quarta-feira, 10 de março de 2021

Suspeição de Moro não tornará Lula inocente

Não deixa de ser irônico que o ministro Gilmar Mendes, para defender o devido processo legal e tentar comprovar que Sergio Moro foi parcial ao condenar o ex-presidente Lula, tenha lançado mão do fruto de um crime: mensagens furtadas do aplicativo de comunicação entre Moro e procuradores da Operação Lava-Jato. 

“Não se combate crime cometendo crime”, afirmou Gilmar ao votar pela suspeição de Moro.

Ele acusou Moro e os procuradores de inspirar-se numa justiça “soviética”. Afirmou que havia na Lava-Jato um “projeto de poder”. Toda a argumentação que apresentou ontem à Segunda Turma do Supremo era acompanhada da leitura de longos trechos das mensagens. Pelo argumento de Gilmar, o fruto de crimes pode ser usado em benefício da defesa, jamais da acusação.

Mas o que se viu ontem mostra que não estava em jogo a defesa ou a absolvição de Lula, já que todos os processos conduzidos por Moro contra ele haviam sido anulados na véspera pela decisão do ministro Edson Fachin. Estava em jogo a condenação de Moro e a invalidação das provas colhidas pela Lava-Jato. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Nunes Marques quando o placar estava empatado em dois a dois.

A primeira dúvida agora é se, caso o tema venha a ser discutido em plenário, prevalecerá a anulação das condenações de Moro proferida por Fachin (que procura manter íntegras provas e denúncias contra Lula) ou a nulidade total defendida por Gilmar (que invalida todos os atos de Moro e anula as provas). Outra questão é se, caso a relação dos procuradores com o juiz venha a ser considerada suspeita, outros condenados reivindicarão anulação de seus processos. O efeito da suspeição de Moro poderá ser, na prática, o fim da maior operação de combate à corrupção na história do Brasil.

Não custa lembrar: Lula foi condenado com base em provas robustas, e as sentenças foram confirmadas na segunda instância (TRF-4) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Emilio Odebrecht confessou a participação de sua empreiteira na reforma do sítio de Atibaia. Leo Pinheiro, da OAS, aparece em imagens visitando com Lula as obras que sua empreiteira fazia no triplex do Guarujá. Foram encontrados documentos com rasuras mostrando a troca de um imóvel de padrão comum pelo triplex. Um ex-diretor da OAS relatou tratativas para equipar as cozinhas do sítio e do apartamento, pagas pela empreiteira. Há notas fiscais do negócio. Há vários registros de fotos e vídeos da presença presidencial nos dois lugares.

As negativas de Lula sempre foram tíbias. Ele quis transformar as investigações em perseguição política para desempenhar o papel de vítima e conquistar simpatia. Diversos atos de Moro e dos procuradores contribuíram para reforçar tal narrativa. Mas nada disso exime Lula do que fez. Até hoje não houve explicação convincente para a proximidade dele com os maiores empreiteiros do país. Ao contrário, sobram provas de que o cartel desmascarado pela Lava-Jato financiava o projeto de poder de Lula e do PT.

Todas as questões jurídicas devem ser dirimidas. Lula teve (e deve ter) direito aos recursos que a generosa legislação brasileira oferece aos réus. Até pode sair ileso e candidatar-se em 2022. Mas a nódoa do maior esquema de corrupção já desmascarado no país continuará a manchar sua biografia.

Editorial de O GLOBO, em 10.03.2021

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