quarta-feira, 10 de março de 2021

Brasil tem 2.286 mortes por covid-19 em 24h, pior marca da pandemia

Número de mortes passa de 270 mil. País ainda registrou cerca de 80 mil novos casos, e total passa de 11,2 milhões.

País vive um novo momento de aceleração da doença

O Brasil registrou oficialmente 2.286 mortes ligadas à covid-19 nesta quarta-feira (10/03), segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass)

É a pior marca diária registrada desde o início da pandemia, superando o recorde desta terça-feira (09/03), quando foram contabilizados 1.972 óbitos.

Com isso, o total de mortes no país associadas à doença chega a 270.656.

Diversas autoridades e instituições de saúde alertam, contudo, que os números reais devem ser ainda maiores, em razão da falta de testagem em larga escala e da subnotificação.

O país vive um novo momento de aceleração da doença, com registro de colapso da rede de saúde pública em alguns estados. 

Ainda nesta terça-feira, foram identificados 79.876 novos casos da doença, elevando o total oficial para 11.202.305.

O Conass não divulga número de recuperados. Segundo o Ministério da Saúde, 9.913.739 pacientes haviam se recuperado até esta quarta-feira.

A taxa de mortalidade por grupo de 100 mil habitantes subiu para 128,8 no Brasil, a 20ª mais alta do mundo, quando desconsiderados os países nanicos San Marino, Liechtenstein e Andorra.

Em números absolutos, o Brasil é o terceiro país do mundo com mais infecções, atrás apenas dos Estados Unidos, que somam mais de 29 milhões de casos, e da Índia, com 11,3 milhões. Mas é o segundo em número absoluto de mortos, já que mais de 527 mil pessoas morreram nos EUA.

Ao todo, mais de 117,8 milhões de pessoas já contraíram oficialmente o coronavírus no mundo, e 2,6 milhões de pacientes morreram.

Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021

"Brasil é ameaça para humanidade", diz epidemiologista

Especialista da Fiocruz Amazônia afirma que Brasil perdeu a luta para covid-19 lá atrás, em 2020, e que não há a menor chance de reverter situação catastrófica neste semestre.

O total de mortes no país associadas à covid passa de 268 mil

A guerra contra a covid-19 foi perdida já em 2020 no Brasil, e o país, onde o vírus se espalha de forma descontrolada, se tornou uma ameaça para a humanidade. O alerta foi feito pelo epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, em entrevista publicada nesta quarta-feira (10/03) pela agência de notícias francesa AFP.

O Brasil vive o auge da pandemia de covid-19. Na terça-feira, registrou quase 2 mil mortes em menos de 24 horas, um recorde. A ocupação dos leitos de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) destinados a pacientes com a doença já supera os 80% em 20 unidades da federação.

"A luta contra a covid-19 foi perdida em 2020 e não há a menor chance de reverter esta trágica circunstância no primeiro semestre de 2021", disse Orellana à agência francesa. "O melhor que podemos fazer é esperar o milagre da vacinação em massa ou uma mudança radical na gestão da pandemia. Hoje, o Brasil é uma ameaça à humanidade e um laboratório ao ar livre onde a impunidade (…) parece ser a regra".

Preocupação internacional

O alerta de Orellana chega no momento em que o mundo olha com preocupação para a situação no Brasil. Na sexta-feira, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que o avanço da pandemia de covid-19 no país é "muito preocupante" e instou o governo federal a tomar medidas "agressivas". "O Brasil deve levar esta luta muito a sério", disse Ghebreyesus, acrescentando que são fundamentais medidas para interromper a transmissão.

Na mesma linha de Tedros, Mike Ryan, principal especialista em emergências da OMS, disse que "agora não é hora de o Brasil ou qualquer outro lugar relaxar".

"Achamos que já saímos disto. Não saímos", disse Ryan. "Países regredirão para um terceiro e um quarto surto se não tomarmos cuidado. 

A chegada da vacina traz esperança, mas não devemos achar que o pior já passou. Isso só faz o vírus se espalhar mais", disse.

Na mesma semana, o jornal americano The New York Times, em reportagem, tratou a crise da covid-19 no Brasil como um alerta para o mundo todo. "Nenhuma outra nação que sofreu um surto tão grande ainda está lidando com um número recorde de mortes e um sistema de saúde à beira do colapso. Muitas outras nações duramente atingidas estão, pelo contrário, tomando medidas em direção a uma aparente de normalidade”, escreveu o jornal.

Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, também na semana passada, o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis pediu ao mundo que se "pronuncie com veemência sobre os riscos que o Brasil representa” no combate à pandemia.

Temor da variante

Preocupa especialmente especialistas e autoridades no exterior a variante de Manaus. Descoberta no fim de 2020, ela é é chamada de P.1 e está associada ao novo ápice da pandemia no Brasil. Foi devido a ela que inúmeros países restringiram a entrada de viajantes brasileiros.

Mesmo diante desse quadro, o governo de Jair Bolsonaro tem agido para enfraquecer medidas de isolamento impostas por estados e municípios, alegando que isso prejudica a economia. Na semana passada, Bolsonaro afirmou que é preciso parar de "frescura" e "mimimi" em meio à pandemia e perguntou até quando as pessoas "vão ficar chorando?". Ele ainda chamou de "idiotas" as pessoas que vêm pedindo que o governo seja mais ágil na compra de vacinas.

Ao longo da pandemia, Bolsonaro minimizou frequentemente os riscos do coronavírus, além de promover curas sem eficáciae tentar sabotar iniciativas paralelas de vacinação lançadas em resposta à inércia do seu governo na área.

 A campanha de vacinação do Brasil está progredindo lentamente. Cerca de 8,6 milhões de pessoas (4,1% da população) receberam uma primeira dose de vacina, e cerca de 3 milhões receberam uma segunda dose.

Na terça-feira, o governo reconheceuque a campanha nacional de imunização contra a covid-19 corre o risco de ser interrompida no Brasil por falta de vacinas. O Ministério da Saúde enviou uma carta ao embaixador da China em Brasília pedindo que ele interceda junto à estatal Sinopharm  para liberar 30 milhões de doses de seu imunizante ao Brasil.

Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021

Lula diz que foi 'vítima da maior mentira jurídica em 500 anos de História'

Em discurso nesta quarta-feira (10), ex-presidente também criticou Bolsonaro, a quem chamou de 'fanfarrão', e defendeu a vacinação. 

Na segunda-feira (8), o ministro do STF Edson Fachin havia anulado condenações do petista na Lava, mas não decidiu se ele é culpado ou inocente.

"Eu sei que fui vítima da maior mentira jurídica contada em 500 anos de História", disse o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nesta quarta-feira (10), dois dias depois de o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), ter anulado as condenações do petista na Lava Jato por entender que a 13ª Vara de Curitiba não tinha competência para analisar os casos.

"Antes de eu ir [para a prisão], nós tínhamos escrito um livro, e eu fui a pessoa, dei a palavra final no título do livro, que é ‘A verdade vencerá’. Eu tinha tanta confiança e tanta consciência do que estava acontecendo no Brasil, que eu tinha certeza que esse dia chegaria, e ele chegou", afirmou Lula no Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.

Durante o discurso de uma hora e 23 minutos de duração, o ex-presidente também relacionou seu caso ao sofrimento da população mais pobre durante a pandemia de Covid-19:

“Se tem um brasileiro que tem razão de ter muitas e profundas mágoas sou eu, mas não tenho. Sinceramente, eu não tenho. Porque o sofrimento que o povo brasileiro está passando, o sofrimento que as pessoas pobres estão passando neste país é infinitamente maior do que qualquer crime que cometeram contra mim".

Nesta segunda-feira (8), Fachin anulou todas as condenações do ex-presidente pela Justiça Federal no Paraná relacionadas à Operação Lava Jato. Com a decisão, Lula recuperou os direitos políticos e voltou a ser elegível.

O ministro do STF aceitou o argumento da defesa do ex-presidente de que essas denúncias não estariam diretamente ligadas a desvios na Petrobras e determinou o envio dos processos à Justiça Federal do Distrito Federal.

Lula agradeceu a Fachin e disse que a decisão do ministro reconheceu que nunca houve crime cometido contra ele ou envolvimento dele com a Petrobras. 

No entanto, a decisão do ministro foi apenas processual: ele avaliou quem tinha competência para analisar o tipo de denúncia proposta. Fachin não analisou se Lula é culpado ou inocente.

"O processo vai continuar, tudo bem, eu já fui absolvido de todos os processos fora de Curitiba, mas nós vamos continuar brigando para que o Moro seja considerado suspeito, porque ele não tem o direito de se transformar no maior mentiroso da história do Brasil e ser considerado herói por aqueles que queriam me culpar. Deus de barro não dura muito tempo."

Na decisão de segunda, o ministro Edson Fachin extinguiu 14 processos que questionavam se o então juiz Sergio Moro agiu com parcialidade ao condenar Lula. A Segunda Turma do Supremo voltou a analisar essa questão nesta terça-feira (9), mas ainda não concluiu.

O ex-presidente Lula chamou a força-tarefa da Lava Jato de "quadrilha" e disse que ela tinha uma obsessão por condená-lo porque queria criar um partido político. O petista afirmou que a operação "desapareceu" da sua vida.

"Hoje, eu tenho certeza que ele [Moro] deve estar sofrendo muito mais do que eu sofri. Eu tenho certeza que o Dallagnol deve estar sofrendo muito mais do que eu sofri, porque eles sabem que eles [Moro e Dallagnol] cometeram um erro, e eu sabia que eu não tinha cometido um erro”, afirmou o ex-presidente.

Procurados pelo G1, Sergio Moro e o Ministério Público Federal no Paraná afirmaram que não vão comentar o discurso de Lula.

Defesa de vacina e críticas a Bolsonaro

Lula, que estava de máscara no evento, retirou a proteção para discursar. Ele disse que fez isso após consultar um médico e por estar a mais de 2 metros de distância de outras pessoas.

O ex-presidente prestou solidariedade às famílias que perderam pessoas para a Covid-19 e aos que estão desempregados.

Lula chamou o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de "fanfarrão" e criticou a forma como ele está conduzindo o país.

