domingo, 14 de março de 2021

Cotada para o Ministério da Saúde, médica disse que Brasil está fazendo 'tudo errado na pandemia'

Especialista no combate ao Covid-19, Ludhmila Hajjar criticou atraso na vacinação e condenou o uso de cloroquina para o tratamento da doença, defendido por Bolsonaro, posto que 'coloca a vida das pessoas em risco'

A médica cardiologista Ludhmila Hajjar Foto: Reprodução / Internet

Cotada para assumir o Ministério da Saúde no lugar do general Eduardo Pazuello, que pediu para sair alegando problemas médicos, a cardiologista Ludhmila Hajjar disse, em entrevista publicada há uma semana, que "o Brasil está fazendo tudo errado na pandemia". Ela também é defensora do isolamento social como forma de evitar o alastramento do vírus e condenou o uso de cloroquina no tratamento de Covid-19, em posicionamentos opostos aos do presidente Jair Bolsonaro. Ela disse ainda não haver, nas três esferas de poder, nenhum político que "fale a língua do povo".

Ludhmila foi sondada por interlocutores de Bolsonaro, que avalia dar a ela o comando da pasta. Ambos devem se encontrar neste domingo ou na segunda-feira. Após a sondagem, ela apagou a conta oficial que mantinha no Twitter.

"Não era nunca para estarmos em crescimento do número de doentes mortos sendo que o mundo todo demonstra uma queda. O Brasil está fazendo tudo errado e está pagando um preço por isso. 

Hoje temos um número muito pequeno da população vacinada. Isso tudo tem um resultado hoje catastrófico, que estamos, infelizmente, assistindo no nosso dia a dia. 

O Brasil já deveria estar hoje com cinco ou seis vacinas disponíveis", disse Ludhmila em entrevista ao Jornal Opção, de Goiás.

Sem citar Bolsonaro, ela também criticou, de forma veemente, o uso de cloroquina, que não tem comprovação científica para tratamento de Covid-19.

"Sabemos que cloroquina não funciona há muitos meses, que azitromicina não funciona há muitos meses, que ivermectina não funciona há muitos meses. Mas ainda tem esses kits por aí. Tem conselhos que defendem. Tem conselhos que não negam. É uma conjunção de fatores – o não conhecimento e a não adoção de práticas baseadas em evidências científicas – que só coloca a vida das pessoas em risco", afirmou.

A médica também criticou o afrouxamento, pelo poder público, de medidas restritivas que poderiam ter evitado o alastramento do vírus.

"Foi uma ineficiência na adoção de medidas que poderiam ter minimizado muito a prevalência da doença. Ao mesmo tempo, não tivemos uma liderança nas três esferas que pudesse falar a língua do povo, que pudesse organizar a resposta das pessoas e da população. Não tivemos medidas sociais para tentar adequar todas as medidas protetivas que são orientadas".

Relação antiga

Especializada no tratamento de Covid-19, Ludhmila chegou a ser cotada para assumir o ministério quando Luiz Henrique Mandetta (DEM-MT) deixou o comando da pasta. O nome da cardiologista foi defendido por aliados de Bolsonaro como a advogada Karina Kufa. Na ocasião, no entanto, Nelson Teich foi o escolhido para a função.

Na rede privada, em Brasília, ela tratou o próprio Pazuello, quando ele foi infectado pelo coronavírus. Ela também atendeu os ministros Tarcísio de Freitas (Infraestrutura), e Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, além dos ex-presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP).

Segundo fontes do Planalto, Pazuello comunicou a Bolsonaro estar com problemas de saúde e que, por isso, precisará de mais tempo para se a reabilitar. 

O pedido de afastamento de Pazuello coincide com o auge da pressão de deputados do Centrão, que pleiteiam mudança no comando da pasta sob pretexto de má gestão durante a pandemia. Além de Ludhmila, também foi cogitado para o cargo o nome de Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Em 2020, Bolsonaro o indicou para o cargo de diretor da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Além de criticarem a gestão de Pazuello, principalmente por conta do atraso no cronograma de vacinação, deputados do Centrão disseram em caráter reservado ao GLOBO que, com a volta do ex-presidente Lula (PT) ao cenário eleitoral, o bloco, hoje na base de Bolsonaro, ganha força para pleitear mais espaços na administração pública.

Paulo Cappelli, O Globo. Publicado originalmente em 14.03.2021.

Nem o diabo

Confrontado pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversários

Nas inolvidáveis palavras de Dilma Rousseff, então presidente da República, “podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. A máquina lulopetista de destruição de reputações era mesmo diabólica. Com razão, os eleitores demonstraram o desejo de dar um basta em tanta desfaçatez e passaram a castigar o PT nas urnas. O recado foi claro: em política, mesmo que alguns considerem válido “fazer o diabo”, não se pode fazer coisas que nem o diabo faria.

O presidente Jair Bolsonaro, contudo, parece disposto a cruzar todos os elásticos limites da pugna política. Em recente manifestação pública, leu uma carta de um suposto suicida, cuja morte o presidente atribuiu às medidas de restrição adotadas por governadores para conter a pandemia de covid-19.

A exploração de um alegado suicídio para fins políticos – atacar os governadores, a quem o presidente culpa pela situação econômica crítica no País – não tem paralelo na história nacional. Nenhum presidente da República foi tão longe nem tão baixo. Quem tenta capitalizar eleitoralmente a morte de um cidadão angustiado demonstra duas coisas: destempero e desespero.

O destempero se traduziu na forma de inúmeros palavrões e insinuações de conotação sexual – as preferidas do presidente – contra seus adversários. Nada disso é novidade, mas não custa lembrar que, sempre que faz isso, Bolsonaro viola o decoro inerente ao cargo que ocupa, com a agravante de que o faz nas dependências da residência oficial, usando equipamentos e pessoal pagos com dinheiro público – o que configura crime de responsabilidade, um dos tantos que Bolsonaro comete quase todos os dias.

Se a deseducação do presidente Bolsonaro não é novidade, o desespero é. Antes seguro de sua condição de franco favorito à reeleição, pela qual trabalha desde o momento em que vestiu a faixa, Bolsonaro dá sinais agora de que se sente ameaçado.

A provável entrada de Lula da Silva na disputa de 2022 agravou sua insegurança. Certamente informado a respeito de pesquisas que mostram sua reeleição cada vez mais incerta, sobretudo em razão da escalada da crise provocada pela pandemia, Bolsonaro tratou de intensificar sua busca por bodes expiatórios para fugir de uma responsabilidade que é primordialmente sua, na condição de presidente da República.

Em suas redes sociais, Bolsonaro disse que “nós aqui buscamos salvar empregos”, enquanto governadores como o de São Paulo, João Doria, “que não tem coração”, demonstram “uma tremenda ambição”, estão apenas “lutando pelo poder” e só querem “atingir a figura do presidente da República” com medidas de restrição social e econômica para conter a pandemia.

Bolsonaro levantou suspeitas sobre o número de mortos por covid-19, insinuando que está sendo inflado para prejudicá-lo, e igualou as medidas adotadas pelos governadores à decretação de estado de sítio. Nesse momento, entrou em seu terreno favorito: a possibilidade de se tornar ditador.

Citando a hipótese de convulsão social como consequência das medidas restritivas, com “invasão aos supermercados, fogo em ônibus, greves, piquetes e paralisações”, Bolsonaro disse que cabe a ele, como presidente, “garantir a nossa liberdade”. E completou: “Eu sou o garantidor da democracia”.

Julgando-se detentor de tamanho poder, Bolsonaro disse que lhe seria “fácil impor uma ditadura no Brasil”, bastando, para isso, conforme suas palavras, “levantar a caneta e falar ‘shazam’”. E ameaçou: “Eu faço o que o povo quiser. Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. As Forças Armadas acompanham o que está acontecendo”, declarou Bolsonaro, para em seguida recordar com carinho da época da ditadura militar.

É bom levar a sério mais essa ameaça golpista, em se tratando de alguém com tão poucos freios morais. Confrontado pela realidade trágica da pandemia, Bolsonaro tenta explorar as mortes como ativos eleitorais, colocando-as na conta de seus adversários, e violenta a inteligência alheia ao dizer que sempre defendeu a vacina e que nunca considerou a covid-19 uma “gripezinha” – mentiras que podem ser facilmente refutadas em inúmeros vídeos do próprio presidente na internet.

Quem é capaz disso é capaz de tudo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 14 de março de 2021 

Rolf Kuntz: A chanchada sinistra do autoritarismo

A pandemia avança, enquanto o governo encena a paródia da ditadura militar

Pornochanchada já era. O Brasil vive agora uma chanchada trágica, encenada pelo mais incompetente e mais desastroso governo de sua História. Não há como estranhar as obscenidades de Jair Bolsonaro e de seu filho Eduardo, especialmente quando dirigidas à imprensa. Suas barbaridades apenas expressam, de modo chulo, o padrão moral, intelectual e político do grupo instalado no centro do poder federal. Quando manda enfiar em lugar impróprio as máscaras destinadas à prevenção sanitária, o filho do presidente celebra, como seu pai, a mortandade dos brasileiros. Essa grosseria, tipicamente bolsonariana, foi postada em 10 de março, quarta-feira. No mesmo dia, um novo recorde de mortes pela covid, 2.349 em 24 horas, foi registrado. A família presidencial poderia celebrar um novo marco em sua história.

Também na quarta-feira o ministro Eduardo Pazuello, famoso por sua omissão quando pacientes morriam sufocados em Manaus, negou o risco de colapso nos serviços de saúde. “O nosso sistema de saúde está muito impactado, mas não colapsou nem vai colapsar”, assegurou. Em todo o País, governadores, prefeitos, secretários e médicos apontavam hospitais lotados e filas de doentes à espera de vaga em UTIs. Todos esses fatos eram componentes de um desastre muito maior: o desmoronamento, iniciado em 2019, da administração federal.

O papel mais patético nessa quarta-feira coube ao chefão da trupe, o presidente Jair Bolsonaro. Ele apareceu de máscara, num evento no Palácio do Planalto, defendeu a vacinação e até lamentou as mortes causadas pela covid. Em São Bernardo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de novo em condição de concorrer à Presidência, havia criticado a ação federal diante da pandemia. O senador Flávio Bolsonaro pediu aos seguidores a distribuição, em redes sociais, de uma foto de seu pai com a frase: “Nossa arma é a vacina”.

Vinte e quatro horas depois o Bolsonaro de sempre reapareceu, já sem máscara e com a truculência habitual. Apoiadores o haviam aconselhado, segundo fontes de Brasília, a desfazer a impressão de ter sido acuado por Lula. Mas havia sido. Isso foi evidenciado até pelo globo exibido em sua live de quinta-feira, uma resposta a quem o havia chamado de terraplanista.

