sexta-feira, 12 de maio de 2023

'Narcopentecostalismo': traficantes evangélicos usam religião na briga por territórios no Rio

Os traficantes que dominam as favelas de Parada de Lucas, Vigário Geral e outras três comunidades na Zona Norte do Rio de Janeiro elegeram referências bíblicas como seus principais símbolos.

Território foi batizado de 'Complexo de Israel' pelo chefe do grupo criminososo, segundo a polícia Reprodução Twitter)

A facção se autodenomina “Tropa de Arão” — uma figura cristã, irmão de Moisés. A estrela de David foi espalhada em muros e bandeiras nas entradas das favelas, e está até em um neon no alto de uma caixa d’água na comunidade de Cidade Alta.

O território foi batizado, segundo a polícia, de “Complexo de Israel” pelo chefe da Tropa — uma referência à “terra prometida” para o “povo de Deus” na Bíblia.

O grupo criminoso comandava inicialmente o tráfico em Parada de Lucas e estendeu seu domínio para as comunidades vizinhas. Hoje, a Tropa controla o tráfico nas favelas de Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral, de acordo com a polícia e centros de pesquisa em segurança pública.

O Complexo de Israel é emblemático de um fenômeno que alguns pesquisadores têm chamado de “narcopentecostalismo” — não apenas o surgimento de traficantes que se declaram evangélicos, mas a forma como isso influencia a atuação das facções na disputa por territórios no Rio de Janeiro.

“O termo neopentecostalismo tem sido empregado por diversos pesquisadores que analisam o fenômeno de narcotraficantes que assumem, de forma explícita e aberta, religiões neopentecostais, inclusive em suas atividades criminosas”, explica a cientista política Kristina Hinz, pesquisadora do Laboratório de Análise da Violência da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e doutoranda na Free University, de Berlim.

Ou seja, além da conversão pessoal, a religião também tem um papel estratégico para manutenção do poder e na disputa por territórios, segundo os pesquisadores.

A comunidade evangélica tradicional rejeita fortemente a ideia de que um traficante possa ser evangélico.

“Um pastor sério não vai aceitar que uma coisa que é ilegal na lei humana e imoral seja associada a cristo”, diz o pastor Carlos Alberto, que atua há 17 anos como pastor na favela da Cidade de Deus e antes era, ele próprio, traficante. “O pastor tem que mostrar para a pessoa que ela pode se arrepender, mas para ser aceito como evangélico ela tem que largar tudo que é contrário aos princípios bíblicos, morais e éticos.”

No entanto, os traficantes considerados parte do neopentecostalismo não só se declaram membros na religião, mas de fato têm uma vida religiosa, apontam pesquisadores.

O líder do tráfico no Complexo de Israel é alvo, por exemplo, de 20 mandados de prisão por homicídio, tortura, tráfico, roubos e ocultação de cadáver. Ao mesmo tempo, ele se declara evangélico, espalhou referências religiosas pela região e tem amigos pastores, aponta a polícia.

“São traficantes que ao mesmo tempo participam da ‘vida do crime’ e da vida religiosa evangélica, indo a cultos, pagando o dízimo e até mesmo pagando por apresentações de artistas gospel na comunidade”, afirma Kristina Hinz.

Essa influência de religiões sobre as dinâmicas de poder do tráfico sempre existiu, dizem pesquisadores, e não é algo particular ao protestantismo. Mas a conversão de traficantes ao pentecostalismo é um fenômeno que tem características próprias, em um país que caminha para ter maioria evangélica na próxima década.

Pesquisa feita pelo Datafolha em 2020 aponta que 31% da população era evangélica, com católicos compondo 50% (Getty Images)

Mais evangélicos — como o Brasil

Nos últimos 30 anos, a sociedade brasileira tem se tornado mais evangélica como um todo — segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de evangélicos subiu 61% entre 2000 e 2010.

Dados de 2020 de pesquisa feita pelo instituto Datafolha apontam que 31% da população era evangélica nesta data, com católicos compondo 50%.

Se o crescimento continuar no ritmo atual, em 2030 os evangélicos chegarão a 40% da população, segundo uma projeção do pesquisador José Eustáquio Diniz Alves, doutor em Demografia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Para a população das favelas, as igrejas pentecostais passaram a ter uma importância significativa. As redes evangélicas oferecem segurança e apoio material, espiritual e psicológico para os moradores, aponta a pesquisadora Christina Vital Cunha em Oração de Traficante: uma etnografia.

Foi neste contexto que se deu a aproximação dos traficantes desta religião, diz o sociólogo Doriam Borges, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

“Essa conversão ocorreu tanto pelo fato de parte dos traficantes terem nascido em lares evangélicos ou por terem familiares religiosos, bem como por estarem internados no socioeducativo ou em prisões e terem sido alvo dos projetos missionários evangélicos nessas instituições”, explica.