Afirmou que o Brasil "não tem governo", que a população precisa de emprego, e não de armas, e defendeu a vacinação e as medidas de isolamento social. Bolsonaro tem adotado medidas para facilitar o acesso a armas, é um crítico das restrições de circulação e resistiu a comprar vacinas contra o coronavírus.

"Eu vou tomar minha vacina e quero fazer propaganda para o povo brasileiro: não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde. Tome vacina. Tome vacina, porque a vacina é uma das coisas que pode livrar você do Covid. Mas, mesmo tomando vacina, não ache que você possa tomar a vacina e já tirar a camisa, ir para o boteco, pedir uma cerveja gelada e ficar conversando, não! Você precisa continuar fazendo o isolamento, e você precisa continuar usando máscara e utilizando álcool em gel."

Lula defendeu o Auxílio Emergencial – medida proposta pelo governo Bolsonaro e ampliada pelo Congresso para compensar a perda de renda durante a pandemia – e criticou a paridade de preços dos combustíveis do Brasil com o mercado internacional.

Bolsonaro tem reclamado dos reajustes aplicados pela Petrobras e interferiu na companhia ao indicar um novo presidente.

O ex-presidente também disse que quer dialogar com empresários e criticou o ministro da Economia, Paulo Guedes.

"Você já viu o Guedes falar uma palavra de desenvolvimento econômico e distribuição de renda? Não, é vender… Agora, quando eles venderem e gastam o dinheiro em custeio, o país vai estar mais pobre. O PIB não vai crescer e a dívida vai continuar crescendo. [...] O que vai fazer nossa dívida diminuir em relação ao PIB é o crescimento econômico, é o investimento público. [...] Se não Estado não confia na sua política e não investe, por que o empresário haveria de investir?"

O petista afirmou ainda que, em 2008, a indústria automobilística vendia, anualmente, 4 milhões de carros. Passados 13 anos, vende 2 milhões – isso porque, segundo ele, "não há possibilidade de investimento se não houver demanda, para ter demanda tem que ter emprego".

Imprensa

Durante o discurso, o ex-presidente defendeu a liberdade de imprensa, disse que ela é uma das razões principais para a manutenção da democracia e fez críticas à cobertura da Operação Lava Jato.

"Eu fiquei muito feliz porque depois da divulgação de tanta mentira contra mim, ontem eu acho que nós tivemos um Jornal Nacional épico. Eu acho que quem assistiu televisão não estava acreditando no que estava vendo. Pela primeira vez, a verdade prevaleceu."

Nota da Globo

Em relação às referências ao nosso jornalismo feitas pelo ex-presidente Lula, a Globo divulgou a seguinte nota:

"O ex-presidente Lula fez críticas aos órgãos de imprensa e à Globo em especial. Elogiou a cobertura do Jornal Nacional de ontem, que classificou de épica. Deu a entender que ontem a Globo relatou a verdade, o que antes não fazia. E desejou que este passe a ser o padrão do jornalismo da emissora. O ex-presidente está errado. O jornalismo da Globo se dedica a relatar os fatos e buscar a verdade, e vai continuar a fazê-lo. Mas não somente os fatos e as verdades que lhe sejam favoráveis".

Por G1 SP, em 10.03.2021

Brasil está novamente diante da tempestade perfeita

Com a pandemia acelerando dramaticamente, a economia se desfazendo cada vez mais rápido e um governo cada dia mais desnorteado, só faltava o Brasil voltar às trincheiras de 2018. Agora, com o retorno de Lula, aconteceu.

Há momentos em que os acontecimentos confluem de forma estranha, numa simultaneidade capaz de tirar o fôlego. A virada do ano de 2015 para 2016 foi assim: Eduardo Cunha abriu um processo de impeachment contra a então presidente em um Brasil ainda em choque pelo desastre em Mariana. Ao mesmo tempo, a economia brasileira despencava 3,8%, e grande parte do público, chocado com as incríveis revelações da Lava Jato, de repente se dava conta de que Dilma Rousseff cairia e que o ex-presidente Lula acabaria nas garras da Justiça. O Brasil estava sendo atingido, dizia-se na época, pela "tempestade perfeita".

A situação atual não é muito diferente. Ela é ainda mais ameaçadora do que em 2016. Depois de um 2020 difícil para muitos, acreditava-se que 2021 só poderia melhorar. Mas aqueles exaustos após um ano de pandemia assistem a novos e cada vez mais assustadores registros de mortes e infecções a cada dia. Passaram-se apenas dois meses, mas não aguentamos mais 2021.

Com a crise de oxigênio em Manaus em janeiro e o atual desastre na aquisição de vacinas, a sensação atualmente é de que a batalha contra o coronavírus está sendo perdida. O governo, que parece ser formado por rebeldes malcriados, já nem sequer se dá o trabalho de ao menos fingir que toma medidas significativas.

Onde está o ministro da Educação para ficar ao lado dos pais exaustos após um ano de aulas à distância? Será que ele existe mesmo? E onde está o ministro da Saúde, suposto gênio da logística, que confunde Amazonas e Amapá ao enviar doses de vacinas? O que seus colegas militares acham de seu desastrado trabalho? E onde está o ministro da Economia, Paulo Guedes, para apoiar a economia em queda e finalmente montar um novo pacote de "auxílio emergencial"? Por que ele, decepcionado , simplesmente não desiste?

Pelo menos sabemos onde estão o filho do presidente e quase embaixador Eduardo Bolsonaro e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo: ambos foram para Israel atrás um milagroso spray nasal para o coronavírus. Existe um único adulto são neste governo? Nesse meio tempo, deve-se estar satisfeito com o fato de os profissionais do Centrão estarem assumindo o comando. Tempos estranhos!

Tudo isso seria suficiente para outra tempestade perfeita. Mas não só o Supremo agora finalmente desmantelou a Lava Jato e com ela, como dano colateral, a luta contra a corrupção, mas também catapultou Lula de volta para o cenário político. E assim o Brasil volta à polarização política de 2018.

Uma campanha eleitoral iminente entre dois populistas, que se arrastará por um ano e meio, só mergulhará o Brasil mais profundamente no caos. Bolsonaro vai tirar o "Kit Gay" da gaveta novamente e procurar conquistar os eleitores de Lula com programas sociais generosos. Em vez de enfrentar as reformas tão necessárias, o Brasil corre o risco de deslizar cada vez mais rapidamente para a espiral descendente.

A polarização entre Bolsonaro e Lula não deixa espaço para alternativas. Os dois presumivelmente sabem disso – e devem gostar. Em um só golpe Bolsonaro se livra de todos os possíveis candidatos do centro que poderiam ameaçá-lo, sobretudo João Doria e Eduardo Leite. E na centro-esquerda de repente não há mais espaço para uma candidatura de Ciro Gomes, que poderia unir o espectro de esquerda e partes do centro moderado.

Por último, o próprio PT: Fernando Haddad, que provavelmente esperava que, ao contrário de 2018, ele finalmente tivesse tempo suficiente para construir sua candidatura para 2022, também foi tirado do caminho pela possível candidatura de Lula. Resta apenas uma esperança para evitar a tempestade perfeita: Lula abandonar a candidatura em 2022 em favor de um candidato moderado, capaz de unir a oposição e mandar a turma caótica do presidente Bolsonaro para casa.

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Thomas Milz, o autor dete artigo,  saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como o Bayerischer Rundfunk, a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos. Publicado originariamente pela Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021.

Suspeição de Moro não tornará Lula inocente

Não deixa de ser irônico que o ministro Gilmar Mendes, para defender o devido processo legal e tentar comprovar que Sergio Moro foi parcial ao condenar o ex-presidente Lula, tenha lançado mão do fruto de um crime: mensagens furtadas do aplicativo de comunicação entre Moro e procuradores da Operação Lava-Jato. 

“Não se combate crime cometendo crime”, afirmou Gilmar ao votar pela suspeição de Moro.

Ele acusou Moro e os procuradores de inspirar-se numa justiça “soviética”. Afirmou que havia na Lava-Jato um “projeto de poder”. Toda a argumentação que apresentou ontem à Segunda Turma do Supremo era acompanhada da leitura de longos trechos das mensagens. Pelo argumento de Gilmar, o fruto de crimes pode ser usado em benefício da defesa, jamais da acusação.

Mas o que se viu ontem mostra que não estava em jogo a defesa ou a absolvição de Lula, já que todos os processos conduzidos por Moro contra ele haviam sido anulados na véspera pela decisão do ministro Edson Fachin. Estava em jogo a condenação de Moro e a invalidação das provas colhidas pela Lava-Jato. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Nunes Marques quando o placar estava empatado em dois a dois.

A primeira dúvida agora é se, caso o tema venha a ser discutido em plenário, prevalecerá a anulação das condenações de Moro proferida por Fachin (que procura manter íntegras provas e denúncias contra Lula) ou a nulidade total defendida por Gilmar (que invalida todos os atos de Moro e anula as provas). Outra questão é se, caso a relação dos procuradores com o juiz venha a ser considerada suspeita, outros condenados reivindicarão anulação de seus processos. O efeito da suspeição de Moro poderá ser, na prática, o fim da maior operação de combate à corrupção na história do Brasil.

Não custa lembrar: Lula foi condenado com base em provas robustas, e as sentenças foram confirmadas na segunda instância (TRF-4) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Emilio Odebrecht confessou a participação de sua empreiteira na reforma do sítio de Atibaia. Leo Pinheiro, da OAS, aparece em imagens visitando com Lula as obras que sua empreiteira fazia no triplex do Guarujá. Foram encontrados documentos com rasuras mostrando a troca de um imóvel de padrão comum pelo triplex. Um ex-diretor da OAS relatou tratativas para equipar as cozinhas do sítio e do apartamento, pagas pela empreiteira. Há notas fiscais do negócio. Há vários registros de fotos e vídeos da presença presidencial nos dois lugares.

As negativas de Lula sempre foram tíbias. Ele quis transformar as investigações em perseguição política para desempenhar o papel de vítima e conquistar simpatia. Diversos atos de Moro e dos procuradores contribuíram para reforçar tal narrativa. Mas nada disso exime Lula do que fez. Até hoje não houve explicação convincente para a proximidade dele com os maiores empreiteiros do país. Ao contrário, sobram provas de que o cartel desmascarado pela Lava-Jato financiava o projeto de poder de Lula e do PT.

