebração foi à altura.

Alexandre 7º demonstrou o renascimento da Igreja com monumentos que marcam o Vaticano até hoje, como o conjunto de colunas da Praça de São Pedro, obra do escultor e arquiteto Gian Lorenzo Bernini (1598-1660).

Obras de Papa, Alexandre 7º marcam o Vaticano até hoje, como o conjunto de colunas da Praça São Pedro, do escultor e arquiteto Gian Lorenzo Bernini (Crédito da foto: Edison Veiga)

"Era muito comum, nesse período, que os papas tornassem visíveis a sua soberania e o seu poder. Os grandes monumentos de Roma, nesse período, foram construídos a partir dessa motivação", contextualiza Medeiros.

"É o caso das Quattro Fontane da Piazza Navona, Fontana di Trevi, entre outros."

A embaixada brasileira em Roma fica em frente às esculturas da famosa Piazza Navona.

"Alessandro 7º era apaixonado pela arte, amigo de Bernini. O início de seu pontificado foi marcado, justamente, pela peste", explica.

"A forma que ele encontrou, de certa forma, de apagar aquele período sombrio, foi investindo em obras colossais. As colunatas que ele mandou construir representam os braços abertos da Igreja. A catedral do apóstolo Pedro foi restaurada, o símbolo do poder temporal, não só espiritual."

Outros casos

Não foi este o único momento histórico em que a Igreja, no passado, fechou suas portas por conta de surtos e epidemias. Mas, como destaca Medeiros, foi o único de forma oficial "e contando com uma estrutura de Estado para tal".

"Ocorreram [em outros momentos] casos isolados em algumas dioceses da Itália, sobretudo no século 19 durante a epidemia de cólera", lembra ela. "Nesses lugares, adotaram-se medidas restritivas semelhantes."

Por outro lado, Medeiros lembra que no surto de peste do século 14, ocorreu "totalmente o contrário".

"O papa Clemente 6º, isolado no palácio pontifício de Avignon, na França, não parecia muito preocupado com o que ocorria fora dos muros da sua casa", aponta a vaticanista. "Como na mentalidade do homem da época a doença nada mais era do que um castigo divino, procissões e outras formas de aglomeração aconteciam, na tentativa, segundo a mentalidade religiosa da época, de extirpar aquele mal."

"Mas já nessa época, assim como na época de Alexandre 7º, existiam os dormitórios para isolar os infectados. Esses 'lazarettos', como eram chamados, estavam sob a responsabilidade dos [religiosos] franciscanos", contextualiza. "Os viajantes, seguindo as normas sanitárias de alguns lugares, deveriam evitar o convívio com outras pessoas por 40 dias — daí que surge o termo quarentena."

No século anterior, a região de Milão foi fortemente acometida pela peste. O cardeal arcebispo de lá, Carlo Borromeo (1538-1584), também estabeleceu medidas sanitárias rígidas em sua circunscrição.

"Ele fez a proposta de uma quarentena geral, que foi adotada [pela região]", diz Araujo. "Foi publicado um decreto que determinava que as pessoas se mantivessem em casa até que a situação fosse controlada. Só podiam sair os que estavam cuidando espiritual e materialmente da população."

O pesquisador conta que até as missas foram realizadas em um formato "à distância", conforme as possibilidades da época. "Um padre ia para a esquina e celebrava na rua. Os fiéis assistiam de suas janelas, de dentro de casa", explica ele.

Fé e ciência

Ao analisar esses episódios do passado — muitas vezes semelhantes ao vivenciados hoje — dois pontos precisam ser levados em conta.

Este era um mundo em que a ciência ainda não era valorizada como hoje. E no qual religião e política estavam intrinsecamente mesclados.

"No século 17, absolutismo era muito forte na Europa e estava ligado ao poder da Igreja. Poder político e poder religioso, naquela época, ainda estavam muito misturados", explica Missiato.

"Naquele período, a Revolução Científica ainda não havia sido difundida nas diversas sociedades do mundo europeu. A crença no divino enquanto ente definidor da paz e do caos ainda era vista como o caminho para a salvação."

Por isso, o lockdown imposto por Alexandre 7º se torna ainda mais interessante.

"[O ocorrido] mostra um alinhamento entre fé e ciência", diz Araujo. "Uma fé que tem os pés no chão. Com base no que Roma já havia sofrido com a peste em outros momentos, [a experiência faz com que] eles passam a saber que essas medidas são importantes. Existem pastores sensíveis."

Edison Veiga, de Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil, em 8 abril 2021, Atualizado Há 3 horas

Os dez mandamentos do desmando, segundo Eugênio Bucci

Verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder      

1 – Profanarás o Estado laico.

A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.

2 – Transformarás a política em fanatismo.

A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.

Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.

3 – Xingarás a ciência de bruxaria.

Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.

4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.

O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.

5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.

Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.

6 – Não honrarás a verdade dos fatos.

O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.

7 – Matarás.

Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.

8 – Conspurcarás todas as profecias.

Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?

9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.

Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.

10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.

Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.

Eugênio Bucci, Jornalista, é Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 08.04.2021

JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Incompetência estrutural

Troca sem critério de servidores está degradando os escalões inferiores do governo  

Se o presidente Jair Bolsonaro fosse o CEO de uma grande empresa, já teria sido demitido. Em pouco mais de dois anos de mandato, Bolsonaro mexeu incontáveis vezes em seu Ministério e, a cada mudança, são substituídos, aos magotes, funcionários de escalões inferiores. Nenhuma administração que se pretenda séria e competente consegue funcionar sem um mínimo de estabilidade, palavra desconhecida no governo Bolsonaro.

Já é notória a inabilidade do presidente na gestão de seu pessoal. Sempre que pretende afastar um ministro, como mostrou recente reportagem do Estado, trata de desgastá-lo publicamente, com insinuações e cobranças, tratando-o como desafeto, ao mesmo tempo que alimenta especulações sobre quem seria o substituto. No dialeto do poder, isso se chama “fritura” – que, além de humilhar o substituído, serve para constranger os ministros remanescentes. Tal prática desestimula os cidadãos mais preparados a desejarem fazer parte do governo, pois ninguém gosta de ser humilhado por fazer seu trabalho.

Para Bolsonaro, contudo, a qualidade da administração é irrelevante; seu único propósito, como presidente, é ser temido e ter suas ordens acatadas sem contestação. Por isso, Bolsonaro troca de ministros como troca de camisas, quase nunca para satisfazer às demandas das áreas afetadas, e quase sempre para atender a seus devaneios de poder.

Pode-se argumentar que a constante substituição de ministros tem um impacto limitado no dia a dia da administração, pois o Estado conta com um corpo de funcionários públicos de carreira que, independentemente da chefia, desempenham corretamente seu trabalho, pois têm bom preparo técnico. Isso é um fato, mas também é um fato que a cada ministro que entra e a cada um que sai, a administração Bolsonaro parece empenhar-se em promover a degradação dos escalões inferiores nos órgãos envolvidos.

Hoje, em áreas estratégicas, como Educação e Saúde, já não é mais possível garantir a qualidade estrutural, desgastada pela nomeação de servidores sem nenhum preparo e, pior, escolhidos exclusivamente por demonstrarem publicamente compromisso fanático com o bolsonarismo – pseudoideologia assentada na destruição.

Assim, ganham cargos-chave funcionários dedicados a arruinar a memória administrativa a duras penas construída ao longo dos anos e dos governos de diferentes orientações.

Tome-se o exemplo do Ministério da Saúde. Além da alta rotatividade na pasta, que já está em seu quarto titular, houve notável deterioração da qualidade do quadro de gestores. O terceiro ministro, o intendente Eduardo Pazuello, não sabia nem o que era o SUS, segundo suas próprias palavras. Sendo assim, poderia ter se cercado de gente do ramo, mas, fiel ao projeto bolsonarista, montou uma equipe destinada a descaracterizar o Ministério da Saúde.

Entre os auxiliares diretos de Pazuello agora exonerados estavam um certo “Markinhos Show”, hipnólogo responsável pelo marketing do ministro, e um advogado que já defendeu milicianos no Rio de Janeiro, além de inúmeros militares sem qualquer experiência na área. E tudo isso em meio ao maior desafio sanitário enfrentado pelo País em um século.

No Ministério da Educação, que também está no quarto ministro (um deles nem chegou a assumir, por ter embelezado o currículo acadêmico), o desmantelamento é generalizado. A Secretaria Executiva está no terceiro secretário. A importantíssima Secretaria de Educação Básica, que já teve cinco secretários, está sem titular desde a semana passada, quando a última pediu demissão. A Secretaria de Educação Superior é administrada hoje pelo seu terceiro gestor. O Inep, que faz as avaliações de ensino, está no quarto titular.