Palavras grotescas, falsas e ameaçadoras compuseram a live. Contrariando fatos conhecidos e documentados, o presidente negou ter chamado de gripezinha a covid-19. Confundiu com estado de sítio as medidas preventivas, como o toque de recolher, determinadas por alguns governadores. Ele obviamente ignora o sentido de “estado de sítio”, tema tratado na Constituição.

Bolsonaro lembrou sua condição de chefe supremo das Forças Armadas. Raramente um presidente democrata menciona esse fato. Mas, além de falar sobre isso, lembrou o regime militar e pediu apoio ao povo para enfrentar os governadores. “Como é que eu posso resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Se eu levantar minha caneta BIC e falar ‘shazam’, vou ser ditador. Vou ficar sozinho nessa briga?”.

O palavrório é meio estranho, mas, apesar da obscuridade e dos subentendidos, a convocação lembra as ameaças de promover algo parecido com a mobilização comandada pelo presidente Donald Trump. Nos Estados Unidos, o presidente derrotado na última eleição incitou seus apoiadores a invadir o Congresso. Há alguns meses, Bolsonaro mencionou o risco de algo semelhante no Brasil se a eleição de 2022 for realizada sem voto impresso.

Bolsonaro chamou de herói nacional o torturador Brilhante Ustra, criou mal-estar com o governo chileno ao elogiar a ditadura do general Pinochet e cita com frequência o regime militar no Brasil. Referências à ditadura estão longe de ser meros componentes de uma retórica infeliz, grotesca e muitas vezes chula. O presidente, seus filhos e vários componentes da administração federal têm conseguido encenar uma paródia sinistra dos tempos ditatoriais.

O Ministério da Educação enviou a reitores de universidades federais um documento ameaçador, prometendo sanções, por “imoralidade administrativa”, a “manifestações de desapreço ao governo”. A censura é aplicável a professores e alunos. Um processo disciplinar foi aberto contra o ex-reitor e o pró-reitor de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pelotas. Ambos tiveram de assinar um termo de ajustamento de conduta para encerrar o processo.

Técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) também foram pressionados. Receberam recomendação de limitar seus contatos com a imprensa e de evitar a divulgação de estudos antes de “aprovação definitiva” pela direção. O presidente do Ipea, Carlos von Doellinger, parece haver esquecido sua experiência dos anos 1970, quando ele mesmo e outros pesquisadores tinham amplo contato com jornalistas. Estudos eram produzidos sem censura. Artigos publicados na revista Pesquisa e Planejamento Econômico discutiam livremente a política econômica. Esse padrão, sustentado por João Paulo do Reis Velloso, um dos criadores do instituto, foi mantido por muito tempo. Talvez faltasse um governo bolsonariano.
      
Rolf Kuntz é Jornalista. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S.Paulo, edição de 14 de março de 2021.

Bolsonaro deve demitir Pazuello nesta semana, dois cardiologistas são cotados o ministério da Saúde

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) decidiu trocar o seu ministro da Saúde. O general Eduardo Pazuello deverá ser demitido entre segunda e terça-feira, conforme duas fontes do Planalto relataram ao EL PAÍS. Oficialmente, a exoneração será a pedido e o militar deverá alegar que se afastará para cuidar de sua saúde. 

General Eduardo Pazuello, Ministro da Saúde

Na prática, será uma demissão porque o presidente tem se sentido pressionado a mudar sua política no combate ao coronavírus em um momento que a pandemia recrudesceu, o número diário de mortes ultrapassa as 2.000, o sistema de saúde está colapsando em boa parte dos Estados e a vacinação caminha a passos lentos. Bolsonaro quer deixar de ser considerado o principal responsável por essa condução equivocada e espera que a troca no comando da Saúde passe um sinal positivo para a opinião pública e para o mercado financeiro.

Apesar de ser especialista em logística, o general não conseguiu distribuir testes para covid-19 em todo o país, falhou em negociar e comprar vacinas com antecedência, assim como foi ineficaz no fornecimento de oxigênio para a cidade de Manaus (AM), quando diversas pessoas contaminadas com a doença e internadas em UTIs morreram por falta de ar. Por esta última razão, ele está sendo investigado pelo Ministério Público Federal. Todas as ações do ministro sempre tiveram o suporte do presidente.

Dois nomes têm sido sondados para assumir o cargo: Ludhmila Abrahão Hajjar e Marcelo Queiroga. Ambos são médicos cardiologistas. Hajjar é professora da Associação de Cardiologia da Faculdade de Medicina da USP. Queiroga preside a Sociedade Brasileira de Cardiologia. Em entrevista recente à Forbes, a médica disse ser fã de Angela Merkel por entender que a primeira ministra alemã é “uma líder que cuida de seu povo, valoriza a ciência e está à frente do seu tempo”.

Em se confirmando a demissão, essa será a terceira troca no Ministério da Saúde em menos de dois anos. Os outros dois demitidos foram o ex-deputado Luiz Henrique Mandetta e o oncologista Nelson Teich. Ambos discordavam da política negacionista de Bolsonaro com a pandemia. Os dois também rejeitavam referendar as práticas do presidente, que se demonstrou contrário às medidas de isolamento social e não estavam de acordo com a defesa do uso de medicamentos comprovadamente ineficazes contra a covid-19, como cloroquina e ivermectina.

A troca de Pazuello tem sido chamada em Brasília de efeito Lula. Desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recuperou seus direitos políticos e sinalizou que pode concorrer com Bolsonaro na eleição de 2022 o mandatário tem sido orientado a mudar de atitude. Ele sabe que o petista seria o seu principal adversário nas urnas e com altas chances de vitória.

A iminente queda de Pazuello também alimenta os anseios do Centrão, o fisiológico grupo de deputados de centro-direita que sustenta o Governo Bolsonaro e é comandado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Em princípio, esses políticos queriam indicar para o cargo os deputados Ricardo Barros (PP-PR) ou Luiz Antônio Teixeira Júnior (PP-RJ), o Dr. Luizinho. Porém, foram convencidos de que seria melhor indicar um técnico e que o ideal era manter Barros na Câmara, onde é o líder do Governo e tem participado das negociações dos principais projetos de interesse do Executivo. Por ora, Lira apoia a indicação da cardiologista Hajjar.

A decisão de substituir Pazuello foi tomada no sábado quando o presidente debateu o assunto primeiro com Lira e depois com o próprio ministro da Saúde e com outros três generais que são membros do primeiro escalão, Walter Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Fernando Azevedo (Defesa). Azevedo teria ido ao encontro para apresentar possibilidades de remoção de Pazuello, já que ele ainda é um general da ativa.

Publicado originalmente pelo EL PAÍS, em 14.03.2021

“Não é necessário o uso de máscaras”: a tortura cotidiana por parte da presidência

Bolsonaro manipula a seu bel prazer certos grupos sociais, geralmente os mais vulneráveis, jogando uns contra os outros

O presidente Jair Bolsonaro durante evento no Palácio do Planalto no dia 10 de março.ERALDO PERES / AP

Algumas organizações da sociedade civil vinculadas à pauta dos direitos humanos têm desenvolvido análises e reflexões que buscam fornecer uma perspectiva elástica sobre tortura. Para além da tipificação legal, prevista em convenções internacionais e pela Lei 9.455/97, a tortura é analisada com um tipo de violência difusa perpetrada pelo Estado, que se alastra por relações das mais diversas ordens, afligindo, em especial, populações vulneráveis do ponto de vista econômico e social, como pessoas pobres, negras e moradoras de espaços marginais. Nesta ótica, a tortura não é prática tão só cometida por uma pessoa contra outra em ambientes e contextos específicos. É ato estrutural, com efeitos também estruturais, sendo ferramenta de aprofundamento de desigualdades históricas em nosso país.

Nosso ponto neste texto é discutir como uma pessoa pode ajudar a promover ações que, por um lado, fomentam a perspectiva “clássica” sobre tortura, aquela prevista pelas normativas seguidas pelo Brasil. Por outro, produzem relações difusas violentas, as quais poderiam ser enquadradas na concepção mais plástica sobre o ato. Jair Messias Bolsonaro sempre apoiou a tortura e nunca escondeu sua posição, mesmo antes de se tornar Presidente. Em entrevistas e manifestações públicas, exaltou torturadores da Ditadura Civil-Militar brasileira e humilhou as vítimas do período. Tem adotado de forma cada vez mais corrente medidas que facilitam o cometimento de práticas violentas por parte de agentes estatais e, em meio a uma das piores crises humanitárias do século, utiliza a estrutura do Estado para promover intensa dor e sofrimento à população. 

Ele incorpora em si o papel de torturador nas várias dimensões dessa violência.

O Presidente não precisa de tanques de água para provocar sufocamentos. Basta não investir na compra de oxigênio para os hospitais, negligenciar o Sistema Único de Saúde e gerar descrédito em relação às vacinas e a outros meios de prevenção ao novo coronavírus, deixando a população à própria sorte. 

Ele não precisa do pau de arara para ocasionar dor. Basta deixar a fome se alastrar ao aprofundar a miséria já existente. 

Basta negligenciar a política de distribuição de renda, gerando incertezas não só quanto ao futuro em geral, mas em relação à próxima refeição a ser consumida – ou não. Se o Brasil já vinha experimentando aumento da pobreza extrema nos últimos cinco anos, em 2019, cerca de 14 milhões de brasileiros sobreviveram com renda mensal de até 145 reais.

Privação de sono é uma das práticas tradicionais de tortura, cujos efeitos persistem por anos e anos, causando estres pós-traumático e outras debilidades. Quem - dentre as pessoas com sensibilidade - consegue ter uma noite de sono tranquila num país em que há previsões de mais de três mil mortes por dia em razão do novo coronavírus? 

Quem não se afeta ao ver o Presidente dizer que é “mimimi” a preocupação em relação à pandemia, numa tentativa de abafar escândalos pessoais? Embora não seja aparente, não tenha marcas, viver a vida de modo angustiado pode trazer danos irreversíveis à alma.

Tão grave quanto, Bolsonaro manipula a seu bel prazer certos grupos sociais, geralmente os mais vulneráveis, jogando uns contra os outros. Diz que as pessoas devem trabalhar para não “morrerem de fome” nem “entrarem em depressão” durante a pandemia, forjando uma “sensibilidade” em relação às “famílias brasileiras”. Em consequência, muitos acabam por reproduzir tal percepção, em repúdio àqueles que apoiam medidas de restrição para conter o avanço do novo coronavírus. Ao final, porém, o Presidente não garante qualquer meio de proteção para que as pessoas busquem subsistência e todas ficam, assim, vulneráveis ao contágio.