Todas as questões jurídicas devem ser dirimidas. Lula teve (e deve ter) direito aos recursos que a generosa legislação brasileira oferece aos réus. Até pode sair ileso e candidatar-se em 2022. Mas a nódoa do maior esquema de corrupção já desmascarado no país continuará a manchar sua biografia.

Editorial de O GLOBO, em 10.03.2021

Vera Magalhães: Paredão falso no STF

Na segunda-feira, a expectativa era de que a coalizão de governadores e a intervenção branca do Congresso no Plano Nacional de Imunização poderiam suprimir poderes para a dupla Bolsonaro-Pazuello sabotar o país e dar algum rumo para o Titanic desgovernado no qual estamos enfiados rumando céleres para 3.000 mortes diárias por covid-19. 

Mas o Supremo Tribunal Federal decidiu que havia coisas mais urgentes para tratar.


Lula Livre

Do nada, o ministro Edson Fachin acordou de um sono de quatro anos em que é o relator da Lava-Jato na Corte e, alarmado, constatou: a 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba não era, vejam só, o foro adequado para julgar o ex-presidente Lula. Foi tudo um lamentável engano, pelo qual ele infelizmente ficou preso, aliás em Curitiba, por 580 dias. Com o voto do próprio Fachin, esse distraído.

Metade das 46 páginas da decisão extemporânea do ministro é gasta para ele explicar o inexplicável: por que agora? E qual a extensão de sua decisão? Ele não diz. Talvez ainda não saiba.

Diante do inesperado, o ministro Gilmar Mendes resolveu abrir sua gaveta, espanar o pó e tirar de lá o HC da defesa de Lula que arguia a suspeição de Moro. O mesmo que Fachin esperava que fosse parar no triturador de papel diante da sua decisão.

Não só não foi como ele ameaça ficar isolado na Segunda Turma, uma vez que até a ministra Cármen Lúcia dá sinais de que votará com Gilmar, contra Moro.

Por que Fachin se expõe a tanto desgaste? Qual o cálculo de que anéis poderiam ser dados e dedos poupados com essa lambança?

E Gilmar Mendes, que nesta terça-feira repetiu a performance indignada de sempre contra a Lava-Jato, por que então aguardou mais de um ano com esse HC em seu gabinete? Se de um dia para outro já tinha um voto tão sólido e volumoso?

Nada para de pé na conduta do STF, em ziguezague há cinco anos na Lava-Jato, ao sabor não do Direito, mas das circunstâncias políticas.

Ou não foi o mesmo Gilmar que concedeu liminar para sustar a nomeação do mesmo Lula para a Casa Civil como forma de — vejam só! — escapar da jurisdição do mesmo Moro, lá em 2016?

Sim, sua mudança foi sendo gradativa ao longo dos anos, e veio antes da Vaza Jato. Mas a demora em trazer o caso da suspeição de Moro à Turma evidencia um cálculo político e colabora para que agora, no momento dramático da pandemia, em que o país deveria estar focado, com o STF, com tudo, em exigir vacinas do governo federal, estejamos acompanhando esse BBB de palavrório inalcançável e personagens pouco carismáticos.

Aproveitando que estávamos todos brincando de juristas e traçando cenários para o ainda distante 2022 a partir do advento do Lula livre, Bolsonaro emplacou duas de suas cheerleaders mais negacionistas, Bia Kicis e Carla Zambelli, em comissões importantes da Câmara.

A mesma Câmara que ainda discutia na noite de terça um auxílio emergencial que já deveria ter voltado a ser pago, pois no mundo real, esse cuja existência o Supremo preferiu começar a semana sublimando, tem gente morrendo de fome ou de falta de leito em hospital. Uma situação sinistra à qual chegamos por inépcia absurda e criminosa dos Poderes.

À mais alta Corte do país numa democracia cabe assegurar a segurança jurídica e ter a última palavra para garantir que os demais Poderes não exorbitem suas atribuições e respeitem a Constituição.

Ao exibir ao país suas entranhas e suas vaidades, seu casuísmo com casos sérios que dizem respeito ao nosso passado e ao nosso futuro, suas Excelências jogam água no moinho dos golpistas que clamam contra o Judiciário e se fragilizam para cobrar do Executivo suas obrigações no enfrentamento da pandemia. Que deveria ser a única preocupação de todas as autoridades, mas não é.

Vera Magalhães é Jornalista. Apresentadora do Roda Viva da TV Cultura e colunista d'O Globo. Artigo publicado originalmente na edição de 10.03.21.

Elio Gaspari: Lula candidato

O caroço migrou para a elegibilidade do ex-presidente

O ministro Edson Fachin sacudiu o coreto das autoridades anulando as sentenças de Curitiba contra o ex-presidente Lula, devolvendo-lhe os direitos políticos. Hoje, Lula pode ser candidato a presidente no ano que vem.

O voto de Gilmar Mendes na Segunda Turma ilustrou a suspeição de Sergio Moro. Com a decisão de Fachin, o caroço migrou para a elegibilidade de Lula e para o previsível desconforto que isso provoca em quem o detesta. Numa frase: “Esse não pode”.

Lula poderá vir a ser condenado por um novo juiz, mas a sentença ficará com cheiro de gol feito durante o replay.

O “esse não pode” já custou caro ao Brasil. Em 1950, o jornalista Carlos Lacerda escreveu:

—O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar.

Getúlio foi eleito, tomou posse, governou até agosto de 1954, matou-se e entrou na História. A revolução que Lacerda queria só veio dez anos depois.

Lacerda tinha credenciais para vencer a eleição de 1965. Fazia um governo estelar no falecido Estado da Guanabara, mas deveria disputar com o ex-presidente Juscelino Kubitschek, que dera ao Brasil “50 anos em cinco”. Até os primeiros meses de 1964, circulavam dois tipos de “esse não pode”. A esquerda não queria uma vitória de Lacerda, e uma parte da direita não queria a volta de Kubitschek.

Depois da deposição de João Goulart, a base militar da nova ordem não admitia entregar o poder a JK. Lacerda gostou da ideia, e o ex-presidente foi cassado. Por quê? Corrupção. (A sinopse diária que a Central Intelligence Agency deu ao presidente Lyndon Johnson no dia 13 de junho de 1964 contou que o presidente Castello Branco via na proscrição de JK o caminho para um governo “democrático e honesto”. Ele já havia dito que mostrar as provas “seria embaraçoso para a Nação”.) Não era bem assim.

Dias antes, fritando JK, o general Golbery do Couto e Silva, conselheiro de Castello, dividiu uma folha de papel em colunas e listou as “vantagens” e “desvantagens” da cassação de Juscelino Kubitschek. Intitulou-a com a sinceridade que se dá aos papéis pessoais: “Motivação real — Impedir que JK, fortalecido pela campanha contrária, enfrente a Revolução”. E, assim, Juscelino foi banido da vida pública por dez anos. Quando ele morreu, num acidente de estrada, seu funeral se transformou na maior manifestação popular ocorrida no país desde 1968, quando as ruas foram esvaziadas pelo AI-5.

Sem o “esse não pode”, em 1965 os eleitores brasileiros teriam votado em Lacerda ou JK. Nunca na História republicana o Brasil teve dois candidatos tão qualificados. Nem antes, nem depois. Passados os anos, nas duas turmas do “esse não pode”, muita gente qualificada reconhecia que qualquer um dos dois teria feito melhor do que se fez. (Lacerda, que defendeu a cassação de JK, dormiu preso num jirau de quartel em dezembro de 1968 e tornou-se uma alma penada na política nacional.)

O “PT não” colocou Jair Bolsonaro na Presidência. Os eleitores podiam ter colocado Geraldo Alckmin, Ciro Gomes ou João Amôedo, mas quem teve mais votos foi o capitão.

Falta mais de um ano para a eleição do ano que vem. Bolsonaro quer um novo mandato, e as inscrições estão abertas.

Elio Gaspari é Jornalista e Escritor. Cinco livros sobre a última ditadura militar no Brasil. (Editora Intrínseca). Este artigo foi publicado originariamente n' O Globo, edição de 10.03.21.

Gabeira: ‘Declaração da parcialidade de Moro decreta também o enterro sem honras da Lava Jato’

Ex-deputado e jornalista diz que estratégia de tentar reduzir danos à operação fracassou, e fala em 'incógnita' sobre 2022

Na opinião do ex-deputado federal e jornalista Fernando Gabeira, a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin de anular os processos relativos ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Lava Jato em Curitiba foi uma tentativa de reduzir os danos causados à Lava Jato, mas a estratégia, aparentemente, fracassou.

Para ele, se o ex-juiz titular da 13ª Vara Criminal na capital paranaense for declarado suspeito pela Segunda Turma da Corte a operação – que considera uma das mais produtivas no combate à corrupção – será enterrada “sem honras”. Gabeira considera que a forma como Lula irá se colocar em 2022 “ainda é uma incógnita”. 

O que representa a decisão do ministro Fachin de declarar a nulidade dos processos que envolvem o ex-presidente Lula na Lava Jato em Curitiba? 

A decisão do Fachin ao julgar a incompetência de Curitiba foi uma tentativa de evitar mais estragos na Lava Jato caso Moro fosse considerado parcial. Parece que a estratégia fracassou. No caso da parcialidade de Moro, os processos recomeçam do zero e vão surgir novos recursos de outros acusados. 


O escritor, jornalista e ex-deputado federal Fernando Gabeira (Foto: WILTON JUNIOR / ESTADÃO, 23/6/2019)

O que significa a manutenção do julgamento da 2ª Turma do Supremo sobre a suspeição de Moro no caso do triplex? 
A julgar pelo voto de Gilmar Mendes, que é o adversário mais antigo e consistente da operação, a declaração da parcialidade de Moro decreta também o enterro sem honras da Lava Jato, que foi umas  das mais produtivas, considerando que outras operações contra a corrupção, como Satiagraha e Castelo de Areia, nem sequer decolaram.

Moro ainda é um ator com protagonismo na cena eleitoral do próximo ano? 

Moro mantém um alto nível de popularidade, mas parece não ser vocacionado para a política.

