quinta-feira, 11 de março de 2021

Tasso Jereissati: “Até gostaria que Lula concorresse. Precisamos de uma lição de democracia em 2022”

O senador e ex-presidente do PSDB afirma ser contra impeachment de Bolsonaro, mas defende a CPI da Covid para responsabilizar o Governo Federal pela crise durante a pandemia


O senador Tasso Jereissati, no Senado, em 2020. (Crédito foto: Marcos Oliveira).

Acostumado a transitar pelos carpetes do poder na capital federal —onde costuma fazer a política de bastidor, de conversas ao pé do ouvido—, o senador está isolado há quase um ano ininterrupto na capital cearense, sua terra natal. Regressou a Brasília apenas em fevereiro passado, quando veio votar contra Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para a presidência do Senado.

Na entrevista que concedeu por Zoom na última segunda-feira ao EL PAÍS, o congressista diz estar preocupado com os efeitos da decisão que devolveu os processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à estaca zero. Há uma chance de invalidar toda a operação Lava Jato. Contou também que o PSDB seguramente não estará com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na eleição de 2022, que espera a abertura da CPI da Covid no Senado para responsabilizar as autoridades que cometeram erros no combate à doença, mas não defende o impeachment do chefe do Executivo. Apesar de dizer que não vê a democracia em risco, Tasso está com medo.

Pergunta. Como o senhor avalia essa decisão que devolveu os processos do ex-presidente Lula praticamente à estaca zero?

R. A Lava Jato fez um trabalho excepcional no país, por um lado. Puniu toda uma gama da elite da política e do empresariado que se colocavam acima de todos e agiam como se fossem inimputáveis. Por outro lado, errou muito também e causou um clima de insegurança grande. Agora, zerar toda a Lava Jato é uma grande preocupação. É dizer que nada do que ela apurou existiu. Não sei como a opinião pública vai reagir a isso.

P. Com relação ao Lula, o senhor consegue notar algum erro específico, pelo que acompanhou até agora?

R. Houve uma série de conversas absolutamente inadequadas entre um juiz e um procurador [Deltan Dallagnol]. Agora, há uma série de evidências muito fortes contra os investigados da operação. Quando se toma uma decisão como essa, do ministro Fachin, mistura uma coisa com outra e anula tudo. Em princípio, essa decisão não é boa. A decisão acaba abrindo portas para anular a condenação do Marcelo Odebrecht ou do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Tem uma série de processos contra réus confessos que serão anulados? É uma dúvida. Eu não sei como o brasileiro médio vai enxergar isso. Para os profissionais do Direito pode ficar claro. Mas para a população em geral, não. Como seria no caso de um ladrão de galinha, por exemplo?

P. E do ponto de vista político, qual é o impacto da retomada dos direitos políticos do Lula?

R. Vou ser sincero. Eu gostaria até que o Lula concorresse. No momento que nós vivemos, precisamos de uma grande lição de democracia na próxima eleição. Defendo que todas as correntes ideológicas participem. Acho bom que o Lula concorra. Pessoalmente acho que vai prevalecer o equilíbrio. O país está cansado dos extremismos de um lado e do outro. Todos os presidentes da República que eu conheci dizem, ao assumir, que são o presidente de todos os brasileiros. O PT do meio para fim do segundo mandato do Lula começou a dizer que era o nós contra eles. E o Bolsonaro extremou isso. Ao invés do nós contra eles, era o eles contra nós. Acho que o Brasil cansou desses extremos. O Brasil cansou do debate irracional, com muita raiva de um lado e do outro, com muita ofensa e com pouco argumento. Por isso, acho que vai prevalecer esse equilíbrio.

P. Alguns enxergariam essa sua visão como a de um otimista. É possível fugir dessa polarização, de fato?

R. Essa avaliação tem uma dose grande de realismo. O Fernando Collor de Mello veio com um discurso radical, contra a classe política, os marajás, contra igreja, contra militares, contra tudo. Sozinho, praticamente, teve uma votação impressionante contra o próprio Lula e vários outros candidatos. Logo depois, na eleição seguinte, veio o voto do equilíbrio, que foi o do Fernando Henrique Cardoso. E o Lula que ganhou a eleição em 2002 era o Lula do equilíbrio, quando ele fez aquela Carta ao povo brasileiro, dizendo que ele era o “Lulinha paz e amor”. Foi quando ele se aliou ao José Alencar, que era um dos maiores empresários brasileiros, e fez um gesto enorme. Já a Dilma Rousseff começou a extremar. E o Bolsonaro veio para extremar do outro lado. Então, esse ciclo está no fim.

P. E onde estará o PSDB na eleição de 2022? Pelos seus discursos ele não apoiará o Bolsonaro em nenhum momento. É isso?

R. Nem eu nem o PSDB estaremos com o Bolsonaro. De maneira nenhuma! Temos até alguma afinidade com a política econômica, não toda, mas o resto somos o oposto do Governo Bolsonaro. Somos contra a política externa desastrosa, o negacionismo científico. Tem uma série de pontos que são o reverso daquilo que pensamos e repudiamos com muita veemência.

P. Ao dizer que o PSDB não estaria com o Bolsonaro em 2022, o senhor acha que há um arrependimento por não se opor a ele em 2018?

R. De maneira geral, o PSDB se opôs ao Bolsonaro. Na propaganda da televisão, o nosso candidato Geraldo Alckmin era muito mais crítico ao Bolsonaro do que qualquer outro candidato, inclusive o do PT. O programa era todo em cima do Bolsonaro, não do Fernando Haddad [PT]. E quem representava todo o PSDB era o Alckmin.

P. Mas no segundo turno não faltou algo mais contundente nessa oposição? Teve até a chapa BolsoDoria em São Paulo, quando João Doria pediu voto para o Bolsonaro.

R. Aí, sim. Houve uma certa perplexidade. Um dos erros cometidos principalmente pelos nossos políticos mais jovens foi não olhar o histórico do Bolsonaro. Bastava ver as votações dele na Câmara, o comportamento dele enquanto político. Os discursos dele como deputado já diziam muito bem o que ele ia ser hoje. Não precisava de mais nada. Mas, muita gente, inspirada em uma visão equivocada dizia o seguinte: “contra o PT qualquer coisa vale”.

P. Como o senhor votou em 2018? Votou no Haddad?

R. Meu voto não foi muito republicano. Eu votei em branco.

P. E como estão esses diálogos com outras legendas? Já se sabe que possivelmente não haverá uma frente ampla contra Bolsonaro no primeiro turno. No segundo turno, haveria essa reunião?

R. Não está claro para mim que Bolsonaro estará no segundo turno em 2022. Ainda não dá para acreditar nos números de hoje. Ainda tem muita água para correr debaixo da ponte. Acho que qualquer aliança a ser feita não deve ser contra ninguém, mas sim, em favor de princípios. E claro que um deles é em respeito à democracia, às instituições, à imprensa, à ciência, à política externa abrangente. Evidentemente esta lista de princípios vai levar a um antagonismo natural com Bolsonaro. Agora, o quadro que está aí está muito difícil porque tem muitos candidatos. Acredito que aquele que preencher todos os princípios, não necessariamente do PSDB, é quem deve ser o candidato. Sem se caracterizar como bandeira ser contra alguém.

Política externa e pandemia

P. O que mais chama sua atenção da política externa bolsonarista?

R. Evidentemente tudo é negativo nessa política externa. Não vi nenhum acerto. A figura do ministro das Relações Exteriores [Ernesto Araújo] sintetiza isso. Ele começou usando uma estratégia desastrosa, apoiando o republicano Donald Trump como se fosse um candidato brasileiro contra os democratas nos Estados Unidos. Participou de campanha, fazendo uma aliança incondicional não com o Governo americano, mas com um partido e um líder americano, o que causou um mal-estar com a outra banda da política americana. A relação com a China, nosso principal parceiro comercial, também tem sido conflituosa. Na área ambiental, também só se busca confrontos. Eu poderia passar uma tarde inteira falando sobre erros cometidos nessa área. Nesta semana, eu morri de vergonha de ser brasileiro.

P. Por quê? Por causa da comitiva que foi a Israel analisar o spray nasal que tem sido testado como medicamento contra a covid-19?

R. Fiquei com vergonha do nível dos “cientistas” que viajaram a Israel. O que eles entendem de saúde? E quando chegam lá levam bronca dos israelenses no aeroporto, para que todos usem máscara. E, depois, o ministro Ernesto Araújo, foi obrigado a botar a máscara. É como se dissesse: “Te comporte aí! Está pensando que está aonde? No Brasil?”. É de matar de vergonha. Na política externa, desde o início dos anos 1990, tivemos uma série de ministros de extrema grandeza.

P. Qual é a sua avaliação sobre a atuação do Governo Bolsonaro na pandemia? O que poderia ser feito?

R. Se fosse para avaliar ponto a ponto, eu passaria dois dias inteiros falando desse assunto. O presidente começou menosprezando o coronavírus, chamando de gripezinha, fez aglomerações só para provocar, falou da “vacina chinesa”, desmoralizou seu ministro da Saúde o tempo todo, não comprou no momento correto as vacinas que estavam sendo oferecidas ao Brasil. Se não fosse o Butantan, objeto de ojeriza e ataques ao presidente, nós estaríamos praticamente sem vacinas. Estaríamos no meio de março sem vacinas. Entre mimimis e discursos radicais têm muitas coisas ruins. Um ponto fundamental nós vimos nos Estados Unidos simplesmente com a mudança de liderança, quando sai o negacionista Trump, que não ajuda e confunde, e entra um líder que resolve mobilizar, tudo fica diferente. Passou a ter qualidade e rapidez. O presidente precisa ser referência, precisa ser um líder. É isso que faz com que a população que ele lidera siga as suas orientações.

P. O senhor é um dos 31 senadores que defende uma investigação do governo na CPI da Covid. O que falta para ela ser aberta, boa vontade do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco?

R. O presidente Rodrigo Pacheco só precisa cumprir o regimento. As assinaturas já tem. Não é uma CPI como as outras que, além de evitar responsabilidades, tem o objetivo de prevenir o presente. Se deixarmos o presidente Bolsonaro fazer o que está fazendo, dizer o que bem quer, não chegaremos a lugar nenhum. Uma das causas do preocupante estágio em que estamos hoje é o Governo Bolsonaro. A CPI seria um mecanismo para levantar as responsabilidades. No Governo você não pode fazer o que bem quer, acima da lei e causar transtornos, mortes e ficar impune. O presidente está tão impune que continua agindo dessa maneira equivocada. Ao menos a CPI daria ao presidente e aos seus ministros a clara consciência de que ele vai ser responsabilizado pelas bobagens que ele está fazendo. Então, controle-se. Se o presidente não consegue mudar suas crenças negacionistas, controle-se porque um dia ele pode ser apenado por isso.


O senador Tasso Jereissati, no Senado, em 2020. (Crédito da foto: Pedro França).

Impeachment e democracia

P. Essa responsabilização poderia ser por meio de um processo de impeachment?

R. Não. Eu não estou pensando no impeachment agora. Estou pensando mais em prevenir o futuro e segurar o presente. As responsabilidades, sendo levantadas, com certeza é após o fim do mandato. O impeachment agora seria muito ruim. Já vivi dois impeachments e vi que o país parou, dividiu-se mais ainda. É uma crise e isso não é adequado para o Brasil agora.

P. Mas tem mais de 60 pedidos de impeachment na Câmara. Ignorar esses processos, sem avaliação do Congresso, não significa deixar de lado o anseio de parte da população?

R. À essa altura poderia prejudicar, sim. Mas, pelo que estamos vendo nos governos estaduais e municipais, os governadores e prefeitos assumiram a frente do combate, na ausência do Governo Federal. A única mudança ocorreria se o Governo Bolsonaro quiser atrapalhar mais ainda. Por exemplo, na aquisição de vacinas. Mas isso não é provável. Se ele atrapalhasse mais do que vem fazendo, chegaria, sim, ao ápice da irresponsabilidade. Aí, sim, poderia se chegar ao impeachment.