Justamente a população que mais precisa de políticas públicas, que vêem no Estado o auxílio que necessitam, é a mais aviltada e ignorada. Os principais alvos desse cenário são os pobres, dentre os quais, em especial, as mulheres, os indígenas, os quilombolas, os jovens negros, a população em situação de rua, as crianças e os adolescentes, as pessoas idosas e os indivíduos privados de liberdade. Ou seja, grupos historicamente vulnerabilizados em razão de sua posição econômica e social sofrem de forma ainda mais perversa com as políticas – ou não políticas – adotadas pelo atual Presidente.

Não são poucos os dados atualmente ventilados que indicam o quanto esses grupos são os mais afetados pela pandemia, por exemplo. O Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, da PUC-Rio, confirmou que, dentre um universo de 30.000 casos analisados, quase 55% de pretos e pardos morreram, enquanto, entre pessoas brancas, esse valor ficou em 38%. O estudo também concluiu que a escolaridade é inversamente proporcional à letalidade por Covid-19. Pessoas sem escolaridade tiveram taxas três vezes superiores (71,3%) às pessoas com nível superior (22,5%). Ainda, ao cruzar escolaridade com raça, os dados são ainda mais estarrecedores: pretos e pardos sem escolaridade tiveram 80,35% de taxas de morte, contra 19,65% dos brancos com nível superior.

Bolsonaro também elegeu as comunidades tradicionais como alvos. Em suas narrativas públicas, nunca escondeu sua repulsa. Mas, com a pandemia, seus projetos de produção da dor ganharam novo vulto. De acordo com o Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos de 2020, a violência no campo aumentou consideravelmente, agravada pela pandemia. Segundo o Observatório da Covid-19 nos Quilombos, até fevereiro de 2021, foram contabilizados 4.962 casos de quilombolas infectados pelo novo coronavírus, dentre os quais 210 vieram a óbito. A situação dos povos indígenas também é crítica. Sem nenhuma política adequada à proteção desses povos, até o momento, a pandemia da Covid-19 matou 988 indígenas, gerou 49.924 contaminações, afetando 163 povos distintos. Para além da pandemia, os povos indígenas sofrem com o agronegócio e a mineração, atividades impulsionadas aviltantemente pela atual política ambiental.

Somado a isso, Bolsonaro tem gerado meios de insuflar a dor ao flexibilizar o porte de armas, ao buscar isentar a punição de agentes de segurança pública envolvidos em atos ilegais, ao banalizar a violência cometida por policiais em operações em espaços periféricos e ao incitar a atuação perversa estatal no âmbito prisional. Todas essas estratégias matam sumariamente, diariamente. E Bolsonaro não apenas despreza, como também minimiza o sofrimento, desrespeitando sistematicamente o luto, momento tão delicado e importante para alguém que perdeu seu ente querido.

De fato, todo esse contexto afeta não só às pessoas vítimas diretas da violência, mas também seus familiares e entes queridos, os quais permanecem ocultos, invisibilizados. Talvez, essas pessoas nunca se compreendam como vítimas do Estado, pois não necessariamente consigam relacionar o sofrido às práticas engendradas pelo Presidente. Talvez, a dor causada nunca seja analisada como algo coletivo, sendo percebida como sentimento que tão só paira nas trajetórias individuais. Só que é importante dizer que o vivenciado no nível pessoal é fruto de ações que tocam aspectos gerais de nossa sociedade.

Possivelmente, a diferença entre um torturador “clássico” e o Bolsonaro gira em torno do fato de o primeiro buscar em alguma medida esconder seus atos. A violência é, então, cometida em uma sala escura, com poucas ou nenhuma testemunha. Em contrapartida, os atos do Presidente são públicos. Ele goza em demonstrá-los, servindo de expiação à população, como as execuções em praça pública do período medieval. Contudo, o carrasco da vez não precisa usar capuz. Ele próprio diz em alto e bom som que o uso de máscaras é desnecessário. E sua ferramenta é a caneta. A estrutura estatal é mobilizada para destruir a dignidade humana.

Autoras deste artigo: Maria Gorete Marques de Jesus é Pós-doutoranda e Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) e Thais Duarte é socióloga e pesquisadora do do Centro de Estudos da Criminalidade e Segurança Pública da UFMG. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 14.03.2021

sábado, 13 de março de 2021

"Brasil pode chegar a 3 mil mortes diárias por covid-19", diz epidemiologista

O Brasil tem registrado recordes diários de mortes por covid-19, em meio a disparada das infecções e sobrecarga da rede hospitalar. Especialista afirma que, com níveis de vacinação baixos, pouca adesão a medidas de isolamento social e falta de liderança e coordenação do Ministério da Saúde, situação deve se agravar.

A situação da crise de coronavírus no Brasil está piorando dramaticamente, e o país tem registrado recordes diários de mortes por covid-19 em meio a disparada das infecções e sobrecarga da rede hospitalar. A mídia veicula 24 horas por dia imagens de pessoas desesperadas que temem pela vida de seus entes queridos.

O epidemiologista Jonas Brant, da Universidade de Brasília, afirma que a situação é bastante crítica. "O número de casos vem crescendo muito e ainda está longe de chegar ao seu cenário de platô para começar a reduzir esse número de casos", diz. "Os níveis de vacinação são baixos, e a população vem aderindo de maneira muito pequena às medidas de isolamento social, e há uma grande dificuldade de incorporação das medidas de biossegurança. Tudo isso coloca uma perspectiva de um cenário muito mais grave ainda."

Ele conta ainda que a maioria das unidades da federação estão em cenário crítico, pois as novas variantes têm ganhado velocidade na transmissão do novo coronavírus e critica o Ministério da Saúde que, para ele, não tem conseguido desempenhar no país uma liderança e coordenação para o combate do vírus. "Essa ausência de coordenação faz com que cada estado adote suas medidas, e isso gera uma sensação de desorientação para a população. Nós precisamos criar um comando único", conclui.

Deutsche Welle Brasil, em 13.03.2021

Brasil tem 1.986 mortes por covid-19 em 24 horas

Total de óbitos ligados ao coronavírus supera 277 mil. País registra ainda mais de 75 mil novos casos da doença, e soma de infectados chega a 11,4 milhões

Brasil vacinou 9,5 milhões de pessoas até agora, segundo consórcio de imprensa

O Brasil registrou oficialmente 1.986 mortes ligadas à covid-19 neste sábado (13/03), segundo dados do Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass). Com isso, o total de mortes associadas à doença no país chega a 277.091.

O país vive um momento de aceleração do coronavírus, com registro de colapso da rede de saúde pública em alguns estados. Ainda neste sábado, foram identificados 75.555 novos casos da doença, elevando o total oficial para 11.438.935.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

Os números deste sábado ainda não incluem os dados do Acre, devido a problemas no acesso à base de dados do estado, informou o Conass.

Segundo um consórcio da imprensa brasileira, formado por O Globo, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, até este sábado 9.539.078 pessoas haviam recebido ao menos a primeira dose da vacina contra a covid-19, cerca de 5,9% da população.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 131,9 no Brasil, a 20ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29 milhões de casos, e o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 533 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 119,3 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,6 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 13.03.2021

Alan Bousso: Processos anulados não invalidam provas contra Lula

A questão é que para a obtenção de tais provas foram dispendidos tempo e dinheiro públicos. Ignorá-las a esta altura seria como atirar à lixeira os recursos obtidos dos impostos pagos a duras penas pelos brasileiros. Não havendo vício nas provas juntadas ao processo, não faz sentido tal menoscabo dos esforços empreendidos.

A decisão monocrática do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Edson Fachin de anular os processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, definidos no âmbito da 13ª Vara Federal de Curitiba não representa o fim das acusações contra o ex-presidente. Fachin apenas considerou que o juiz federal Sergio Moro não tinha competência para julgar as ações contra Lula. Contudo, com sagacidade, conduziu sua decisão de modo a garantir que as provas amealhadas no processo continuem sendo válidas e possam ser reaproveitadas. Em outras palavras, a decisão restabelece o devido processo legal, livrando-nos do mal de um extremo jurídico, sem nos jogar imediatamente no polo oposto, das também indesejáveis insegurança jurídica e impunidade.

O ministro do STF recomendou que os processos julgados em Curitiba sejam remetidos à Justiça Federal do Distrito Federal, onde teriam que recomeçar do zero. Nesse caso, novos juízes responsáveis pelos casos do triplex do Guarujá, do sítio em Atibaia e do Instituto Lula teriam de avaliar se reaproveitariam as provas já produzidas na 13ª Vara Federal de Curitiba. O fato é que o ministro Fachin teve o cuidado de não entrar no mérito da suspeição do então juiz Sergio Moro. Assim sendo, as provas produzidas no processo que ele presidido são lícitas e válidas.

O artigo 567 do Código de Processo Penal (CPP) é claro ao definir que “a incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente”. Deste modo, não restam dúvidas de que, na atual conjuntura, não tendo sido Moro apontado como suspeito, mas apenas sem competência para julgar o caso, todas as provas reunidas nos processos por ele conduzido podem ser e devem ser reaproveitadas.

A necessidade de que as provas não sejam desconsideradas vai além da questão legal, consolidando-se, sobretudo, como uma demanda moral. E não se está aqui a fazer juízo de valor sobre o réu, em antecipada condenação. A questão é que para a obtenção de tais provas foram dispendidos tempo e dinheiro públicos. Ignorá-las a esta altura seria como atirar à lixeira os recursos obtidos dos impostos pagos a duras penas pelos brasileiros. Não havendo vício nas provas juntadas ao processo, não faz sentido tal menoscabo dos esforços empreendidos.

Independentemente da sentença a ser anunciada pela Justiça em cada um dos casos, é preciso que as provas sejam avaliadas. A Justiça, sabemos, não deve caminhar conduzida por clamores sociais ou pressões externas. Isso, no entanto, não significa que o Judiciário possa prescindir de coerência com princípios da boa administração pública, como a eficiência e a impessoalidade.

Como Lula tem mais de 70 anos, o tempo para prescrição dos processos é reduzido pela metade. Assim, a celeridade processual é crucial para que consolidemos a noção de segurança jurídica no país e, sobretudo, para que, independentemente do resultado final, seja dada uma resposta à sociedade e ao próprio réu em tempo adequado, sem que se perpetue ainda mais a visão de que no Brasil com manobras acessíveis somente aos hipersuficientes é possível escapar aos ditames legais.

*Alan Bousso, o autor deste artigo, é mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP e sócio do escritório Cyrillo e Bousso Advogados. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 13.02.21


‘Lava Jato vira Mãos Limpas se Moro for declarado parcial’, diz Fachin

Em entrevista ao Estadão, ministro do STF destacou que decisão que beneficiou Lula foi ancorada em 20 precedentes da Corte; sobre protestos que chegaram à sua vizinhança, afirmou que prefere ‘solidariedade dos colegas às ameaças e às intolerâncias’

Na véspera de a Lava Jato completar sete anos de existência, o relator da operação no Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Edson Fachin, disse ao Estadão que, se o ex-juiz Sérgio Moro for declarado parcial, a investigação terá o mesmo fim que a Operação Mãos Limpas teve na Itália. Fachin anulou nesta semana as condenações impostas ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em um esforço para esvaziar as discussões na Segunda Turma sobre a suspeição do ex-magistrado na ação do triplex do Guarujá.