Traficantes usam símbolos até em coletes à prova de bala (Reprodução Twitter)

Manutenção do poder

Nesta união do tráfico com a religião, doutrinas neopentecostais se misturam às estruturas de poder das facções.

Em muitos locais, como no Complexo de Israel, por exemplo, ela é “decisiva para a governança e a manutenção do poder de grupos criminosos”, diz Kristina Hinz.

“A apropriação pelo tráfico da gramática de guerra reconhecida nas favelas e empregada por algumas igrejas neopentecostais proporciona uma narrativa de legitimidade religiosa para a expansão violenta do território”, afirma a pesquisadora.

A pesquisadora afirma que, na competição pelo mercado de venda de drogas, a adaptação de uma linguagem e de símbolos familiares para a população permite que os traficantes apresentem “confrontos armados com grupos concorrentes de tráfico de drogas como ‘guerra espiritual’ ou mesmo como uma ‘guerra santa’ contra demônios e inimigos religiosos”.

O chefe do tráfico no Complexo de Israel é também um dos líderes do Terceiro Comando Puro (TCP), segundo a polícia.

O TCP é hoje o terceiro maior grupo armado do Rio, atrás das milícias e do Comando Vermelho (CV), de acordo com o estudo Mapa dos Grupos Armados do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O complexo faz parte do território do TCP, que é um rival histórico do CV. Na disputa por territórios, o TCP fez alianças com milícias, apontam as pesquisas de Hinz e Borges.

Os especialistas afirmam ainda que as estrelas de David no Complexo de Israel ou a pichação “Jesus é o dono do lugar” em um terreiro de umbanda destruído por traficantes são mais do que símbolos religiosos.

São uma “forma de delimitar espaços de poder e de domínio do tráfico nos territórios”, como aponta Hinz.

“Quando esses traficantes evangélicos ordenam o fechamento de terreiros, além do racismo e intolerância religiosa, estão demonstrando seu poder, força e domínio no território. Ou seja, esse grupo de traficantes utiliza a gramática evangélica como instrumento de dominação da população residente nas favelas.”

No entanto, Vital Cunha pontua que nem sempre o fato de um traficante ser evangélico resulta na retirada de santos católicos ou na perseguição de religiões de matriz africana.

Ela descreve em sua pesquisa casos em que os próprios moradores fazem esse tipo de constrangimento e intolerância.

A favela de Cidade Alta é uma das dominadas pelo TCP 9Reprodução Twitter)

Rejeição dos evangélicos

Se a linguagem religiosa é familiar para a população, a rejeição da ideia de que traficantes possam ser de fato cristãos é muito forte na comunidade evangélica mais tradicional, como explica a pastora e pesquisadora Viviane Costa, autora de Traficantes Evangélicos.

Alguém que vive do crime, nessa visão, não cumpriria os “requisitos de uma verdadeira conversão”, diz ela.

Para muitos cristãos, “ser evangélico” não significa só aderir às crenças da religião, mas ter atos e um estilo de vida de acordo com certos preceitos, explica o sociólogo Diogo Silva Corrêa, autor do livro Anjos de Fuzil, resultado de sua pesquisa sobre as relações entre o crime e a religião na Cidade de Deus, favela na Zona Oeste do Rio.

Ou seja, para alguém ser evangélico, não basta acreditar, é preciso viver de uma certa forma — a ideia de um criminoso evangélico seria, portanto, inaceitável.

"Se a pessoa não procurar mudar, não tem como se intitular cristão — e isso vale para todos, para o adúltero, para o brigão, para quem tem vício, não só para o traficante", diz à BBC o pastor Carlos Alberto, de uma igreja neopentecostal na Cidade de Deus.

"Durante muito tempo, os evangélicos foram respeitados justamente porque não existia aquela coisa de ser 'não praticante', como os católicos, o crente era até considerado chato, cafona", diz ele.

Os pastores coniventes com o tráfico são uma minoria, defende ele, mas é algo problemático porque é uma minoria que "tem forte influência sobre o rebanho".

"O pastor sabe que é errado, mas alguns aceitam por causa dos benefícios, o traficante paga por uma cruzada (evento religioso aberto), faz uma reforma na igreja", diz ele. "É uma visão errada de que Deus vai transformar uma maldição em benção, um dinheiro maldito em algo positivo."

"Mas é algo que faz a igreja perder credibilidade", diz ele. "Se você percebe que o traficante quer proteção, quer usar a religião como um amuleto, mas não quer largar o crime, não pode se associar."

"Como você vai ficar conivente quando a lei do tráfico é muito rígida, é olho por olho, não existe compaixão?", diz.