A esse descalabro se somem as trocas intempestivas na direção de estatais, bancos públicos e outros órgãos da administração, com destaque para as áreas ambiental e de segurança, e tem-se o retrato de um governo sem rosto – ou melhor, com a exata feição de seu presidente, um político sem partido e sem rumo, cujo objetivo é apenas o poder em si mesmo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 08 de abril de 2021 | 03h00

quarta-feira, 7 de abril de 2021

Bolsonaro vai ficar mais perigoso, avisa Eliane Brum, do EL PAÍS

Se o impeachment não avançar já, preparem-se para algo ainda pior do que o recorde global de mortos por covid-19

Passageiros circulam em ônibus lotado nesta terça-feira, no Rio de Janeiro, ao lado de outdoor crítico a Jair Bolsonaro. (Crédito da foto: Ricardo Moraes / Reuters)

Primeiro. Não há a menor condição moral de debater a eleição de 2022. É conversa de gente ruim, que ignora o horror diário do Brasil, que em 6 de abril registrou o recorde de 4.195 mortes por covid-19. Jair Bolsonaro precisa ser submetido a impeachment já. Cada dia a mais com Bolsonaro no poder é um dia com menos brasileiros vivos. Mortos não por fatalidade, porque o mundo vive uma pandemia, mas porque Bolsonaro e seu Governo disseminaram o vírus e converteram o Brasil no contraexemplo global.

Estamos no caminho dos 400.000 mortos. Se o Brasil continuar nesse rumo ―como vários epidemiologistas alertam― superaremos o meio milhão. E ainda assim as mortes vão seguir. Se esse extermínio não for suficiente para mover aqueles que têm a obrigação constitucional de promover ou apoiar o impeachment, é importante acordar para uma grande probabilidade. Bolsonaro é uma besta. Acuado e isolado, quase certamente ficará mais perigoso. É urgente impedi-lo antes que um horror ainda maior do que centenas de milhares de mortes aconteça.

Que Jair Bolsonaro não se importa com ninguém, a não ser ele mesmo e seus filhos homens, é claríssimo. Desde sempre, ele frita aqueles que o ajudaram a se eleger, o advogado Gustavo Bebianno poderia dizer se estivesse vivo. E também aqueles que o ajudaram a se manter governando, o general Fernando Azevedo e Silva que nos conte, já que Bebianno não pode mais. Bolsonaro não tem lealdade a ninguém, só lhe importam seus próprios interesses. Mais do que interesses, Bolsonaro tem apetites. Só lhe importam seus próprios apetites.

(Governo deixou de gastar 80,7 bilhões de reais destinados à pandemia em 2020, diz estudo)

Bolsonaro gostou, porém, da popularidade e da ideia de ser o líder de um movimento. Bolsonaro, uma mal acabada mistura de cachorro louco com bobo da corte, que sugou os cofres públicos como deputado sem fazer nada de relevante por quase 30 anos, apreciou ser finalmente levado a sério. E isso teve efeito sobre ele, como teria sobre qualquer pessoa.

Bolsonaro se elegeu e começou a governar com generais apoiando-o, justamente ele, um capitão que saiu do Exército pela porta dos fundos, apenas para não ser preso (mais uma vez). Bolsonaro se elegeu e começou a governar com Paulo Guedes, um economista ultraliberal que tinha as bênçãos dessa entidade metafísica chamada “mercado”, que tanto opina nos jornais ―sempre nervosa e com humores, mas raramente com rosto. Bolsonaro se elegeu e começou a governar com o ainda herói (para muitos) Sergio Moro, com sua capa de juiz justiceiro contra os corruptos. Bolsonaro, que só provocava risadas, de repente era ovacionado como “mito”, escolhido para liderar um país.

Era um delírio, em qualquer mente sã, mas o delírio se realizou porque o Brasil não é um país são. Uma sociedade que convive com a desigualdade racial brasileira não tem como ser sã. Uma maioria de eleitores que vota em alguém que diz que prefere um filho morto num acidente de trânsito a um filho gay e que defende em vídeo que a ditadura deveria ter matado “pelo menos uns 30.000” não pertence a uma sociedade sã. Essa sociedade, da qual todos fazemos parte e portanto somos coletivamente responsáveis, gestou tanto Bolsonaro quanto seus eleitores.

Sem jamais perder de vista seus apetites, Bolsonaro acreditou no delírio. A realidade, porém, foi corroendo-o. Finalmente, no terceiro ano de Governo, Bolsonaro descobre-se isolado. De bufão do Congresso, uma imagem com a qual convivia sem maiores problemas, virou “genocida”. A libertação do politicamente correto, que ele anunciou em seu discurso de posse, pode ter liberado vários horrores, a ponto de permitir que um misógino, racista e homofóbico como ele se tornasse presidente. Mas genocídio é um degrau que ainda continua no mesmo lugar. Não dá para fazer piada com genocídio.

Quem ainda tem algo a perder começou a se afastar de Bolsonaro, com as mais variadas desculpas, ao longo dos primeiros anos de Governo. De Jananína Paschoal a Joyce Hasellmann. Do MBL ao PSL, seu próprio partido. E então Sergio Moro se foi e saiu atirando. E, no final de março, chegou a vez dos militares. Bolsonaro quis dar uma demonstração de força, demitindo um general, e seu apoio nos peitos estrelados das Forças Armadas ficou reduzido à meia dúzia, se tanto, de seus generais de estimação. Bolsonaro ainda precisa conviver com o bafo na nuca do vice Hamilton Mourão. Único não demissível, o general sempre dá um jeito de sutilmente avisar ao país (que já levou três vices ao poder desde a redemocratização, um por morte e dois por impeachment) que está ao dispor se necessário for. Mourão está sempre por ali, dando um jeito de ser lembrado.

A queda do chanceler Ernesto Araújo foi um ponto de inflexão no Governo Bolsonaro. Porque Bolsonaro foi obrigado a demiti-lo, e Bolsonaro não gosta de ser obrigado a nada. Ele fica ressentido como uma criança mimada e reage com malcriação ou violência, o que em parte explica a mal calculada demissão do ministro da Defesa, o equivalente a uma cotovelada para mostrar quem manda quando sente que já manda pouco. Mas principalmente porque Ernesto Araújo era importante para Bolsonaro. Ele era o idiota ilustrado de Bolsonaro, aquele que deveria dar uma roupagem supostamente intelectual a um Governo de ignorantes que sabem que são ignorantes.

Araújo sempre foi muito mais importante do que o guru Olavo de Carvalho porque era ele o ideólogo do bolsonarismo dentro do Governo e trazia com ele a legitimidade (e o lustro) de ser um diplomata, quadro de carreira no Itamaraty, ainda que obscuro. Seu discurso de posse como chanceler era uma metralhadora de citações para exibir erudição. A peça final era delirante, mas cuidadosamente pensada como um documento de fundação do que o então chanceler anunciava como uma “nova era”. Um delírio. Mas o que é Bolsonaro no poder senão um delírio que se realizou?

Perder Araújo ou, pior do que isso, ser obrigado a chutá-lo contra a sua vontade, significa para Bolsonaro que não há mais o simulacro de um projeto para além de si mesmo e o anteparo que isso representava, não há anseio ou expectativa de ser algo na história. Bolsonaro é agora também oficialmente só ele mesmo. E ele sabe o que é.

Bolsonaro converteu o Brasil num gigantesco cemitério. E essa tem sido uma manchete recorrente em jornais das mais diversas línguas. Seu projeto de disseminar o vírus para garantir imunidade por contágio, um barco furado em que o premiê Boris Johnson embarcou no início da pandemia, mas pulou fora quando o Reino Unido exibiu as piores estatísticas da Europa, deu ao Governo brasileiro o título de pior condução da pandemia entre todos os países do planeta.

Se as reuniões presenciais de cúpula estivessem permitidas, Bolsonaro teria dificuldades hoje em se manter ao lado de algum chefe de Estado com autoestima e preocupação eleitoral para posar para um retrato oficial. O brasileiro é visto como pária do mundo e estar perto dele pode contaminar o interlocutor. No cenário global ele não é mito, e sim mico (com o perdão ao animal que, graças a Bolsonaro, hoje vive muito pior em todos os seus habitats naturais).

Bolsonaro hoje é radioativo e infectou as relações comerciais do Brasil com o mundo. Grandes redes de supermercados, por exemplo, não querem se arriscar a um boicote por vender carne e outros produtos de um país governado por um destruidor da maior floresta tropical do mundo. Ninguém que tem apreço pela imagem de “democrata” quer negociar com alguém cada vez mais colado ao rótulo de “genocida”, especialmente na Europa pressionada por ativistas climáticos como Greta Thunberg e com os “verdes” aumentando sua influência em vários parlamentos.

Na terça-feira, 199 organizações ambientais brasileiras fizeram uma carta pública a Joe Biden alertando sobre o risco que um acordo de cooperação iminente entre os Estados Unidos e o Governo Bolsonaro traria para a emergência climática, os direitos humanos e a democracia. A descoberta de que o Governo Biden mantém há mais de um mês conversas a portas fechadas com o Governo Bolsonaro sobre meio ambiente surpreendeu o mundo democrático. Segundo a carta, as negociações com Bolsonaro —negacionista da pandemia que desmontou a política ambiental brasileira e que foi acusado por indígenas no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade— contaminam a narrativa de Biden, que prometeu em sua gestão lidar com a pandemia, o racismo, a crise climática e o papel dos Estados Unidos na promoção da democracia no mundo. “O presidente americano precisa escolher entre cumprir seu discurso de posse e dar recursos e prestígio político a Bolsonaro. Impossível ter ambos”, afirma o texto.

Depois de mais de dois anos com Bolsonaro no poder, o Brasil vive um dos piores momentos de sua história. A economia ruiu. O pib brasileiro é o pior em 24 anos. A fome e a miséria aumentaram. A Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno. Os quatro filhos homens de Bolsonaro (a filha mulher, lembram, é só o resultado de uma “fraquejada”) são investigados por corrupção e outros crimes. Sua ligação com as milícias do Rio de Janeiro e o cruzamento com a execução de Marielle Franco, ela sim um ícone, se tornam cada vez mais evidentes. Um após outro grande jornal do mundo estampa Bolsonaro como uma “ameaça global” em seus editoriais e reportagens.