O ministro Gilmar Mendes, no entanto, contrariou o colega e, com o apoio da maioria, decidiu retomar o julgamento – o placar está empatado em 2 a 2, faltando o voto de Kassio Nunes Marques. A discussão pode sofrer uma reviravolta, já que a ministra Cármen Lúcia, que se posicionou em dezembro de 2018 contra o pedido de Lula, avisou que deve se manifestar novamente.

Confira abaixo os principais pontos da entrevista de Fachin, concedida por meio de videoconferência e e-mail.

A Lava Jato completa sete anos no próximo dia 17. Qual vai ser a história da investigação?

Depende do que for decidido nos próximos dias ou nos próximos meses. E, portanto, se continuar no caminho de entender que há suspeição (do ex-juiz federal Sérgio Moro), a história da Lava Jato será a história do que aconteceu com as Mãos Limpas na Itália (investigação conduzida por um time de procuradores que desvendou um esquema de corrupção sistêmico naquele país, expedindo mais de 3 mil mandados de prisão e investigando mais de 6 mil pessoas investigadas, incluindo empresários e parlamentares. A operação, no entanto, foi desmontada antes de completar três anos, após a eleição de Silvio Berlusconi.) É a história de uma derrocada, em que o sistema impregnado pela corrupção venceu o sistema de apuração de investigação e de condenação dos delitos ligados à corrupção. Portanto, esse é o diagnóstico que eu faço.

Quando o senhor assumiu a relatoria da Lava Jato em 2017, se comprometeu a agir com “prudência, celeridade, responsabilidade e transparência”. Quatro anos depois, como o senhor vê a sua atuação à frente dos casos da maior investigação contra corrupção que já existiu no País?

Entendo que para esse questionamento os números falam melhor que palavras. De acordo com o último levantamento feito pelo meu gabinete, com base em dados oficiais atualizados em 10/03/2021, desde o início da operação Lava-Jato, foram homologadas 120 colaborações premiadas e arrecadado cerca de R$ 1.369.665.781,61 (um bilhão, trezentos e sessenta e nove milhões, seiscentos e sessenta e cinco mil, setecentos e oitenta e um reais e sessenta e um centavos), isso para citar apenas o STF, sendo que há valores mais expressivos recuperados nos juízos de primeiro grau. Foram proferidos, desde 2016, mais de 12.800 atos decisórios (entre decisões monocráticas e despachos) e protocolados mais de 20.863 petições e expedientes pela defesa Ministério Público e outros órgãos.

Para além dos números, sempre tenho destacado que o enfrentamento à corrupção deve ser apartidário, democrático, efetivo e constante. É dever de todos lutar contra esse mal que assola o país e foi evidenciado nos últimos anos de maneira assombrosa.

Faço essa constatação não como lamento, mas como reconhecimento do valoroso trabalho prestado por instituições que, ao longo dos últimos anos, souberam profissionalizar e instrumentalizar o controle público. Graças a elas esse trabalho vai continuar e são altos os custos para quem se aventurar pelo desvio. A tarefa agora é evitar que o retrocesso pontual na política de combate à corrupção se transforme em retrocesso institucional.

Por que o senhor derrubou as condenações contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva agora?

A observância da jurisprudência do Tribunal traduz a máxima segundo a qual casos análogos devem ser tratados de forma análoga. Como dizia o juiz da Corte Suprema dos Estados Unidos Brandeis, ou temos igualdade e democracia, ou não temos democracia. Como Relator da Lava Jato no Tribunal, busquei defender a manutenção da competência da 13ª Vara para que ela apurasse os delitos contra a Petrobrás que tivessem sido praticados de modo semelhante. A maioria da Segunda Turma, no entanto, optou por restringir a competência apenas aos casos que envolvessem diretamente a estatal. A posição é respeitável e tem amparo na posição de grandes juristas. Ainda que mantenha reservas em relação a esse entendimento, não posso impor aos jurisdicionados a minha posição minoritária.

O presidente Jair Bolsonaro criticou a decisão, dizendo que o senhor “sempre teve forte ligação com o PT”. Como o senhor responderia?

Na decisão da última segunda-feira, destaco um histórico de precedentes firmados pelos órgãos colegiados, em especial da Segunda Turma do Tribunal, sobre a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba. Não se trata de um entendimento individual, ao contrário, trata-se da reiterada jurisprudência da Corte em que, em mais de 20 casos, entendeu pela retirada de processos da referida vara federal, dos quais, na maioria das vezes fiquei vencido. Como disse, em relação a outros agentes políticos que o Ministério Público acusa de praticarem condutas semelhantes à do ex-Presidente da República, o Plenário e a Segunda Turma entenderam pela retirada da competência do Juízo de Curitiba. Por força dos princípios da isonomia e do juiz natural, deve-se garantir o mesmo tratamento e interpretação a todos os investigados em situação análoga, independentemente de quem seja e de qual partido faça parte. Só assim estará garantida a imparcialidade da atuação jurisdicional.

A decisão do senhor repercutiu no mundo político.

A decisão, a rigor, embora seja de segunda, já está no passado. As repercussões fazem parte da vida democrática. E a vida democrática é um canteiro de obras, e não yn olhar contemplativo de um quadro como o da Monalisa em silêncio. Isso tudo integra exatamente uma sociedade democrática. Eu estou mesmo preocupado é com os ganhos institucionais que nós tivemos e eu lhe diria que os ganhos que tivemos nos últimos 30 anos, que foram propiciados pela Lava Jato, são inegáveis.

O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Quais foram esses ganhos institucionais?

Se você olhar, da Constituição Federal de 1988 pra cá, coisas institucionais extremamente positivas aconteceram. As carreiras públicas tiveram a regra do concurso público e isso gerou uma qualificação dos agentes públicos, do Ministério Público, da Polícia Federal… Eu estive em Brasília trabalhando em 1986, 1987, quando integrei um dos subgrupos que fazia parte do programa de governo do falecido presidente Tancredo Neves e conheci o procurador-geral da República, que respondia pela advocacia da União. Essa separação foi um ganho institucional muito grande. E leis que vieram, embora com alguma demora, a lei sobre lavagem de capitais, a adesão do Brasil a tratados e convenções internacionais, na área de direitos humanos, um conjunto de normas internacionais, foi internalizada regularmente no Brasil, foram ganhos extraordinários. A lei sobre colaboração premiada e organização criminosa, enfim, portanto, a Lava Jato não é uma chuva, enxurrada de um dia. É um percurso de um desejo de um Estado que seja ao mesmo tempo democrático, eficiente e evidentemente sem corrupção. Portanto, os ganhos institucionais que foram proporcionados a partir da Lava Jato são inegáveis. Vejam: você tem aí em mãos o relatório atualizado do nosso gabinete, é apenas uma franja, passamos à casa do bilhão, 120 delações homologadas. Quantas até agora foram declaradas nulas, anuladas? Tem alguns questionamentos, algumas revisões, tem 120 delações premiadas, mostrou-se um instituto eficaz e efetivo.

Mas também tivemos denúncias rejeitadas pela Segunda Turma, por decisão da maioria, contra a vontade do senhor.

Como tudo no plano do direito, abriu-se um espaço no canteiro de obras para a disputabilidade dos sentidos. Afinal de contas, qual o valor da colaboração premiada? Aí o tribunal começou a esculpir esse valor e gradativamente foi adelgaçando (diminuir de densidade, emagrecer), diminuindo o valor atribuído às delações premiadas, tanto que a orientação hoje majoritária na (Segunda) Turma é que sequer se recebe denúncia com base na colaboração premiada. Hoje a orientação no recebimento de denúncia é quase um julgamento, precisa quase estar demonstrada a culpa para começar a ação penal. Portanto, começou já há algum tempo, logo depois que eu assumi a relatoria, esse adelgaçamento.

A Lava Jato sofreu duras derrotas no plenário do STF, como a derrubada das conduções coercitivas e da prisão após condenação em segunda instâncias. Nesses dois casos, o senhor votou a favor das medidas, consideradas pilares da Lava Jato.

O mecanismo que eu continuo entendendo que é constitucional da prisão em segunda instância foi retirado por compreensão majoritária do pleno. A condução coercitiva, quiçá merecia, sem dúvida nenhuma, algum ajuste, mas praticamente foi retirada. Além disso, as prisões preventivas foram cada vez mais rechaçadas, especialmente pelo critério da denominada contemporaneidade. É uma coisa, digamos assim, que merece um olhar, porque se a pessoa é preventivamente presa, se o passar do tempo por si só esvazia o decreto da prisão, bom então isso significa que o sentido da prisão preventiva está sendo questionado. A questão é saber se o fundamento da prisão preventiva permanece. E quais são os fundamentos da lei? Ordem pública, instrução processual, portanto, enquanto eu não acabar a instrução processual, a prisão preventiva pode ser mantida. E isso tudo foi também, digamos assim, se adelgaçando.

Em março de 2019, o STF decidiu que Justiça Eleitoral julga corrupção quando houver caixa 2, também contra a vontade do senhor.

A minha posição não prevaleceu na remessa para a Justiça Eleitoral. A pergunta que eu faço é: quantas condenações houve na Justiça Eleitoral de lá para cá? Eu não tenho a notícia de nenhuma, é claro que deve existir, mas eu não tenho a notícia de nenhuma.

É culpa da Justiça Eleitoral, ministro?

Isso não é culpa da Justiça Eleitoral, porque a Justiça Eleitoral substancialmente se destina a outra coisa: fiscalizar eleições, administrar eleições, regulamentar eleições. Portanto, e aos poucos começou-a se deslocar a competência, dizendo, ‘bom isso, não é Lava Jato’, e num primeiro momento, me parecia ‘vamos ver então’. Eu mesmo redistribuí vários processos para colegas ministros. Esse tema vinha até chegar a interposição do habeas corpus (da defesa de Lula) em novembro (do ano passado), peguei o período do recesso e estudei essa circunstância. E ao lado disso, emergiu com força a questão da suspeição do magistrado e, portanto, a suspeição do magistrado.

Como o senhor vê a questão das mensagens obtidas por um grupo criminoso de hackers?

Eu não acho que a prova ilícita pode ser varrida para debaixo do tapete, agora é preciso saber o que fazer com ela.

Ministro, a residência onde o senhor mora foi alvo de buzinaços em Curitiba, e o STF acabou reforçando a sua segurança. Em 2017, o senhor já havia relatado ameaças contra familiares. Como o senhor avalia esses episódios? 