Carlos Alberto afirma que o processo de aceitar pessoas que só querem os benefícios de se dizer religioso mas não mudam de vida é algo que acontece também no meio artístico, no futebol, no meio empresarial e na política.

"Pastores que aceitam aparecer com certos políticos, que são coniventes com certas práticas, não me representam."

No entanto, Viviane Costa explica que, conforme mais e mais brasileiros se tornam protestantes, a conversão nos moldes “mais tradicionais” é menos comum — e pessoas se consideram evangélicas mesmo que não se comportem de acordo.

Ela lembra do fenômeno das celebridades evangélicas citado por Carlos Alberto. “Mesmo alguns políticos e celebridades que se declaram cristãos reformados não seriam considerados verdadeiramente evangélicos levando em conta a expectativa mais tradicional”, diz.

“Fui bastante criticada por falar em ‘traficantes evangélicos’, mas não fui eu que os nomeei como evangélicos — é assim que o fenômeno é conhecido e como eles próprios se identificam”, diz Costa. “O livro é o resultado de uma pesquisa, e como pesquisadora eu estou descrevendo um fenômeno, não fazendo uma análise teológica se a pessoa realmente é convertida.”

O TCP é conhecido pelos desaparecimentos de pessoas que se opõem à facção, de acordo com a polícia.

Desde antes da criação do Complexo de Israel, moradores relatam à imprensa desaparecimentos de familiares e amigos em favelas dominadas pela facção.

Muitas não procuram a polícia nem relatam oficialmente os desaparecimentos por medo, segundo observadores de centros de pesquisa sobre violência.

Em alguns lugares, no entanto, alguns traficantes evangélicos têm um grande respeito por pastores de igrejas nas favelas que dizem não aos grupos armados, diz Costa.

“São considerados verdadeiros homens santos, porque realmente aderiram ao caminho correto”, afirma.

Vital Cunha, uma das primeiras pesquisadoras a estudar o tema, descreve em seu trabalho como notou a aproximação de traficantes e pastores em busca de proteção espiritual.

Na favela do Acari e de Santa Marta, descreve ela em seu trabalho, o rádio de comunicação dos traficantes apitava todos os dias às 5h30 com uma oração do chefe do tráfico.

Ele falava ao mesmo tempo com Deus, pedindo proteção, e dava orientação, pedindo para os subordinados matarem menos e dizendo para os líderes comunitários cuidarem das pessoas.

Domínio da 'tropa de Arão' começou na favela Parada de Lucas (Reprodução Twitter)

'Narcoreligião'

A pesquisadora Viviane Costa, no entanto, é contra falar em “narcopentecostalismo”. Ela diz que isso passaria a ideia de que a religião só passou a ser um fator importante na dinâmica de poder do tráfico com o surgimento dos traficantes evangélicos.

Na realidade, diz ela, “a religião está presente na dinâmica do tráfico desde a sua gênese". Ela defende que o mais correto seria falar em "narcoreligião".

Nas décadas de 1980 e 1990, as facções do narcotráfico eram amplamente associadas a religiões afro-brasileiras como o candomblé e a umbanda, diz Doriam Borges.

Isso foi, inclusive, retratado no cinema: a passagem no filme Cidade de Deus em que o traficante muda de nome após ter o corpo fechado em um ritual religioso é uma das mais conhecidas.

“Dadinho é o c*, meu nome é Zé Pequeno!”, diz o personagem, antes de atirar em outra pessoa.

Os traficantes construíam murais e altares em seus territórios, destaca Costa.

“Em alguns casos, quando um traficante derrubava um chefe do tráfico ou quando ia conquistar um outro território, a divindade do traficante que tinha sido derrotada também abria lugar para a divindade do que assumia. Ou seja, o elemento religioso já fazia parte da dinâmica de poder.”

Reportagens do jornal O Globo na década de 1990 descrevem casos de imagens de entidades e de santos decapitadas durante disputadas armadas — algo que acontecia pela mão dos traficantes rivais e também da polícia.

O preconceito contra as religiões afro-brasileiras já era presente desde então, explica Borges.

“As religiões afro brasileiras, desde suas origens, têm sido estigmatizadas. E os traficantes vinculados a essas religiões eram os personagens perfeitos usados pela sociedade e pelo Estado, em especial as polícias, para a vinculação desse grupo com o Diabo, com o mal.”

Segundo o pesquisador, esses símbolos religiosos eram frequentemente destruídos durante as operações policiais.

Em Oração de Traficante, Vital Cunha descreve como as pinturas de santos e entidades do candomblé passaram lentamente a ser substituídas por trechos bíblicos na favela de Acari, no Rio de Janeiro, onde ela passou mais de uma década fazendo pesquisa.