Quem ainda permanece ao lado de Bolsonaro hoje? Paulo Guedes, anunciado como superministro para aplacar os tais humores do tal mercado, desde o início do Governo foi apenas um miniministro. O fato de ainda permanecer como titular da Economia de um Governo com o desempenho do atual diz muito mais sobre Guedes do que sobre Bolsonaro. Se fosse uma empresa privada, essas que ele tanto defende, estaria demitido há muitos meses. E não adianta culpar a pandemia, porque vários governos do mundo, inclusive na América Latina, exibiram desempenhos econômicos muito melhores, inclusive porque fizeram lockdown.

Permanecem também os líderes do evangelismo de mercado. É importante diferenciar os evangélicos para não cometer injustiças. Quem apoiou e apoia Bolsonaro e suas políticas de mortes são os grandes pastores ligados ao neopentecostalismo e ao pentecostalismo que converteram a religião num dos negócios mais lucrativos dessa época, e também algumas figuras católicas. Beneficiadas com um perdão de débitos concedido sob a bênção de Bolsonaro, as igrejas acumulam 1,9 bilhão de reais na Dívida Ativa da União, dinheiro este, é importante assinalar, que pertence à população e dela está sendo tirado. Sem compromisso com a vida dos fiéis, esses mesmos pastores e padres abriram os templos na Páscoa, autorizados por Nunes Marques, ministro de estimação de Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal, produzindo aglomerações no momento em que o Brasil a cada dia superava o anterior no recorde de mortes por covid-19.

E permanecem também uma meia dúzia de generais de pijama, dos quais os generais da ativa tentam desesperadamente se distanciar para não corromper ainda mais a imagem das Forças Armadas. Há ainda o Centrão, o numeroso grupo de deputados de aluguel que hoje comanda o Congresso, mas que já mostraram que podem mudar de lado, se mais lucrativo for, da noite para o dia, como fizeram com Dilma Rousseff (PT) no passado recentíssimo. É esse rebotalho que resta hoje a Bolsonaro, que já não encontra quadros minimamente convincentes nem para recompor seu próprio Governo.

Bolsonaro, que gostou de ser popular, vê hoje baixas na sua base de apoio, assombrosamente fiel apesar dos horrores do seu Governo ―ou por causa dele. Sua popularidade está em queda. É certo que sempre haverá de restar aquele grupo totalmente identificado com Bolsonaro, para o qual negar Bolsonaro é negar a si mesmo. Esse grupo, ainda que minoritário, é lamentavelmente significativo. Lamentavelmente porque mostra que há uma parcela de brasileiros capazes de ignorar as centenas de milhares de mortes ao seu redor, mesmo quando há perdas dentro de sua casa. Esse é um traço de distorção mental complicado de lidar numa sociedade, mas não é novo, na medida em que a sociedade brasileira sempre conviveu com a morte sistemática dos mais frágeis, seja por fome, por doença não tratada ou por bala “perdida” da polícia.

Porém, todos aqueles que encontrarem alguma brecha para se desidentificar de Bolsonaro ou para dizer que foram enganados por ele na eleição estão se afastando horrorizados. Como sociedade, precisamos parar de renegar os eleitores arrependidos de Bolsonaro, porque é necessário dar saída às pessoas ou elas serão obrigadas a permanecer no mesmo lugar. Todos têm o direito de mudar de ideia, o que não os exime da responsabilidade pelos atos aos quais suas ideias os levaram no passado.

Bolsonaro se descobre isolado. E se descobre feio, pária do mundo. Nem mesmo líderes de direita de outros países querem vê-lo por perto. Antigos apoiadores, que lucraram muito com ele, vão vazando pela primeira brecha que encontram. Bolsonaro está acuado, como mostrou ao demitir o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. E Bolsonaro acuado é ainda mais perigoso, porque ele não gosta de perder e tem cada vez menos a perder. Este é um homem, ninguém tem o direito de esquecer, que planejou explodir bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Explodir bombas diz muito sobre alguém. Mas é preciso também prestar atenção no porquê: para melhorar seu próprio soldo. Bolsonaro só age fundamentalmente por si mesmo. Sua vida é a única que importa, como está mais do que provado.

A ideia ridícula de que ele é controlável é isso mesmo: ridícula. E, em vários momentos, também oportunista, para alguns justificarem o injustificável, que é seguir compondo com Bolsonaro. O homem que governa o Brasil é bestial. Se move por apetites, por explosões, por delírios. Mas não é burro. Aliado às forças mais predatórias do Brasil, ele destruiu grande parte do arcabouço de direitos duramente conquistados, um trabalho iniciado por Michel Temer (MDB) antes dele. Também desmontou a legislação ambiental e enfraqueceu os órgãos de proteção, abrindo a Amazônia para exploração em níveis só superados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Bolsonaro governa. E, não tenham dúvidas, seguirá governando enquanto não for impedido.

É necessário compreender que Bolsonaro é uma besta, sim, no sentido de sua bestialidade. Mas é uma besta inteligente e com projeto. Poucos governantes executaram com tanta rapidez seu projeto ao assumir o poder. Com exceção do discurso vazio da anticorrupção, Bolsonaro fez e faz exatamente o que anunciou na campanha eleitoral que faria. É por essa razão que isso que chamam “mercado” está sempre prestes “a perder a paciência” com ele, mas como demora... Demora porque sempre pode ganhar um pouco mais com Bolsonaro. Isso que chamam mercado inventou as regras que movem o Centrão. O que vale são os fins e os fins são os lucros privados, o povo que se exploda. Ou que morra na fila do hospital, como agora. O mercado é o Centrão com pedigree. Muito mais antigo e experiente que seu arremedo no Congresso.

Bolsonaro precisa ser impedido já, porque o que fará a seguir poderá ser muito pior e mais mortífero do que o que fez até agora. E precisa ser impedido também pelo óbvio: porque constitucionalmente alguém que cometeu os crimes de responsabilidade que ele cometeu não tem o direito legal e ético de permanecer na presidência. Ter impedido Dilma Rousseff por “pedaladas fiscais” e não fazer o impeachment de Bolsonaro “por falta de condições de fazer um impeachment agora” ou porque “o impeachment é um remédio muito amargo” é incompatível com qualquer projeto de democracia. É incompatível mesmo com uma democracia esfarrapada como a brasileira. E haverá consequências.

O que resta agora a Bolsonaro, cada vez mais isolado e acuado, é olhar para Donald Trump e aprender com os erros e acertos de seu ídolo. Ele seguirá tentando o autogolpe, mesmo com as Forças Armadas afirmando seu papel constitucional. Ele seguirá apostando naqueles que o mantiveram por quase 30 anos como deputado, sua base desde os tempos em que queria explodir os quartéis: as baixas patentes das Forças Armadas e, principalmente, as PMs dos Estados.

Bolsonaro se prepara muito antes de Trump. Se conseguirá ou não, é uma incógnita. Mas aqueles sentados sobre mais de 70 pedidos de impeachment e aqueles que ainda sustentam o Governo vão mesmo pagar para ver? É sério que vão seguir discutindo uma “solução de centro” para a eleição de 2022 e ignorar todos os crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro? É sério que ainda não entenderam que ele sempre esteve fora de controle porque as instituições que deveria controlá-lo pelo respeito à Constituição abriram mão de fazê-lo?

É sério que vão se arriscar a reproduzir no Brasil, de forma muito mais violenta, a “insurreição” vivida pelo Congresso americano em 6 de janeiro de 2021, quando o Capitólio foi invadido por seguidores inflamados por Donald Trump? Vale lembrar do republicano Mike Pence, vice-presidente no Governo de Trump, e do republicano Mitch McConnell, líder do partido no Senado: deram a Trump tudo o que ele queria, acreditando-se a salvo, até descobrir em 6 de janeiro que também estavam ameaçados. Não se controla bestas.

No Brasil, porém, com uma democracia muito mais frágil, qualquer uma das aventuras perversas de Bolsonaro poderá ter consequências muito mais sangrentas. Posso estar errada, mas acredito que Trump não pretendia que houvesse mortes. Ele é um político inescrupuloso, um negociante desonesto, um mentiroso compulsivo e um showman que adora holofotes, mas não acho que seja um matador. Já Bolsonaro é notoriamente um defensor da violência como modo de agir, que defende o armamento da população e claramente goza com a dor do outro. Bolsonaro acredita no sangue e acredita em infligir dor. Perto de Bolsonaro, Trump é um garoto levado com topete esquisito. E Bolsonaro está se movendo.

Quantos brasileiras e brasileiros ainda precisam morrer?

O Brasil já exibe números de mortos por covid-19 comparáveis a grandes projetos de extermínio da história. E as covas continuam sendo abertas a uma média diária de quase 3.000 por dia. Grande parte dessas mortes poderiam ter sido evitadas se Bolsonaro e seu Governo tivessem combatido a covid-19. Isso não é uma opinião, é um fato comprovado por pesquisas sérias. O sistema público de saúde está colapsado. O sistema privado de saúde também está colapsado. Hoje não adianta nem mesmo ter dinheiro no Brasil. As pessoas estão morrendo na fila, o que também está comprovado. Hospitais privados de ponta estão racionando oxigênio e diluindo sedativos. E as mortes seguem multiplicando-se.