P. Quais são as chances dessa CPI prosperar?

R. Vejo muitos senadores preocupados, mas não vi, até agora, nenhum movimento do presidente do Senado. Mas ele é um homem correto, responsável, acho que vai chegar o momento que ele vai se tocar.

P. Na última eleição para as Mesas Diretoras do Senado e da Câmara, o Governo Bolsonaro agiu fortemente por seus candidatos [Rodrigo Pacheco e Arthur Lira]. Qual a diferença dessa eleição para as demais da que o senhor participou no Congresso?

R. Fazer articulação para eleger a Mesa Diretora do Senado por videoconferência é muito complicado. É o tipo de negociação que exige muito cochicho, muita conversa de pé de ouvido. E acho que se fez um movimento muito sério, que foi se passar por cima dos partidos políticos. O Governo fez cooptação individual dos senadores em troca de apoio, simplesmente ignorando os partidos políticos, as lideranças partidárias, os presidentes de partidos. Não existe um bom Parlamento sem partidos. Não existe democracia sem um bom Parlamento.

P. Uma pergunta que se tornou clássica para qualquer político, jurista ou analista: a democracia está em risco?

R. Eu tenho medo. Acredito que a democracia não está em risco. Mas eu não estou tranquilo. Eu vi coisas recentemente que nunca esperei ver em minha vida. Vi o Capitólio sendo invadido por um bando de desordeiros, comandados por um presidente que pregava a quebra do resultado eleitoral e desrespeitando as eleições americanas. O mesmo presidente americano citou que não aceitaria o voto pelos correios porque teria fraude. Estou vendo o presidente brasileiro que, além de imitar o Trump, afirma que se houver eleição sem papel impresso haverá fraude, e diz que a própria eleição dele teve fraude. Ele tem um número grande de seguidores. Ao mesmo tempo, ele corteja os militares, preenche seu governo de militares em vários níveis, e corteja as polícias militares. Esse cenário não me deixa muito tranquilo.

P. A Petrobras anunciou um novo reajuste nos combustíveis. A cesta básica está cada vez mais cara. Onde vamos parar?

R. Num país com tantas incertezas é difícil a economia subir. O principal investidor da economia é a confiança e o mínimo de segurança do que vai acontecer em breve. A previsibilidade. Aqui, temos a dúvida da vacinação. Para mim, o grande economista aqui é a vacinação. Mas não temos até hoje um cronograma claro de vacinação. Temos várias incertezas sobre o comportamento do governo em relação à pandemia. Só por isso a economia já balança. Quando o presidente coloca um ingrediente a mais ao mudar o presidente da Petrobras da maneira que ele mudou, a incerteza se espalhou. O que nós precisamos neste momento é ter o mínimo de segurança e de confiança no que vai acontecer até o fim do ano.

P. O senhor tem planos eleitorais para 2022? Concorrerá à reeleição?

R. Está chegando a hora de ter juízo. Não de aposentar, mas de ir mais devagar. Como diz o Martinho da Vila, devagar, devagarinho.

AFONSO BENITES, de Brasília - DF para o EL PAÍS, em 11.03.2021

Olga Maria Curado: Alegria de Bolsonaro em concorrer com Lula é conversa para boi dormir

Assim que ficou pública a decisão do ministro Edson Fachin em anular as condenações do ex-presidente Lula, que o tornavam inelegível, habilitando-o a concorrer nas próximas eleições presidenciais, os palacianos cloroquínicos correram para criar a versão segundo a qual fora uma boa notícia para o chefe, o capitão reformado que quer se manter no cargo por pelo menos mais um mandato.

O esforço de criar uma narrativa que normaliza uma disputa entre o atual inquilino do Palácio do Planalto e o seu ex-ocupante, colocando de um lado um bolsonarismo e de outro o petismo ou lulismo, é um exercício retórico, no mínimo pueril. Não é disso que se trata. Pura conversa para boi dormir, para acalmar o gado.

Há neste momento um contorcionismo verbal dos amadores em democracia, em tratar o capitão reformado como um legítimo contendor dentro do estado de direito. Todavia, mais que a incapacidade intelectual do ex-deputado federal por 27 anos, membro medíocre de um baixo clero fisiológico, é o desapego dele aos pilares da democracia que não permitem tratá-lo como a um candidato normal. Ele não é um candidato que polariza ideias dentro do sistema democrático; é um demolidor dessa ordem.

A covardia institucional permitiu que a democracia fosse tratada como tema de política partidária, na qual são eles contra nós - sendo eles os corruptos e nós a sociedade indefesa contra os ladrões que roíam as riquezas do Estado e da população. Na realidade, havia nos porões da Justiça a paranoia messiânica de procuradores e de um ex-juiz, cujo limite de atuação não tinha grades.

Contaminou-se toda a sociedade com o discurso do salvador da pátria, inebriados todos com a punição vigorosa de poderosos, cujo símbolo maior seria um ex-presidente da República. Abria-se assim para que a Justiça agisse sem temor. Foram covardes as instituições que não olharam para si mesmas, nas limitações dos seus próprios mandatos.

Agora, bolsonaristas atônitos tentam criar a falsa alegria que lhes permite praticar mais uma das lições das cartilhas de Bannon, aquele mesmo Steve que cevou a opinião pública americana para eleger Donald Trump, felizmente defenestrado, por enquanto, e que ilumina os passos dos filhos do capitão, porta-vozes do ódio. Faz parte da cartilha criar ambiente de polarização, em que hipocritamente são normalizadas disputas, como se fossem elas parte de um mesmo espaço legitimo e legal.

Não é bolsonarismo versus petismo, ou lulismo. É uma luta contra o fascismo que penetra disfarçadamente, pela via dos discursos desconexos com a realidade e a necessidade do povo, no debate público, tentando falsamente polarizar entre correntes partidárias. De um lado está do capitão e seus próceres, amantes do fascismo, a vocação inegável para o autoritarismo, o desrespeito à vida; do outro lado está a democracia.

Qualquer que seja o porta-voz das forças democráticas capaz de destruir o ovo da serpente deverá contar com o destemor dos preteridos numa disputa eleitoral. Será preciso abandonar a ambição pessoal em nome da sobrevivência da liberdade reconquistada pelo país, depois do pesadelo da ditadura.

É preciso atenção. Há ainda muitos generais Pazuello na fila, esperando promoção a cargos com direito a motorista, diárias em dólares e secretárias.

É preciso atenção para a tentativa de criar a falsa polarização pretendida pelo atônito capitão, que agora rasteja diante da Pfizer, atrás de vacina, quando deu de ombros à oferta de 100 milhões de doses.

É falsa a polarização com aquele que assiste, sem se comover, à morte de mais de 260 mil brasileiros, muitos deles sucumbindo à espera de leitos, sufocados pela incompetência dos servis generais de plantão.

É falsa a polarização quando há ainda muitas perguntas sem respostas.

Com que dinheiro o filho do capitão comprou a mansão em Brasília, que o seu salário não paga?

Por que o Queiroz, aquele assessor do senador milionário, gerente das rachadinhas, depositou R$ 89 mil na conta de Michelle Bolsonaro?

Quem mandou matar Marielle Franco?

A polarização verdadeira é entre a verdade e a mentira.

Olga Maria Curado é colunista do UOL. Este artigo foi publicado originariamente em 09.03.2021

Eduardo Bolsonaro manda população ‘enfiar no rabo’ máscara contra covid-19

Filho do presidente, deputado federal critica cobertura da imprensa sobre uso de itens de proteção contra infecções pelo coronavírus

Visivelmente irritado, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) mandou a população brasileira enfiar as máscaras de proteção contra a covid-19 “no rabo”. Em uma aparição ao vivo que fez em seu perfil pelo Instagram, o filho “03” de Bolsonaro criticou o uso do principal item de proteção contra a contaminação do vírus que, dia após dia, causa recordes de mortes no País. 

“Eu acho uma pena, né, (que) essa imprensa mequetrefe que a gente tem aqui no Brasil fique dando conta de cobrir apenas a máscara. 'Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara'. Enfia no rabo gente, porra! A gente está lá trabalhando, ralando”, afirmou o deputado. As declarações de Eduardo foram feitas no dia em que o presidente Jair Bolsonaro mudou o discurso, usou máscara e passou a defender as vacinas. Nesta quarta-feira, 10, o Brasil também atingiu mais um recorde de mortes: pela primeira vez foram registradas 2.349 mortes por covid-19 em 24 horas.


O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) Foto: Gabriela Biló/Estadão

Em tom agressivo, enquanto seguia em um carro no banco de carona, o deputado comentou, ainda, o caso das rachadinhas de Fabrício Queiroz e a compra de uma mansão de R$ 6 milhões por seu irmão, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ).

“Você, retardado mental, que fica falando ‘o problema são os filhos, cadê o Queiroz?’, pagou o apartamento R$ 50 mil em dinheiro. Seu animal, larga de ser um peão nesse tabuleiro de xadrez chamado política e começa a pensar um pouquinho, ver o perigo que está por vir e ver como o sistema trabalha porque não dá ponto sem nó, não. Fique com Deus e não consuma cachaça em excesso igual a uns e outros aí”, disse.

Eduardo Bolsonaro também afirmou que iria comentar o resultado da viagem que fez com uma comitiva para conhecer o spray contra a covid-19 em testes iniciais em Israel. Na prática, porém, o que acabou dizendo é que o Brasil é que está desenvolvendo a sua vacina. E não só uma, mas três vacinas próprias.

“Você sabia que o Brasil está desenvolvendo três vacinas?”, perguntou. “A vacina brasileira ainda está em desenvolvimento, não é para agora”, comentou ele, acrescentando que o Brasil terá seu próprio spray e que outros países deverão vir ao País comprar esse produto. Ele não deu nenhum detalhe sobre o que estava falando.

“É importante a gente dominar essa tecnologia e dominar, ter a vacina brasileira. Além disso, isso coloca o Brasil em outro patamar internacional. Ao invés de nós irmos atrás de outros países, eles é que virão atrás de nós. Pode ser inaugurada uma vacina que não precise mais de insumos de outros países. Os israelenses gostaram muito disso”, afirmou.

Além do spray definido pelo presidente de “milagroso”,  que atuaria em conjunto com uma vacina, Eduardo disse que o Brasil tem uma segunda tecnologia em análise, com efeito “dois em um”, que curaria covid-19 e influenza.

“A terceira vacina vai diretamente em seu sistema imunológico. O Brasil está desenvolvendo tecnologia nesta área”, observou, sem nenhum detalhe, data ou previsão de testes.

“Depois que está a invenção feita, aí ‘tá’ o mundo inteiro correndo atrás da vacina, o mundo inteiro correndo atrás dos insumos… Aí já era. Isso que a gente foi fazer em Israel é à semelhança do que ocorreu com a vacina de Oxford. É chegar primeiro, chegar no começo. Quando estávamos saindo de Israel, estava chegando uma delegação de outro país, da República Checa”, lembrou o deputado. “Já procurou Israel não só a Grécia, mas também a Dinamarca, o Chipre, e alguns outros países. Acho que a Áustria também. Então, onde há tecnologia, o mundo inteiro está proativamente se deslocando.”

André Borges, Lorenna Rodrigues e André Shalders, O Estado de S.Paulo, em 10 de março de 2021 

A necessária alternativa para o caos

Para enfrentar Lula e Bolsonaro, as lideranças precisam se organizar para construir, já, uma candidatura capaz de sensibilizar o eleitorado

Lula da Silva e Jair Bolsonaro nunca desceram do palanque. O petista, nem quando esteve preso; o presidente, nem diante de uma pilha de mortos. Logo, os dois saem em considerável vantagem na disputa eleitoral de 2022, cuja campanha, totalmente fora de hora, começou no exato instante em que saiu o resultado da eleição de 2018.