Ou seja, a dinâmica religiosa, que já existia, passou a ser modificada para incorporar a cultura neopentecostal que surgia.

Hoje, a criação do Complexo de Israel é exemplo dos contornos que essa relação entre tráfico e religião assumiu, diz Kristina Hinz.

Exemplo, aliás, que é copiado por outros traficantes: segundo a Polícia Civil, o chefe do tráfico de uma favela em Madureira, na Zona Norte do Rio, pretende tomar os territórios de rivais para criar uma grande área sob seu domínio que chamaria “Complexo de Jerusalém”.

Letícia Mori, de S. Paulo par a BBC News, em 12.05,23

quarta-feira, 10 de maio de 2023

A fortuna americana da família Cid, Metrópoles exclusivo

Irmão do tenente-coronel Mauro Cesar Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, comprou mansão de R$ 8,5 milhões nos EUA

Nos últimos anos, ele fez outras aquisições milionárias, incluindo uma casa na Flórida

Alguns dos negócios foram registrados em nome de um trust familiar, o “Cid Family Trust”

Daniel Cid operou “milícia digital” contra as eleições e disseminou fake news

Polícia Federal investiga transações financeiras do clã no exterior

Quando decolou com Jair Bolsonaro rumo aos Estados Unidos, em 30 de dezembro de 2022, o então ajudante de ordens do presidente, tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, já tinha planos de esticar sua temporada em terras americanas para além de Orlando, na Flórida.

Como ele próprio contou à Polícia Federal em 5 de abril, em depoimento ao qual o Metrópoles teve acesso, a partir do último dia de dezembro Cid saiu de férias, cruzou o país e foi visitar familiares na Califórnia.

O tenente-coronel do Exército, hoje preso, precisava descansar. Já investigado em diversas frentes, por distribuição de fake news, vazamento de documentos sigilosos para tumultuar o processo eleitoral e pela suspeita de operar um caixa paralelo no Planalto que servia à família Bolsonaro, ele havia tido um mês de dezembro frenético. Esteve empenhado na tentativa frustrada de resgate das joias presidenciais retidas pela Receita no aeroporto de Guarulhos e no esforço para fraudar comprovantes de vacinas, o que acabaria resultando na operação que o levou à cadeia, meses depois, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

O faz-tudo de Bolsonaro não detalhou para os policiais o restante de sua programação nos Estados Unidos, mas seu roteiro lança luz sobre um rol de propriedades milionárias compradas e registradas em nome de sua família nos últimos anos em solo americano.

A começar pelo endereço principal que seria visitado na viagem à Califórnia, uma mansão de US$ 1,7 milhão (nada menos que R$ 8,5 milhões) onde vive seu irmão, Daniel Cid, um outro personagem do clã que também que já caiu na malha da Polícia Federal e do STF por envolvimento na difusão de fake news em favor de interesses bolsonaristas.

A mansão e o “trust”

A mansão está registrada oficialmente como propriedade de um trust de nome sugestivo: “Cid Family Trust”.

A propriedade tem um grande jardim e vista para as colinas que cercam a cidade. A paisagem estonteante foi registrada pela filha de Mauro Cid em um post publicado nas redes sociais em 13 de janeiro deste ano.

No ordenamento jurídico americano, trusts são um instrumento legal que permite a proprietários de bens, sejam eles fundos de investimento ou imóveis, deixarem a tutela do patrimônio a cargo de pessoas de confiança (daí vem o nome, em inglês), que ficam a cargo de administrá-lo.

Trata-se de um modelo bastante usado, por exemplo, para blindar patrimônios de eventuais problemas judiciais e garantir sua transferência futura para quem o proprietário original indicar. Os donos reais, as pessoas físicas, não aparecem nos registros oficiais — foi preciso cruzar os dados com outras fontes para descobrir que Daniel está ligado aos negócios.

Os trusts também são uma forma de obter benefícios fiscais e, ao mesmo tempo, um recurso que figuras conhecidas da política brasileira, como o notório Eduardo Cunha, já utilizaram para garantir mais privacidade — e menos transparência, por óbvio — para suas transações.

No caso em questão, a mansão registrada em nome da Cid Family Trust fica em Temecula, cidade vinícola encravada no sul da Califórnia, a cerca de 130 quilômetros de Los Angeles.

A mansão faz parte de investimentos feitos pela família Cid nos últimos anos / Reprodução

Cruzamento de dados aponta elo entre Daniel Cid e o Cid Family Trust / Reprodução

Cinematográfica, a propriedade (veja acima galeria de fotos) foi registrada em nome do trust em 2019. Tem 438 metros quadrados de área, com cinco quartos, quatro salas e uma confortável área de lazer que inclui piscina e fireplace. Em dois documentos americanos, junto ao nome do trust aparece também o nome do irmão do tenente-coronel que era ajudante de ordens de Jair Bolsonaro.