A antecipação do processo eleitoral de 2022 terá algum efeito num cenário de agravamento da pandemia?

A antecipação do processo eleitoral em plena pandemia pode talvez forçar Bolsonaro a adotar a tese da vacinação em massa e, no campo da economia, vai levá-lo a abandonar os resquícios de liberalismo.

Lula favorece ou atrapalha uma eventual frente de centro-esquerda ou da esquerda na eleição de 2022? 

Ainda é uma incógnita como Lula vai se colocar e outra incógnita é a definição de candidatos do centro.

O retorno da polarização que dominou a disputa de 2018 é mesmo uma boa notícia para o presidente Bolsonaro? 

Há eleitores de Lula e eleitores de Bolsonaro. E leitores de nenhum nem outro, só que essa expressão engloba vários nomes.

Eduardo Kattah. Publicado originalmente n'O Estado de São Paulo, em 10 de março de 2021.

Rosângela Bittar: A tragédia e a ópera bufa

O eleitorado poderá optar pelo bom senso. Que ainda não tem nome nem rosto

Duas insistentes questões estão postas. 

Primeira: há cinco anos, a tese processual sobre o foro da Lava Jato foi levantada. Por que ressurgiu, logo agora? A decisão do ministro Edson Fachin, invocando-a, ocorreu quando o seu colega Gilmar Mendes já se preparava para relatar, na Segunda Turma do STF, o que fez ontem, a ação que contesta a imparcialidade do juiz Sérgio Moro no julgamento dos processos do ex-presidente Lula. 

Fachin atropelou Gilmar. Aproveitando uma sonolenta tarde de segunda-feira, 8 de março, o surpreendeu com sua decisão monocrática. Precipitou-se para não perder a chance de ser o autor da última palavra. 

Na concepção do seu voto, Lula ganha a vantagem de reaver seus direitos políticos, com a possibilidade de se candidatar, graças à anulação das sentenças proferidas em Curitiba. E Moro se livra do julgamento da parcialidade. Já na linha de Gilmar, ao votar pela suspeição de Moro, são beneficiados, além de Lula, parlamentares e empresários condenados pelo juiz. 

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro Foto: Amanda Perobelli/REUTERS e Dida Sampaio/ESTADÃO

A segunda questão: ao contrário da primeira, não terá resposta imediata. O que significam estas decisões para os que propõem uma alternativa ao confronto Lula-Bolsonaro na sucessão de 2022? 

Os dois candidatos caracterizam o confronto radical. A polarização já está nas ruas e nas redes, mas ainda não está na política. A conjuntura é nova, mas não definitiva. Um quadro em processo de construção, portanto, ainda instável. 

O centro é uma hipótese com quatro ou cinco nomes. Terá mais trabalho, agora, para se colocar e arrebatar o eleitorado. Quem sabe, num cenário otimista, pode-se descobrir, ao longo da campanha, que os brasileiros estão saturados da intransigência eleitoral que explora o ódio e a rejeição. 

Na eleição disputada por Collor e Lula, em 1989, nenhum dos dois era protagonista. No início, as apostas se concentravam nos grandes e conhecidos nomes da política, como Ulysses Guimarães e Leonel Brizola. Na eleição de 2018, Jair Bolsonaro contava que, depois de 30 anos como deputado do baixo clero, sua candidatura a presidente era uma forma de sair de cena bem, transferindo espaço político aos filhos. 

O subconsciente do eleitor, como se diz, é indevassável. Até que surja o nome mágico. 

Lula tem condições de atrair parte do centro se o PT raivoso deixar. Dominado pela ala Gleisi Hoffmann, o lulismo primitivo tem aversão a empresários, imprensa e partidos. Como se dará com o centro? Bolsonaro ainda pode mitigar o negacionismo com que trata a pandemia, e reconquistar apoiadores que perdeu pela crueldade na gestão da atual catástrofe sanitária. Terá de abandonar o papel macabro de “presidente de cemitério”, como definiu com precisão o jurista Miguel Reale Júnior. 

O centro terá sobrevida, também, se os extremos, ao partirem para a guerra de extermínio, assustarem o eleitorado. A disputa da rejeição depende de como Lula será considerado. Pela amostra da repercussão internacional da decisão de lhe restituir os direitos políticos, é possível ter uma ideia. Voltará como um injustiçado e perseguido? O eleitorado pode achar pouco a devolução da elegibilidade para quem ficou preso mais de um ano? 

Por outro lado, Bolsonaro está sendo rejeitado até por movimentos de direita. Tentará esgotar sua reserva de cinismo para se transformar em garoto propaganda da vacina, que renegou com sarcasmo? 

Não há fórmula pronta para os destinos do centro. Esta história a que estamos assistindo não se desenvolve como um roteiro de cinema, em que os papéis do mocinho, do vilão, do juiz e do promotor são carimbados. A realidade política mistura tudo. O eleitorado, entre a tragédia e a ópera bufa, poderá optar pelo bom senso. Que ainda não tem nome nem rosto. 

Rosângela Bittar é colunista d'O Estado de São Paulo e analista de assuntos políticos. Artigo publicado originalmente na edição de 10 de março de 2021.

'Melhor modo de pensar em si é pensar em todos', diz Nizan Guanaes

Empresário pede ‘uma ONU da saúde’ porque ‘mais pandemias virão’ e critica o radicalismo das redes sociais: ‘Democracia é concordar em discordar’

Entrevista com Nizan Guanaes, publicitário e empresário 

Longe da pauleira em que viveu por tantos e longos anos, o empresário Nizan Guanaes* tem passado os dias quieto no seu canto, trabalhando muito e estudando. “Começo de manhã, vou até 2 horas da madrugada. Muito focado.” E seu foco é definir estratégias e caminhos na N Ideias, empresa que toca com mais três pessoas desde que deixou o Grupo ABC. 

Aos 63 anos, o soteropolitano Nizan, que acumulou na carreira muitos prêmios, vê no mundo à sua volta “um detox do custo, do gigantismo” e seu lema do momento é: “Acredito em grandes empresas pequenas.” Quanto ao gigantismo dos conglomerados, ele não titubeia: “Quem tem custo, tem medo.” Integrante do grupo Unidos pela Vacina, onde empresários buscam ajudar na pandemia, ele se preocupa com o que vem pela frente. “O vírus não tem fronteira”, diz ele. “Precisamos construir uma Otan, uma ONU da saúde, porque novas pandemias virão.” E já formulou a ideia chave para estes tempos: “O melhor modo de pensar em si é pensar em todos.”

Nesta conversa com Cenários, o publicitário diz que a crise da democracia o preocupa. “O rito democrático vem sendo perdido, as redes sociais fazem um papel horroroso.” Democracia, adverte, “é concordar em discordar.” A seguir, os principais trechos da conversa. 

'O vírus não tem fronteira', diz Nizan Guanaes. Foto: Marcelo Navarro

Com tanta coisa acontecendo para todo lado, o que mais lhe chama a atenção no momento? 

Permita-me começar saudando a Vicky Safra e os familiares do seu José (Safra), por quem tenho profunda admiração. Escrevi um texto quando ele se foi, tive mais de mil comentários, vi como ele era querido. E me lembrei de uma passagem de 20 anos atrás, quando ele me telefonou para dizer que queria me entregar a conta de seu banco. ‘Mas, seu José, eu já tenho a conta do Itaú’, eu respondi. E ele: ‘Não tem conflito, meu banco é pequeno’. Sim, ele pensava grande: achava que seu banco era pequeno.

Mas, vendo o mundo agora, com a pandemia e tantas variantes, teremos de achar outro jeito de conviver, né? 

Concordo inteiramente. Eu tenho trabalhado muito, absolutamente focado. Começo de manhã, vou até as 2 horas da madrugada. E toda vez que o trabalho muda, o mundo também muda. E vem uma mudança em cadeia, é o crescimento do online, a evasão dos grandes centros, o Wi-Fi, a tecnologia. Meu analista, por exemplo: digo a ele, ‘não quero ir até a Vila Olímpia, quero fazer daqui de Trancoso’. Mas veja, além de um festival de horrores nessa pandemia, há também um mar de oportunidades.

Há pouco tempo, em entrevista, o presidente de uma montadora me disse que passou a contratar gente não mais pelo preparo técnico e, sim, pela habilidade em lidar com as pessoas. O que sobrará para o ser humano fazer? 

Vai sobrar aquilo que faz dele humano: as coisas que transcendem. Olha que incrível: as montadoras vão convidar filósofos para trabalhar com eles, porque, como o carro é automático, ele, carro, vai ter de tomar decisões que o homem toma em segundos. E se ele atropela uma criança? Se bate em uma árvore?

De que modo um filósofo poderia ajudar em tais situações?

Vai ajudar na programação de decisões, digamos, não mecânicas. Terão de andar juntas coisas que, antes, nunca andaram. Tem coisa que vai mudar radicalmente, como a ocupação imobiliária dos escritórios. Tudo vai ser home office? Não, mas as ‘homes’ vão se alterar, assim como os ‘offices’. Às vezes, me perguntam sobre o ‘novo normal’, e eu digo: não muda a natureza humana, mas os rituais e processos vão evoluir. 

Percebi que as pessoas controladoras estão sofrendo muito. O sujeito não sabe o que vai fazer amanhã, se vai fechar ou abrir a sua empresa. Como isso vai afetar a iniciativa privada?

Acho que vai mudar a escala do que é médio ou longo prazo.

Médio prazo é amanhã e o longo é dois dias depois?

Exatamente. E o grande CEO de amanhã é aquele que sabe dar um cavalo de pau. Veja o Fred Trajano (CEO da Magalu), pegou a companhia e a mudou em três meses. É a capacidade de mudar de curso rapidamente. Para mim, a empresa moderna é ambidestra, criativa de um lado e executora de outro. As empresas vão ter de passar por um novo desenho, inclusive mental. E o que eu estou fazendo a respeito? Estou estudando. Todo dia, entre o meio-dia e uma da tarde, eu estou fora do ar, estudando.

O que você estuda?

Quero me atualizar nas coisas que faço, planejamento estratégico. O mundo hoje é do tipo ‘life long learning’ (aprendizado pela vida toda), tem de estudar muito nos ciclos da vida.