Para enfrentá-los – e evitar que o País tenha que encarar no mínimo mais quatro anos de pesadelo –, as lideranças políticas, sociais e empresariais interessadas na democracia precisam urgentemente se organizar para construir, já, uma candidatura capaz de sensibilizar o eleitorado, em especial a parte – seguramente majoritária – que está farta da briga de rua em que se transformou a política brasileira nos últimos tempos.

Esse objetivo, que nada tem de trivial, implica necessariamente que as forças do centro democrático sejam capazes de deixar as vaidades de lado e costurar uma candidatura única. No atual cenário, quando há quatro ou cinco possíveis candidatos desse campo para disputar uma eleição, é porque não há nenhum.

Algo, contudo, parece ter se movido, especialmente depois que, por uma espantosa decisão judicial, o chefão petista Lula da Silva recuperou seus direitos políticos e deve ser candidato em 2022.

Em entrevista ao Estado, o governador de São Paulo, João Doria, que trabalha há tempos para se candidatar à Presidência pelo PSDB, disse que “nada deve ser excluído”, ao ser questionado sobre a possibilidade de seu partido apoiar um candidato de outra legenda. “Uma aliança pelo Brasil não pode estabelecer prerrogativas de nomes”, declarou Doria. Para o governador, “o fracionamento (de candidaturas de centro) só atenderá ao interesse dos extremos”, e o centro precisa de “juízo” – isto é, de “capacidade de dialogar, formular um programa econômico e social para o Brasil e escolher um candidato que seja competitivo para disputar a eleição e, ao vencer, governar a Nação”.

Outro político que já manifestou desejo de ser candidato, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, do DEM, foi na mesma linha do governador paulista quando disse ao jornal Valor que acredita na possibilidade de que seja encontrado ainda neste ano “o nome de quem vai levar a mensagem diferente das de Lula e de Bolsonaro”. Para Mandetta, agora é a hora de construir uma candidatura centrista “moderada” e “convergente”.

É evidente que Mandetta, como Doria e outros, pretende ser o cabeça de chapa dessa candidatura “convergente”, e é legítimo que acalente o projeto. Todos os que se julgam capazes de tirar o Brasil da rota do desastre, por meio de políticas públicas racionais e competentes, emanadas de um governo que respeite as liberdades e as instituições, devem se apresentar para a tarefa publicamente, o mais rápido possível.

Só assim será possível começar a discutir a sério quem, desses diversos postulantes, será o catalisador dos anseios dos brasileiros ajuizados, para construir uma candidatura capaz de emocionar os eleitores cansados tanto da corrupção antipolítica de Lula como da loucura antipolítica de Bolsonaro.

Aos que, como o apresentador Luciano Huck, vacilam diante da pugna eleitoral – que deverá ser especialmente feroz numa disputa que envolverá dois veteranos da desfaçatez e da truculência, Lula e Bolsonaro –, resta rogar que anunciem sem demora sua decisão, dizendo em voz alta o que pretendem para o País e preparando o estômago para, se for o caso, enfrentar o vale-tudo dos palanques.

O fato é que, a despeito das perspectivas sombrias, o País tem salvação – não obviamente pelo messianismo dos populistas autoritários e oportunistas que atormentam o Brasil há tempos, mas pelo respeito à lei, à coisa pública e à racionalidade econômica.

Seja quem for o candidato designado para enfrentar os arruaceiros da democracia, deve ser um que aposte no Brasil ordeiro e pacífico, capaz de ser o País civilizado e desenvolvido com o qual sempre sonhamos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de S.Paulo, em 11 de março de 2021

Covid-19: 'contágio é exponencial' e só lockdown impede tragédia maior no Brasil, alertam cientistas

Com 2.286 mortes registradas nas últimas 24 horas, o Brasil atingiu nesta quarta-feira (10/3) um novo recorde de óbitos pela covid-19 — e, segundo pesquisadores entrevistados pela BBC News Brasil, não será uma surpresa se os próximos dias forem atingidas novas marcas trágicas como essa.


Mulher chora no enterro em São Paulo de Tereza Santos, uma das 270 mil vítimas da covid-19 no Brasil (Crédito da foto: Carla Carniel / Reuters)

"Já em janeiro, com a elevação do número de casos, prevíamos a falência do sistema de saúde e o aumento de óbitos ainda neste mês (março). Se mantivermos essa curva, podemos chegar em agosto a 500 mil mortos no país", resume o infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), referindo-se a estimativas internas de especialistas e órgãos assessorando o governo de São Paulo.

De acordo com o boletim mais recente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Brasil totaliza 270.656 vítimas fatais da covid-19. Em 10 de fevereiro, o Brasil registrou 1.330 mortes. Em comparação com os dados divulgados na quarta-feira, houve um aumento de 69% nos óbitos em um mês. A média móvel, que leva em conta os números dos sete dias imediatamente anteriores, aumentou 56% no mesmo período: de 1.041 para 1.626 mortes por dia.

Segundo o infectologista, de hoje para agosto, a curva de óbitos prevista só pode ser freada com um isolamento social cumprido rigorosamente — se possível com fiscalização reforçada por polícias, ele sugere.

"Ano passado, quando o isolamento deu um pouquinho certo, as pessoas realmente se isolaram e usaram máscaras. Hoje, essas medidas estão absolutamente desacreditadas. Mesmo com fases e decretos mais rígidos, o nível de isolamento é pequeno e a circulação está grande. A população está tendo um desapego à vida", diz.

"Se você põe bandeiras mas a população não respeita, não vai adiantar nada. Já que não conseguimos que a população se conscientize, precisamos do castigo (com a fiscalização)."

O médico critica ainda que o endurecimento de medidas pelos governos locais, como a atual fase vermelha em São Paulo, veio tardiamente. Para ele, essas intervenções devem ser ainda incrementadas por restrições ao turismo, aos cultos religiosos e às aulas presenciais em escolas, além de limitações a encontros com mais de 10 pessoas.

O epidemiologista Paulo Lotufo, também professor da Faculdade de Medicina da USP, lembra que no primeiro semestre de 2020 foi justamente o isolamento que conseguiu impedir que se concretizassem as estimativas, de março daquele ano, de que em agosto o número de mortes chegaria a 1 milhão no país. Em 31 de agosto de 2020, foram registrados 121.515 óbitos pela covid-19.


Pacientes em assentos improvisados no Hospital Pronto Socorro, em Brasília; falência do sistema de saúde já era prevista, diz o médico Marcos Boulos. (Crédito da foto: EPA / Joedson Alves).

Lotufo concorda com a necessidade de restrições a viagens internas e denuncia o risco de que medidas de isolamento rígidas impostas por governos locais sejam logo relaxadas pela pressão pela abertura do comércio e de serviços não essenciais. Para ele, tais restrições devem seguir pelo menos até a Semana Santa, no início de abril.

"É importante entender que o contágio não é linear — ele é exponencial, como os juros compostos do cartão de crédito. Quando você entra no cheque especial, é uma espiral. Com o contágio, também funciona assim, inclusive para o que você faz de positivo. Se você consegue reduzir substancialmente as infecções, o impacto no número de casos, internações e mortes é muito grande", explica o epidemiologista.

Falta de vacinas e maior risco de variante

Idealmente, Lotufo diz que em uma fase crítica da pandemia como a atual no Brasil, o isolamento deveria ser associado à vacinação massiva e ao rastreamento de casos — ambas medidas timidamente aplicadas no Brasil até hoje.

Até esta terça-feira (9/3), 8,7 milhões de pessoas no Brasil — 4% da população — receberam a primeira dose da vacina contra a covid-19, segundo um consórcio de veículos da imprensa formado por G1, O Globo, Extra, Estadão, Folha e UOL.

O país que mais vacinou em termos relativos no mundo, Israel, chegou à metade da população imunizada com pelo menos uma dose em fevereiro.

Entretanto, Marcos Boulos ressalva que as vacinas têm papel mais importante a médio e longo prazo no controle da pandemia — diferente da situação emergencial que estamos vivendo agora.

"Mesmo se tivéssemos vacinas o suficiente, não impactaria tanto nesse momento, porque elas começam a funcionar algumas semanas depois da aplicação. Mas ela vai ser extremamente importante para atingirmos a imunidade coletiva, que permite acabar com a transmissão."

O infectologista lembra que o isolamento é importante não só para controle geral da doença, mas para frear o surgimento de novas variantes do vírus, como a P.1, originada em Manaus (AM). Ele explica que as variantes se formam a partir de "mecanismos de fuga" do vírus para continuar se proliferando — quanto mais ele circular, ou seja, junto com as pessoas, mais variantes podem surgir.

Segundo pesquisa do Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE), a P.1 é de 1,4 a 2,2 vezes mais transmissível que as linhagens anteriores.

"Vimos que em dezembro a variante foi responsável por uma elevação nas transmissões em dezembro, e em janeiro acelerou demais. Ela ainda não predomina, mas já está no Brasil todo", diz Marcos Boulos.


Até esta terça-feira (9/3), 8,7 milhões de pessoas no Brasil — 4% da população — receberam a primeira dose da vacina contra a covid-19, segundo um consórcio de veículos da imprensa

Curvas ainda em tendência de crescimento

De acordo com Marcelo Gomes, pesquisador a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do InfoGripe (sistema de monitoramento da covid-19 e de outras síndromes respiratórias), a maior parte do país está com curvas de casos graves ainda em ascensão — sem sinais claros de arrefecimento.

Uma exceção é na região amazônica, onde picos foram atingidos na virada do ano e agora não estão crescendo mais.

"A curva de casos graves antecipa a de óbitos, com uma diferença de uma a duas semanas entre as elas", explica Gomes, indicando que se a curva de casos graves na maior parte do país está em tendência de crescimento, é de se esperar que a de óbitos deva crescer mais nas próximas semanas.

"Por isso, mesmo depois que os novos casos sejam controlados, a diminuição da curva de óbitos ainda leva certo tempo."

Mariana Alvim - @marianaalvim, da BBC News Brasil em São Paulo, em 11.03.2021

Lula tem condições melhores contra Bolsonaro hoje do que em 2018, diz André Singer

Em entrevista à BBC News Brasil, Singer diz que o forte sentimento anticorrupção no país após o escândalo na Petrobras — que enfraqueceu Fernando Haddad, candidato do PT após Lula ser impedido de concorrer ao ser condenado em segunda instância — tende a perder importância diante de outros problemas que o país enfrenta, como as crises da saúde e da economia e a percepção de ameaça à democracia.

André Singer diz que o grande número de partidos que existem no Brasil é um dos motivos que explicam a dificuldade de união na esquerda brasileira. (Crédito foto: Cia. das Letras)

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) hoje tem condições melhores para derrotar o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nas urnas do que em 2018, avalia o cientista político André Singer, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-porta-voz do petista, em seu primeiro mandato como presidente (2003-2006).

Para Singer, embora Bolsonaro tenha apoio no momento para chegar ao segundo turno presidencial, sua atuação na pandemia aumentou sua rejeição entre os eleitores de centro. "O governo Bolsonaro está num mal momento", pontua.

Nesta semana, Lula recuperou seus direitos políticos depois que o ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin anulou suas condenações, sob o argumento de que os processos da Operação Lava Jato contra o petista deveriam ter tramitado na Justiça do Distrito Federal e não na 13ª Vara de Curitiba, do ex-juiz Sergio Moro.

Apesar de ver o petista mais forte hoje, Singer defende a importância de uma aliança ampla de forças políticas para enfrentar Bolsonaro em 2022.

No livro Estado e Democracia (Companhia das Letras), que o cientista político está lançando com Cicero Araújo e Leonardo Belinelli, os autores fazem uma revisão das origens do Estado Democrático no Ocidente;

Também apontam que ele vem sendo ameaçado nos últimos anos em diversos países com o avanço de governos de direita com viés autoritário, como os de Viktor Orbán na Hungria, de Recep Erdogan na Turquia, de Andrzej Duda na Polônia e, até janeiro, de Donald Trump nos Estados Unidos.