Mais propriedades

Pelo menos desde o ano de 2019, o trust da família Cid passou a ser dono, ainda, de outra casa, menor, avaliada em R$ 2,2 milhões e localizada na mesma cidade. Antes, o imóvel estava em nome de Daniel, como pessoa física. O irmão do tenente-coronel também aparece ligado a um terceiro imóvel em Temecula, vendido recentemente por ele pelo equivalente a R$ 3,3 milhões.

Segundo os registros oficiais do condado de Riverside, onde fica Temecula, foi no mês de março do primeiro ano do governo Bolsonaro que o principal bem, a mansão, foi posto em nome do trust.

Ainda em Temecula, na Califórnia, o Cid Family Trust tem esta outra casa, avaliada em R$ 2,2 milhões / Reprodução

Atravessando a América, em Miami, o irmão de Mauro Cid comprou outro imóvel, em 2020 / Reprodução


A casa comprada na Flórida fica dentro de um condomínio fechado, o Doral Isles Martinique / Reprodução

No site oficial do governo de Miami Dade, o bem está avaliado em cerca de R$ 2 milhões / Reprodução

A casa tem 4 quartos, em dois andares, e está registrada no nome do irmão do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro / Reprodução

A propriedade teve uma valorização considerável nos últimos anos. Sites especializados estimam que, atualmente, ela valha mais de US$ 2,2 milhões — algo próximo a R$ 11 milhões.

A aquisição mais recente de Daniel Cid é uma casa em Miami, na Flórida: uma unidade no Doral Isles Martinique. Segundo os serviços de pesquisa imobiliária, o imóvel foi comprado em agosto de 2020. No site oficial do governo de Miami Dade, o bem está avaliado em cerca de R$ 2 milhões e registrado fora do trust, em nome do próprio irmão do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. São quatro quartos, em dois andares, dentro de um condomínio privativo da cidade.

Nos Estados Unidos, o irmão de Mauro Cid fez, nos últimos anos, uma série de movimentações — inclusive financeiras e societárias — que chamam atenção.

Daniel Cid

O irmão “nerd” e a milícia digital

Até o ano passado, Daniel era apenas mais um brasileiro vidrado em tecnologia que fez carreira no setor de segurança digital na Califórnia. Quando começou a lançar mão das habilidades para ajudar Jair Bolsonaro na tentativa de fraudar as eleições e a disseminar mentiras sobre a pandemia de Covid-19, no entanto, ele entrou no radar da polícia e do STF.

Daniel Cid foi o criador e administrador do “brasileiros.social”, uma página virtual hospedada fora dos servidores tradicionais e ilustrada com a bandeira do Brasil. Foi nesse mesmo site que foi parar uma cópia de um inquérito sigiloso da PF alardeado em uma “live” pelo ex-presidente — na companhia do tenente-coronel Cid — para supostamente “provar” a manipulação do sistema eleitoral, segundo a delegada federal Denisse Ribeiro. O caso virou um inquérito que ainda tramita no Supremo.

O irmão de Mauro Cid chegou a ser ouvido pela PF. E confessou, à época, que “já realizou o procedimento de colocar no ar link relacionados a arquivos em formato PDF a pedido do seu irmão Mauro Cid, umas 5 ou 6 vezes”.

Em depoimento à PF, Daniel disse ter ajudado o irmão "subindo" documentos na internet. O pedido teria sido feito pelo próprio ajudante de ordens de Bolsonaro.

Daniel Cid: o irmão de Mauro Cid mora com a família na Califórnia. Ele é programador de internet, já vendeu startup e trabalhou para grandes empresas do setor, nos EUA / Reprodução


Daniel gerenciou uma página usada por Bolsonaro para replicar fake news / Reprodução

Jair Bolsonaro fez discurso sem respaldo científico, embasado em material hospedado em site de irmão de Mauro Cid / Reprodução

Em depoimento à PF, Daniel disse ter ajudado o irmão "subindo" documentos na internet. O pedido teria sido feito pelo próprio ajudante de ordens de Bolsonaro / Reprodução

Para quem pesquisa na internet, há inúmeras outras menções relacionando posts de Bolsonaro com documentos publicados no site de Daniel, como em 15 de janeiro de 2021, quando uma corrente virtual do ex-presidente no aplicativo Telegram publicou um arquivo PDF atrelado a um texto: “Estudos clínicos demonstram que o tratamento precoce do Covid funcionam (sic!)”. Ou seja, vários posts bombásticos com possíveis mentiras propagadas por Bolsonaro tinham como fundamento documentos manuseados por Daniel.