Você saiu de uma empresa de 2.500 pessoas e agora trabalha praticamente só. Como foi essa passagem?

Eu acredito muito em grandes empresas pequenas, que é como eu qualifico a N Ideias. Quem tem custo, tem medo. Estou centrado na estratégia. Vamos voltar ao Safra. O silêncio dos Safras era uma incrível estratégia de marketing, e muito bem colocada. Antigamente, havia uma única bala: publicidade, anúncio. Hoje, não. São as relações públicas, embalagem, eventos, mídia digital. Então, eu sou o Waze das grandes marcas. 

O que quer dizer com isso?

Você quer chegar a um lugar, então vamos combinar juntos o melhor caminho. Hoje eu tenho um luxo, que é trabalhar para seis marcas muito inspiradoras. Não trabalho com velocidade e, sim, com profundidade e arrumo tempo para estudar. Em outubro ou novembro, se Deus permitir, vou passar 40 dias em Harvard. Estudar continuamente é um novo modo de vida. 

O que vai acontecer na área da comunicação? TV, rádio, jornais, redes sociais?

Um mar de oportunidades para quem não tem custo. Acho que o mundo hoje é o detox do custo, do gigantismo. Há muita oportunidade nesse setor. Veja bem: todo mundo fala no fim do jornal, mas ninguém quer vender. 

Acha que o jornal impresso caminha para ter mais conteúdo e o online, a notícia em si, mais rápida?

Acho que nunca se precisou tanto de jornal, de jornalista. Não importa para o consumidor se o jornal é de papel ou digital. Eu, por exemplo, adoro jornal de papel, para mim ele é ‘a alta costura’ do jornal. Mas como está tudo mudando, imagino que os jornais e a televisão serão híbridos. Os reality shows de hoje são coisa de TV e digital. O Super Bowl americano era o maior evento de TV do mundo, hoje é o maior evento de TV e digital. 

O que vimos foi que os jornais sérios sobreviveram, os outros, morreram. Mas nas mídias sociais é complicado combater as fake news. Como vê isso?

Não sou especialista, mas diria que praticamente todas as indústrias têm os mesmos problemas. Onde elas só veem problemas, no entanto, a startup vê uma oportunidade, entendeu? Por exemplo, uma das maiores adesões do público ao New York Times são as palavras cruzadas. O jornal está monetizando as sessões de vinho, de comida, e as pessoas dizem que ‘isso não é importante’. Bem, eu acho que o ser humano não vive, literalmente, sem comer e sem beber. 

É um fato, goste-se ou não.

Quer ver uma coisa que me estarrece? O tal jornalismo imparcial. Não, nós, leitores, queremos parcialidade! O jornal que eu leio tem de ter uma opinião de mundo com a qual eu comungo. É bem diferente do jornal que distorce a verdade. O The New York Times é o meu jornal, ele tem opiniões. Não me representa em tudo, mas ele é um time, uma igreja da qual eu participo. 

Mudando de Nova York para Washington, o que acha que vai acontecer nos EUA de Joe Biden?

Olha, dia 8 de abril vou entrevistar o (ex-presidente americano) Bill Clinton para os clientes da N Ideias. Convidei os seis CEOs e alguns executivos e vou fazer essa mesma pergunta. Vamos ouvi-lo sobre o que se pode esperar de agricultura, mudança climática e outros desafios. Olha, não sei o que vai acontecer, mas acredito muito na têmpera de negociador do Biden. Acho que essa crise se perdeu porque não havia um ‘Obama’ à frente, nos EUA. Aí, os países foram pensando cada um em si mesmo. Mas o vírus não tem fronteiras. 

E o que isso significa?

Que o vírus não tem passaporte, e nós precisamos construir uma Otan da saúde, uma ONU da saúde, pois novas pandemias virão. Teremos de pensar em cadeia, cooperar. É preciso uma compreensão de que as grandes empresas, as big techs, não podem ser largadas soltas, entendeu? O Facebook não pode entrar e destruir um setor, criar desemprego loucamente, sem que haja uma política social correspondente. Hoje, no mundo, você tem de trabalhar em conjunto, como diz o (autor israelense) Yuval Harari.

Mas aqui no Brasil a coisa está muito dividida, não acha?

O debate hoje é assim: A apontando para B, cada um com retórica pior que a do outro. Há um rito democrático que vem sendo perdido e temos de resolver isso conversando. Nós, no grupo Unidos pela Vacina, não discutimos política. Somos um conjunto de empresários e grupos privados que quer discutir e achar a solução. Como, onde e quando fazer a vacina chegar a todos os brasileiros e logo. A meu ver, as redes sociais fazem um papel horroroso. E as pessoas acham que likes e comentários horríveis são uma vida política. Não são! 

Qual a sua mensagem final, resumindo a sua visão disso tudo?

Precisamos achar um caminho democrático, de cortesia. O que é a democracia? É concordar em discordar. É que, neste momento do mundo, a melhor maneira de pensar em si é pensar em todos. Adoro as pessoas, sejam iguais a mim ou não, o importante é que pensem. 

Nizan Guanaes é baiano de Salvador. Publicitário e consultor de empresas no N Ideias. Ex-sócio do Grupo ABC, integra o Grupo Unidos pelas Vacina e Participa do Clinton Global Iniciative.

Sonia Racy, O Estado de São Paulo, em 10 de março de 2021

Em 13 Estados e DF, 4,3 mil pacientes da covid-19 estão na fila por leito

Ao menos 2.257 precisam de UTI; 14 secretarias de saúde informam ter doente em algum grau de espera e só seis disseram que não têm fila

Treze Estados e o DF informaram ter paciente em algum grau de espera, seis disseram que não têm fila e sete não responderam ou disseram não ter os dados consolidados de lista de espera. Dezesseis Estados apresentavam ontem taxa de ocupação de UTIs igual ou superior a 80%.

A situação mais crítica é a do Paraná, Estado que registra a maior fila, com 1.071 doentes aguardando transferência anteontem – 519 deles por um leito de terapia intensiva. Na sequência estava São Paulo, com mil pacientes na espera (não foram especificados quantos são por UTI ou por leitos clínicos).

Os outros Estados da região Sul, que vêm registrando cenas de colapso desde a semana passada, continuam em situação crítica. São 388 nomes na lista de espera por UTI em Santa Catarina – que tem a maior taxa de ocupação do País (99,16%) – e 248 no Rio Grande do Sul. Também em situação delicada está a Bahia, onde 326 pacientes aguardavam ontem por uma vaga de UTI (veja quadro nesta página).

Paciente com covid atendido em hospital em São Paulo. Estado tem mil pacientes em espera por leitos ( Crédito Foto: Nilton Fukuda / Estadão)

'Temos de escolher quem mandar para a UTI'

Infectologista de dois dos maiores hospitais de Porto Alegre (um público e outro privado), Alexandre Zavascki conta que os profissionais estão tendo de utilizar respiradores não ideais para pacientes com covid diante da falta de equipamentos do tipo. “São respiradores que seriam adequados para um paciente que está apenas anestesiado durante uma cirurgia. Não são ventiladores com capacidade plena em todos os parâmetros”, diz o especialista.

Ele relata ainda que a tão temida escolha de quais pacientes priorizar em um cenário de colapso já está acontecendo no Rio Grande do Sul. “A gente vê pacientes graves no leito comum e sabe que não tem vaga. Temos de escolher quem mandar para a UTI e alguns deles não resistem a essa espera”, diz.

Zavascki conta que o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, uma das unidades onde ele atua, chegou ao ponto de não ter mais espaço físico para a colocação de camas. “Abrimos uma sala que era de recuperação pós-cirúrgica para leitos covid e lotou. Depois, abrimos uma sala maior desse tipo para covid e também lotou. Agora, abrimos a sala de recuperação pós-cirúrgica infantil e está indo para o mesmo caminho. Não tem mais para onde expandir. O próximo passo do colapso é as pessoas morrerem nas ambulâncias ou em casa”, disse ele.

No Pará, embora a rede pública ainda não tenha entrado em colapso, os hospitais privados já não têm como aceitar mais doentes, segundo relato do médico Robson Tadachi, diretor técnico de uma das unidades da Unimed Belém.

Ele conta que a operadora não encontra leitos disponíveis nos hospitais da rede credenciada. “Chego a ter 50 pacientes na espera por dia e todas as unidades que pedimos leitos estão lotadas. É uma sensação de enxugar gelo porque chegam cada vez mais pacientes”, diz.

Um exemplo da situação dramática pela qual passa o Brasil ocorreu no fim de semana passado, quando o governo de Mato Grosso acionou o sinal de alerta. Mesmo com uma fila não tão grande na comparação com outros Estados – 44 à espera de uma vaga de UTI –, mas com a segunda maior taxa de ocupação do País (98,96%), a Secretaria de Saúde enviou um pedido de ajuda para outros Estados.

O secretário checou se alguém tinha condições de aceitar transferência de pacientes do Estado com covid-19. Com um nível de ocupação elevado em todo o País, nenhum deles respondeu positivamente.

No sábado, a morte de um enfermeiro de Cuiabá comoveu os profissionais de saúde do Estado. Ele havia trabalhado por anos, até se aposentar, no pronto-socorro municipal da cidade e acabou morrendo justamente pela falta de leito de terapia intensiva.

O momento de expansão desenfreada do vírus observado em todo o País é agravado pela exaustão dos profissionais de saúde. “Estamos vivendo um momento de muita piora mesmo e a grande dificuldade é não ter um auxílio do governo, então não tem como fazer um isolamento efetivo”, comenta o infectologista Bruno Ishigami, do Hospital Oswaldo Cruz, de Recife. O Estado tinha ontem 95% de ocupação dos leitos de UTI públicos.

“Isso está nos angustiando. Só escuto meus amigos falando: ‘velho’, eu não aguento mais, tô cansado. É 2020 se repetindo, estamos presos no ano passado, só que está pior”, lamenta o médico. “A explosão de casos ainda não se refletiu muito em aumento de mortes, mas imaginamos que logo vai acontecer, o que está nos dando muito medo. Se no Rio Grande do Sul a segunda onda foi muito pior, aqui como vai ser?”