A pergunta às autoridades responsáveis, de todas as áreas, no âmbito público e no privado, é: quantas brasileiras e quantos brasileiros mais precisam morrer para que vocês façam seu dever? Muitos de nós ainda morreremos, mas eu garanto: muitos de nós viveremos para nomear a responsabilidade de cada um na história. Seus nomes serão grafados com a vergonha dos covardes e seus descendentes terão o sobrenome manchado de sangue. Não morreremos em silêncio. E os que sobreviverem dirão o nome de cada um de vocês, dia após dia.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum / Este artigo foi publicado originalmente por EL PAÍS, em 07.04.2021

Dalcolmo: “Em vez de perder tempo com vacina privada, Brasil precisa de diplomacia para comprá-las”

Pesquisadora da Fiocruz diz que país precisa fechar e vacinar 150 milhões até o meio do ano para não inviabilizar imunidade coletiva. “Perderemos muitos jovens, mesmo sem comorbidades”

A médica Margareth Dalcolmo, pneumologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). (Crédito da foto: Peter Ilicciev / FIOCRUZ)

A médica pneumologista Margareth Dalcolmo (Espírito Santo, 1955) está na linha de frente do combate à covid-19 no Brasil desde o início da pandemia de coronavírus, tornando-se uma das principais vozes de referência sobre o assunto. Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ela prevê um mês de abril “realmente trágico” para o Brasil, com uma transmissão “extremamente alta” e uma vacinação “aquém do desejável”. O país registrou um recorde de 4.195 mortes em 24 horas nesta terça-feira. A especialista explica, em entrevista por telefone, que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) precisa vacinar 150 milhões de pessoas até o meio do semestre “para que consigamos ter uma imunidade comunitária adequada”. Até o momento, pouco mais de 20 milhões de brasileiros, cerca de 10% da população, recebeu a primeira dose do imunizante.

A isso se soma a necessidade de o país promover um confinamento rígido por duas ou três semanas, no mínimo. “Mesmo que estivéssemos neste momento imprimindo um ritmo de vacinação ideal de duas milhões de doses por dia, ainda assim seria necessário mantermos medidas de distanciamento social. A vacina sozinha não é um milagre”, destaca. Para isso, ela diz, se faz necessário também um auxílio emergencial suficiente para que as pessoas fiquem em casa. “Tem que parar com essa conversa falsa, essa dicotomia, que auxílio emergencial é uma questão da economia. Não é, é da saúde pública.”

Pergunta. Março registrou mais de 60.000 mortes por covid-19. O que podemos esperar para o mês de abril?

Resposta. Podemos esperar um mês de abril muito triste, muito grave. A taxa de transmissão está extremamente alta. E quem está causando doenças são as novas variantes, o que significa que muita gente jovem está adoecendo, e não necessariamente com comorbidades. Mudou o perfil de pessoas que demandam assistência e a pressão no sistema hospitalar segue muito alta. Isso é muito grave, porque vamos ter morte numa faixa etária mais jovem, numa fase muito produtiva das vidas. Acho que o mês de abril será realmente trágico para o Brasil, porque isso se acompanha de um ritmo de vacinação ainda aquém do desejável.

P. É razoável pensar num cenário de 5.000 mortes diárias?

R. Matematicamente é possível. O que propiciaria isso ocorrer? Manter uma transmissão muita alta, sem fechamento de nada, todo mundo circulando, transporte coletivo funcionando... Nesse caso podemos chegar, sim, porque há um exaurimento do sistema saúde. Há também outras doenças que não estão sendo tratadas adequadamente. Estão sendo negligenciadas. Muita gente vai morrer e não é de covid-19, mas sim de outras doenças. Por isso a situação no Brasil é muito trágica.

P. Uma pesquisa diz que três semanas de confinamento rígido é o tempo necessário para que comece a existir um efeito significativo e se reduza as mortes pela doença. Afinal, o que precisa ser feito?

R. O Brasil precisa fechar por duas semanas pelo menos, ou três, para diminuir a circulação do vírus. Quando disse isso pela primeira vez, as pessoas disseram que eu estava fazendo apocalipse, mas não, eu estou sendo realista. Os epidemiologistas nos ensinam muito bem. Uma doença que se transmite com a facilidade com que a covid-19 se transmite, que não é de uma pessoa para outra, mas de uma pessoa para várias outras mesmo estando assintomático, é muito séria. E temos que realmente vacinar muita gente e muito rápido. Há estudos recentes mostrando que quanto mais gente vacinada, você consegue influenciar a transmissão inclusive nos não-vacinados, suavizando a taxa de transmissão na comunidade. Isso é muito interessante. Mas, para isso, precisaríamos ter vacina, e nós não temos vacina. E tem outras coisas que parecem detalhes, mas não são. O uso de máscaras... As máscaras precisam ser adequadas, não podem ser essas máscaras que não filtram nada e que as pessoas estão usando.

P. Temos imunizantes de eficácia mais baixa, o que exige uma cobertura de vacinação bastante ampla. Mas a vacinação ocorre lentamente. Existe o risco de inviabilizarmos a imunidade coletiva?

R. Existe. Nós temos que implementar um novo ritmo de vacinação. Precisamos vacinar muita gente e muito rápido, para que consigamos realmente interferir nessa transmissão. Não adianta levar até o fim do ano para chegar a 70% da população brasileira vacinada. E não adianta dizer que basta vacinar 70 milhões. Isso está errado. Temos que vacinar 150 milhões de pessoas no Brasil para que consigamos ter uma imunidade comunitária adequada. E nós precisamos fazer isso até a virada do semestre. Nós poderíamos fazer, porque temos condição de vacinar mais de duas milhões de pessoas por dia no Brasil. O ritmo está está muito lento. É inadmissível que postos de saúde tenham fechado no feriado e que haja tanta restrição. Deveriam estar funcionando sábados e domingos, vacinando sem parar.

P. Os Estados começam a vacinar a população da faixa de 60 anos. Em que ponto da vacinação devemos chegar para que ela comece a surtir efeito no número de mortos?

R. Para diminuir o numero de mortes, não adianta só vacinar. Tem que isolar. Vacinar sozinho não vai resolver o problema. Mesmo que estivéssemos neste momento imprimindo um ritmo de vacinação ideal de duas milhões de doses por dia, ainda assim seria necessário mantermos medidas de distanciamento social. A transmissão da nova variante é muito rápida e muito fácil. Esse entendimento precisa ser feito. A vacina sozinha não é um milagre.

P. Como enxerga a movimentação no Congresso para que facilitar a compra de vacinas pelo setor empresarial? Um empresário ligado ao Governo Bolsonaro falou que o Ministério da Saúde poderia fazer a intermediação com as farmacêuticas, que não querem vender para o setor privado. O que acha?

R. É artificial. Ainda existe alguma ética no mundo. E uma ética internacional é que os produtores não vendem para setor privado, só vendem para governos. Ao invés de perder tempo com isso, o Brasil deveria resolver as questões de gestão diplomática, administrativa, política, e resolver as compras. Os Estados Unidos têm milhões de doses da AstraZeneca guardadas, sem usar, porque não foi aprovada pelo FDA [Food and Drug Administration]. Por que não doar para o Brasil? Depende de uma gestão. Erramos muito ao recusar a primeira oferta da Pfizer, ao não negociar com a Johnson & Johnson, ao não negociar uma proporção de população brasileira com o mecanismo Covax Facility... Negociamos doses para 10% da população apenas. Poderia ser negociado, 20%, 30% ou 40%, mas não fizemos.

FELIPE BETIM, de São Paulo para o EL PAÍS, em  07 ABR 2021 - 15:15 BR

Brasil registra 3.829 mortes por covid-19 em 24 horas

País contabiliza também mais 92,6 mil novos casos da doença. Total de infecções vai a 13,2 milhões, e óbitos somam 340,8 mil.

Enfermeiros atendem paciente em UTI

Com 2,7% da população mundial, Brasil responde por 28% das novas mortes diárias por covid-19

O Brasil registrou oficialmente 3.829 mortes ligadas à covid-19 nas últimas 24 horas, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) nesta quarta-feira (07/04).

Também foram confirmados 92.625 novos casos da doença. Com isso, o total de infecções no país chega a 13.193.205, e os óbitos somam 340.776.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 11.664.158 pacientes haviam se recuperado da doença.

O Brasil é no momento o líder mundial disparado em novas mortes diárias, e responde por cerca de 28% dos novos óbitos por covid-19 no mundo, segundo dados do site Our World in Data, vinculado à Universidade de Oxford. O Brasil tem 2,7% da população mundial.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais infecções e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam 30,85 milhões de casos e 556,5 mil óbitos, segundo contagem mantida pela universidade americana Johns Hopkins.

Com os dados de óbitos registrados nesta quarta, a taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 162,2 no Brasil, a 17ª maior do mundo, se excluído o país nanico San Marino.

Ao todo, mais de 132,8 milhões de pessoas já contraíram o coronavírus em todo o mundo e 2,88 milhões de pacientes morreram em decorrência da doença, segundo números oficiais.

