Assim que ficou pública a decisão do ministro Edson Fachin em anular as condenações do ex-presidente Lula, que o tornavam inelegível, habilitando-o a concorrer nas próximas eleições presidenciais, os palacianos cloroquínicos correram para criar a versão segundo a qual fora uma boa notícia para o chefe, o capitão reformado que quer se manter no cargo por pelo menos mais um mandato.
O esforço de criar uma narrativa que normaliza uma disputa entre o atual inquilino do Palácio do Planalto e o seu ex-ocupante, colocando de um lado um bolsonarismo e de outro o petismo ou lulismo, é um exercício retórico, no mínimo pueril. Não é disso que se trata. Pura conversa para boi dormir, para acalmar o gado.
Há neste momento um contorcionismo verbal dos amadores em democracia, em tratar o capitão reformado como um legítimo contendor dentro do estado de direito. Todavia, mais que a incapacidade intelectual do ex-deputado federal por 27 anos, membro medíocre de um baixo clero fisiológico, é o desapego dele aos pilares da democracia que não permitem tratá-lo como a um candidato normal. Ele não é um candidato que polariza ideias dentro do sistema democrático; é um demolidor dessa ordem.
A covardia institucional permitiu que a democracia fosse tratada como tema de política partidária, na qual são eles contra nós - sendo eles os corruptos e nós a sociedade indefesa contra os ladrões que roíam as riquezas do Estado e da população. Na realidade, havia nos porões da Justiça a paranoia messiânica de procuradores e de um ex-juiz, cujo limite de atuação não tinha grades.
Contaminou-se toda a sociedade com o discurso do salvador da pátria, inebriados todos com a punição vigorosa de poderosos, cujo símbolo maior seria um ex-presidente da República. Abria-se assim para que a Justiça agisse sem temor. Foram covardes as instituições que não olharam para si mesmas, nas limitações dos seus próprios mandatos.
Agora, bolsonaristas atônitos tentam criar a falsa alegria que lhes permite praticar mais uma das lições das cartilhas de Bannon, aquele mesmo Steve que cevou a opinião pública americana para eleger Donald Trump, felizmente defenestrado, por enquanto, e que ilumina os passos dos filhos do capitão, porta-vozes do ódio. Faz parte da cartilha criar ambiente de polarização, em que hipocritamente são normalizadas disputas, como se fossem elas parte de um mesmo espaço legitimo e legal.
Não é bolsonarismo versus petismo, ou lulismo. É uma luta contra o fascismo que penetra disfarçadamente, pela via dos discursos desconexos com a realidade e a necessidade do povo, no debate público, tentando falsamente polarizar entre correntes partidárias. De um lado está do capitão e seus próceres, amantes do fascismo, a vocação inegável para o autoritarismo, o desrespeito à vida; do outro lado está a democracia.
Qualquer que seja o porta-voz das forças democráticas capaz de destruir o ovo da serpente deverá contar com o destemor dos preteridos numa disputa eleitoral. Será preciso abandonar a ambição pessoal em nome da sobrevivência da liberdade reconquistada pelo país, depois do pesadelo da ditadura.
É preciso atenção. Há ainda muitos generais Pazuello na fila, esperando promoção a cargos com direito a motorista, diárias em dólares e secretárias.
É preciso atenção para a tentativa de criar a falsa polarização pretendida pelo atônito capitão, que agora rasteja diante da Pfizer, atrás de vacina, quando deu de ombros à oferta de 100 milhões de doses.
É falsa a polarização com aquele que assiste, sem se comover, à morte de mais de 260 mil brasileiros, muitos deles sucumbindo à espera de leitos, sufocados pela incompetência dos servis generais de plantão.
É falsa a polarização quando há ainda muitas perguntas sem respostas.
Com que dinheiro o filho do capitão comprou a mansão em Brasília, que o seu salário não paga?
Por que o Queiroz, aquele assessor do senador milionário, gerente das rachadinhas, depositou R$ 89 mil na conta de Michelle Bolsonaro?
Quem mandou matar Marielle Franco?
A polarização verdadeira é entre a verdade e a mentira.
Olga Maria Curado é colunista do UOL. Este artigo foi publicado originariamente em 09.03.2021
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