Fabiana Cambricoli e Giovana Girardi, O Estado de São Paulo10 de março de 2021

A ficha moral de Lula é suja

      Seu retorno à ribalta eleitoral atira o País num turbilhão de incertezas, em meio a uma pandemia e ao desgoverno de Bolsonaro

A defesa do ex-presidente Lula da Silva tanto fez que conseguiu: depois de anos a invocar questões processuais para questionar as condenações de seu cliente por corrupção, finalmente foi premiada com uma decisão judicial que, na prática, livra o demiurgo de Garanhuns de prestar contas à Justiça e, ademais, lhe restitui os direitos políticos.

Desse modo, o sr. Lula da Silva pode até subir nos palanques dos grotões miseráveis onde ainda é rei para pedir votos e, eventualmente, voltar ao poder, mas ainda assim, para todos os efeitos – morais e políticos –, terá seu nome indelevelmente vinculado a múltiplos escândalos de corrupção, marca que nenhuma chicana será capaz de apagar. Lula foi até agora incapaz de explicar não apenas os mimos generosos que recebeu de empreiteiros delinquentes, objeto de suas condenações ora contestadas, mas principalmente os monstruosos esquemas de roubalheira que marcaram o mandarinato lulopetista.

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin que beneficiou o sr. Lula da Silva, adotada na segunda-feira, não entrou no mérito das condenações e, portanto, não considerou o chefão petista inocente de nada. O que o ministro Fachin fez foi entender que Sérgio Moro, então juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba, não era competente para julgar os casos envolvendo o ex-presidente, pois em tese esses casos não tinham vínculo direto com o escândalo da Petrobrás – foco da Operação Lava Jato.

De fato, era preciso um grande esforço interpretativo para incluir os casos envolvendo Lula diretamente no organograma do petrolão. Esse, aliás, é um dos pecados capitais cometidos pela Lava Jato – a pretensão de ser o patíbulo de todos os políticos e empresários corruptos do Brasil, como se todos os casos fossem conexos e como se Sérgio Moro fosse o juiz natural de qualquer processo de corrupção.

Enfatize-se, de novo, que isso nada tem a ver com a materialidade dos crimes monumentais cometidos sob as bênçãos de Lula da Silva. Mesmo com a suspeita de que Sérgio Moro foi parcial ao julgar os casos de Lula, que seria avaliada ontem pela segunda turma do Supremo, não é possível simplesmente considerar, como num passe de mágica, que não houve assalto lulopetista à Petrobrás, que não houve escandalosa promiscuidade no Congresso, que não houve indecente relação de Lula com empreiteiros.

O imbróglio, ademais, diz muito sobre o Judiciário, que sai lanhado. Não há explicação, compreensível para leigos, para o fato de que se tenha levado tanto tempo para processar, julgar e condenar Lula, mesmo diante de tantas evidências; para que a defesa do ex-presidente tenha tido tantas possibilidades de recurso mesmo com condenações em três instâncias; para que o Supremo decidisse pela enésima vez mudar a jurisprudência sobre prisão após condenação em segunda instância, o que permitiu a libertação de Lula; e finalmente para que se tenha decidido somente agora que Curitiba não era o foro correto para os casos do sr. Lula da Silva, sendo que havia jurisprudência específica sobre o escopo da Lava Jato desde 2015 – aliás, citada pelo próprio ministro Fachin em sua intempestiva decisão.

É como se o juiz resolvesse marcar, no final do segundo tempo, um pênalti supostamente cometido no primeiro. Há muitas explicações possíveis para esse casuísmo, e nenhuma delas é bonita.

Que, em meio a essa barafunda, o eleitor não perca de vista: Lula, que sempre contou com chicanas e prescrições para voltar a concorrer à Presidência, pode ser agora formalmente ficha-limpa, mas continua moralmente ficha-suja. Seu retorno à ribalta eleitoral, nessas condições, atira o País num turbilhão de incertezas, em meio a uma pandemia mortal e ao desgoverno do extremista Jair Bolsonaro.

É o pior dos mundos, situação que interessa somente aos populistas radicais e irresponsáveis que protagonizam a vida nacional há tantos anos. Mais do que nunca, quem ainda acredita na democracia e nos valores republicanos precisa se organizar, e rápido, para convencer os brasileiros de que há alternativa civilizada ao caos.

Editorial / Notas&Informações, O Estado de São Paulo, em 10 de março de 2021

O impacto do fator Lula nas eleições de 2022

Volta do ex-presidente pode reduzir chances de nomes do centro alcançarem segundo turno em 2022. Mas arrefecimento do "antipetismo" e entrada em cena do "antibolsonarismo" também embaralham chances de Bolsonaro.

Candidatura de Lula seria notícia ruim para forças de centro, segundo especialistas

Na tarde de segunda-feira, a vida política do Brasil foi fortemente abalada. De forma surpreendente, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin anulou quatro processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, abrindo caminho para uma nova candidatura do petista. "Se, de fato o Lula vier a ser candidato, o jogo de 2022 muda completamente", diz o cientista político Sérgio Praça, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "E aí fica quase certo que o segundo turno da eleição será entre Lula e Bolsonaro. Pelo menos esse é o cenário que a gente tem hoje."

Fachin, relator dos processos da Lava Jato no STF, cancelou todos as quatro processos judiciais envolvendo Lula em Curitiba, incluindo o sobre o tríplex no Guarujá, supostamente presenteado a Lula por uma construtora. Neste caso, Lula foi preso por 580 dias entre abril de 2018 e novembro de 2019, por corrupção e lavagem de dinheiro, não tendo podido concorrer às eleições de 2018, vencidas por Bolsonaro.

Notícia ruim para o centro

Em outro julgamento, Lula já foi condenado por corrupção envolvendo um sítio frequentando pelo petista em Atibaia. Dois outros processos, envolvendo o Instituto Lula, no entanto, ainda estão nos estágios iniciais. Ao anular os processos, considerando que os juízes curitibanos não são competentes para julgar Lula, encaminhando os processos para a Justiça Federal em Brasília, o petista recupera seus direitos políticos.

Praça ressalta, no entanto, que ainda não está totalmente claro se o duelo com o ex-militar Bolsonaro ocorrerá no final de 2022. Porque o Brasil está no meio de uma pandemia e de uma crise econômica, que podem enfraquecer Bolsonaro eleitoralmente.

A provável candidatura de Lula é uma péssima notícia menos para possíveis candidatos do centro, como o governador de São Paulo, João Doria, ou o apresentador Luciano Huck. O cientista político acredita que a entrada de Lula no jogo faz com que o segundo turno se torne um sonho mais distante para eles.

Apoiadores de Lula em 2018 em frente ao prédio da Polícia Federal em Curitiba

Batalha de extremos

Até agora, a oposição não conseguiu benefícios com os erros de Bolsonaro na política econômica e na luta contra a pandemia. Praça acredita, por isso, que uma candidatura de uma raposa política como Lula agrada muita gente. No entanto, sua candidatura também levaria a uma possível campanha eleitoral dos dois polos – com Bolsonaro na extrema direita e Lula na esquerda. Em última análise, esta é a melhor constelação tanto para Bolsonaro como para Lula, pois proporciona uma linha divisória clara entre os dois campos.

Em qualquer caso, Bolsonaro teria reagido com extrema tranquilidade ao cancelamento dos processos, de acordo com relatos da mídia. Porque em 2018 o sentimento anticorrupção contra Lula e seu PT o ajudou a vencer. "O anti-petismo ainda está presente, tem muita gente que nunca votaria no Lula”, diz Praça. Mas recentemente as pesquisas surpreenderam. Segundo sondagens, 44% afirmaram que definitivamente não votariam em Lula, mas a rejeição do Bolsonaro, de 56%, foi ainda maior.

Clima anti-PT se arrefece

Portanto, o auge do clima anti-PT parece ter ficado para trás. Muito pode ser atribuído às revelações depois que hackers terem invadido arquivos de mensagens de juízes e procuradores da Lava Jato em 2019, expondo conluios contra Lula. Além disso, muitos brasileiros têm boas lembranças do ex-presidente. "Acho que a impressão que fica sobre Lula, é que ele pode ter vindo de um partido corrupto e que podia ter tido corrupção no seu governo, mas que ele é um político competente", sublinha Praça, acrescentando ser algo que o diferencia do atual governante Jair Messias Bolsonaro, que é corrupto e, ao mesmo tempo, incompetente.

Crises sanitária e econômica podem se refletir em popularidade de Bolsonaro

Muitos caminhos levam à candidatura

Pouco depois de anunciada a anulação dos julgamentos, a Procuradoria-Geral da República anunciou que entraria com recurso. Isso significa que a decisão de Fachin deve ser analisada pelo plenário do STF. Mas Fachin pode contar com o apoio da maioria de seus colegas, segundo o coordenador do Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Michael Mohallem.

A candidatura de Lula também pode ser ameaçada pelo novo juiz em Brasília. Pelo menos em teoria, embora seja hipótese pouco provável, acredita Mohallem. "Mesmo que o novo juiz condene o Lula, não haverá tempo para as duas condenações", explica. Isso seria necessário para que Lula voltasse a ser considerado inelegível segundo a Lei da Ficha Limpa. O prazo para isso seria a data de inscrição para a candidatura de Lula, dentro de cerca de 16 meses.

"Não me parece que esse juiz vá querer cometer o mesmo erro de acelerar exageradamente o processo", opina Mohallem, que atualmente realiza uma investigação que mostra que os processos de Lula em Curitiba percorreram as instâncias com velocidade muito maior que o normal.

Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021

Em carta, Brasil apela à China por mais vacinas

Governo Bolsonaro, que disse que jamais compraria vacina chinesa, admite que campanha pode parar e pede a Pequim outro imunizante, além da Coronavac. Mensagem foi enviada a embaixador que presidente tentou remover.

Funcionária da Sinopharm inspeciona vacinas

Reconhecendo que a campanha nacional de imunização contra a covid-19 corre o risco de ser interrompida no Brasil por falta de vacinas, o Ministério da Saúde enviou uma carta ao embaixador da China em Brasília pedindo que este interceda junto à estatal Sinopharm para liberar 30 milhões de doses de seu imunizante ao Brasil.