Deutsche Welle Brasil, em 07.04.2021, há 15 minutos

Covid-19 eleva risco de doenças mentais e neurológicas

Análise de dados de 230 mil pacientes nos EUA mostra que um terço deles desenvolveu doenças mentais ou neurológicas seis meses depois de curados. Entre elas estão ansiedade, depressão e também demência.

Enfermeiras cuidam de paciente com covid-19 em hospital

Entre aqueles que estiveram internados em estado grave, há uma prevalência de acidente vascular cerebral e de casos de demência

Uma em cada três pessoas que foram infectadas com o novo coronavírus desenvolveu problemas neurológicos ou mentais, como ansiedade e depressão, em até seis meses após a cura, revelou nesta terça-feira (07/04) o maior estudo já realizado sobre sequelas mentais causadas pela covid-19.

Os pesquisadores afirmaram que ainda não está claro como o vírus estaria relacionado a doenças psicológicas, sendo ansiedade e depressão as mais comuns entre as 14 enfermidades analisadas. Já casos de demência e outros distúrbios neurológicos são mais raros, mas mesmo assim significativos entre pacientes que tiveram um quadro grave de covid-19.

Publicado na revista especializada Lancet Psychyatry e realizado por pesquisadores da Universidade de Oxford, o estudo analisou dados de 236.379 pacientes americanos que tiveram covid-19 e revelou que 34% deles desenvolveram algum distúrbio neurológico até seis meses depois de terem se recuperado da doença.

Entre os distúrbios mais comuns estão ansiedade (17%) e transtornos de humor (14%). Segundo o estudo, esses tipos de sequela não aparentam ter relação com o quão leve ou grave foi a infecção. Já entre aqueles que estiveram internados em estado grave, há uma prevalência de acidente vascular cerebral (7%) e de casos de demência (2%).

"Estes são dados reais de um grande número de pacientes. Confirmam a alta taxa de diagnósticos psiquiátricos após a covid-19 e mostram que também ocorrem problemas sérios no sistema nervoso", afirmou o principal autor do estudo, Paul Harrison, professor de psiquiatria na Universidade de Oxford.

Mais estudos são necessários

Os pesquisadores afirmam que os resultados são preocupantes. "Embora os riscos individuais para a maioria desses distúrbios sejam baixos, o efeito na população pode ser substancial e sentido nos sistemas de saúde e social", acrescentou Harrison.

Outros diagnósticos entre os que tiveram covid-19 foram o abuso de álcool ou outras substâncias (7%) e insônia (5%). Os riscos de problemas neurológicos são maiores em pacientes que tiveram formas graves de covid-19, por exemplo, em 62% do que sofreram de encefalopatia durante a infecção.

O estudo mostrou ainda que estes diagnósticos são mais comuns em pacientes com covid-19 do que em outros que tiveram gripe ou outras infecções respiratórias durante o mesmo período, sugerindo um impacto direto da doença provocada pelo vírus SARS-CoV-2.

"Agora, precisamos ver o que acontece para além dos seis meses. O estudo não consegue revelar os mecanismos envolvidos, mas evidencia a necessidade de investigar urgentemente para identificar, prevenir ou tratar esses casos", acrescentou um dos coautores do estudo, Max Taquet.

Mais estudos sobre esse tipo de sequela da covid-19, no entanto, são necessários, pois muitos dos infectados não desenvolvem sintomas ou não entram em registros de sistema de saúde. Os pesquisadores também destacam que a análise de dados não identificou o grau de gravidade das sequelas registradas.

Deutsche Welle Brasil cn/as (Reuters, Lusa, APF), em 07.04.2021

Pazzianotto: Obsessão por poder

O próximo governo deverá ser austero. A economia e o povo não suportam mais impostos

O poder é inebriante, envolvente, afrodisíaco. O imperador dom Pedro I revelou desapego ao poder. Preferiu abdicar e entregar o trono ao filho com 5 anos de idade. Voltou a Portugal, para não enfrentar manifestações de rebeldia. Dom Pedro II adotou atitude semelhante. Diante da quartelada comandada pelo marechal Deodoro da Fonseca, embarcou com a família e alguns amigos para a França, onde faleceu, pobre, em 5 de dezembro de 1891, cercado de admiração, carinho e respeito.

Na Primeira República, exemplo clássico de apego ao poder foi deixado por Getúlio Vargas. Investido na chefia do governo provisório pela Revolução de 1930, de imediato deixou claro que pretendia ficar. No Diário iniciado em 3 de outubro de 1930, data da deflagração do movimento armado, escreveu ao anoitecer do dia 25: “Osvaldo (Aranha) telegrafa-me, propondo assumir o governo para entregar-me constitucionalmente a 15 de novembro (data do encerramento do mandato do presidente Washington Luís). Respondo-lhe que as medidas excepcionais que precisam ser tomadas não comportam um governo constitucional, devendo essas medidas estender-se além de 15 de novembro” (vol. 1, Ed. Siciliano-FGV, RJ, 1995, pág. 17).

Deposto em 20 de outubro de 1945 pelo general Eurico Gaspar Dutra, a ambição de poder exigiu que se candidatasse nas eleições presidenciais de 1950. Com 67 anos, idade avançada para a época, Getúlio Vargas se entregou a campanha estafante. Esteve em 20 Estados e no Rio de Janeiro, à época capital da República. Fez comício em 54 cidades. Ao pressentir a vitória do visceral inimigo, o jornalista Carlos Lacerda escreveu proféticas palavras na Tribuna da Imprensa: “O senhor Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve ser empossado. Empossado, deveremos recorrer à revolução para impedi-lo de governar” (Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro - DHBB (Ed. FGV-Cpedoc, RJ, 2.ª edição, 2001, vol. V, pág. 5.952).

Às eleições de 2022 pretendem concorrer dois candidatos obcecados pelo poder: Jair Bolsonaro, à procura da reeleição, e Luiz Inácio Lula da Silva, no esforço de reconquistá-lo. Cometeu-se irreparável erro no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso com a promulgação da Emenda Constitucional nº. 16, de 5/6/1997, quando foi violada salutar tradição republicana da unicidade do mandato. “O cargo revela o homem”, disse o sábio grego Bias de Priene. Em Jair Bolsonaro o propósito da reeleição de imediato foi revelado. Com ajuda de áulicos palacianos, a duplicação do mandato se converteu em programa e razão de ser do governo. No caso de Lula, eleger-se é essencial para quem não admite voltar à obscuridade em São Bernardo do Campo. A ruína do País e o sofrimento do povo são indiferentes para eles.

Jair Bolsonaro é relativamente jovem. Tem contra si, todavia, o temperamento agressivo. Dois anos e três meses de governo revelam ser ele vítima de descontrole emocional e de irrefreável impetuosidade. Comporta-se como adolescente briguento e mal-educado. A minha vontade é lei, imagina o capitão paraquedista. Lula é caso raro de dirigente sindical bem-sucedido na arena política. Dizia ser capaz de eleger um poste. Elegeu e reelegeu Dilma Rousseff, pagando caro pela audácia.

Qualquer que seja o vencedor em 2022, encontrará o País devastado. Acredita-se que até lá terá refluído a pandemia, à força da vacinação massiva. A tarefa da reconstrução exigirá, contudo, habilidades além do alcance de Lula, pela idade, e de Bolsonaro, por falta de capacidade.

O primeiro passo consistirá no restabelecimento da unidade nacional, com a eliminação da bipolaridade bolsonaristas versus lulistas. Virá a seguir o esforço de recuperação da credibilidade internacional, destruída pelo ministro Ernesto Araújo. Dela dependerão investimentos destinados à retomada do crescimento, sobretudo industrial, e a criação de milhões de empregos. Uma das prioridades será a defesa da Amazônia e do meio ambiente, abandonados por Ricardo Salles. O próximo governo deverá ser austero nos hábitos e nos gastos. O Tesouro Nacional está exaurido. A economia e o povo não suportam novos impostos. Seria ótimo que a Constituição da República fosse deixada temporariamente em paz, até surgir a oportunidade de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

O ideal consiste na criação de terceira força, equidistante dos extremismos de esquerda e de direita. O excesso de partidos e a carência de lideranças nacionais reconhecidas serão, entretanto, dois empecilhos. Entre os pré-candidatos, lançados por si mesmos, todos estão desgastados ou envelhecidos. O eleitorado aguarda por alguém moderno, distante da velha política, comprometido com a devolução do governo à sociedade civil.

As experiências feitas com militares no poder deixam claro que devem retornar aos quartéis, encarregados da defesa da Pátria e da garantia dos Poderes constitucionais, como determina a Constituição. Só isso. Nada mais.      

Almir Pazzianotto Pinto, o autor deste artigo, é advogado. Foi Ministro do Trabalho e Presidente do Superior Tribunal do Trabalho. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 07 de abril de 2021.

O fiel seguidor

Para proteger a vida, o poder público pode impor restrições às atividades sociais

 O mundo real impõe limitações, deveres e responsabilidades. E, como se vê diariamente, o presidente Jair Bolsonaro deseja distância de tudo isso. Infelizmente, Jair Bolsonaro não está sozinho em seu alheamento negacionista.

Ao longo de penosos meses, o País viu o descalabro do intendente Eduardo Pazuello à frente do Ministério da Saúde. Agora, começa a se dar conta do que é ter um fiel seguidor de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 2 de abril, no pior momento da pandemia de covid-19 no País, o ministro Kassio Nunes Marques autorizou, por decisão liminar, celebrações religiosas presenciais em todo o País.