O livro inclui Bolsonaro nessa tendência e aponta que a possibilidade de derrota desses governos vêm justamente da aliança de forças políticas democráticas que parece distante no Brasil.

Para Singer, o grande número de partidos no Brasil, a cláusula de barreira (que exige um mínimo de deputados federais eleitos para que um partido siga recebendo financiamento público) e "componentes populistas na política brasileira" dificultam frentes amplas. "As figuras individuais ganham um peso excessivo", ressalta.

Confira a seguir os principais trechos das entrevistas com Singer, que conversou com a BBC News Brasil em dois momentos: no final de fevereiro e após a anulação das condenações de Lula.

PT caminha para disputar a eleição de 2022 com Lula (caso o STF anule suas condenações) ou Fernando Haddad (Crédito da foto: Ricardo Stuckert / Instituto Lula)


BBC News Brasil - Lula disse que vai conversar com diversos setores da sociedade. Se sua elegibilidade for mantida, ele pode unir a esquerda ou construir uma frente ampla em torno dele?

André Singer - O discurso dele na manhã de hoje aponta na direção de abrir conversas com setores que estão à esquerda do centro. Ele foi bastante explícito em relação a isso. Ele disse que há bastante tempo ainda para o período eleitoral propriamente dito e que acha importante que esses setores conversem.

Por outro lado, a própria candidatura dele, caso venha a se consolidar, tem um peso muito grande. Do ponto de vista de popularidade, de memória, de ele já ter sido presidente, em tese tudo isso dá uma dianteira muito grande em relação a outros possíveis candidatos. Então, é uma situação um tanto quanto ambígua. Ele disse claramente que acha importante que haja uma unidade à esquerda do centro, mas ao mesmo tempo o nome dele tem um peso natural.

Ele não descartou a frente ampla, mas claramente ele disse que seria uma segunda etapa. Não necessariamente um segundo turno. É como se ele tivesse dizendo que esse processo caminharia por etapas, e a primeira corresponderia a uma conversa mais no campo à esquerda do centro e talvez depois com setores que estão ao centro ou à direita do centro.

BBC News Brasil - Essa união é fundamental para uma vitória, ou Lula seria competitivo com uma candidatura menos ampla?

André Singer - O discurso dele na manhã de hoje aponta na direção de abrir conversas com setores que estão à esquerda do centro. Ele foi bastante explícito em relação a isso. Ele disse que há bastante tempo ainda para o período eleitoral propriamente dito e que acha importante que esses setores conversem.

Por outro lado, a própria candidatura dele, caso venha a se consolidar, tem um peso muito grande. Do ponto de vista de popularidade, de memória, de ele já ter sido presidente, em tese tudo isso dá uma dianteira muito grande em relação a outros possíveis candidatos. Então, é uma situação um tanto quanto ambígua. Ele disse claramente que acha importante que haja uma unidade à esquerda do centro, mas ao mesmo tempo o nome dele tem um peso natural.

Ele não descartou a frente ampla, mas claramente ele disse que seria uma segunda etapa. Não necessariamente um segundo turno. É como se ele tivesse dizendo que esse processo caminharia por etapas, e a primeira corresponderia a uma conversa mais no campo à esquerda do centro e talvez depois com setores que estão ao centro ou à direita do centro.

BBC News Brasil - Essa união é fundamental para uma vitória, ou Lula seria competitivo com uma candidatura menos ampla?

Singer - Na suposição de que ele seja candidato, quanto mais unidade ele obtiver, melhor será a perspectiva de uma possível vitória. Na verdade, nós não sabemos qual o potencial do outro candidato (que disputará o segundo turno). Se a eleição fosse hoje, seria Bolsonaro. Ele ainda está (com apoio) por volta de 25%, 30% dos votos, o que tende a coloca-lo no segundo turno.

Como em política você sempre lida com cenários hipotéticos, certamente a ideia de constituir uma frente mais ampla é importante para quem for se opor a Bolsonaro caso ele seja efetivamente o candidato. É bastante prudente pensar numa composição de forças. Mas não sabemos qual vai ser a situação em outubro de 2022 com relação a um eleitorado que tende hoje bastante a rejeitar Bolsonaro, sobretudo pela pandemia. Mas até lá a coisa pode se alterar.

BBC News Brasil - Um cenário de múltiplas candidaturas favorece a tentativa de reeleição de Bolsonaro?

Singer - O segundo turno foi justamente pensado com essa finalidade, de que as forças políticas pudessem se expressar individualmente no primeiro turno e se unificar no segundo. É uma instituição muito democrática nesse sentido e eu até acho que, em condições normais, isso vale plenamente. O problema é que nós não estamos em condições normais.

Seria melhor, eu até diria que seria muito importante, que o eleitorado recebesse um recado claro: as forças democráticas do país se unificaram, superando enormes divergências, para impedir o progresso de uma alternativa que está erodindo a democracia no Brasil. Quando a democracia for suprimida, as pessoas vão lamentar, mas nós ainda estamos em condição de impedir que isso aconteça.

BBC News Brasil - Por que é tão difícil a frente ampla funcionar?

Singer - Existem três fatores. O primeiro é uma fragilidade do sistema partidário brasileiro. Isso se expressa na excessiva fragmentação. Nós temos mais de 30 partidos na Câmara, e os maiores são relativamente pequenos. É um fator que dificulta a formação de coalizões estáveis.

A segunda questão é que a cláusula de barreira impõe necessidade para alguns partidos de terem candidaturas próprias para que eles possam ter as bancadas necessárias (eleitas na Câmara dos Deputados) para se manter (recebendo recursos públicos e tempo de propaganda de rádio e TV).

E há os componentes populistas na política brasileira, que dificultam frentes programáticas, porque as figuras individuais ganham um peso excessivo.

Tudo isso representa uma parte do problema. A outra diz respeito ao compromisso democrático de setores de centro e à direita do centro. Se nós quisermos realmente preservar a democracia, essa frente terá que ser muito ampla, e a esperança realista hoje é que isso aconteça no segundo turno. Por isso, que apesar das dificuldades, vale a pena continuar discutindo o assunto, porque nós teremos pela frente uma decisão da maior importância em 2022.

BBC News Brasil - Alguns analistas políticos entendem que Bolsonaro, a partir de meados do ano passado, moderou seu discurso e passou a buscar uma base no Congresso. Por que o senhor vê de forma tão clara que seu governo gera ameaças democráticas?

Singer - De fato, em meados do ano passado, houve uma virada no comportamento do presidente quando ocorreu a prisão do ex-PM Fabrício Queiroz. Ele mudou da água para o vinho, porque (antes da prisão) ele passou um semestre inteiro, desde que começou a pandemia, indo a manifestações públicas que pediam o fechamento do Congresso e do STF. Isso é motivo para impeachment em qualquer lugar do mundo.

Só que a mudança (em meados de 2020) se reverteu quando ocorreu a derrota de Trump nos Estados Unidos, porque ali Bolsonaro voltou a dizer que isso (a contestação da eleição feita por Trump) aconteceria no Brasil, na prática implicitamente (sinalizando para) uma tentativa de golpe se ele perdesse a eleição, porque teria havido fraude. Foi exatamente a tentativa que ocorreu nos Estados Unidos, quando rump incitou partidários a invadirem o Congresso dos Estados Unidos.

Na sequência desses acontecimentos houve uma entrevista de Fachin em que ele alerta para o fato de que, nos Estados Unidos, o que impediu que essa tentativa de golpe desse certo foi não ter apoio nas instituições e das Forças Armadas. Acontece que no Brasil nós tivemos justamente a eleição para a presidência da Câmara de um político alinhado com o Planalto e nós temos uma vasta participação de militares neste governo. Então, o nosso trabalho (dos cientistas políticos) é advertir, é mostrar o que nós estamos vendo, porque é decisivo para o futuro do Brasil essa questão.

BBC News Brasil - Bolsonaro ganhou do PT em 2018. Se a disputa se repetir com Lula candidato, qual lado é mais forte?

Singer - Para responder cientificamente, precisaria aguardar algumas pesquisas (de popularidade) após a reabilitação (dos direitos políticos) do Lula. Até então, uma candidatura do Lula era pouco provável. Essa foi a grande mudança que a decisão do ministro Fachin provocou: tornou algo que era pouco provável em algo bastante provável. É claro que ainda há várias coisas no caminho que podem alterar esse quadro, mas estamos falando na situação colocada hoje, dia 10 de março. Nessa situação nova, seria interessante saber como o eleitorado vê agora uma candidatura Lula provável, em vez de uma candidatura Lula improvável.

Tendo em vista que o governo Bolsonaro está num mal momento, com uma tendência declinante (nas pesquisas de popularidade), diria que a situação é melhor neste momento para Lula do que em 2018. Mas digo isso muito sujeito ainda à verificação empírica (nas futuras pesquisas). Em um ano e meio (até a eleição presidencial) muita coisa pode mudar, tanto para um lado como para o outro.

BBC News Brasil - Então, com a ressalva de que muita coisa pode mudar, hoje o ex-presidente estaria em condições melhores de derrotar Bolsonaro do que estava em 2018?

Singer - Sim.

BBC News Brasil - Alguns analistas dizem que a possibilidade da candidatura de Lula reforça a polarização política no país e preveem que o centro político será esvaziado. Concorda?

Singer - Sobre essa questão da polarização, há um grande equívoco no Brasil, porque o Lula, na prática, sobretudo depois que ele assumiu a Presidência, quase sempre se apresentou como um conciliador, e de fato foi. E esse traço de conciliação nunca deixou de existir, mesmo nos momentos mais difíceis para ele. Houve uma radicalização pelo fato que surgiu uma opção de extrema-direita que no começo era bastante minoritária, mas acabou ganhando espaço e voto e elegendo o presidente da República. Na verdade, o Brasil, inesperadamente, elegeu um presidente da República muito radical. Então, é uma polarização unilateral, porque ela não é correspondida por uma radicalização do outro lado. Isso precisa ser bem compreendido, se não o processo não fica transparente.

Essa força extremista, no caso de direita, se impôs na eleição de 2018. Ocupou o espaço do centro. A candidatura centrista, que era a do Geraldo Alckmin (PSDB), perdeu votos para essa candidatura extremada. Então, não houve propriamente uma polarização. O que houve foi que o eleitorado de centro se radicalizou. E, de lá pra cá, uma parte desse eleitorado já se afastou do atual presidente. Portanto, seria provável que uma candidatura ao centro tivesse hoje mais votos do que teve em 2018.

BBC News Brasil - Com desemprego e miséria em alta, a entrada mais forte de Lula no cenário político, reforçando um discurso social, pode fazer Bolsonaro se afastar ainda mais da pauta econômica liberal?

Singer - É uma dedução lógica, mas muitas vezes a política não obedece a lógica, mas a interesses. Vai ser necessário analisar as resistências para ele fazer isso. Ele fez uma aliança com setores ultraliberais que têm muita contradição com políticas de natureza mais social. Essa aliança é importante. Ele tem dificuldades de se movimentar (contrariando essa aliança). Isso está claro na questão (da demora da volta) do auxílio emergencial, por exemplo, e ela não vai desaparecer, porque surgiu um candidato como o ex-presidente Lula que, em tese, poderia provocar esse tipo de reação.

Singer diz que houve uma virada no comportamento do presidente Bolsonaro quando ocorreu a prisão do ex-PM Fabrício Queiroz

BBC News Brasil - Parte dos brasileiros celebrou a decisão de Fachin e vê injustiças na atuação da Lava Jato, mas parte também se indignou por considerar que significa a impunidade de um corrupto. O sentimento anticorrupção que pesou contra o PT em 2018 pode ser relevante contra Lula em 2022?