Na carta enviada ao embaixador Yang Wanming, o secretário-executivo do ministério, Antônio Elcio Franco Filho, afirma que, diante da escassez da oferta internacional, o governo brasileiro vem buscando estabelecer contato com novos fornecedores, em especial a Sinopharm. 

"Nesse contexto, muito agradeceria os bons ofícios de Vossa Excelência para averiguar a possibilidade de a Sinopharm fornecer 30 milhões de doses da vacina BBIBP-CorV, em cronograma e preço a serem acordados, se possível, ainda para o primeiro semestre de 2021, com possibilidade de quantidades adicionais para o segundo semestre deste ano", diz a carta, datada desta segunda-feira (08/03).

O secretário-executivo da pasta ressaltou que o Brasil enfrenta a variante do coronavírus conhecida como P1, originária de Manaus e mais contagiosa.

"O Ministério da Saúde está ciente da importância de conter essa cepa e de impedir que se espalhe pelo mundo, recrudescendo a pandemia. A principal estratégia brasileira para conter a pandemia e, em particular, essa variante P1 é intensificar a vacinação", afirma.

A vacina da Sinopharm, chamada de BBIBP-CorV, tem eficácia 79,3% em evitar casos graves de covid-19, segundo a fabricante. Ela não foi comprada e nem estava entre as negociadas pelo Ministério da Saúde até o momento. A Coronavac, jé em uso no país, também foi desenvolvida na China, mas por outra empresa, a Sinovac.

Histórico de conflitos

O pedido de auxílio vem em meio ao recrudescimento da epidemia de covid-19 no Brasil, com seguidos recordes de mortes, e a críticas sobre a lentidão da campanha de imunização. Ocorre ainda após uma série de atritos entre os governos do presidente Jair Bolsonaro e o chinês e críticas a vacinas contra a covid-19 provenientes da China.

O embaixador chinês a quem a carta foi endereçada é o mesmo que o governo Bolsonaro já pediu duas vezes para ser trocado após conflitos. Os pedidos de troca não foram aceitos pelo governo chinês.

Em março de 2020, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, declarou que a China era a culpada pela pandemia. No mês seguinte, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, insinuou que o país asiático teria ganhos com a disseminação do coronavírus Sars-Cov-2, causador da covid-19, e fez piada com o sotaque chinês. À época, o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, manifestou repúdio e exigiu um pedido de desculpas por parte do governo brasileiro.

Em outubro, Jair Bolsonaro afirmou categoricamente que não compraria a vacina chinesa Coronavac – em claro embate com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que impulsionou o desenvolvimento da vacina da Sinovac, da China, em parceria com o Instituto Butantan. A seguir, Eduardo Bolsonaro acusou a China de fazer espionagem por meio de sua tecnologia de rede 5G. A embaixada reagiu novamente com repúdio.

Lira também recorreu à China

A carta do Ministério da Saúde ao embaixador chinês não foi o único pedido de ajuda do governo a Pequim nesta semana. Na terça-feira, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, também recorreu ao diplomata chinês.

"Eu me dirijo ao governo chinês neste momento de grande angústia para nós brasileiros, para que nossos parceiros chineses tenham um olhar amigo, humano, solidário e nos ajudem a superar a pandemia, oferecendo os insumos, as vacinas, todo o apoio que este grande parceiro da China precisa neste grave momento", escreveu Lira, que é aliado de Bolsonaro.

Além de vacinas produzidas na China, o Brasil depende de insumos importados do país para produzir imunizantes contra a covid-19 – tanto a Coronavac, produzida pelo Butantan – quanto a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca, produzida localmente pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Até o momento a Coronavac e a vacina de Oxford-AstraZeneca são as duas únicas em uso no Brasil. O imunizante desenvolvido pela americana Pfizer e pela alemã Biontech é o único a já ter registro definitivo na Anvisa, mas o governo ainda negocia o fornecimento de doses após recusar ofertas pela Pfizer desde o ano passado. Nesta segunda, Bolsonaro afirmou em reunião virtual com executivos da Pfizer que gostaria de fechar contrato para a compra de vacinas do laboratório diante da agressividade do coronavírus no Brasil.

O Brasil registrou oficialmente 1.972 mortes ligadas à covid-19 nesta terça, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass), a pior marca diária registrada desde o início da pandemia. A ocupação dos leitos de UTI do Sistema Único de Saúde (SUS) destinados a pacientes com covid-19 supera os 80% em 20 unidades da federação, de acordo com a Fiocruz.

Segundo levantamento feito por um consórcio de veículos da imprensa brasileira, até esta terça-feira, 8,7 milhões de pessoas receberam ao menos uma dose de vacina contra a covid-19 no Brasil, o equivalente a 4,13% da população.

Deutsche Welle Brasil, em 10.03.2021

Brasil é 'racista' e parece executar 'indesejados' com conivência da Justiça, diz Comissão da OEA

Racismo e discriminação contra negros, indígenas, mulheres, camponeses, sem-teto e moradores de favelas. Trabalho análogo à escravidão e tráfico de pessoas. Presos, migrantes e LGBTs em risco. Insegurança, crime organizado, milícias, facções e uma recorrente resposta violenta do Estado. Impunidade e ataques à liberdade de expressão e de imprensa.


A população negra é a ma vítima da violência no Brasil (Crédito foto: Getty Images)

Estes e outros assuntos são explorados em mais de 200 páginas de um duro relatório recém-enviado ao governo brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), principal órgão multilateral dedicado ao tema em todo o continente.

Feito com "o objetivo de aferir os principais desafios aos direitos humanos no país", o documento, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, registra centenas de falhas do Estado brasileiro, seja por "omissão, ineficiência ou ação direta de governos" - caso, por exemplo, de episódios confirmados de mortes e impunidade ligados à violência policial em todo o país.

Só em 2019, 6.357 pessoas foram mortas por policiais no Brasil - o maior patamar desde o início dos levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2013. A título de comparação, a letalidade policial foi 5 vezes maior no Brasil do que nos EUA no mesmo ano.

Em um dos momentos mais veementes do texto, a Comissão indica a existência de um "sistema estruturado de violência e execução de pessoas 'indesejadas' na sociedade brasileira" pela combinação de violência policial e impunidade, que contaria com a "proteção do sistema de Justiça".

O conteúdo do relatório é especialmente enfático em relação ao racismo, à discriminação e à violência de gênero no Brasil, descritos como motores de um ciclo histórico e perverso de desigualdade, pobreza e crimes.

O texto, por outro lado, "reconhece que o Brasil possui um Estado de Direito baseado em sólidas instituições democráticas".

"Contudo", prossegue o texto, "faz um alerta de que, recentemente, esse sistema vem enfrentando desafios e retrocessos".

Após a publicação desta reportagem, o governo brasileiro, por meio do ministério de Relações Exteriores, enviou comentários sobre o relatório.

"O governo brasileiro reconhece a persistência no país de desafios históricos a serem superados na busca de uma sociedade ideal, como em qualquer grande democracia. Lamenta, no entanto, que o relatório da CIDH privilegie, em determinadas passagens, uma abordagem politizada e parcial", diz a nota oficial.

Os comentários foram incluídos, na íntegra, no fim deste texto.

Bolsonarismo

Braço da OEA responsável por vigiar a garantia de direitos humanos em todo o continente, a Comissão foi criada em 1959 e tem sede em Washington, nos EUA. Entre diferentes atribuições, ela apresenta casos de violações à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA e atua frente ao tribunal em casos que envolvam crimes cometidos por Estados.

Sem citar nominalmente o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o texto frisa que a facilitação promovida pelo atual governo no acesso a armas de fogo será incapaz de conter ou reduzir a violência.

Ao contrário, segundo o órgão, a política armamentista deve aumentar a criminalidade, além de "minar a confiança dos cidadãos em relação ao Estado e aprofundar fissuras históricas do tecido social".


Bolsonaro é um entusiasta do armamento da população (Crédito: reprodução YouTube)

"A Comissão vê com extrema preocupação as tentativas do Estado de ampliar, mediante o uso de decretos presidenciais, o acesso dos brasileiros às armas de fogo, que poderiam ademais, incrementar exponencialmente a violência perpetrada contra as mulheres", ressalta a entidade.

Procurado, o Palácio do Planalto não respondeu ao pedido de comentários enviado pela reportagem.

No relatório, a entidade também mostra "preocupação" em relação à abordagem bolsonarista sobre a ditadura militar e a tortura, condenando a "negação desse passado histórico por parte do Estado brasileiro" e a impunidade da "maioria dos crimes" cometidos no período.

O órgão ainda critica medidas tomadas pelo governo Bolsonaro como a extinção do ministério do Trabalho ("o que poderia enfraquecer esforços para erradicar o trabalho em condições semelhantes à escravidão e ao trabalho infantil") e o fim de políticas relacionadas à moradia, participação da sociedade em políticas públicas, reforma agrária, entre outras.

Dados públicos da comissão mostram que, desde a posse de Bolsonaro até o fim do ano passado, o Brasil havia sido alvo de mais de 45 críticas públicas, petições e recomendações, além do relatório especial em fase de finalização.

Apesar de duros embates com gestões anteriores (Dilma Rousseff chegou a anunciar a saída da comissão após críticas à usina de Belo Monte), nunca na história da CIDH o Brasil foi objeto de tantos chamados.

Longo trabalho

A análise disponível no relatório, porém, vai muito além do atual governo e oferece um raio-X sobre o Brasil que não é visto desde 1995, data da primeira visita oficial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao país para a elaboração de um relatório semelhante.

Publicado nesta sexta-feira (05-03) pelo órgão da OEA, o texto é resultado de mais de dois anos de um trabalho que começou oficialmente em novembro de 2018, em visita oficial de autoridades e membros da Comissão a oito estados brasileiros, além do Distrito Federal.

Na viagem oficial, a Comissão Interamericana se reuniu com ministros, juízes do Supremo Tribunal Federal, membros da Procuradoria-Geral da República, de Ministérios Públicos e Defensorias, além de cidadãos comuns, organizações da sociedade civil e movimentos sociais.

"A Comissão também coletou centenas de depoimentos de vítimas de violações de direitos humanos e seus famíliares, e analisou milhares de documentos, leis, projetos de lei e outras informações", segundo registros oficiais.