A decisão liminar é esdrúxula. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 701 foi proposta pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), que não tem competência para ingressar com esse tipo de ação. A ADPF 701 devia ser rejeitada de plano, mas o ministro Kassio Nunes Marques valeu-se dela para afagar o Palácio do Planalto.

A ação da Anajure insurgiu-se contra o Decreto 31 (de 20 de março de 2020), do município de João Monlevade (MG), que suspendeu o funcionamento de atividades com potencial de aglomeração de pessoas, para conter a difusão do novo coronavírus. Vale lembrar que, em 15 de abril de 2020, menos de um mês depois da edição do decreto municipal, o STF reconheceu a competência de Estados e municípios para definir as regras de isolamento.

Ou seja, a rigor, a ADPF 701 não questionava a prefeitura de João Monlevade, mas a decisão do STF. Era mais uma razão para negar o pedido da Anajure, mas o ministro Kassio Nunes Marques preferiu invadir a competência constitucional de Estados e municípios, arbitrando que cultos religiosos podem ser realizados com 25% da capacidade de lotação dos templos.

Não bastassem a irregularidade da ADPF 701 e o desrespeito às atribuições dos entes federativos, o ministro Kassio Nunes Marques mostrou, na decisão liminar, desconhecimento de conceitos básicos do Estado Democrático de Direito, além de ignorar a realidade.

É óbvio que o poder público, para proteger a vida da população, pode impor restrições às atividades sociais, aí incluídas as religiosas. Haja estreiteza intelectual para entender – tal como expresso na decisão liminar – que a proibição de atividades com potencial de gerar aglomeração, em meio à pandemia de covid-19, desrespeitaria a liberdade religiosa e o caráter laico do Estado.

Tem-se, assim, mais um exemplo de como o bolsonarismo não tem limites. Em sua desumana pretensão de negar a gravidade da pandemia, recorre a conceitos tão caros à dignidade humana, como a liberdade religiosa e a laicidade do Estado, para assegurar a realização de atividades que ampliam a difusão do novo coronavírus. O presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores desconhecem a situação dos hospitais e as atuais taxas de mortalidade da covid-19?

É estranho que entidades religiosas, alinhando-se ao bolsonarismo, sejam tão indiferentes ao interesse público. O estranhamento desaparece, no entanto, depois do dado divulgado pelo Estado. Igrejas têm R$ 1,9 bilhão em débitos inscritos na Dívida Ativa da União. Há casos, por exemplo, de não pagamento de contribuição previdenciária e do Imposto de Renda já descontados do salário dos empregados.

No dia 5 de abril, mostrando que o Poder Judiciário ainda não é sala de despacho do presidente da República, o ministro Gilmar Mendes negou pedidos do PSD e do Conselho Nacional de Pastores do Brasil e manteve o decreto do governo de São Paulo que vetou atividades religiosas coletivas presenciais durante as fases mais restritivas do plano de combate à covid-19.

Em sua decisão, Gilmar Mendes destacou que “apenas uma postura negacionista” permitiria concluir que a “excepcionalidade” das restrições às celebrações religiosas neste momento de nova escalada da pandemia violaria direitos fundamentais.

Uma vez que a decisão de Gilmar Mendes refere-se apenas ao Estado de São Paulo, cabe agora ao plenário do STF restaurar a defesa da vida e da Constituição em todo o território nacional. Todos os brasileiros merecem o mesmo respeito.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 07 de abril de 2021 | 03h00

Covid-19: Anthony Fauci diz que Brasil deve considerar seriamente fazer lockdown

Enquanto grande parte do mundo vê uma diminuição no número de casos e mortes por covid-19, o Brasil vive seu maior pico na pandemia e responde hoje por um em cada três mortos pelo novo coronavírus no mundo.

Acho que se você levar as vacinas ao povo brasileiro, as coisas vão melhorar com certeza. Isso é o que importa', diz Fauci, líder da força-tarefa contra a covid-19 nos EUA

"Todos reconhecem que há uma situação muito grave no Brasil", afirmou o médico americano Anthony Fauci em entrevista exclusiva à BBC News Brasil.

Quando o mundo todo estará vacinado contra a covid-19?

Fauci é um dos olhares preocupados que a situação sanitária do país atraiu. Líder da força-tarefa contra a pandemia nos Estados Unidos, o médico ganhou proeminência global ao contrariar publicamente as declarações do então presidente americano Donald Trump, que minimizou a gravidade da pandemia e atuou contra medidas de distanciamento social e a favor de tratamentos sem eficácia comprovada contra a covid, como a hidroxicloroquina.

Fauci prefere não tratar o Brasil como "ameaça", termo corrente na imprensa internacional diante da onda de contágio brasileira, mas reconhece que a grave situação do Brasil está se espalhando pela América do Sul e que, para contê-la, serão necessárias duas medidas: aumento na vacinação e adoção de medidas como lockdowns.

"Não há dúvida de que medidas severas de saúde pública, incluindo lockdowns, têm se mostrado muito bem-sucedidas em diminuir a expansão dos casos. Então, essa é uma das coisas que o Brasil deveria pensar e considerar seriamente dado o período tão difícil que está passando", argumentou Fauci.

Há três dias, no entanto, o ministro da Saúde do Brasil, Marcelo Queiroga, praticamente descartou essa medida ao dizer que "a ordem é evitar lockdown".

Na outra frente, a das vacinas, a situação também não é confortável: apenas 20 milhões de brasileiros (pouco mais de 9% da população) já receberam ao menos uma dose de imunizante, e no ritmo atual não chegaria à metade da população neste semestre.

Depois de recusar ofertas de vacinas da Pfizer, ameaçar boicotar a CoronaVac e não buscar outros fornecedores além da AstraZeneca-Oxford, cuja fabricação pela Fiocruz vem sofrendo sucessivos atrasos, o governo Bolsonaro se viu sem muitas opções para acelerar a chegada das vacinas aos braços brasileiros.

Desde março deste ano, o governo federal tenta negociar a compra de alguns milhões de doses da vacina AstraZeneca-Oxford que estão sem uso nos Estados Unidos atualmente e não devem ser necessárias ao país, que conta com estoques de Pfizer, Moderna e Janssen suficientes para a população.

Fauci, no entanto, indica que os Estados Unidos não devem repassar essas doses ao Brasil em uma negociação bilateral.

"Os Estados Unidos já desempenham um papel importante na tentativa de levar vacinas para outros países que precisam. Nós retornamos à Organização Mundial de Saúde (OMS), estamos nos juntando ao Covax", afirmou Fauci, em referêcia ao consórcio de países lderado pela OMS para distribuir vacinas aos países mais pobres.

O médico completou: "E já deixamos bem claro que assim que levarmos as vacinas para a esmagadora maioria das pessoas nos EUA, além de termos o suficiente para reforços, colocaremos o excesso de vacina à disposição dos países em todo o mundo que precisarem".

Segundo ele, isso seria feito via Covax, que, no entanto, não deve trazer grande alívio à condição do Brasil, já que o governo federal optou por participar da iniciativa apenas com a cota mínima, de 42 milhões de doses (e até agora só recebeu 1 milhão delas).

Fauci, que chefia o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID) desde 1984, não quis comentar sobre a responsabilidade de Bolsonaro no agravamento da pandemia.

Ele disse, no entanto, que o exemplo dos Estados Unidos, onde mais de 550 mil morreram de covid-19, mostra ao Brasil que "negar a gravidade do surto nunca ajuda. Na verdade, muitas vezes piora a situação".

"Para controlar uma epidemia, você precisa admitir que tem um problema sério. Depois de admitir que tem um problema sério, você pode começar a fazer as coisas para resolvê-lo", afirmou Fauci.

Para ele, os países que tiveram mais eficiência em lidar com a covid-19, como Austrália e Nova Zelândia, devem seu sucesso ao acerto de um comando central que contou com a cooperação da população. "Quando você tem conflitos, sejam eles políticos ou não, isso sempre diminui a eficácia do controle do vírus."

Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Anthony Fauci à BBC News Brasil.

BBC News Brasil - Um em cada três mortos por covid-19 no mundo hoje é do Brasil. No país, as pessoas estão morrendo sem acessos a UTIs, há falta de oxigênio e sedativos em hospitais e uma desproporção no número de mortes de jovens. Como avalia o que está acontecendo?

Anthony Fauci - O Brasil está passando por uma situação muito infeliz. A variante P1, que parece estar dominando o país, tem a característica de ser muito eficiente na propagação de pessoa para pessoa. Não temos certeza se causa uma doença mais séria (do que o vírus da covid-19 original), mas muito provavelmente pode.

E, dado de que o Brasil ainda não vacinou uma grande proporção de sua população, é bastante compreensível que o sistema de saúde no Brasil esteja sobrecarregado. Está tendo um grande aumento de casos que teve um impacto muito negativo sobre o sistema de saúde, que, em muitos aspectos, não tem sido capaz de lidar com o fluxo de pacientes que chega agora. Então, todos reconhecem que é uma situação muito grave no Brasil.

BBC News Brasil - A vacinação contra covid-19 no Brasil segue em ritmo lento por falta de doses, e o presidente brasileiro foi à Justiça lutar contra a adoção de lockdown, que ele diz que não funciona. Considerando isso, que medidas o Brasil poderia tomar para combater a pandemia?