Singer - A corrupção é uma questão permanente da política brasileira. Sempre foi, mesmo no período ditatorial, em que o debate era muito mais restrito. Em geral, é um tópico que atinge mais o eleitorado dos estratos médios. Nesse sentido, acho que sim, não há porque imaginar que isso vai desaparecer, porque o debate em torno dessa questão é um elemento estrutural do funcionamento da política brasileira.

A tendência é, diante da importância que adquiriu agora particularmente a questão da saúde, o problema da economia e, em terceiro lugar, o problema da democracia, que não estava colocado em 2016 mas passou a ser e ficou muito agudo com a chegada ao governo de um setor de extrema-direita, tudo isso faz com que, em termos relativos, o tópico da corrupção talvez perca alguma importância. Mas não vai desaparecer.

BBC News Brasil - Seu novo livro aponta os escândalos de corrupção como um dos fatores que alimentaram o descrédito na política no mundo nas últimas décadas. Considerando o escândalo na Petrobras nos governos do PT, qual é a responsabilidade do partido no desgaste da democracia brasileira hoje?

Singer - A leitura objetiva dos acontecimentos políticos da última década dá a impressão de que havia um sistema de financiamento da política (com doações ilegais) que envolveu todos os grandes partidos. E, nessa medida, você poderia dizer que o conjunto do sistema partidário, de alguma forma, tem uma responsabilidade no desenvolvimento da democracia nessa última década. Agora, não podemos também deixar de lembrar, da mesma maneira, o fato de que a Lava jato foi muito facciosa. Digo facciosismo no sentido de ter o lado de uma facção, de favorecer uma facção contra outra.

De modo geral, a Lava Jato tem um lado republicano, porque apurou coisas importantes, mas ao mesmo tempo tem um lado faccioso em que claramente ela se voltou para a destruição da liderança do ex-presidente Lula e do Partido dos Trabalhadores — e agora isso ainda está comprovado.

Singer: 'Governo Bolsonaro é um governo de direita que está tomando medidas populares porque é um governo que quer se reeleger' (Crédito da Foto: Marcos Bello / Reuters).

BBC News Brasil - Seu livro aponta o neoliberalismo como um dos fatores que alimenta o avanço do autoritarismo, na medida em que parcelas da população empobrecida e sem esperanças seriam atraídas por esse discurso. Mas ressalta que, algumas vezes, esses governos se aliam ao neoliberalismo. Como você vê esse contexto hoje no governo Bolsonaro, tendo em vista a mudança de comando na Petrobras? Houve uma mudança na relação com o mercado?

Singer - Sim. O presidente Bolsonaro fez uma aliança de ocasião com o ultraneoliberalismo em 2018. Mas, no Brasil, essa aliança com o ultraneoliberalismo não dá voto. Deu em 2018 porque uma parte do eleitorado estava muito descontente com as alternativas anteriores e caminhou na direção dessa opção de extrema direita. Ao longo desses dois anos de mandato, sobretudo o ano passado, o presidente começou a desfazer esse casamento (com o mercado).

Essa recente nomeação na Petrobras foi o segundo passo. O primeiro foi a renovação do auxílio emergencial. Ele percebeu que o auxílio tinha trazido para o governo um apoio popular que não existia. O cálculo do governo é cada vez mais voltado para 2022.

A mudança no comando da Petrobras significa que a empresa tem que fazer uma política mais popular. Por exemplo, as pessoas estão muito fixadas na questão do diesel com razão, porque envolve os caminhoneiros, mas o gás de cozinha é muito importante. Porque é um item fundamental para as camadas populares. Então, a contenção do preço do gás de cozinha tem um efeito eleitoral que o governo está começando a explorar. Claro, aí ele paga um preço. A tendência que está indicando, já vem de alguns meses, é um afastamento entre o governo Bolsonaro e o mercado financeiro em favor dessas medidas.

BBC News Brasil - Alguns críticos dessa mudança na Petrobras dizem que Bolsonaro estaria repetindo ações da presidente Dilma Rousseff. E algumas pessoas falam também em "bolsopetismo" na gestão da estatal. Como você vê esse conceito? Há convergências entre bolsonarismo e petismo?

Singer - O conceito em si é absurdo. Porque Bolsonaro ele tem uma configuração de direita claríssima. É um homem que veio dos quadros do Exército e passou a carreira inteira — e nisso ele é coerente — defendendo a ditadura militar. Então, o Bolsonaro tem uma ideologia de direita, eu diria neste momento de extrema-direita até, cujo adversário principal, para não dizer inimigo, é a esquerda. Então, falar em bolsopetismo não faz o menor sentido.

O que faz sentido é que o governo Bolsonaro, um governo de direita, tomar medidas populares, porque quer se reeleger. Nesse sentido, ele tem aspectos de contato com o que foram os governos do PT, que foram governos que fizeram políticas populares.

Eu apoio o auxílio emergencial incondicionalmente, porque ele é absolutamente necessário. A população, sobretudo os extratos de baixa renda, estão absolutamente sacrificados nessa pandemia em que muita gente está perdendo emprego, precisa desse auxílio. Agora, como analista político, eu digo: claro, isso vai favorecer a popularidade do presidente como favoreceu no ano passado. Nós temos que lidar com a realidade.

Dilma Rousseff e Ciro Gomes em 2015 (Crédito da foto: Roberto Stukert Filho / PR) 


Singer: 'Falar em bolsopetismo não faz o menor sentido'

BBC News Brasil - No Brasil, parte da esquerda mantém o apoio a Nicolás Maduro, embora existam muitas denúncias de que não há uma real liberdade de atuação da oposição nos pleitos. Por que essa continuidade do apoio ao governo da Venezuela? Isso é um problema?

Singer - Pessoalmente, estou comprometido com o repúdio a qualquer medida antidemocrática e contra os direitos humanos, venha de onde vier. O compromisso com a democracia, de fato, tem que estar acima de outras coisas, até porque, do ponto de vista da esquerda, é a democracia que garante a liberdade dos trabalhadores, dos oprimidos, os que, vamos dizer, estão em condições mais desfavoráveis, para se expressar, de se organizar e lutar por uma melhora das suas condições.

Agora, no caso da Venezuela, houve um governo de natureza popular do ex-presidente Hugo Chávez, da mesma maneira como ocorreu em outros lugares da América do Sul. Foi um processo muito importante a partir do final dos anos 1990 — e novo, porque nunca tinha acontecido de haver governos populares de modo geral na região. E houve um período do governo Chávez que ele foi reconhecido como um governo democrático.

Agora, é possível que na Venezuela tenha havido uma deterioração. Hoje, há também lá, segundo as notícias, uma presença importante de militares (no governo), que é algo que não não combina com processos democráticos. De tal maneira, eu acho que há em setores políticos uma espécie de solidariedade original, compreensível, e, digamos, talvez uma dificuldade de se haver com as restrições à democracia, que são inaceitáveis.

BBC News Brasil - Não falta uma posição mais dura de repúdio ao que esse governo se tornou por parte da esquerda?

Singer - Talvez sim. Não dá para falar da esquerda como um todo. Há setores da esquerda que têm tomado posições claras de não compactuar com medidas antidemocráticas e de violação dos direitos humanos. O problema é que entrar no detalhe de cada um desses assuntos é sempre bastante polêmico e precisa ser discutido porque é uma luta política. Do mesmo modo, você poderia falar de atitudes antidemocráticas da oposição (ao governo Maduro). Não é o caso de nós entrarmos nesse detalhe.

De todo modo, há setores de esquerda que fazem claramente essa distinção e o repúdio a atitudes antidemocráticas e de violação de direitos humanos, como estou fazendo aqui. E, possivelmente, outros setores de esquerda têm dificuldades em reconhecer esses acontecimentos, por ter havido na Venezuela um avanço popular importante.

O problema é que o processo venezuelano se deteriorou do ponto de vista democrático, mas é também preciso reconhecer que há muitas pressões externas. Não que isso justifique — se nós começarmos a justificar atitudes antidemocráticas, não dá para a gente seguir a conversa — mas ajuda a entender as contradições do processo e possivelmente contradições de setores da esquerda brasileira.

Mariana Schreiber, da BBC News Brasil em Brasília, em 10 março 2021

quarta-feira, 10 de março de 2021

Carlos Andreazza: O discurso de Lula

 Não vi “paz e amor”. E nem me pareceu que fosse essa a intenção. Seria falso. Um sujeito, depois de mais de quinhentos dias de cana, cujo algoz – um juiz – decompõe-se em (justa) suspeição quer é guerra. 

Mas sem pressa; e de paletó, camisa impecavelmente passada. Sem pressa para se declarar candidato; antes – senhor do tempo – à frente do projeto que difundirá a sua inocência. 

Inocente não é; mas inocente será o que julgado por um acusador. Não havia “paz e amor”. Havia essa verdade; a de Gilmar Mendes: a de que corrupção nenhuma pode ser condenada com corrupção. Errado não está.

Esse foi o palanque – armado na altitude de quem conversa com o Papa – desde o qual falou Lula. Uma aula de discurso político – admita-se. (E seria aula mesmo se estivesse o sarrafo lá no alto.) Construção de profissional a serviço de rara capacidade de farejar para onde os ventos pandêmicos levam as demandas da sociedade. Articulação retórica de mestre para, se quiserem mesmo estabelecer o debate na cancha da polarização, aceitá-la nas bases que ditou: ele sendo o que usa máscara, prega distanciamento social e defende vacinação em massa. Radicalmente.

Com cálculo de provocador: se Bolsonaro, o capitão, investe em facilitar o comércio – sem fiscalização – de armas, Lula será o preocupado com o sucateamento das Forças Armadas.

Aula – e aqui fala Carlos Andreazza, jamais um esquerdista.

Para que fiquem claros os termos em que topa polarizar com o presidente: Lula associou Bolsonaro – com ênfase – às milícias. Será assim doravante. O discurso: não pode admitir que o país que governou – que fez respeitado no mundo – ora vá nas mãos de um miliciano.

Nem tudo foi verdadeiro, porém. Mentiu um lote – disparou números como nem Ciro Gomes. (As agência de checagem cortarão um dobrado.) E foi especialmente duro vê-lo falar sobre uma bem-sucedida gestão petista na Petrobras, como se não houvesse, entre esses gestores, Paulo Roberto Costa, Renato Duque e Nestor Cerveró – como se não houvesse, apenas como um exemplo, a barbaridade chamada Pasadena.

É um fato que a petroleira foi pilhada durante os governos do PT – fato também sendo que, como empresa, em função das escolhas lulopetistas para sua administração, quebrou. E a esse prejuízo – bilionário – não se referiu; pancada que ceifou empregos.

Mas aqui se analisa o discurso e só discurso; sendo fato também que a Petrobras de Lula – aquela onipresente, indutora maior da economia – simboliza um projeto de Brasil; de Brasil grande, independente, autossuficiente. (Que exportava óleo; e que, por isso, jamais poderia ser refém do dólar. O que fizeram com essa nação para que se achatasse assim?) O Brasil de Lula – em que havia fábrica da Ford e onde quatro milhões de carros eram vendidos por ano – comunica. Alcança. Mobiliza. Atrai.

É um fato que a Petrobras de Lula – apesar da corrupção que abrigou profundamente – mobiliza memórias. Boas. A estatal que se expandia, quase uma casa moeda, distribuindo riquezas e gerando oportunidades – e não apenas, atenção, aos pobres. O ex-presidente jogou várias iscas. Quer ouvir os empresários – diz. Quer mesmo é lembrá-los de que foram felizes com ele; naquele Brasil-Petrobras que fabricava navios-sonda e multiplicava postos de trabalho (e propinas). Quer conversar com os políticos – com o Centrão. Quer de todos – e também dos mercados – compreender (como se Dilma Rousseff não tivesse existido) por que se foram associar ao liberal-bolsonarismo. Quer mesmo é fazer ver a todos que foram muito felizes com ele; e sem (promessas de) privatizações.