As atividades incluíram visitas a prisões federais, à região conhecida como "cracolândia", em São Paulo, a comunidades indígenas e quilombolas e bairros em periferias na Bahia, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, São Paulo, Roraima e Brasília.

Reunindo também uma série de referências a episódios e documentos posteriores à visita, o trabalho especial da Comissão Interamericana sobre o Brasil se encerrou em dezembro de 2020, depois do recebimento de comentários e informações finais do governo brasileiro.

Tanto a visita quanto o relatório foram elaborados a convite do próprio governo do Brasil, em novembro de 2017, à época chefiado por Michel Temer.

Discriminação em polícias e tribunais

Texto diz que a "polícia brasileira é uma das mais letais no mundo, bem como a que mais tem profissionais assassinados"

O relatório critica a atuação de policiais em operações envolvendo negros, mulheres e minorias ao citar índices desproporcionais de violência contra estes grupos.

"A CIDH observa que o país tem tido grande dificuldade em assegurar o direito à segurança cidadã a um amplo contingente da sua população", diz o texto.

"As pessoas afrodescendentes, especialmente jovens do sexo masculino e de origem familiar pobre, figuram como vítimas preponderantes de atos de violência letal intencional, grande parte dos quais são cometidos em contexto de ação policial."

Na opinião da Comissão, "há um alto índice de impunidade desses crimes, o que, em intersecção com a discriminação estrutural, consolidam um diagnóstico de racismo institucional" no país.

O texto ressalta que a "polícia brasileira é uma das mais letais no mundo, bem como a que mais tem profissionais assassinados", e aponta um processo nocivo "de militarização da segurança pública, que, por sua vez, acaba por consolidar uma lógica da guerra nos centros urbanos e rurais".

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos vai além e destaca o papel da Justiça neste processo.

é reproduzida ou mesmo ampliada pela atuação do sistema de Justiça criminal: por um lado, é crônica a impunidade dos crimes cometidos contra essas populações mais vulneráveis; e, por outro, é desproporcional o impacto do aparato repressivo do Estado contra essas mesmas populações."

Ainda segundo o órgão, "permanecendo impunes, tais violações cometidas por agentes de segurança pública atingem um caráter estrutural, sistemático e generalizado em todo o país."

A CIDH nota ainda que não apenas casos de massacres envolvendo agentes de segurança, mas também casos de pessoas envolvidas no aliciamento e utilização do trabalho escravo no Brasil terminam impunes.

"Na opinião da Comissão, tal característica (a violência policial) poderia indicar a existência de um sistema estruturado de violência e execução de pessoas 'indesejadas' na sociedade brasileira, que contariam com a proteção do sistema de Justiça".

O texto aponta que este contexto sugere "um processo de 'limpeza social' destinado a exterminar setores considerados 'indesejáveis', 'marginais', 'perigosos' ou 'potencialmente delinquentes', que conta com a anuência estatal".

Milícias

A Comissão aponta que, só em 2019, o Brasil registrou oficialmente 1.254 episódios envolvendo conflitos pela terra em todo o país, um aumento de 47% desde 2010.

O órgão enumera episódios de violência envolvendo tiros e incêndios criminosos envolvendo "forças de segurança pública e seguranças particulares conhecidos como 'jagunços'."

A Comissão também diz que "recebeu com preocupação a informação de que o Estado estaria promovendo a legalização de milícias e, de certa forma, armando-as em territórios rurais, além de estar facilitando a aplicação da excludente de ilicitude das forças militares na atuação voltada à reintegração de posse."

O órgão destaca que o Brasil se tornou, em 2017, "o país com o maior número de assassinatos de defensoras e defensores do meio ambiente no mundo".

"(A Comissão) reitera seu repúdio e preocupação com o assassinato com requintes de execução da vereadora Marielle Franco, que hoje ainda se encontra em investigação no nível estadual."

Em relação às conhecidas milícias urbanas, envolvidas no assassinato da vereadora, segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, o texto cita "a dificuldade do Estado de oferecer respostas sólidas, sistêmicas e sustentáveis para a violência e a insegurança nos últimos 23 anos, articulando os diferentes níveis da federação e as diferentes forças policiais em torno de medidas que conjugam prevenção e repressão".

"(Isso) criou ambiente fértil para o surgimento e a ampliação de organizações criminosas, como as chamadas milícias", diz a comissão.

Protesto em SP em 2016 pedindo combate à violência contra a mulher (Crédito foto: Ag. Brasil)

Citando uma série de dados sobre feminicídios, com maior frequência entre mulheres negras, a Comissão informa que recebeu uma série de denúncias sobre piora em níveis de violência contra as mulheres.

O órgão lembra que "o mero reconhecimento da violência contra a mulher como problema público, e não como um dado das relações privadas, levou décadas para ocorrer no país".

O texto pede que o governo e a sociedade brasileira combatam com empenho a "cultura do estupro" no país.

"A Comissão reitera suas recomendações sobre a importância de se promover leis e políticas públicas que busquem, por meio da educação em direitos humanos, abordar e eliminar preconceitos estruturais, a discriminação histórica, bem como os estereótipos e conceitos falsos sobre mulheres."

Ainda segundo o relatório, "a condição de gênero mostrou-se fator agravante das experiências de desigualdade e discriminação" nos "processos estruturais de violação dos direitos humanos no país".

"O machismo e a misoginia continuam relegando a mulher a uma posição secundária na economia e nos assuntos públicos, com evidentes diferenças salariais no mercado de trabalho e sub-representação nos parlamentos e demais poderes, sobretudo nos cargos de cúpula"

Protesto pelos direitos LGBTI+ em São Paulo, em setembro de 2017 (Crédito foto: AFP)

O órgão também observa uma "tendência de regressão na proteção e promoção dos direitos das pessoas LGBTI no país", bem como "o aumento do uso de discursos que incitam ao ódio e que tendem a aumentar as taxas de ataques contra pessoas de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero".

Em mais uma referência ao bolsonarismo, citando a atuação de "um dos candidatos à presidência do Brasil" em outubro de 2017, o texto resgata a controvérsia em torno de uma cartilha educacional sobre diversidade criada para combater o bullying nas escolas que veio a se tornar pejorativamente conhecida como "kit gay".

"A inverdade das notícias sobre o 'kit gay' foi confirmada por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que solicitou a suspensão de links de sites e redes sociais relacionados à denominação", diz o texto, que também reconhece "avanços importantes" como a garantia do direito ao casamento e uso do nome social e a ampliação da participação e candidatura de pessoas LGBTI em eleições.

Por outro lado, o órgão faz um alerta.

"O Brasil continua registrando elevadíssimos índices de violência contra pessoas LGBTI, em especial lésbicas e mulheres trans; e que, na medida em que uma retórica de "defesa da família" e das tradições ganha tração no âmbito na sociedade, diversos direitos dessas pessoas encontram-se sob ameaça."

O relatório é finalizado com uma série de recomendações "para consolidar um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos, de acordo com os compromissos assumidos pelo Estado nos âmbitos interamericano e internacional."

Resposta do governo brasileiro

"O relatório intitulado "Situação dos direitos humanos no Brasil", publicado em 5 de março de 2021 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), é resultado de visita oficial daquele organismo ao país, realizada em novembro de 2018. Na ocasião, a delegação da CIDH visitou oito estados da Federação, além do Distrito Federal, em extensa agenda que incluiu encontros com representantes da sociedade civil e órgãos oficiais, além de expedições a campo.

Como prova do engajamento do Brasil com a promoção e proteção das liberdades fundamentais e dos direitos humanos, bem como da importância atribuída pelo país ao sistema interamericano, o governo do presidente Jair Bolsonaro tem mantido com a CIDH relação de cooperação baseada em espírito de cordialidade, transparência e permanente diálogo. Nesse contexto, o Brasil tem atendido, com zelo e sem atraso, a todas as solicitações de informações apresentadas pela Comissão, bem como participado de modo construtivo das audiências públicas realizadas pelo órgão.

O governo brasileiro reconhece a persistência no país de desafios históricos a serem superados na busca de uma sociedade ideal, como em qualquer grande democracia. Lamenta, no entanto, que o relatório da CIDH privilegie, em determinadas passagens, uma abordagem politizada e parcial. Isso se evidencia, por exemplo, nas referências a "violência institucional", "perfilamento racial por parte de agentes do Estado", "aumento das ameaças contra a vida de jornalistas e comunicadores por parte das autoridades" e "enfraquecimento dos espaços de participação democrática".

O Brasil não mede esforços para promover e proteger os direitos e garantias fundamentais consagrados na Constituição Federal, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos e em outros tratados internacionais de direitos humanos de que é parte.

O combate ao crime e à violência está entre os principais compromissos do governo. A Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, visando não só ao combate à prática de perfis raciais, mas também à redução da violência contra a população afrodescendente, trabalha em conjunto com o Ministério da Justiça e Segurança Pública no desenvolvimento de ações voltadas à capacitação de agentes de segurança e à promoção da igualdade étnico-racial.

A garantia do pleno exercício do direito à liberdade de expressão e a oposição incansável a toda e qualquer forma de censura, princípios fundamentais da vida democrática, são prioridades para o governo brasileiro. No Brasil, jornalistas foram incluídos no rol de beneficiários do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores Sociais e Ambientalistas, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. O Decreto nº 9.937/2019 instituiu o Conselho Deliberativo do programa, o que ampliou a participação de outros entes federais e introduziu a possibilidade de convite a organizações da sociedade civil.

A participação social mantém-se especialmente ativa no Brasil no desenvolvimento de políticas de direitos humanos. Diversos órgãos colegiados, que reúnem representantes do governo e da sociedade civil, realizam reuniões regularmente, como o Conselho Nacional de Direitos Humanos, mantendo inclusive contato direto com a CIDH, que tem sido constantemente provida de informações de organizações da sociedade civil brasileira. O sistema político e social brasileiro segue dispondo de inúmeras instâncias formais, procedimentos legais e práticas consolidadas que permitem ao cidadão participar ativamente das decisões que são tomadas pelo poder público."

Ricardo Senra - @ricksenra, da BBC News Brasil em Londres