Eu prefiro o apoio institucional que sempre recebi dos ministros que durante esse período estiveram na Presidência do Tribunal e a solidariedade dos colegas às ameaças e às intolerâncias.

Rafael Moraes Moura, de Brasília-DF para O Estado de S. Paulo, em 13 de março de 2021 

O equilíbrio do sistema de justiça penal

É necessário respeitar a separação das funções investigativa, acusatória e  judicante

As discussões sobre a imparcialidade do juiz Sérgio Moro durante a Operação Lava Jato trazem à tona um tema fundamental para um sistema de justiça equilibrado: a necessária separação das funções investigativa, acusatória e judicante. Apesar de sua importância para sentenças penais justas, observa-se uma enorme resistência em diferenciar, como manda o bom Direito, os papéis da polícia, do Ministério Público e do Judiciário. Tal é a resistência que, não raro, se passa por cima da própria lei na tentativa de dar ares de normalidade a práticas que afrontam liberdades e garantias individuais.

Em 2019, o Congresso aprovou a figura do juiz de garantias. Trata-se de magistrado que atua exclusivamente na fase de investigação criminal, sendo responsável pelo controle da legalidade dos atos praticados e pelo respeito aos direitos dos investigados. Depois, com a apresentação da denúncia, o caso é destinado a outro juiz para julgamento.

Adotado em vários países europeus, o sistema dos dois juízes tem como objetivo assegurar maior isenção da magistratura criminal. O juiz que cuida da investigação não é o mesmo que dará depois a sentença sobre o caso.

Pois bem, o Congresso aprovou a medida, mas ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) não gostaram da inovação e, estranhamente, vêm retardando sua aplicação. Num primeiro momento, o ministro Dias Toffoli adiou por seis meses a implantação do juiz de garantias.

Depois, aproveitando um plantão, o ministro Luiz Fux concedeu liminar suspendendo a medida por tempo indeterminado. No fim do ano passado, houve pedido de habeas corpus coletivo para que o mérito do caso fosse julgado, mas o ministro Alexandre de Moraes denegou a ordem. Em estranha inversão de papéis, membros do STF querem legislar sobre processo penal.

Outro assunto em que o Supremo prejudicou o equilíbrio do sistema de justiça refere-se à confusão entre as funções investigativa e acusatória. Em 2015, por um placar de 7 a 4, o STF entendeu que o Ministério Público pode realizar investigações criminais.

A função de investigar na seara penal é reservada à polícia judiciária. Tanto é assim que a Constituição de 1988, mesmo conferindo amplos poderes ao Ministério Público, não lhe atribuiu essa específica competência. O Supremo, no entanto, autorizou a investigação feita pelo Ministério Público.

A mistura entre os papéis investigativo e acusatório causa sérios danos ao equilíbrio processual e, consequentemente, gera dificuldades para se obter um julgamento justo. O objetivo central da investigação é elucidar os fatos, e não ser mero suporte à acusação. Por exemplo, investigações bem feitas não apenas auxiliam o acusador, como podem trazer elementos para a defesa dos réus.

Quando se permite que o Ministério Público, cuja função dentro do sistema de justiça penal é acusar, realize investigações, tem-se um grave problema. Aquela fase que deveria ser a mais isenta possível, sem nenhum viés acusatório – afinal, trata-se de descobrir o verdadeiro culpado, e não simplesmente reunir elementos para incriminar aquele que, num primeiro momento, parecia ser o culpado –, fica deformada. Ou seja, há uma perda da isenção em relação a um elemento do processo penal que deveria ser completamente neutro: os fatos investigados.

A autorização para que o Ministério Público investigue não afeta negativamente apenas a tarefa de acusação, que, em vez de se basear em fatos apurados isentamente, passa a estar informada por dados cuja obtenção foi enviesada. Ela prejudica também a neutralidade da polícia, que vê surgir uma espécie de concorrente a trabalhar sem o devido distanciamento. Com isso, a polícia fica exposta a supostas pressões de eficiência que em nada dizem respeito à eficiência. Em vez de elucidar o que de fato ocorreu, ela se vê instada a encontrar dados que corroboram a versão do Ministério Público.

O desequilíbrio do sistema de justiça abre a porta para erros processuais e muitas condenações injustas, que, além de punir pessoas inocentes, deixam impunes os verdadeiros culpados. Há muito o que avançar, também no Supremo.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 13 de março de 2021

A falsa equivalência entre Lula e Bolsonaro

Com volta do petista à cena política, comentaristas já falam em "batalha de extremos" entre dois "populistas". Apesar de algumas semelhanças, não é possível negar as diferenças fundamentais, opina Philipp Lichterbeck.

Comparações ajudam a um melhor entendimento do mundo. Podem ser usadas ​​para determinar semelhanças e diferenças entre as coisas, que podem então ser melhor compreendidas em suas particularidades. Por exemplo, é possível comparar maçãs e peras. Ambas são pomos e crescem em árvores em climas temperados. Ambas são semelhantes em tamanho e são doces, embora maçãs ácidas também existam. As semelhanças acabam quando se trata de forma, cor e sabor específicos.

Embora nem todas as comparações sejam úteis – comparar uma maçã com um carro é de pouca utilidade –, elas são importantes para entender nosso mundo.

Infelizmente, a comparação analítica está fora de moda. Na discussão política de hoje, a analogia prevalece, ou seja, a equiparação. O nazismo e o comunismo são frequentemente igualados em vez de comparados, o que significa que nenhum dos dois sistemas totalitários pode ser compreendido de maneira adequada. Tudo se torna o mesmo mingau uniforme.

No Brasil, a tendência à analogia é particularmente pronunciada. O retorno de Lula da Silva ao cenário político mostra isso novamente com clareza. Esperando uma disputa pela presidência entre Jair Bolsonaro e Lula no próximo ano, os comentaristas já falam em uma batalha de extremos. "A extrema direita (Bolsonaro) compete com a extrema esquerda (Lula)". Insinua-se que os dois senhores são na verdade farinha do mesmo saco. Ambos são "populistas", diz-se – apequenando Lula e banalizando Bolsonaro.

"Escolha difícil"

É como ocorreu nas eleições de 2018. Na ocasião, o Estadão falava em uma "escolha muito difícil" entre o deputado Bolsonaro, que glorificava a violência, ("tem que matar 30 mil", "vamos fuzilar a petralhada", "ter filho gay é falta de porrada", etc.) e o professor universitário, ex-ministro da Educação e esquerdista moderado Fernando Haddad.

A grande mídia do Brasil e grande parte do establishment erraram no cálculo. O plano era derrubar Dilma Rousseff para obter um governo neoliberal de centro-direita. Mas o tiro saiu pela culatra. O golpe constitucional contra Dilma havia aberto a caixa de Pandora, e quem saltou dela foi Bolsonaro. Em vez de escolher a variante democrática, a decisão foi a favor de um homem que esteve no Parlamento por 30 anos e não fez nada além de produzir tiradas de efeito, insultar outras pessoas e colocar seus filhos na lucrativa política brasileira. Para justificar essa decisão fatal, lançaram mão da falsa analogia. "Bolsonaro e PT são iguais, mas Bolsonaro merece uma chance." Foi como oferecer o Brasil para um extremista experimentar.

Claramente, nada se aprendeu, apesar da catástrofe brasileira do coronavírus, com quase 300 mil mortos, que também pode ser atribuída ao maldoso presidente ("só se for na casa da tua mãe!"). Fingem que não há diferença entre a carreira de Lula, suas décadas de luta social e política, e a não exatamente notável carreira do capitão Bolsonaro, que por décadas empanturrou-se na gordura da política brasileira. Negam-se os avanços da área social e econômica no governo Lula e, ao mesmo tempo, fecham-se os olhos para as monstruosidades de Bolsonaro como, por exemplo, seu projeto armamentista ou suas fantasias totalitárias ("Se tudo tivesse que depender de mim, não seria esse o regime que nós estaríamos vivendo").

"Um tem visão de país; o outro enxerga só o umbigo"

Logo Rodrigo Maia, o ex-presidente da Câmara dos Deputados, já reconheceu o absurdo dessa analogia. Ele tuitou: “Você não precisa gostar do Lula para entender a diferença dele para o Bolsonaro. Um tem visão de país; o outro só enxerga o próprio umbigo."

Maia fez, assim, algo que se tornou raro. Em vez de igualar, ele comparou. Porque ao comparar Lula e Bolsonaro, é impossível dizer que os dois são farinha do mesmo saco

No entanto, na análise – e essa é a beleza das comparações –, chegamos às semelhanças. Por exemplo, que a política ambiental do Bolsonaro é uma catástrofe, mas a do PT também foi devastadora (Belo Monte!). Ou que a política de drogas do PT colocou muitos jovens negros atrás das grades por muitos anos devido a pequenas quantidades de maconha. Por último, mas não menos importante, o PT também criou um clima de intolerância para com as vozes críticas mais à esquerda.

No plano pessoal, Lula e Bolsonaro são semelhantes na medida em que são incapazes de admitir erros. Ambos se consideram infalíveis, e Lula continua a fingir que não houve corrupção em seu governo. Um pedido de desculpas e uma promessa de fazer melhor seriam muito mais convincentes.

Apesar dessas semelhanças parciais, não podemos negar as diferenças fundamentais entre Lula e Bolsonaro, como estão fazendo agora muitos meios de comunicação. É como se afirmassem não haver diferença entre a lenda do Vasco Roberto Dinamite e Ribamar, considerado o pior atacante do Vasco de todos os tempos. Porque ambos usavam a mesma camisa. Eles são comparáveis, mas não são similares. Um fez muitos gols, o outro perdia chances de gol.

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Austria. Ele viaja frequentemente entre Alemanha, Brasil e outros países do continente americano. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio. / Publicado originalmente por Deutsche Welle Brasil, 12.03.2021

sexta-feira, 12 de março de 2021

Brasil tem recorde de novos casos de covid-19 e volta a superar a marca de 2,2 mil mortes em 24h

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

Repetindo o que tem acontecido ao longo de todo o mês de março, o Brasil registrou novo recorde na média móvel semanal de mortes por covid-19 nesta sexta-feira (12/3), segundo boletim do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).

Foram mais 2.216 mortes em 24 horas. A média móvel dos últimos sete dias chegou ao nível inédito de 1.762 mortes, superando o recorde de quinta-feira, que fora de 1.703.

O número de casos nas últimas 24 horas foi de 85.663 mil, uma marca inédita. A média móvel da última semana é de 70.593 mil novos casos.

No total, o país acumula 11.363.380 casos de covid-19 e 275.105 mortes.

'Contágio é exponencial' e só lockdown impede tragédia maior no Brasil, alertam cientistas

Infectologistas entrevistados pela BBC News Brasil afirmam que, no atual ritmo de contágio do país, marcas trágicas como essa devem continuar a se repetir nos próximos dias, deixando sistemas de saúde sob alto estresse - ou mesmo em situação de colapso.