Um projeto de Brasil. Foi com isto que o ex-presidente jogou em seu primeiro pronunciamento – a aula – após reaver os direitos políticos: ele tem um projeto de Brasil. Goste-se ou não, Lula tem um. Em resumo: um país miserável como o Brasil não pode prescindir da mão forte do Estado. Simples e poderoso; tanto mais em meio a uma pandemia de efeito depauperante sobre os mais pobres.

É para onde o vento varrido pela peste levou o desejo da sociedade: para um lugar – espaço natural a Lula, que joga em casa – em que o governo injete dinheiros emergenciais na economia de modo a que o povo empobrecido sobreviva à falta de empregos, circunstância agravada pela incompetência-insensibilidade de Bolsonaro/Guedes.

Esse foi o discurso. O recado. Mais claro impossível. Lula – sangue nos olhos – desdobrar-se-á daí. Vem para a guerra – ou não seria um miliciano o seu adversário. E vem gigante. A caneta, porém, está com o outro. Que reagirá – acelerando o populismo que já vai em curso – com um derramamento de Estado. Precisa amarrar o Centrão, cujo preço subiu pela hora do almoço.

Carlos Andreazza, o autor deste artigo, é editor de livros. Publicado originalmente n'O Globo on line, em 10/03/2021 • 15:25

Brasil tem 2.286 mortes por covid-19 em 24h, pior marca da pandemia

Número de mortes passa de 270 mil. País ainda registrou cerca de 80 mil novos casos, e total passa de 11,2 milhões.

País vive um novo momento de aceleração da doença

O Brasil registrou oficialmente 2.286 mortes ligadas à covid-19 nesta quarta-feira (10/03), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass)

É a pior marca diária registrada desde o início da pandemia, superando o recorde desta terça-feira (09/03), quando foram contabilizados 1.972 óbitos.

Com isso, o total de mortes no país associadas à doença chega a 270.656.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O país vive um novo momento de aceleração da doença, com registro de colapso da rede de saúde pública em alguns estados. 

Ainda nesta terça-feira, foram identificados 79.876 novos casos da doença, elevando o total oficial para 11.202.305.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.913.739 pacientes haviam se recuperado até esta quarta-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 128,8 no Brasil, a 20ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29 milhões de casos, e da Índia, com 11,3 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 527 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 117,8 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,6 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021

"Brasil é ameaça para humanidade", diz epidemiologista

Especialista da Fiocruz Amazônia afirma que Brasil perdeu a luta para covid-19 lá atrás, em 2020, e que não há a menor chance de reverter situação catastrófica neste semestre.

O total de mortes no país associadas à covid passa de 268 mil

A guerra contra a covid-19 foi perdida já em 2020 no Brasil, e o país, onde o vírus se espalha de forma descontrolada, se tornou uma ameaça para a humanidade. O alerta foi feito pelo epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, em entrevista publicada nesta quarta-feira (10/03) pela agência de notícias francesa AFP.

O Brasil vive o auge da pandemia de covid-19. Na terça-feira, registrou quase 2 mil mortes em menos de 24 horas, um recorde. A ocupação dos leitos de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) destinados a pacientes com a doença já supera os 80% em 20 unidades da federação.

"A luta contra a covid-19 foi perdida em 2020 e não há a menor chance de reverter esta trágica circunstância no primeiro semestre de 2021", disse Orellana à agência francesa. "O melhor que podemos fazer é esperar o milagre da vacinação em massa ou uma mudança radical na gestão da pandemia. Hoje, o Brasil é uma ameaça à humanidade e um laboratório ao ar livre onde a impunidade (…) parece ser a regra".

Preocupação internacional

O alerta de Orellana chega no momento em que o mundo olha com preocupação para a situação no Brasil. Na sexta-feira, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que o avanço da pandemia de covid-19 no país é "muito preocupante" e instou o governo federal a tomar medidas "agressivas". "O Brasil deve levar esta luta muito a sério", disse Ghebreyesus, acrescentando que são fundamentais medidas para interromper a transmissão.

Na mesma linha de Tedros, Mike Ryan, principal especialista em emergências da OMS, disse que "agora não é hora de o Brasil ou qualquer outro lugar relaxar".

"Achamos que já saímos disto. Não saímos", disse Ryan. "Países regredirão para um terceiro e um quarto surto se não tomarmos cuidado. 

A chegada da vacina traz esperança, mas não devemos achar que o pior já passou. Isso só faz o vírus se espalhar mais", disse.

Na mesma semana, o jornal americano The New York Times, em reportagem, tratou a crise da covid-19 no Brasil como um alerta para o mundo todo. "Nenhuma outra nação que sofreu um surto tão grande ainda está lidando com um número recorde de mortes e um sistema de saúde à beira do colapso. Muitas outras nações duramente atingidas estão, pelo contrário, tomando medidas em direção a uma aparente de normalidade”, escreveu o jornal.

Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, também na semana passada, o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis pediu ao mundo que se "pronuncie com veemência sobre os riscos que o Brasil representa” no combate à pandemia.

Temor da variante

Preocupa especialmente especialistas e autoridades no exterior a variante de Manaus. Descoberta no fim de 2020, ela é é chamada de P.1 e está associada ao novo ápice da pandemia no Brasil. Foi devido a ela que inúmeros países restringiram a entrada de viajantes brasileiros.

Mesmo diante desse quadro, o governo de Jair Bolsonaro tem agido para enfraquecer medidas de isolamento impostas por estados e municípios, alegando que isso prejudica a economia. Na semana passada, Bolsonaro afirmou que é preciso parar de "frescura" e "mimimi" em meio à pandemia e perguntou até quando as pessoas "vão ficar chorando?". Ele ainda chamou de "idiotas" as pessoas que vêm pedindo que o governo seja mais ágil na compra de vacinas.

Ao longo da pandemia, Bolsonaro minimizou frequentemente os riscos do coronavírus, além de promover curas sem eficáciae tentar sabotar iniciativas paralelas de vacinação lançadas em resposta à inércia do seu governo na área.

 A campanha de vacinação do Brasil está progredindo lentamente. Cerca de 8,6 milhões de pessoas (4,1% da população) receberam uma primeira dose de vacina, e cerca de 3 milhões receberam uma segunda dose.

Na terça-feira, o governo reconheceuque a campanha nacional de imunização contra a covid-19 corre o risco de ser interrompida no Brasil por falta de vacinas. O Ministério da Saúde enviou uma carta ao embaixador da China em Brasília pedindo que ele interceda junto à estatal Sinopharm  para liberar 30 milhões de doses de seu imunizante ao Brasil.

Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021

Lula diz que foi 'vítima da maior mentira jurídica em 500 anos de História'

Em discurso nesta quarta-feira (10), ex-presidente também criticou Bolsonaro, a quem chamou de 'fanfarrão', e defendeu a vacinação. 

Na segunda-feira (8), o ministro do STF Edson Fachin havia anulado condenações do petista na Lava, mas não decidiu se ele é culpado ou inocente.

"Eu sei que fui vítima da maior mentira jurídica contada em 500 anos de História", disse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nesta quarta-feira (10), dois dias depois de o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), ter anulado as condenações do petista na Lava Jato por entender que a 13ª Vara de Curitiba não tinha competência para analisar os casos.

"Antes de eu ir [para a prisão], nós tínhamos escrito um livro, e eu fui a pessoa, dei a palavra final no título do livro, que é ‘A verdade vencerá’. Eu tinha tanta confiança e tanta consciência do que estava acontecendo no Brasil, que eu tinha certeza que esse dia chegaria, e ele chegou", afirmou Lula no Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

Durante o discurso de uma hora e 23 minutos de duração, o ex-presidente também relacionou seu caso ao sofrimento da população mais pobre durante a pandemia de Covid-19:

“Se tem um brasileiro que tem razão de ter muitas e profundas mágoas sou eu, mas não tenho. Sinceramente, eu não tenho. Porque o sofrimento que o povo brasileiro está passando, o sofrimento que as pessoas pobres estão passando neste país é infinitamente maior do que qualquer crime que cometeram contra mim".

Nesta segunda-feira (8), Fachin anulou todas as condenações do ex-presidente pela Justiça Federal no Paraná relacionadas à Operação Lava Jato. Com a decisão, Lula recuperou os direitos políticos e voltou a ser elegível.

O ministro do STF aceitou o argumento da defesa do ex-presidente de que essas denúncias não estariam diretamente ligadas a desvios na Petrobras e determinou o envio dos processos à Justiça Federal do Distrito Federal.

Lula agradeceu a Fachin e disse que a decisão do ministro reconheceu que nunca houve crime cometido contra ele ou envolvimento dele com a Petrobras. 

No entanto, a decisão do ministro foi apenas processual: ele avaliou quem tinha competência para analisar o tipo de denúncia proposta. Fachin não analisou se Lula é culpado ou inocente.

"O processo vai continuar, tudo bem, eu já fui absolvido de todos os processos fora de Curitiba, mas nós vamos continuar brigando para que o Moro seja considerado suspeito, porque ele não tem o direito de se transformar no maior mentiroso da história do Brasil e ser considerado herói por aqueles que queriam me culpar. Deus de barro não dura muito tempo."

Na decisão de segunda, o ministro Edson Fachin extinguiu 14 processos que questionavam se o então juiz Sergio Moro agiu com parcialidade ao condenar Lula. A Segunda Turma do Supremo voltou a analisar essa questão nesta terça-feira (9), mas ainda não concluiu.

O ex-presidente Lula chamou a força-tarefa da Lava Jato de "quadrilha" e disse que ela tinha uma obsessão por condená-lo porque queria criar um partido político. O petista afirmou que a operação "desapareceu" da sua vida.

"Hoje, eu tenho certeza que ele [Moro] deve estar sofrendo muito mais do que eu sofri. Eu tenho certeza que o Dallagnol deve estar sofrendo muito mais do que eu sofri, porque eles sabem que eles [Moro e Dallagnol] cometeram um erro, e eu sabia que eu não tinha cometido um erro”, afirmou o ex-presidente.

Procurados pelo G1, Sergio Moro e o Ministério Público Federal no Paraná afirmaram que não vão comentar o discurso de Lula.

Defesa de vacina e críticas a Bolsonaro

Lula, que estava de máscara no evento, retirou a proteção para discursar. Ele disse que fez isso após consultar um médico e por estar a mais de 2 metros de distância de outras pessoas.

O ex-presidente prestou solidariedade às famílias que perderam pessoas para a Covid-19 e aos que estão desempregados.

Lula chamou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de "fanfarrão" e criticou a forma como ele está conduzindo o país.

Afirmou que o Brasil "não tem governo", que a população precisa de emprego, e não de armas, e defendeu a vacinação e as medidas de isolamento social. Bolsonaro tem adotado medidas para facilitar o acesso a armas, é um crítico das restrições de circulação e resistiu a comprar vacinas contra o coronavírus.

"Eu vou tomar minha vacina e quero fazer propaganda para o povo brasileiro: não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina. Tome vacina, porque a vacina é uma das coisas que pode livrar você do Covid. Mas, mesmo tomando vacina, não ache que você possa tomar a vacina e já tirar a camisa, ir para o boteco, pedir uma cerveja gelada e ficar conversando, não! Você precisa continuar fazendo o isolamento, e você precisa continuar usando máscara e utilizando álcool em gel."

Lula defendeu o Auxílio Emergencial – medida proposta pelo governo Bolsonaro e ampliada pelo Congresso para compensar a perda de renda durante a pandemia – e criticou a paridade de preços dos combustíveis do Brasil com o mercado internacional.

Bolsonaro tem reclamado dos reajustes aplicados pela Petrobras e interferiu na companhia ao indicar um novo presidente.

O ex-presidente também disse que quer dialogar com empresários e criticou o ministro da Economia, Paulo Guedes.