Daniel Cid foge do perfil usual de parentes de assessores da família Bolsonaro flagrados pelas autoridades brasileiras em supostos esquemas das chamadas “rachadinhas”. Já trabalhou em grandes empresas de tecnologia. Em 2017, vendeu uma startup chamada Sucuri para a hospedeira e criadora de websites GoDaddy. O valor da negociação não é público.

Empresa em paraíso fiscal

No ano seguinte, em 2018, veio a eleição presidencial brasileira. Ainda na transição, em 28 de novembro, Mauro Cid foi nomeado para o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, o GSI. Pouco depois, em 13 de dezembro, ele já assumia o posto de ajudante de ordens do então futuro mandatário.

Foi logo após esse período que o irmão do então ajudante de ordens fez Daniel outra mudança na engenharia de seus negócios. Em setembro de 2020, ele transferiu uma empresa que tinha na Califórnia, a CleanBrowsing, para Delaware, conhecido como um paraíso fiscal dentro dos Estados Unidos, como mostrou, em novembro do ano passado, o jornalista Lúcio de Castro.

Embora seja regida pela legislação de Delaware, o escritório de administração da firma fica no estado do Texas. Nos sites de busca, no endereço declarado aparece apenas uma agência postal.

Mudanças como essa podem acontecer por questões tributárias, mas, invariavelmente, deixam mais restritas as informações financeiras da companhia, facilitando, eventualmente, a incorporação de dinheiro de fonte incerta nos negócios.

As investigações

Dentre as várias investigações que incluem direta ou indiretamente o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, algumas envolvem lavagem de dinheiro, como o Metrópoles mostrou em janeiro, em reportagem que acabou resultando no cancelamento da nomeação de Mauro Cid para o comando de um batalhão de forças especiais com sede em Goiânia e na queda do então comandante do Exército.

Mensagens encontradas pela PF no celular do tenente-coronel revelam remessas de dinheiro para o exterior. Os investigadores pretendem recorrer a acordos de cooperação com as autoridades americanas para avançar sobre essas transações. Eles também tentarão obter dados sobre a conta bancária que Mauro Cid mantinha na Flórida, de onde podem ter saído os 35 mil dólares encontrados na casa dele em Brasília, na semana passada.

O pai dos irmãos Cid, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, é amigo antigo de Bolsonaro e foi nomeado no governo passado para chefiar o escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportação e Investimentos, a Apex, em Miami. Recebia, no posto, um polpudo salário em dólares. Colega de turma de Bolsonaro na academia de formação de oficiais, Lourena Cid perdeu o cargo no início do mandato de Lula.

O Metrópoles tentou contato com Daniel Cid e com advogados do tenente-coronel Mauro Cesar Cid, mas até o momento não houve resposta.

Arthur Guimarães, o autor, é repórter investigativo do saite Metrópoles. Publicado originalmente em 10.05.23 

STF conclui julgamento e derruba indulto concedido por Bolsonaro a Daniel Silveira

Tribunal decidiu, por oito votos a dois, que medida configurou 'desvio de finalidade'

O então presidente Jair Bolsonaro entrega a Daniel Silveira cópia do indulto concedidoO então presidente Jair Bolsonaro entrega a Daniel Silveira cópia do indulto concedido Cristiano Mariz/Agência O Globo/27-04-2022

O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou nesta quarta-feira que foi inconstitucional o decreto de indulto individual concedido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB) em abril de 2022. A decisão foi tomada por oito votos a dois. Prevaleceu o voto da presidente do STF, ministra Rosa Weber, que foi relatora do caso e considerou que a medida editada por Bolsonaro representou um "desvio de finalidade".

E agora? Saiba o que acontece com Daniel Silveira após derrubada do indulto concedido por Bolsonaro

Após quatro sessões, o julgamento foi concluído nesta quarta com os votos dos minitros Luiz Fux e Gilmar Mendes, que seguiram a posição de Rosa Weber. Na semana passada, a maioria já havia sido garantida com os votos de Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. A divergência ficou por conta dos ministros André Mendonça e Nunes Marques, indicados por Bolsonaro.

Parlamentar foi preso por descumprimento de medidas cautelares determinadas pelo STF, após se tornar réu por manifestações antidemocráticas

Em abril do ano passado, Daniel Silveira foi condenado pelo STF a oito anos e nove meses de prisão após dar declarações contra os integrantes da Corte e as instituições democráticas. Na ocasião, o ministro Alexandre de Moraes determinou a perda do mandato político de Silveira e aplicação de multa de 35 dias de cinco salários mínimos, o equivalente a R$ 192 mil.