Fauci - Não há dúvida de que medidas severas de saúde pública, incluindo lockdowns, têm se mostrado muito bem-sucedidas em diminuir a expansão dos casos. Você não precisa fazer um lockdown sem prazo pra acabar, mas, se restringir a circulação e garantir que todos usem máscara, você não terá pessoas se reunindo em ambientes fechados como em restaurantes e bares, e isso diminui o número de casos.

Portanto, acho importante ressaltar que esses tipos de restrições de saúde pública são cruciais para se obter controle sobre epidemias. Vimos em muitos outros países onde houve uma grande quantidade de casos que, quando as medidas de saúde pública foram implementadas, o número de casos diminuiu drasticamente. Então, essa é uma das coisas que o Brasil deveria pensar e considerar seriamente dado o período tão difícil que está passando.

'Contágio é exponencial' e só lockdown impede tragédia maior no Brasil, alertam cientistas

BBC News Brasil - O jornal americano The Washington Post mostrou que a variante P1, surgida no Brasil, se espalhou pela América do Sul. Ela já foi identificada em 25 países. O mesmo jornal afirmou que a pandemia no Brasil faz do país uma ameaça global. O senhor vê o Brasil como ameaça, não só pela P1 como pela possibilidade de surgimento de outras variantes?

Fauci - Não vou fazer uma declaração de que o Brasil é uma ameaça, porque isso poderia ser tirado do contexto e seria uma frase de efeito infeliz. O que estou dizendo é que o Brasil está em uma situação grave que está se espalhando para outros países da América do Sul, o que é lamentável. E esse é um dos motivos pelos quais é muito importante para a América do Sul e o Brasil, em particular, tentar vacinar o máximo de pessoas o mais rápido possível.

Fauci aponta que o Brasil passa por uma situação muito 'infeliz' (Crédito da foto: Reuters)

BBC News Brasil - Existem doses extras da vacina AstraZeneca-Oxford nos Estados Unidos que não estão sendo usadas. Alguns cientistas do país argumentam que as doses devem ser enviadas ao Brasil o mais rápido possível. Qual sua opinião?

Fauci - Os Estados Unidos já desempenham um papel importante na tentativa de levar vacinas para outros países que precisam. Como você provavelmente sabe, nós retornamos à Organização Mundial de Saúde, estamos nos juntando ao Covax, que é um consórcio de organizações e países cuja finalidade é levar doses de vacina para aquelas partes do mundo que não têm acesso às vacinas. Demos ou já prometemos US$ 4 bilhões (R$ 22,4 bilhões) em recursos para fazer isso. E já deixamos bem claro que assim que levarmos as vacinas para a esmagadora maioria das pessoas nos Estados Unidos, além de termos o suficiente para reforços, colocaremos o excesso de vacina à disposição dos países em todo o mundo que precisam delas.

BBC News Brasil - E isso vai ser feito por meio do Covax?

Fauci - Sim, por meio do Covax.

BBC News Brasil - Os Estados Unidos parecem já ter deixado para trás o maior pico de infecções. Que lições o Brasil pode tirar da experiência dos americanos?

Fauci - Acho que a lição é sempre seguir a ciência da maneira que venho tentando dizer há mais de um ano, porque, se você seguir a ciência, provavelmente terá um melhor controle sobre o vírus e será capaz de seguir as evidências que surgirem.

Às vezes, é necessário impor restrições mais duras que são diretrizes de saúde pública para controlar a epidemia. Negar a gravidade do surto nunca ajuda. Na verdade, muitas vezes piora a situação. Para controlar um surto, você precisa admitir que tem um problema sério.

Depois de admitir que tem um problema sério, você pode começar a fazer as coisas para resolvê-lo.

Fauci se reuniu recentemente com Marcelo Queiroga, o quarto ministro da saúde do Brasil durante a pandemia (Crédito da foto: Getty Images)

BBC News Brasil - É possível determinar o que faz de um país um exemplo de sucesso na pandemia? Poderia dar bons e maus exemplos disso e explicar o porquê?

Fauci - Não vou dar maus exemplos. Vou te dar bons exemplos. Uma das coisas que é importante é que um país tem que se unir, e as pessoas têm que agir de forma uniforme, reconhecendo que o inimigo comum é o vírus e não ter conflitos sobre qual é a melhor abordagem. É preciso ter uma direção e garantir que a população seja cooperativa no cumprimento das ordens do poder central.

Vemos em países como Austrália, Nova Zelândia, Taiwan e Cingapura, nos quais uma das decisões tomada foi a de fazer lockdown, e o país seguiu isso e entrou em lockdown. Quando foi a hora de abrir, houve a reabertura. Mas quando se tomou essa decisão de restringir certas coisas, todos cooperaram.

É realmente uma situação em que é importante que haja cooperação, que as pessoas tenham o objetivo comum de combater o vírus. Quando você tem conflitos, sejam eles políticos ou não, isso sempre diminui a eficácia do controle do vírus.

A melhora da pandemia está diretamente relacionada com o avanço da vacinação, defende Fauci (Crédito da foto: Reuters)

BBC News Brasil - Deveríamos já ter uma vacina focada especificamente na variante P1?

Fauci - As vacinas funcionam muito bem contra a maioria das variantes. Acho que o importante é levar a vacina ao povo brasileiro o mais rápido possível. Não precisa ser específica contra a P1. A P1 diminui um pouco a eficácia (dos imunizantes), mas não a elimina. Portanto, é possível obter um grande benefício com a vacina padrão.

BBC News Brasil - O senhor vê dias difíceis pela frente para o Brasil?

Fauci - Acho que se você levar as vacinas ao povo brasileiro, as coisas vão melhorar com certeza. Isso é o que importa. Você tem que conseguir controlar (o contágio) com medidas de saúde pública, além de levar o máximo de vacina o mais rápido possível para o povo brasileiro.

BBC News Brasil - Existe uma disputa no Brasil agora porque as pessoas querem ir à igreja. Nós vimos isso nos Estados Unidos. O que diria sobre isso nesse momento difícil da pandemia?

Fauci - Diria que as pessoas precisam evitar ambientes fechados e cheios de gente. Sei que todo mundo quer ir à igreja, e isso é muito importante, mas é preciso ter cuidado ao lidar com lugares lotados. Geralmente, é um local de disseminação do vírus.

Minha mensagem ao povo brasileiro é tentar ao máximo evitar aquelas coisas que levam à propagação do vírus, usar máscaras, evitar ir a ambientes lotados, manter distância física, lavar as mãos. Sempre que você puder. Esses são os elementos básicos de saúde que, se os brasileiros seguirem, poderão controlar a pandemia.

Mariana Sanches - @mariana_sanches, da BBC News Brasil em Washington, (6.04.21)

terça-feira, 6 de abril de 2021

Sanção do Orçamento poderá configurar crime fiscal, alerta Ministério Público no TCU a Bolsonaro

Procurador Lucas Furtado também pede que órgão regulador apure responsabilidade da equipe econômica no processo. Documento deve ser anexado em processo que tramita na Corte

O presidente Jair Bolsonaro ao lado do ministro da Economia, Paulo Guedes Foto: Evaristo Sá / AFP

O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) entrou com pedido para que a Corte alerte o presidente Jair Bolsonaro que ele poderá responder por crime fiscal caso sancione o projeto de Orçamento aprovado pelo Congresso Nacional.

Na representação, o procurador Lucas Furtado solicita que o aviso seja encaminhado à Procuradoria-Geral da República (PGR) e ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).

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Furtado pede também que o TCU apure a responsabilidade da equipe econômica nas negociações com o Congresso que resultaram na formatação do texto final do orçamento, considerando que o time do ministro Paulo Guedes  "tem a participação ativa e contínua" na tramitação da proposta, conforme trecho do documento.

A representação deverá ser anexada a outro processo em tramitação na área técnica do TCU, após pedidos de grupos de deputados e senadores para que o órgão se manifeste sobre o mesmo tema. 

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Segundo fontes do Tribunal, o parecer técnico deverá ser encaminhado ao ministro relator, Bruno Dantas, até essa quarta-feira. 

Por outro lado, o Executivo corre para fechar ainda nesta semana um acordo com o Congresso sobre quais trechos do orçamento podem ser, tecnicamente, vetados para posterior recomposição de despesas obrigatórias, como pagamento dos benefícios previdenciários e seguro desemprego, por exemplo.

Para engordar as emendas dos parlamentares e de interesse do próprio governo, o relator cancelou R$ 26,4 gastos obrigatórios.

Para Furtado, a simples sanção da peça orçamentária já poderia se caracterizar como crime fiscal, antes mesmo da execução da despesa, que ocorre ao longo do ano:

“A gravidade e ineditismo da questão ganham caráter quase surreal, tendo em vista que a possível ocorrência de crime de responsabilidade fiscal e também de crime comum por parte do Presidente da República já é uma quase-realidade, mesmo antes da execução da própria despesa”. 

Segundo ele, a proposta orçamentária fere as regras fiscais vigentes, como o teto do gasto público, que limita o crescimento da despesa à inflação e a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Para Furtado, o presidente também pode ser acusado de crime comum previsto no Código Penal.

"A sanção do presidente da República ao projeto de lei orçamentária de 2021 pode incorrer, em tese, em crime de responsabilidade previsto na Lei nº 1079/1950, art. 10, item 4 (infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária)”, afirma Furtado.