"Já em janeiro, com a elevação do número de casos, prevíamos a falência do sistema de saúde e o aumento de óbitos ainda neste mês (março). Se mantivermos essa curva, podemos chegar em agosto a 500 mil mortos no país", afirmou em entrevista recente o infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), referindo-se a estimativas internas de especialistas e órgãos assessorando o governo de São Paulo.

O Estado com maior número de vítimas fatais é São Paulo (63.531), onde diversos hospitais públicos e privados relatam superlotação, seguido de Rio de Janeiro (34.210) e Minas Gerais (20.300).

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 530,1 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins.

E, com o novo pico de contágio, o Brasil superou a Índia (11,285 milhões) no número de casos, ficando atrás apenas dos EUA (29,1 milhões).

BBC News Brasil, em 12.03.2021

Laura Karpuska: Doença coletiva

Se as instituições funcionassem como deveriam, País teria plano de vacinação sério.

Estamos doentes. Não é apenas o vírus da covid-19 que nos faz adoecer e que nos mata. Estamos tomados também por uma doença coletiva que nos cega e confunde, deixa-nos sem ação. A esperança é tirada de nós a cada dia, com mais brasileiros morrendo. Somos distraídos pelos absurdos promovidos pelo governo federal. É como se estivéssemos todos bebendo de um poço envenenado, que nos deixa inebriados.

A política tem tomado conta das nossas vidas. Mas não de forma eficiente. Pessoas que nunca saberiam dizer em quem votaram para deputado – ou talvez até para presidente – emitem opiniões fortíssimas a respeito de política de preços de combustíveis, de regulação de monopólio e de estratégias de contenção em uma pandemia. O papel do especialista é sufocado pelo suposto conhecimento que muitos obtiveram pelas redes sociais. Conhecimento objetivo se mistura com ideologia.

Um conhecido que não se interessava por política, agora fala com desenvoltura sobre as medidas tomadas pelo governo. Ele também discursa sobre não haver ninguém “mais experiente” para governar o Brasil e “acabar com a corrupção” do que Jair Bolsonaro. Quando perguntado sobre os mais variados assuntos, sempre tem uma resposta. “E se a pessoa X for candidata?”; “Não tem experiência”; “Não acha ruim intervenção na Petrobrás?”; “É por conta dos governos anteriores que essas coisas precisam ser feitas”; “Mas e a falta de um programa de vacinação federal?”. Culpa dos governadores e dos comunistas. O discurso pronto foi entregue a ele em algum grupo de WhatsApp, em que os apoiadores do governo aprendem tudo isso e desaprendem a realidade.

Do outro lado, ficamos enfurecidos a cada loucura cometida. É contrato de vacina rejeitado, é ema, é leite condensado, é mansão, é minimização da dor das famílias que perderam entes queridos na pandemia. Reclamamos, trocamos indignações, alguns memes pois sem um cigarro ninguém aguenta esse rojão, mas, além disso, nada fazemos. Em uma conversa recente com amigos, perguntei se eles não estavam indignados com a falta de um plano de vacinação nacional factível e sério. Muito, responderam. Por que, então, nada faziam? As respostas foram que não eram militantes e que tinham receio de sofrer alguma repercussão negativa no trabalho. Alguns são funcionários públicos e por lei não podem se manifestar politicamente, outros são de empresas privadas e não querem ter seu nome atrelado a um confronto com o governo. Alguns, empresários, não querem se expor.

Enquanto exigir um plano de vacinação nacional for considerado militância partidária, a democracia não funcionará no Brasil. Engajamento não é estar obcecado com cada ação tomada pelo governante, nem mesmo compartilhar vídeos contra ou a favor do governo nas redes sociais. Engajamento também nada tem a ver com preferência pela política A ou B. Alguns podem priorizar uma reforma da Previdência. Outros, um aumento da carga tributária. Há custos e benefícios em todas essas políticas, que podem ser debatidos de forma técnica e moral em um ambiente político saudável. Todos temos nossas preferências e vestiremos a camisa que as representa. Mas estou falando de outra coisa, estou destacando a importância do engajamento no ambiente político, do espaço comum que todos ocupamos, ou que deveríamos ocupar.

Vemos o governo federal brasileiro não priorizando um plano de vacinação nacional e nada fazemos. Precisamos ocupar esse espaço político que nos pertence. Precisamos ocupar o “polity”. Não podemos nos deixar vencer pelo medo de que o Estado nos reprima simplesmente porque monitorarmos seu desempenho.

Esta é a minha primeira coluna neste espaço. Pensei em escrever sobre temas como democracia, cidadania, accountability eleitoral, checks and balances, fake news, o papel do establishment na saúde da democracia. Mas foi impossível não começar com o principal: nossa depressão coletiva, que nos deixa inertes. Nenhum governante está acima da cadeira que ocupa. Numa democracia, as instituições estão acima dos indivíduos que as representam para que o bem-estar social seja o objetivo. Tenho dúvidas se as instituições brasileiras estão funcionando como deveriam.

Nossa inação é um exemplo material disso. Se estivessem, nem o povo nem o establishment econômico estariam tão calados diante da falta de um programa de vacinação nacional sério. Algo fundamental para a vida e, claro, para a economia.

País teria um plano de vacinação sério se instituições funcionassem como deveriam.

Laura Karpuska, doutora em economia pela Universidade estadual de New York - USA, é pesquisadora da EESP-FGV. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12 Mar 2021. 

Simon Schwartzman: A legitimidade das instituições

É a legitimidade das instituições que distingue os Estados efetivos dos Estados falidos. Os Estados efetivos precisam ter o poder de usar a força para fazer cumprir as leis, mas só em último caso, e para isso é necessário que a autoridade dos governantes seja reconhecida e aceita como legítima.

As decisões dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de anular os processos da Operação Lava Jato por erros formais de jurisdição ou eventuais comportamentos impróprios de juízes e promotores podem estar sendo tomadas com convicção, mas nem por isso deixam de contribuir para a desmoralização crescente dos nossos tribunais. Essa desmoralização que já se vinha acentuando com as sucessivas decisões de juízes “garantistas”, que, aos olhos da opinião pública, não passam de chicanas a favor dos processados por corrupção.

A noção de que sem procedimentos adequados não se podem condenar as pessoas tem como uma de suas inspirações a famosa decisão de “Miranda contra Arizona” da Corte Suprema dos Estados Unidos, de 1966, quando um criminoso confesso teve a sua sentença anulada porque o seu direito à defesa não havia sido devidamente respeitado. Essa decisão foi importantíssima para estabelecer limites ao comportamento muitas vezes preconceituoso, arbitrário e violento da polícia nos Estados Unidos, que, da mesma forma que no Brasil, tende a afetar, sobretudo, as minorias e as pessoas mais pobres. Comparado com seus benefícios, o fato de que alguns criminosos fiquem impunes é um pequeno preço a pagar.

>O outro lado da moeda é que, para que ela continue valendo, a grande maioria dos criminosos precisa ser condenada. É a efetividade do sistema judiciário, e não o formalismo de suas decisões, que faz com que a sociedade respeite e considere legítima sua autoridade.

Para ser respeitado o Judiciário precisa atuar com bom senso e equilíbrio, garantindo as formalidades e punindo os criminosos, sem deixar que um lado predomine sobre o outro. No Brasil, por falta de uma política clara de defesa dos direitos civis, muitas pessoas sem recursos são presas e condenadas por supostos delitos, quando não mortas pela polícia, enquanto criminosos com mais recursos conseguem escapar pelas brechas formais da lei.

O Judiciário é temido, mas pouco respeitado, e isso serve de caldo de cultura para os movimentos de extrema direita contra os direitos humanos e pela impunidade da violência policial. O “mensalão”, primeiro, e a Operação Lava Jato, depois, trouxeram grande notoriedade e legitimidade à cúpula do Judiciário brasileiro, que se mostrou capaz, pela primeira vez na História, de julgar e condenar políticos e empresários poderosos, o deu também ao Supremo Tribunal legitimidade para administrar as crises institucionais, que se tornaram cada vez mais frequentes desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Essa legitimidade, no entanto, vem sendo corroída pela percepção, cada vez mais clara, de que, desde a decisão do Supremo Tribunal sobre o fim das prisões após condenação em segunda instância, são os conluios pela impunidade da classe política, da extrema esquerda à extrema direita, passando pelo notório “Centrão”, e não a defesa da legalidade dos procedimentos, que têm predominado nas Cortes superiores de Justiça.

É a legitimidade das instituições que distingue os Estados efetivos dos Estados falidos. Os Estados efetivos precisam ter o poder de usar a força para fazer cumprir as leis, mas só em último caso, e para isso é necessário que a autoridade dos governantes seja reconhecida e aceita como legítima.

Instituições são muito mais do que um conjunto de cargos, estatutos e a posse de determinados recursos, como armas, dinheiro ou conhecimentos. 

Para funcionar, elas precisam atuar como organismos vivos, em que cada participante se sinta e atue como parte de um todo mais amplo. 

E dependem também de um ambiente externo receptivo, em que suas práticas sejam reconhecidas como benéficas, e não predatórias.

Isso vale tanto para o Judiciário quanto para os demais Poderes, assim como para empresas, igrejas, sistemas de pesquisa, ensino, redes de saúde, sindicatos e organizações profissionais.

Instituições efetivas podem também existir em Estados autoritários, à custa de maior coerção, mas a democracia não pode subsistir sem instituições vigorosas. O grande desafio das sociedades democráticas é que elas precisam preservar e fortalecer suas instituições levando ao mínimo o uso da força, incluindo o máximo de pessoas, respeitando as diferenças e garantindo as liberdades.

Isso requer um consenso básico e o trabalho constante de pessoas influentes de diferentes setores – a chamada elite – a favor de seus valores centrais. Não é uma tarefa fácil e quando ela fracassa abre espaço para o populismo, cujo principal é resultado, é, justamente, o desmonte das instituições – o Judiciário se transforma em instrumento de poder ou de impunidade, os cargos executivos são apropriados por famílias e grupos poderosos, as empresas se transformam em quadrilhas, a educação se transforma em ideologia, o conhecimento científico e técnico é substituído pela superstição e pelas fake news.

É uma rampa inclinada, na qual é muito fácil cair, e muito difícil se levantar.

Os conluios pela impunidade de políticos têm predominado nas Cortes superiores

Simon Schwartzman, sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.03.2021.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira: Imparcialidade ou caos judiciário

A imparcialidade, além de ser um postulado básico para o juiz que se pretende justo, empresta dignidade ao próprio sistema penal. Sem ela o sistema se torna inquisitorial, caótico, e seu escopo passa a ser a vingança e o castigo.