O anúncio da graça presidencial foi feito por Bolsonaro em uma transmissão ao vivo menos de 24 horas após a conclusão do julgamento no STF. Minutos depois, o texto foi publicado em edição extra do Diário Oficial da União (DOU).

Com a derrubada do indulto concedido, volta a valer a pena determinada pela Corte. O cumprimento desta sanção, no entanto, não é imediato e somente deverá se dar após o julgamento, pelo STF, dos segundos embargos de declaração, um tipo de recurso contra a condenação.

Apesar disso, Silveira está preso preventivamente desde fevereiro, mas por descumprir medidas cautelares impostas pelo STF. A prisão preventiva serve para garantir o andamento do processo e é diferente do cumprimento da pena.

'Peça vulgar'

Em seu voto, o ministro Gilmar Mendes afirmou que, por trás do decreto de Bolsonaro, havia "uma peça vulgar de puro proselitismo político" que validava os atos de Silveira.

— Não é preciso ter grande imaginação para ver que por trás da pomposa invocação de uma competência privativa do poder Executivo para perdoar a pena do ex-parlamentar há uma peça vulgar de puro proselitismo político, cujo efeito prático é o de validar expedientes subversivos praticados pelo agraciado em detrimento do funcionamento de instituições centrais da democracia.

Luiz Fux afirmou que crimes contra o Estado Democrático de Direito não podem ser objeto de anistia.

— Entendo que crime contra o Estado Democrático de Direito é um crime político e impassível de anistia, porquanto o Estado Democrático de Direito é uma cláusula pétrea que nem mesmo o Congresso Nacional, através de uma emenda, pode suprimi-la.

Histórico de prisões

O ex-deputado foi preso pela primeira vez, por determinação de Moraes, em fevereiro de 2021, após ter divulgado um vídeo no qual proferia ataques e ofensas aos ministros da corte. Um mês depois, o ministro concedeu prisão domiciliar a Silveira.

Em junho daquele ano, no entanto, Moraes apontou violações do monitoramento eletrônico e voltou a determinar a prisão. Em novembro, o ministro revogou a prisão e ordenou medidas cautelares, que estavam valendo até fevereiro, quando houve nova prisão.

Daniel Gullino, de Brasília - DF para O Globo, em 10.05.23.

O relógio de Lula

Ignorando o eleitor que votou nele apenas para impedir a reeleição de Bolsonaro e desrespeitando decisões soberanas do Congresso, o presidente quer fazer o Brasil voltar no tempo

O petista Lula da Silva parece não ter entendido por que foi eleito presidente da República. Ao tentar reverter no tapetão a privatização da Eletrobras, pouco depois de ter buscado, por decreto, destruir o Marco do Saneamento para favorecer estatais ineficientes do setor, Lula desrespeita ao mesmo tempo o Congresso e os muitos eleitores que nele votaram não por simpatizarem com a embolorada agenda lulopetista, mas apenas para impedir que Jair Bolsonaro se reelegesse.

No discurso, Lula da Silva se opõe às privatizações porque as considera “um crime de lesa-pátria”, como classificou o caso da Eletrobras, “um patrimônio deste país”, segundo disse. Na prática, contudo, muitas estatais servem como cabide de emprego para arregimentar apoio político, fundamental para um governo incompetente na articulação com o Congresso, e de quebra para acomodar sindicalistas companheiros. Por isso, quanto mais estatais, melhor para os estatólatras.

A afronta de Lula ao que foi decidido pelo Congresso com relação à Eletrobras e ao setor de saneamento básico não passou despercebida pelas lideranças parlamentares.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, classificou como “preocupante” a fixação do presidente em reverter a privatização da Eletrobras no Supremo Tribunal Federal. À CNN Brasil, Lira afirmou que Lula tem todo o direito de não propor mais privatizações em seu governo, “mas mudar um quadro que já está jogado e definido, e com muitos grupos, muitos países investindo, realmente causa ao Brasil uma preocupação muito forte”. Trata-se de constatação óbvia: mudar as regras do jogo de supetão, sem justificativa outra que não seja a adição petista à máquina estatal, amplia a sensação de que contratos no Brasil não valem o papel em que são escritos.

Já o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, lembrou que a privatização da Eletrobras “foi algo muito debatido na Câmara e no Senado”, que o novo status da empresa “é uma realidade” e que seria “mais útil ao Brasil” discutir reforma tributária e o novo regime fiscal.

Mas Lula é incapaz de vencer sua natureza autoritária, convenientemente camuflada pelo figurino do democrata que se apresentou como contraponto ao golpismo bolsonarista. Bastaram alguns meses de governo para se perceber que Lula, sem qualquer pudor, quer impor o atraso petista na marra, recorrendo ao Judiciário para tentar desfazer o que foi decidido pelo Congresso, em particular no que diz respeito às estatais. Não foi à toa que o lulopetismo, por meio de seus aliados, ajudou a fazer carga contra a Lei das Estatais, que acabou com a esbórnia das nomeações políticas para essas empresas, justamente em resposta aos escândalos da trevosa era petista.