Em resposta às críticas ao Orçamento, o relator da proposta, senador Márcio Bittar (MDB-AC) e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) têm argumentado que representantes do governo participaram de todas as etapas na negociação.

Os parlamentares citam a promessa do Executivo em liberar emendas parlamentares de R$ 16,5 bilhões para deputados e senadores na votação da Proposta de Emenda (PEC) que autorizou a renovação do auxílio emergencial. Esse valor deverá ser mantido para não aumentar o atrito com o Congresso.

Geralda Doca, O Globo, em 06/04/2021 - 14:14 / Atualizado em 06/04/2021 - 16:49

A dança macabra de Bolsonaro, ‘me vacino, não me vacino’, ofende a memória dos mortos

A este ponto o falso herói que desafia a morte na pandemia e continua a brincar sobre imunizar-se ou não, como se não estivéssemos lutando contra a morte, é uma responsabilidade das instituições e do Exército que continuam tolerando seus delírios violentos

Presidente Jair Bolsonaro retira a máscara em pronunciamento no Palácio do Planalto no última dia 31. (Crédito da foto: Ueslei Marcelino / Reuters)

Por JUAN ARIAS

A atitude negacionista de Bolsonaro sobre a pandemia e a vacina é mais do que conhecida. E agora se tornou mais aguda com seu comportamento burlesco sobre se vai ou não tomar a vacina. Se não fosse dramático, poderia ser uma ópera-bufa.

Depois de zombar da vacina, dizendo que os homens se transformariam em jacarés e nas mulheres cresceriam barbas, ele afirmou enfaticamente: “Eu não vou tomar vacina e ponto final, problema meu”. Agora, não se sabe se por medo ou pressão de seus assessores correu a notícia de que o presidente enfim decidiu tomar a vacina.

O acontecimento deveria ter sido no último sábado da Paixão. De repente, o ministro da Saúde desmentiu a notícia e o presidente não se vacinou. Os fotógrafos ficaram sem a foto histórica.

Bolsonaro, com seu costume de mentir e desmentir-se, afirmou que se lhe disserem que tem que se vacinar, então, o fará quando toda a população já tiver feito isso, e se sobrar uma dose.

É uma piada, pois todos os chefes de Estado do mundo, de direita ou de esquerda, foram os primeiros a ser vacinados e em público.

Todas as atitudes de Bolsonaro sobre se deve ou não ser vacinado refletem sua idiossincrasia como político em quem é impossível confiar porque, além de mentir descaradamente, gosta de confundir a sociedade. Que confiança proporciona o presidente à nação no trágico momento que está passando, com a maior crise de saúde de sua história e quase sem mais lugar físico para enterrar os mortos?

Essa diversão de ser vacinado ou não se repete em suas ameaças de dar um golpe militar ou não. Os acontecimentos dos últimos dias em seu confronto com as forças do Exército, que deixaram o país em suspense, são mais um claro sinal de seus transtornos psíquicos e de seu gosto por ameaçar com uma guerra civil.

Ao que parece, o presidente, para desmentir que seja um militar frustrado que pretende se ressarcir da humilhação de ter sido expulso do Exército quando jovem, hoje infantilmente finge considerar as Forças Armadas como “meu Exército”.

É uma chacota que as Forças Armadas não deveriam permitir, nem que seja para não decepcionar a sociedade que desde a redemocratização tem considerado as forças militares sérias e confiáveis na defesa da democracia e das instituições do Estado.

Se a princípio os militares confiaram no capitão aposentado para lutar contra o perigo imaginário de um comunismo que não existe no Brasil, hoje esse cenário não existe e o perigo real contra a democracia é justamente o capitão complexado e complacente com a morte da qual chega a zombar.

Assim como Bolsonaro primeiro zombou da pandemia e, agora, da vacina, ele tenta hoje impor um estado de exceção para fugir de suas responsabilidades e alimentar suas hostes golpistas que diminuem a cada dia.

A este ponto o falso herói que desafia a morte na pandemia e continua a brincar sobre vacinar-se ou não, como se não estivéssemos lutando contra a morte, é uma responsabilidade das instituições e do Exército que continuam tolerando seus delírios violentos.

Amanhã a sociedade poderá se revoltar contra essas instituições que consentiram impunemente que o país continuasse nas mãos de quem zomba da dor alheia e sente repulsa pelos valores da liberdade, enquanto continua a cultivar seus sonhos de arrastar o país para aventuras autoritárias, repetindo como um mantra ‘quem manda sou eu’.

Não é verdade. Ele manda em conjunto com as demais instituições responsáveis por defender a Constituição e garantir a ordem e a prosperidade no país.

O teste importante será a reeleição de 2022, isso se antes não forem capazes de destituir o presidente por seus crimes e suas contínuas ameaças à ordem estabelecida.

Os militares vão continuar no Governo até as eleições, depois de terem constatado os delírios do capitão que se sente dono e senhor das forças da ordem, chegando mesmo a humilhá-las?

Essas forças armadas vão voltar a apoiá-lo nas próximas eleições ou vão optar por uma solução realmente democrática? Ou será que os militares não conseguem entender o que representaria para a sociedade e para eles próprios um segundo mandato desse que já deu sinais inequívocos de que despreza as instituições e pode conduzir o país a um caos sem volta?

Se as instituições do Estado e as próprias Forças Armadas continuarem pensando apenas em seus privilégios pessoais e em suas vantagens corporativas enquanto a pobreza, a fome e o desemprego aumentam, o Brasil corre o risco de se tornar parte dos países párias do mundo, quando já foi considerado um exemplo de potência mundial e de desenvolvimento econômico e social.

Há erros históricos que não têm volta. O Brasil ainda está a tempo de embarcar em um novo período de desenvolvimento e prosperidade, mas com a condição de que o capitão saia do poder quanto antes e deixe de se considerar o dono absoluto do país, como os antigos imperadores.

Tudo ainda pode mudar quando quem guia a nação deixa de desprezar os valores civilizadores capazes de criar uma sociedade unida em uma nova esperança, sem guerras fratricidas e sem pisotear os valores em que se fundamenta a verdadeira convivência mundial.

O Brasil ainda tem tempo de voltar do inferno em que o mergulhou um presidente insignificante que só sonha com armas e confrontos políticos e sociais.

Esperança não é um verbo conjugável. É um substantivo que pode ressuscitar a qualquer momento, como o sol no meio de uma tempestade.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente. Este artigo foi publicado originalmente no EL PAÍS, em 06.04.2021.

Brasil registra mais de 4.000 mortos de covid-19 em 24 horas pela primeira vez

O Brasil registrou nesta terça-feira um novo recorde de mortes diárias registradas na pandemia: foram 4.195 óbitos, segundo os números do Ministério da Saúde. 

Apesar de às terças a cifra costumar ser mais alta, dado o represamento da coleta de dados por causa do fim de semana, a nova marca mostra a escalada da crise sanitária no país. Foram registrados quase 87.000 novos casos.

Em novo boletim, o Observatório Covid-19 da Fiocruz adverte que abril deve manter as condições críticas de março, o mês mais mortal da pandemia no Brasil até agora. “Ao longo da última Semana Epidemiológica 13, houve uma aceleração da transmissão de Covid-19 no Brasil. Devido ao acúmulo de casos, diversos deles graves, advindos da exposição ao vírus ainda no mês de março, o vírus permanece em circulação intensa em todo o país”, diz o texto.

Vacina Sputnik, o novo cavalo de Troia entre os países do Leste e a União Europeia
Hungria e Eslováquia quebram o consenso europeu ao comprar doses russas e chinesas contra a covid-19, o que causou mudança de Governo em Bratislava enquanto cresce a tensão política na região

São Paulo registra 1.389 óbitos por covid-19 em 24 horas, novo recorde

O Estado de São Paulo registrou nesta terça-feira 1.389 óbitos por covid-19 em seu boletim sobre as últimas 24 horas. É o maior desde o início da pandemia, mas o Governo destaca que o boletim apresenta dados acumulados desde o feriado da última sexta-feira, período durante o qual habitualmente são registrados menos óbitos, por conta de limitações no efetivo responsável pelo trabalho.

Desde o início da pandemia, destaca o Governo paulista, foram registradas 78.554 mortes e 2.554.841 casos de infecção no Estado. Nas últimas 24 horas, foram notificadas mais 22.794 contaminações. Até segunda-feira, havia 29.510 pacientes internados, 12.963 deles em leitos de Terapia Intensiva. As taxas de ocupação dos leitos de UTI são de 90,7% no Estado e de 90,6% na Grande São Paulo.

Anvisa alerta para riscos da automedicação durante a pandemia

“É preciso que as pessoas se conscientizem dos riscos reais dessa prática, que pode causar reações graves, inclusive óbitos", alerta a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em comunicado divulgado na noite de segunda-feira. A mensagem não mencionaa diretamente o uso dos medicamos propagandeados pelo presidente Jair Bolsonaro, mas inclui notas já publicadas pela agência sobre o fato de não haver estudos sobre a efetividade de remédios como ivermectina e cloroquina no combate à covid-19. "Todo medicamento apresenta riscos relacionados ao seu consumo, que deve ser baseado na relação benefício-risco. Ou seja, os benefícios para o paciente devem superar os riscos associados ao uso do produto”, lembra a Anvcisa.

EL PAÍS, em 06.04.2021