"Você já viu o Guedes falar uma palavra de desenvolvimento econômico e distribuição de renda? Não, é vender… Agora, quando eles venderem e gastam o dinheiro em custeio, o país vai estar mais pobre. O PIB não vai crescer e a dívida vai continuar crescendo. [...] O que vai fazer nossa dívida diminuir em relação ao PIB é o crescimento econômico, é o investimento público. [...] Se não Estado não confia na sua política e não investe, por que o empresário haveria de investir?"

O petista afirmou ainda que, em 2008, a indústria automobilística vendia, anualmente, 4 milhões de carros. Passados 13 anos, vende 2 milhões – isso porque, segundo ele, "não há possibilidade de investimento se não houver demanda, para ter demanda tem que ter emprego".

Imprensa

Durante o discurso, o ex-presidente defendeu a liberdade de imprensa, disse que ela é uma das razões principais para a manutenção da democracia e fez críticas à cobertura da Operação Lava Jato.

"Eu fiquei muito feliz porque depois da divulgação de tanta mentira contra mim, ontem eu acho que nós tivemos um Jornal Nacional épico. Eu acho que quem assistiu televisão não estava acreditando no que estava vendo. Pela primeira vez, a verdade prevaleceu."

Nota da Globo

Em relação às referências ao nosso jornalismo feitas pelo ex-presidente Lula, a Globo divulgou a seguinte nota:

"O ex-presidente Lula fez críticas aos órgãos de imprensa e à Globo em especial. Elogiou a cobertura do Jornal Nacional de ontem, que classificou de épica. Deu a entender que ontem a Globo relatou a verdade, o que antes não fazia. E desejou que este passe a ser o padrão do jornalismo da emissora. O ex-presidente está errado. O jornalismo da Globo se dedica a relatar os fatos e buscar a verdade, e vai continuar a fazê-lo. Mas não somente os fatos e as verdades que lhe sejam favoráveis".

Por G1 SP, em 10.03.2021

Brasil está novamente diante da tempestade perfeita

Com a pandemia acelerando dramaticamente, a economia se desfazendo cada vez mais rápido e um governo cada dia mais desnorteado, só faltava o Brasil voltar às trincheiras de 2018. Agora, com o retorno de Lula, aconteceu.

Há momentos em que os acontecimentos confluem de forma estranha, numa simultaneidade capaz de tirar o fôlego. A virada do ano de 2015 para 2016 foi assim: Eduardo Cunha abriu um processo de impeachment contra a então presidente em um Brasil ainda em choque pelo desastre em Mariana. Ao mesmo tempo, a economia brasileira despencava 3,8%, e grande parte do público, chocado com as incríveis revelações da Lava Jato, de repente se dava conta de que Dilma Rousseff cairia e que o ex-presidente Lula acabaria nas garras da Justiça. O Brasil estava sendo atingido, dizia-se na época, pela "tempestade perfeita".

A situação atual não é muito diferente. Ela é ainda mais ameaçadora do que em 2016. Depois de um 2020 difícil para muitos, acreditava-se que 2021 só poderia melhorar. Mas aqueles exaustos após um ano de pandemia assistem a novos e cada vez mais assustadores registros de mortes e infecções a cada dia. Passaram-se apenas dois meses, mas não aguentamos mais 2021.

Com a crise de oxigênio em Manaus em janeiro e o atual desastre na aquisição de vacinas, a sensação atualmente é de que a batalha contra o coronavírus está sendo perdida. O governo, que parece ser formado por rebeldes malcriados, já nem sequer se dá o trabalho de ao menos fingir que toma medidas significativas.

Onde está o ministro da Educação para ficar ao lado dos pais exaustos após um ano de aulas à distância? Será que ele existe mesmo? E onde está o ministro da Saúde, suposto gênio da logística, que confunde Amazonas e Amapá ao enviar doses de vacinas? O que seus colegas militares acham de seu desastrado trabalho? E onde está o ministro da Economia, Paulo Guedes, para apoiar a economia em queda e finalmente montar um novo pacote de "auxílio emergencial"? Por que ele, decepcionado , simplesmente não desiste?

Pelo menos sabemos onde estão o filho do presidente e quase embaixador Eduardo Bolsonaro e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo: ambos foram para Israel atrás um milagroso spray nasal para o coronavírus. Existe um único adulto são neste governo? Nesse meio tempo, deve-se estar satisfeito com o fato de os profissionais do Centrão estarem assumindo o comando. Tempos estranhos!

Tudo isso seria suficiente para outra tempestade perfeita. Mas não só o Supremo agora finalmente desmantelou a Lava Jato e com ela, como dano colateral, a luta contra a corrupção, mas também catapultou Lula de volta para o cenário político. E assim o Brasil volta à polarização política de 2018.

Uma campanha eleitoral iminente entre dois populistas, que se arrastará por um ano e meio, só mergulhará o Brasil mais profundamente no caos. Bolsonaro vai tirar o "Kit Gay" da gaveta novamente e procurar conquistar os eleitores de Lula com programas sociais generosos. Em vez de enfrentar as reformas tão necessárias, o Brasil corre o risco de deslizar cada vez mais rapidamente para a espiral descendente.

A polarização entre Bolsonaro e Lula não deixa espaço para alternativas. Os dois presumivelmente sabem disso – e devem gostar. Em um só golpe Bolsonaro se livra de todos os possíveis candidatos do centro que poderiam ameaçá-lo, sobretudo João Doria e Eduardo Leite. E na centro-esquerda de repente não há mais espaço para uma candidatura de Ciro Gomes, que poderia unir o espectro de esquerda e partes do centro moderado.

Por último, o próprio PT: Fernando Haddad, que provavelmente esperava que, ao contrário de 2018, ele finalmente tivesse tempo suficiente para construir sua candidatura para 2022, também foi tirado do caminho pela possível candidatura de Lula. Resta apenas uma esperança para evitar a tempestade perfeita: Lula abandonar a candidatura em 2022 em favor de um candidato moderado, capaz de unir a oposição e mandar a turma caótica do presidente Bolsonaro para casa.

---------------------------------------------------

Thomas Milz, o autor dete artigo,  saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos. Publicado originariamente pela Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021.

Suspeição de Moro não tornará Lula inocente

Não deixa de ser irônico que o ministro Gilmar Mendes, para defender o devido processo legal e tentar comprovar que Sergio Moro foi parcial ao condenar o ex-presidente Lula, tenha lançado mão do fruto de um crime: mensagens furtadas do aplicativo de comunicação entre Moro e procuradores da Operação Lava-Jato. 

“Não se combate crime cometendo crime”, afirmou Gilmar ao votar pela suspeição de Moro.

Ele acusou Moro e os procuradores de inspirar-se numa justiça “soviética”. Afirmou que havia na Lava-Jato um “projeto de poder”. Toda a argumentação que apresentou ontem à Segunda Turma do Supremo era acompanhada da leitura de longos trechos das mensagens. Pelo argumento de Gilmar, o fruto de crimes pode ser usado em benefício da defesa, jamais da acusação.

Mas o que se viu ontem mostra que não estava em jogo a defesa ou a absolvição de Lula, já que todos os processos conduzidos por Moro contra ele haviam sido anulados na véspera pela decisão do ministro Edson Fachin. Estava em jogo a condenação de Moro e a invalidação das provas colhidas pela Lava-Jato. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Nunes Marques quando o placar estava empatado em dois a dois.

A primeira dúvida agora é se, caso o tema venha a ser discutido em plenário, prevalecerá a anulação das condenações de Moro proferida por Fachin (que procura manter íntegras provas e denúncias contra Lula) ou a nulidade total defendida por Gilmar (que invalida todos os atos de Moro e anula as provas). Outra questão é se, caso a relação dos procuradores com o juiz venha a ser considerada suspeita, outros condenados reivindicarão anulação de seus processos. O efeito da suspeição de Moro poderá ser, na prática, o fim da maior operação de combate à corrupção na história do Brasil.

Não custa lembrar: Lula foi condenado com base em provas robustas, e as sentenças foram confirmadas na segunda instância (TRF-4) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Emilio Odebrecht confessou a participação de sua empreiteira na reforma do sítio de Atibaia. Leo Pinheiro, da OAS, aparece em imagens visitando com Lula as obras que sua empreiteira fazia no triplex do Guarujá. Foram encontrados documentos com rasuras mostrando a troca de um imóvel de padrão comum pelo triplex. Um ex-diretor da OAS relatou tratativas para equipar as cozinhas do sítio e do apartamento, pagas pela empreiteira. Há notas fiscais do negócio. Há vários registros de fotos e vídeos da presença presidencial nos dois lugares.

As negativas de Lula sempre foram tíbias. Ele quis transformar as investigações em perseguição política para desempenhar o papel de vítima e conquistar simpatia. Diversos atos de Moro e dos procuradores contribuíram para reforçar tal narrativa. Mas nada disso exime Lula do que fez. Até hoje não houve explicação convincente para a proximidade dele com os maiores empreiteiros do país. Ao contrário, sobram provas de que o cartel desmascarado pela Lava-Jato financiava o projeto de poder de Lula e do PT.

Todas as questões jurídicas devem ser dirimidas. Lula teve (e deve ter) direito aos recursos que a generosa legislação brasileira oferece aos réus. Até pode sair ileso e candidatar-se em 2022. Mas a nódoa do maior esquema de corrupção já desmascarado no país continuará a manchar sua biografia.

Editorial de O GLOBO, em 10.03.2021

Vera Magalhães: Paredão falso no STF

Na segunda-feira, a expectativa era de que a coalizão de governadores e a intervenção branca do Congresso no Plano Nacional de Imunização poderiam suprimir poderes para a dupla Bolsonaro-Pazuello sabotar o país e dar algum rumo para o Titanic desgovernado no qual estamos enfiados rumando céleres para 3.000 mortes diárias por covid-19. 

Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que havia coisas mais urgentes para tratar.


Lula Livre

Do nada, o ministro Edson Fachin acordou de um sono de quatro anos em que é o relator da Lava-Jato na Corte e, alarmado, constatou: a 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba não era, vejam só, o foro adequado para julgar o ex-presidente Lula. Foi tudo um lamentável engano, pelo qual ele infelizmente ficou preso, aliás em Curitiba, por 580 dias. Com o voto do próprio Fachin, esse distraído.

Metade das 46 páginas da decisão extemporânea do ministro é gasta para ele explicar o inexplicável: por que agora? E qual a extensão de sua decisão? Ele não diz. Talvez ainda não saiba.

Diante do inesperado, o ministro Gilmar Mendes resolveu abrir sua gaveta, espanar o pó e tirar de lá o HC da defesa de Lula que arguia a suspeição de Moro. O mesmo que Fachin esperava que fosse parar no triturador de papel diante da sua decisão.

Não só não foi como ele ameaça ficar isolado na Segunda Turma, uma vez que até a ministra Cármen Lúcia dá sinais de que votará com Gilmar, contra Moro.

Por que Fachin se expõe a tanto desgaste? Qual o cálculo de que anéis poderiam ser dados e dedos poupados com essa lambança?

E Gilmar Mendes, que nesta terça-feira repetiu a performance indignada de sempre contra a Lava-Jato, por que então aguardou mais de um ano com esse HC em seu gabinete? Se de um dia para outro já tinha um voto tão sólido e volumoso?

Nada para de pé na conduta do STF, em ziguezague há cinco anos na Lava-Jato, ao sabor não do Direito, mas das circunstâncias políticas.

Ou não foi o mesmo Gilmar que concedeu liminar para sustar a nomeação do mesmo Lula para a Casa Civil como forma de — vejam só! — escapar da jurisdição do mesmo Moro, lá em 2016?

Sim, sua mudança foi sendo gradativa ao longo dos anos, e veio antes da Vaza Jato. Mas a demora em trazer o caso da suspeição de Moro à Turma evidencia um cálculo político e colabora para que agora, no momento dramático da pandemia, em que o país deveria estar focado, com o STF, com tudo, em exigir vacinas do governo federal, estejamos acompanhando esse BBB de palavrório inalcançável e personagens pouco carismáticos.