Um dos mais festejados avanços nesse mesmo sistema penal, que constitui excepcional vitória civilizatória, foram as regras construídas durante séculos para legitimar os julgamentos criminais, conciliando o direito-dever do Estado de perseguir e julgar os autores de crimes, com o direito destes à ampla defesa, finalizando com um julgamento justo.

Julgamento justo é o que mais se aproxima do ideal humano de justiça, a partir da reprodução fiel, quanto possível, da realidade. Verdade fática, aplicação correta da lei e juiz isento são os requisitos de uma decisão que contribua para a segurança jurídica, além de ser fator indispensável a uma sociedade pacífica e igualitária.

A distribuição da justiça é missão reservada a um tripé constituído por juízes, advogados e promotores. Os dois primeiros existem desde os primórdios da organização do Estado moderno. Os últimos surgiram como representantes de uma instituição criada mais recentemente e que foi tendo seus contornos e objetivos moldados com o passar do tempo.

A partir do crescimento da criminalidade foi se desenvolvendo uma cultura punitiva que passou a desprezar regras e princípios garantidores da liberdade e da dignidade pessoais, em nome do pseudo e ilusório “combate à criminalidade”.

A verdadeira batalha contra o crime deveria ser travada com ações que atingissem suas causas, para evitar seu cometimento, e não por meio exclusivo da punição, que se dá quando o crime já se consumou. Atingem-se os efeitos dos crimes, com desprezo por suas causas.

Como dito acima, um conjunto de princípios e normas foi construído para dar respaldo à atividade punitiva, tendo como meta o exame isento do fato penal, sua autoria e seu enquadramento legal.

Assim, regras constitucionais e de Direito ordinário constituem o chamado processo acusatório, no qual imperam, sob pena de nulidade processual caso desrespeitados, os princípios da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal, do juiz natural, da imparcialidade e outros.

O entendimento de que o sistema penal constitui um instrumento de combate ao crime, pela via do encarceramento, é uma ilusão. Leva parcela da sociedade a aceitar abusos e arbitrariedades em nome de uma falácia.

Caso a repressão e as prisões tivessem o condão de diminuir os índices de criminalidade, o crime estaria em queda e as prisões não estariam acolhendo 70% de presos que já estiveram nos cárceres, como prova de que cadeia não inibe novas práticas. Há uma elevação dos índices de criminalidade, embora aumente o número de presos.

A sociedade não se pode esquecer de que, sendo o crime um fenômeno social, humano, qualquer um de nós poderá vir a figurar como acusado de um delito e ser vítima dessas ilegalidades e da crueldade do sistema penitenciário brasileiro.

O clamor pela punição e pela repressão não evita o fenômeno criminal, pois a sanção é apenas aplicada pós-crime, quando já atingiu vítimas e abalou o corpo social. Evitar o crime pela remoção de suas causas seria a forma mais eficaz de combate à criminalidade. Um sistema penal que efetivamente cumpra seu desiderato de garantir a correta aplicação da lei deve ter como base a imparcialidade do magistrado que preside e julga a causa.

É com grande preocupação e apreensão que assistimos há algum tempo a uma crise que atinge a higidez do sistema penal brasileiro. Relações promíscuas vêm se instalando entre o órgão que acusa e o que julga. Com todas as reservas necessárias às generalizações, não são poucos os casos em que juízes e promotores ultrapassam os lindes de suas atribuições para ajustarem as suas convicções, estratégias e ações no afã de um objetivo comum, a condenação.

Essa prática constitui uma aberração jurídica, que também denota graves falhas de comportamento daqueles que, traindo seus compromissos de julgar e de acusar com isenção, transformam suas funções em instrumentos de vingança, ódio e intolerância.

Para eles a lei processual prevê o impedimento ou a suspeição. Na primeira hipótese, causas objetivas, como parentesco, retiram-lhes as condições de isenção para julgar; na segunda, razões subjetivas, de natureza emocional, fazem-nos pender para um dos lados do processo, retirandolhes as condições de processar e de julgar. Podemos estar nos encaminhado para o Estado punitivo, em substituição ao Estado juiz, caso não se coíbam e se reprimam essas deploráveis praticas.

Juiz isento, equidistante das partes, blindado quanto às repercussões midiáticas e que mantenha sua consciência e a vontade submetidas somente aos fatos, à lei e à sua consciência, é o que a sociedade espera da magistratura brasileira, como guardiã do Estado Democrático de Direito.

Juiz não combate, juiz julga.

Podemos estar nos encaminhado para o Estado punitivo, em lugar do Estado juiz

Antonio Claudio Mariz de Oliveira é advogado. Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.03.2021

Acredite quem quiser

Bolsonaro, que passou toda a pandemia a maldizer vacinas e máscaras, quer ser reconhecido como campeão da imunização

O ex-presidente Lula da Silva, que fez da polarização do “nós” contra “eles” a força motriz de sua seita, agora se apresenta disposto ao “diálogo”. O presidente Jair Bolsonaro, que passou toda a pandemia de covid-19 a maldizer vacinas e máscaras, quer ser reconhecido como campeão da imunização dos brasileiros. Formidáveis metamorfoses, nas quais acredita quem quer.

Que ninguém se engane: a única motivação de ambos, como sempre foi, é eleitoral. Nenhum deles sequer acorda pela manhã se não for por cálculo político. Os interesses nacionais e as aflições dos eleitores são sempre secundários, ou meramente instrumentais, em seus projetos de poder.

O presidente Bolsonaro, de uma hora para outra, protagonizou uma solenidade oficial usando máscara, bem como seus assessores. A imagem exótica espantou os brasileiros em geral, acostumados a ver Bolsonaro não somente sem máscara, mas promovendo aglomerações País afora e estimulando comportamento irresponsável da população em meio a uma pandemia mortal.

Mais do que isso: a solenidade se prestava à assinatura de leis que facilitam a compra de vacinas contra a covid-19. O presidente prometeu que, “até o final do ano, teremos mais de 400 milhões de doses (de imunizantes) disponíveis aos brasileiros”. Não se sabe de onde o presidente tirou esse número, uma vez que o Ministério da Saúde tem sido incapaz de determinar quantas vacinas estarão disponíveis para os brasileiros neste mês, que dirá no resto do ano.

Seja como for, trata-se de uma mudança drástica de atitude, que, se mantida, aliviará um País agoniado com a sabotagem promovida por Bolsonaro e seus camisas pardas contra a vacinação e as medidas de restrição para enfrentar o vírus, em meio à escalada de mortes e o colapso do sistema de saúde. Já não seria sem tempo.

Mas não se pense que Bolsonaro de repente se conscientizou de que não é possível superar a pandemia sem imunização em massa e sem adotar ações preventivas. Ainda está fresco, na memória dos brasileiros que prezam os valores morais, o horror provocado pelas reações grosseiras e desumanas de Bolsonaro sempre que cobrado a assumir suas responsabilidades como presidente. Na mais recente delas, apenas uma semana atrás, mandou o “idiota” que lhe pedia vacinas comprá-las “na casa da tua mãe”.

É evidente que esse é o verdadeiro Bolsonaro, e não o personagem contrito que agora prega a necessidade urgente de uma vacinação nacional. O verdadeiro Bolsonaro só se preocupa com sua reeleição – agora ameaçada pela escalada da crise causada pela pandemia e, principalmente, pela ressurreição de Lula da Silva.

Não parece ter sido um mero acaso o fato de o “novo” Bolsonaro se apresentar aos brasileiros momentos depois que o chefão petista fez seu primeiro pronunciamento após o restabelecimento de seus direitos políticos por decisão judicial. No discurso, Lula da Silva, que apareceu de máscara, atacou vigorosamente a irresponsabilidade do presidente diante da pandemia.

Para fazer o contraponto a Bolsonaro, Lula da Silva vestiu o figurino de estadista. Além de fazer uma defesa enfática da vacinação e das medidas de isolamento, o ex-presidente anunciou sua disposição de “dialogar com todos”, inclusive fora da esquerda, contrastando com a dificuldade de articulação política do presidente. “Não tenham medo de mim”, disse Lula.

Ninguém tem medo de Lula; o que se tem é enfado. O demiurgo de Garanhuns tornou-se previsível. O Lula que mais uma vez promete um amplo diálogo político é o mesmo que construiu sua base parlamentar na base do talão de cheques e é o mesmo que até na esquerda é visto como autoritário.

Ademais, a receita de Lula para a retomada do crescimento – fim das privatizações, freio nas reformas e aumento dos gastos públicos – é a mesma que foi responsável pela profunda crise produzida no governo de Dilma Rousseff, da qual o País ainda não saiu. Não por acaso, Lula esqueceu-se de citar sua criatura no discurso, talvez na expectativa de que os brasileiros não se lembrassem.

Mas os brasileiros lembram bem.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 12 de março de 2021 

Eliane Cantanhêde:Lula é o oponente ideal para Bolsonaro, mas Lula e pandemia, juntos, ameaçam a reeleição

Jair Bolsonaro correu sozinho no páreo até aqui, mas passou a ter oposição

Com a falta de leitos e a disparada de mortes, o Exército Brasileiro logo estará entre duas alternativas: ir para a rua garantir o lockdown e salvar vidas, como propõe a senadora Kátia Abreu, ou, depois, usar seus caminhões para transportar corpos, como advertiu o então ministro Luiz Henrique Mandetta para o presidente Jair Bolsonaro, ao selar sua demissão do governo ainda no início da pandemia. O presidente não sabe ouvir a verdade. Degolou o ministro. 

Mandetta caiu por defender isolamento social e Nelson Teich, por se recusar a adotar um medicamento rejeitado no mundo inteiro contra o coronavírus. Bolsonaro, então, foi buscar um general da ativa para ignorar o isolamento, liberar geral a cloroquina e bater continência para qualquer barbaridade – inclusive contra vacinas e até contra máscaras. 

Só um ser na face da Terra é capaz de fazer Bolsonaro cair na real: Luiz Inácio Lula da Silva. Ao entrar na campanha presidencial de 2022, na quarta-feira, Lula já empurrou Bolsonaro para o campo minado onde ele é mais vulnerável, exatamente a pandemia, que pode, ou deve, chegar a 300 mil mortos ainda em março. Os conselheiros do presidente, muito terraplanistas e pouco científicos, previam 2.100... 

Presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia para sanção dos projetos de lei que ampliam a aquisição de vacinas ( Crédito da foto: Marcelo Camargo / AG Brasil).

Bolsonaro sentiu o golpe de Lula quase imediatamente. Logo depois da fala de Lula, que estava de máscara, pediu licença para tirá-la e passou álcool teatralmente no microfone, eis que o presidente aparece numa cerimônia do Planalto de máscara! Ele nunca usa, nem nos palácios, nas padarias, nas ruas, nem mesmo ao abraçar velhos e crianças em campanha política pelo País e já tentou até desacreditar o uso de máscaras numa live da internet. Foi patético! 