Aproveitando que estávamos todos brincando de juristas e traçando cenários para o ainda distante 2022 a partir do advento do Lula livre, Bolsonaro emplacou duas de suas cheerleaders mais negacionistas, Bia Kicis e Carla Zambelli, em comissões importantes da Câmara.

A mesma Câmara que ainda discutia na noite de terça um auxílio emergencial que já deveria ter voltado a ser pago, pois no mundo real, esse cuja existência o Supremo preferiu começar a semana sublimando, tem gente morrendo de fome ou de falta de leito em hospital. Uma situação sinistra à qual chegamos por inépcia absurda e criminosa dos Poderes.

À mais alta Corte do país numa democracia cabe assegurar a segurança jurídica e ter a última palavra para garantir que os demais Poderes não exorbitem suas atribuições e respeitem a Constituição.

Ao exibir ao país suas entranhas e suas vaidades, seu casuísmo com casos sérios que dizem respeito ao nosso passado e ao nosso futuro, suas Excelências jogam água no moinho dos golpistas que clamam contra o Judiciário e se fragilizam para cobrar do Executivo suas obrigações no enfrentamento da pandemia. Que deveria ser a única preocupação de todas as autoridades, mas não é.

Vera Magalhães é Jornalista. Apresentadora do Roda Viva da TV Cultura e colunista d'O Globo. Artigo publicado originalmente na edição de 10.03.21.

Elio Gaspari: Lula candidato

O caroço migrou para a elegibilidade do ex-presidente

O ministro Edson Fachin sacudiu o coreto das autoridades anulando as sentenças de Curitiba contra o ex-presidente Lula, devolvendo-lhe os direitos políticos. Hoje, Lula pode ser candidato a presidente no ano que vem.

O voto de Gilmar Mendes na Segunda Turma ilustrou a suspeição de Sergio Moro. Com a decisão de Fachin, o caroço migrou para a elegibilidade de Lula e para o previsível desconforto que isso provoca em quem o detesta. Numa frase: “Esse não pode”.

Lula poderá vir a ser condenado por um novo juiz, mas a sentença ficará com cheiro de gol feito durante o replay.

O “esse não pode” já custou caro ao Brasil. Em 1950, o jornalista Carlos Lacerda escreveu:

—O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.

Getúlio foi eleito, tomou posse, governou até agosto de 1954, matou-se e entrou na História. A revolução que Lacerda queria só veio dez anos depois.

Lacerda tinha credenciais para vencer a eleição de 1965. Fazia um governo estelar no falecido Estado da Guanabara, mas deveria disputar com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, que dera ao Brasil “50 anos em cinco”. Até os primeiros meses de 1964, circulavam dois tipos de “esse não pode”. A esquerda não queria uma vitória de Lacerda, e uma parte da direita não queria a volta de Kubitschek.

Depois da deposição de João Goulart, a base militar da nova ordem não admitia entregar o poder a JK. Lacerda gostou da ideia, e o ex-presidente foi cassado. Por quê? Corrupção. (A sinopse diária que a Central Intelligence Agency deu ao presidente Lyndon Johnson no dia 13 de junho de 1964 contou que o presidente Castello Branco via na proscrição de JK o caminho para um governo “democrático e honesto”. Ele já havia dito que mostrar as provas “seria embaraçoso para a Nação”.) Não era bem assim.

Dias antes, fritando JK, o general Golbery do Couto e Silva, conselheiro de Castello, dividiu uma folha de papel em colunas e listou as “vantagens” e “desvantagens” da cassação de Juscelino Kubitschek. Intitulou-a com a sinceridade que se dá aos papéis pessoais: “Motivação real — Impedir que JK, fortalecido pela campanha contrária, enfrente a Revolução”. E, assim, Juscelino foi banido da vida pública por dez anos. Quando ele morreu, num acidente de estrada, seu funeral se transformou na maior manifestação popular ocorrida no país desde 1968, quando as ruas foram esvaziadas pelo AI-5.

Sem o “esse não pode”, em 1965 os eleitores brasileiros teriam votado em Lacerda ou JK. Nunca na História republicana o Brasil teve dois candidatos tão qualificados. Nem antes, nem depois. Passados os anos, nas duas turmas do “esse não pode”, muita gente qualificada reconhecia que qualquer um dos dois teria feito melhor do que se fez. (Lacerda, que defendeu a cassação de JK, dormiu preso num jirau de quartel em dezembro de 1968 e tornou-se uma alma penada na política nacional.)

O “PT não” colocou Jair Bolsonaro na Presidência. Os eleitores podiam ter colocado Geraldo Alckmin, Ciro Gomes ou João Amôedo, mas quem teve mais votos foi o capitão.

Falta mais de um ano para a eleição do ano que vem. Bolsonaro quer um novo mandato, e as inscrições estão abertas.

Elio Gaspari é Jornalista e Escritor. Cinco livros sobre a última ditadura militar no Brasil. (Editora Intrínseca). Este artigo foi publicado originariamente n' O Globo, edição de 10.03.21.

Gabeira: ‘Declaração da parcialidade de Moro decreta também o enterro sem honras da Lava Jato’

Ex-deputado e jornalista diz que estratégia de tentar reduzir danos à operação fracassou, e fala em 'incógnita' sobre 2022

Na opinião do ex-deputado federal e jornalista Fernando Gabeira, a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin de anular os processos relativos ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lava Jato em Curitiba foi uma tentativa de reduzir os danos causados à Lava Jato, mas a estratégia, aparentemente, fracassou.

Para ele, se o ex-juiz titular da 13ª Vara Criminal na capital paranaense for declarado suspeito pela Segunda Turma da Corte a operação – que considera uma das mais produtivas no combate à corrupção – será enterrada “sem honras”. Gabeira considera que a forma como Lula irá se colocar em 2022 “ainda é uma incógnita”. 

O que representa a decisão do ministro Fachin de declarar a nulidade dos processos que envolvem o ex-presidente Lula na Lava Jato em Curitiba? 

A decisão do Fachin ao julgar a incompetência de Curitiba foi uma tentativa de evitar mais estragos na Lava Jato caso Moro fosse considerado parcial. Parece que a estratégia fracassou. No caso da parcialidade de Moro, os processos recomeçam do zero e vão surgir novos recursos de outros acusados. 


O escritor, jornalista e ex-deputado federal Fernando Gabeira (Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO, 23/6/2019)

O que significa a manutenção do julgamento da 2ª Turma do Supremo sobre a suspeição de Moro no caso do triplex? 
A julgar pelo voto de Gilmar Mendes, que é o adversário mais antigo e consistente da operação, a declaração da parcialidade de Moro decreta também o enterro sem honras da Lava Jato, que foi umas  das mais produtivas, considerando que outras operações contra a corrupção, como Satiagraha e Castelo de Areia, nem sequer decolaram.

Moro ainda é um ator com protagonismo na cena eleitoral do próximo ano? 

Moro mantém um alto nível de popularidade, mas parece não ser vocacionado para a política.

A antecipação do processo eleitoral de 2022 terá algum efeito num cenário de agravamento da pandemia?

A antecipação do processo eleitoral em plena pandemia pode talvez forçar Bolsonaro a adotar a tese da vacinação em massa e, no campo da economia, vai levá-lo a abandonar os resquícios de liberalismo.

Lula favorece ou atrapalha uma eventual frente de centro-esquerda ou da esquerda na eleição de 2022? 

Ainda é uma incógnita como Lula vai se colocar e outra incógnita é a definição de candidatos do centro.

O retorno da polarização que dominou a disputa de 2018 é mesmo uma boa notícia para o presidente Bolsonaro? 

Há eleitores de Lula e eleitores de Bolsonaro. E leitores de nenhum nem outro, só que essa expressão engloba vários nomes.

Eduardo Kattah. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 10 de março de 2021.

Rosângela Bittar: A tragédia e a ópera bufa

O eleitorado poderá optar pelo bom senso. Que ainda não tem nome nem rosto

Duas insistentes questões estão postas. 

Primeira: há cinco anos, a tese processual sobre o foro da Lava Jato foi levantada. Por que ressurgiu, logo agora? A decisão do ministro Edson Fachin, invocando-a, ocorreu quando o seu colega Gilmar Mendes já se preparava para relatar, na Segunda Turma do STF, o que fez ontem, a ação que contesta a imparcialidade do juiz Sérgio Moro no julgamento dos processos do ex-presidente Lula. 

Fachin atropelou Gilmar. Aproveitando uma sonolenta tarde de segunda-feira, 8 de março, o surpreendeu com sua decisão monocrática. Precipitou-se para não perder a chance de ser o autor da última palavra. 

Na concepção do seu voto, Lula ganha a vantagem de reaver seus direitos políticos, com a possibilidade de se candidatar, graças à anulação das sentenças proferidas em Curitiba. E Moro se livra do julgamento da parcialidade. Já na linha de Gilmar, ao votar pela suspeição de Moro, são beneficiados, além de Lula, parlamentares e empresários condenados pelo juiz. 

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro Foto: Amanda Perobelli/REUTERS e Dida Sampaio/ESTADÃO

A segunda questão: ao contrário da primeira, não terá resposta imediata. O que significam estas decisões para os que propõem uma alternativa ao confronto Lula-Bolsonaro na sucessão de 2022? 

Os dois candidatos caracterizam o confronto radical. A polarização já está nas ruas e nas redes, mas ainda não está na política. A conjuntura é nova, mas não definitiva. Um quadro em processo de construção, portanto, ainda instável. 

O centro é uma hipótese com quatro ou cinco nomes. Terá mais trabalho, agora, para se colocar e arrebatar o eleitorado. Quem sabe, num cenário otimista, pode-se descobrir, ao longo da campanha, que os brasileiros estão saturados da intransigência eleitoral que explora o ódio e a rejeição. 

Na eleição disputada por Collor e Lula, em 1989, nenhum dos dois era protagonista. No início, as apostas se concentravam nos grandes e conhecidos nomes da política, como Ulysses Guimarães e Leonel Brizola. Na eleição de 2018, Jair Bolsonaro contava que, depois de 30 anos como deputado do baixo clero, sua candidatura a presidente era uma forma de sair de cena bem, transferindo espaço político aos filhos. 

O subconsciente do eleitor, como se diz, é indevassável. Até que surja o nome mágico. 

Lula tem condições de atrair parte do centro se o PT raivoso deixar. Dominado pela ala Gleisi Hoffmann, o lulismo primitivo tem aversão a empresários, imprensa e partidos. Como se dará com o centro? Bolsonaro ainda pode mitigar o negacionismo com que trata a pandemia, e reconquistar apoiadores que perdeu pela crueldade na gestão da atual catástrofe sanitária. Terá de abandonar o papel macabro de “presidente de cemitério”, como definiu com precisão o jurista Miguel Reale Júnior. 

O centro terá sobrevida, também, se os extremos, ao partirem para a guerra de extermínio, assustarem o eleitorado. A disputa da rejeição depende de como Lula será considerado. Pela amostra da repercussão internacional da decisão de lhe restituir os direitos políticos, é possível ter uma ideia. Voltará como um injustiçado e perseguido? O eleitorado pode achar pouco a devolução da elegibilidade para quem ficou preso mais de um ano? 

Por outro lado, Bolsonaro está sendo rejeitado até por movimentos de direita. Tentará esgotar sua reserva de cinismo para se transformar em garoto propaganda da vacina, que renegou com sarcasmo? 

Não há fórmula pronta para os destinos do centro. Esta história a que estamos assistindo não se desenvolve como um roteiro de cinema, em que os papéis do mocinho, do vilão, do juiz e do promotor são carimbados. A realidade política mistura tudo. O eleitorado, entre a tragédia e a ópera bufa, poderá optar pelo bom senso. Que ainda não tem nome nem rosto. 

Rosângela Bittar é colunista d'O Estado de São Paulo e analista de assuntos políticos. Artigo publicado originalmente na edição de 10 de março de 2021.