Para piorar, o senador Flávio Bolsonaro, o “01”, esse da mansão mal explicada de R$ 6 milhões, pediu para a tropa viralizar a nova mensagem do pai: “Nossa arma é a vacina!”. Como assim? Todo mundo sabe que as “armas” dos Bolsonaros não são as vacinas, são revólveres, pistolas, rifles, balas. E que, para o presidente, a “vacina chinesa do Doria” (que a mãe dele tomou) causa “morte, invalidez e anomalia”. E alguém se esqueceu? “Não vou tomar, ponto final.” 

O papai Jair e o irmão “01” tentaram, portanto, dar uma cambalhota no negacionismo, mas a única coisa que conseguiram foi aumentar a montanha de frases, imagens e atos que Lula já tem fartamente à disposição sobre o negacionismo de Bolsonaro, apontado como o pior líder do mundo na pandemia. E se esqueceram de avisar da guinada para o deputado Eduardo Bolsonaro, o “03”. 

Em Israel, sem saber que agora máscara é legal, vacina é bacana e era para dar o dito pelo não dito, lá foi ele xingar a imprensa de “mequetrefe” por cobrar uso de máscara e divulgar que, numa comparação impregnada de simbologia, a comitiva liderada pelo chanceler Ernesto Araújo tirou foto sem máscara no embarque no Brasil e com ela no desembarque em Tel-Aviv. E o vexame do chanceler? Mas deixa pra lá. O fundamental é que estavam todos lá para um ato místico: orar para um spray milagroso. 

A imprensa é mequetrefe, intrometida, enxerida e, assim, descobre mansões, rachadinhas, Queiroz, Wassef e informações privilegiadas da Petrobrás... A real ameaça é um presidente que se mete onde não deve, ataca a ciência, a inteligência, as pesquisas, as estatísticas, o ambiente, a cultura, a OMS, os parceiros prioritários do Brasil. Reclama que os governadores estão “destruindo” a economia, mas ele próprio destrói vidas. 

Detestem ou não Lula, ele traz duas novidades para o ambiente macabramente contaminado do Brasil. Jair Bolsonaro correu sozinho no páreo até aqui, mas passou a ter oposição. E o petista é considerado o oponente dos seus sonhos, mas Lula e pandemia, juntos, podem ser mortais para a reeleição. 

Eliane Cantanhede é comentarista da Rádio Eldorado, da Rádio Jornal (PE) e do Tele Jornal Globo News "Em Pauta". Este artigo foi publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 12.03.2021

quinta-feira, 11 de março de 2021

Brasil registra 2.233 mortes e 75,4 mil novos casos de covid em 24h e mantém alta recorde na média móvel

Volume de novos casos da doença voltou a crescer no país

Repetindo o que tem acontecido ao longo de todo o mês de março, o Brasil registrou novo recorde na média móvel semanal de mortes por covid-19 nesta quinta-feira (11/3), segundo boletim do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).

Foram mais 2.233 mortes em 24 horas. A média móvel dos últimos sete dias chegou ao nível inédito de 1.703 mortes, superando o recorde de quarta-feira, que fora de 1.626.

O número de casos nas últimas 24 horas foi de 75.412 mil.

No total, o país acumula 11.277.717 casos de covid-19 e 272.889 mortes.

Infectologistas entrevistados pela BBC News Brasil afirmam que, no atual ritmo de contágio do país, marcas trágicas como essa devem continuar a se repetir nos próximos dias, deixando sistemas de saúde sob alto estresse - ou mesmo em situação de colapso.

"Já em janeiro, com a elevação do número de casos, prevíamos a falência do sistema de saúde e o aumento de óbitos ainda neste mês (março). Se mantivermos essa curva, podemos chegar em agosto a 500 mil mortos no país", resume o infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), referindo-se a estimativas internas de especialistas e órgãos assessorando o governo de São Paulo.

O Estado com maior número de vítimas fatais é São Paulo (63.010), onde diversos hospitais públicos e privados relatam superlotação, seguido de Rio de Janeiro (34.083) e Minas Gerais (20.087).

Em números absolutos, o Brasil é o segundo país com mais mortes pela doença em todo o mundo. Ele está atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 530 mil óbitos por covid-19, conforme registro da Universidade Johns Hopkins.

O país está praticamente igual em número de casos que a Índia (11,285 milhões), em segundo lugar, depois dos Estados Unidos (29,1 milhões).

BBC News Brasil, em11.03.2021

Lula, Ciro e Mandetta bateriam Bolsonaro no segundo turno em 2022, mostra pesquisa Atlas

Levantamento fechado nesta quarta-feira marcada pela volta do petista ao palanque mostra resiliência da aprovação do presidente ultradireitista (34% apoiam) e melhora da imagem do ex-ministro da Saúde

O ex-presidente Luiz Inácio da Silva discursa em São Bernardo nesta quarta.(Crédito da foto: Fernando Bizerra Jr. / EFE)

Se as eleições presidenciais fossem nesta semana, Jair Bolsonaro estaria em maus lençóis no segundo turno. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e os ex-ministros Ciro Gomes (PDT) e Luiz Henrique Mandetta (DEM) venceriam o ultradireitista com ao menos seis pontos percentuais de diferença na disputa final eleitoral, mostra a pesquisa da consultoria Atlas. O levantamento da empresa, encerrado nesta quarta-feira, quando Lula fez, sem explicitá-lo, seu discurso de lançamento extraoficial de sua candidatura a 2022, mostra que o petista melhorou sua imagem e que Bolsonaro é afetado pela crescente rejeição à sua figura e ao Governo no auge da pandemia no país.


De acordo com a pesquisa Atlas, numa simulação de primeiro turno das presidenciais, Bolsonaro aparece com 32,7% das intenções de voto, contra 27,4% de Lula, formando o primeiro pelotão isolado ―o presidente oscilou para baixo e Lula subiu cinco pontos em relação à pesquisa de janeiro. Na sequência aparecem o ex-ministro Sergio Moro (9,7%), Ciro Gomes (7,5%), Luiz Henrique Mandetta (4,3%), o governador paulista João Doria (4,3%) e o apresentador Luciano Huck (2,5%). No cenário sem Lula, o ex-prefeito Fernando Haddad aparece em segundo lugar, com 15,4% (veja os quadros completos nesta reportagem).

Já no segundo turno mais provável pelos números atuais, Lula aparece com 44,9% contra 36,9% de Bolsonaro, 8 pontos de diferença ―a disputa com Haddad seria mais apertada (43% a 39,4%), mas o petista também ganharia. Na simulação de segundo turno com Ciro, o pedetista também bate Bolsonaro (44,7% contra 37,5%). O levantamento mostra uma boa performance de Mandetta em uma eventual disputa final, apesar dos números modestos do democrata no primeiro turno. O ex-ministro da Saúde bateria o antigo chefe por 46,6% contra 36,9%. Já o tucano Doria aparece em rigoroso em empate com o presidente no levantamento, que tem margem de erro de dois pontos percentuais.

“É o ponto de maior pessimismo com a evolução da covid-19 no Brasil desde que começou a pandemia e Bolsonaro sofre os reflexos”, afirma Andrei Roman, CEO da Atlas. “Com tantos candidatos vencendo Bolsonaro no segundo turno, diria que nunca foi mais provável do que neste momento que o presidente perdesse em 2022. Mas a vida dá voltas. O Brasil pode sair da pandemia neste ano. Em 2022, o Governo pode fazer assistência social e Bolsonaro ainda pode se recuperar”, pondera o cientista político.

Roman vê no favoritismo de Lula no momento menos a melhora de sua popularidade e mais um reflexo “da rejeição maior e muito mais intensa a Bolsonaro”. A pesquisa Atlas foi feita entre os dias 8 e 10 de março e captou apenas o começo do impacto do discurso de Lula nesta quarta-feira, quando ele se apresentou como antítese do presidente e criticou o Governo ponto a ponto, da gestão da pandemia à economia, com ampla repercussão midiática. “É imprevisível como isso vai evoluir”, segue ele, que pontua que uma maioria justa (50,1%) diz apoiar a prisão de Lula.

Já os bons números de Mandetta são, na visão do CEO do Atlas, um reflexo da piora da avaliação de Bolsonaro como gestor da pandemia. “Na minha leitura, a intenção de voto de Mandetta é turbinada por uma pequena parcela que em janeiro ainda estava com o Bolsonaro e agora está migrando para um outro candidato, sendo que o destino mais natural deles é um candidato que faz crítica ao PT e tem um posicionamento um pouco menos antagônico em relação ao presidente”, explica.

Rejeição, Moro e Doria

O levantamento também mediu a imagem do presidente Bolsonaro e de seu Governo, além da percepção pública de vários líderes políticos e personalidades. Na pesquisa, 60% da população desaprova o atual ocupante do Planalto, contra 34,8% que o apoiam. Trata-se de uma queda de três pontos percentuais na aprovação em relação à pesquisa anterior, em 21 de janeiro. Apesar da redução, o patamar de apoio segue alto, puxado pelos homens (40% o aprovam), os evangélicos (53% o apoiam) e as regiões Norte e Centro-Oeste (41% e 42%, respectivamente, o apoiam), com índices de aprovação acima da média nacional.



Segundo o Atlas, é Luiz Henrique Mandetta é o político com a imagem mais positiva entre os líderes medidos pela pesquisa (40%), seguido por Bolsonaro, que tem 36% de imagem positiva, contra 60% de negativa. Lula, por sua vez, aparece com os mesmos 36% de índice positivo do presidente, alta de três pontos em relação a janeiro, provavelmente o começo do reflexo de sua reabilitação política. Seu nêmesis, o ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro de Bolsonaro Sergio Moro, aparece com recorde de rejeição (63%), a maior desde que o Atlas começou a medir.

Já o governador tucano João Doria estabilizou sua imagem positiva (25%), mas ainda tem uma rejeição muito alta (60%). “Doria ainda enfrenta tensões internas no partido, com os acenos de Eduardo Leite como candidato”, lembra Andrei Roman, citando o governador do Rio Grande do Sul, que disputa com o homólogo paulista espaço no PSDB. Para o CEO do Atlas, Leite pode ser um fator surpresa nos próximos meses. “Não medimos o Leite e ele pode constituir o principal fator surpresa pela frente. Leite tem a vantagem de ser desconhecido para a maioria do público nacional, então poderia chegar como uma espécie de salvador se nenhum outro candidato de centro decolar. Ele é jovem, tem um discurso moderado, não surfou na onda bolsonarista e tem uma boa aprovação como governador.”

A pesquisa Atlas foi realizada com 3.721 entrevistas feitas por questionários aleatórios via internet. As respostas são calibradas por um algoritmo de acordo com as características da população brasileira.

FLÁVIA MARREIRO, de São Paulo para o EL PAÍS, em 11 de Março de 2021