Ademais, os brasileiros moderados que foram decisivos para a vitória de Lula não votaram para reverter a reforma trabalhista, como ainda acalentam os petistas, nem para enterrar a reforma do ensino médio e, menos ainda, para fazer letra morta da Lei de Responsabilidade Fiscal, como fica claro na proposta de novo regime fiscal.

Passar uma borracha por cima dessas conquistas, é preciso deixar bem claro, é uma agenda histórica do PT e de partidos coligados, não o desejo da maioria dos eleitores que votaram por uma composição do Congresso que claramente não se coaduna com o ímpeto revisionista que anima o Palácio do Planalto.

Lula nem ao menos pode dizer que as “revisões” que ele propõe para marcos legislativos que mal se consolidaram, como é o caso da privatização da Eletrobras, serviriam para melhorar esses projetos, eliminando, por exemplo, muitos “jabutis” que foram aprovados a reboque deles. Quando fala em reverter a privatização da Eletrobras, Lula está movido apenas pelo desejo de desfazer tudo o que foi feito depois da estrepitosa ruína petista, marcada por escândalos de corrupção, por uma brutal recessão e pelo justíssimo impeachment de Dilma Rousseff. Lula quer fazer o relógio do Brasil andar para trás. Cabe ao Supremo dizer a ele que isso não pode.

Editorial /Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, 10.05.23

A derrota de Boric no Chile mostra os limites da esquerda e das escolhas de Lula no Brasil

Petista devia prestar atenção às razões que levaram a extrema direita a vencer eleição no Chile e aos motivos de Macron tratar a memória da resistência francesa como dever cívico


O ainda pré-candidato à presidência Lula foi recebido por Macron para tratar das mudanças climáticas e do futuro da União Europeia e a integração da América Latina Foto: Ricardo Stuckert/PR

Quando Emmanuel Macron decidiu ir na segunda-feira, 8, ao memorial da antiga prisão de Montluc, em Lyon, onde Jean Moulin foi preso e torturado pelos nazistas, o chefe de Estado francês associou a figura do líder da resistência à do historiador Marc Bloch, deportado e morto pelos alemães. “Moulin e Bloch nos dizem que a República francesa não é, por definição, boa ou má; ela é necessária, vital e justa. Tenhamos confiança em nós e no que vai se seguir.”

Moulin foi preso em 21 de junho de 1943. Torturado pela Gestapo, não falou. Morreu quando o levavam para a Alemanha. Acostar Moulin a Bloch na comemoração do fim da guerra na Europa tem uma razão. Macron pretende não ser apenas julgado, mas compreendido.

Bloch acreditava que a ciência histórica se consumava na ética. “A história deve ser verdade; o historiador se realiza como moralista, um justo”, escreveu Jacques Le Goff sobre o autor de Apologia da História. “Ele procura a verdade e a justiça não fora do tempo, mas no tempo.” Compreender, no entanto, nada tem de passividade. A receptividade passiva só nos leva a negar o tempo e, por conseguinte, nossa própria história.

Acossado pelos protestos por ter feito uma reforma da Previdência que julga necessária e justa, Macron governa em uma Europa conflagrada. As disputas políticas se inflamam na França ao mesmo tempo em que Putin retoma os sonhos imperiais russos. O francês enfrenta essa dupla prova. E resiste.

No Brasil, Lula assiste a tudo como se nada tivesse a aprender. A esquerda petista sonhava com um estalido no Brasil como o que convulsionou o Chile. Agora, ao lado de Lula, vê ali o triunfo da extrema direita na eleição para a nova Constituinte, resultado da tentativa de impor ao país um pensamento identitário, como se a antipolítica do estalido fosse força hegemônica e não circunstancial.

A lição de Macron vai além da coragem para resistir. Ela mostra que onde a memória é um dever cívico, a Ucrânia não é mais distante, nem um capricho. Nela cresce a história, que se alimenta da memória para salvar o passado a fim de servir ao presente e ao futuro. A memória torna fácil compreender que o sentido da República é a liberdade. E esta nunca está ao lado de quem se nega a viver os desafios de seu tempo.

Marcelo Godoy, o autor deste artigo, é colunista d'O Estado de S. Paulo. Publicado originalmente em 10.05.23.

George Santos, deputado brasileiro nos EUA, é preso acusado de lavagem de dinheiro

Segundo o Departamento de Justiça americano, Santos se apresentou para a audiência em um tribunal de NY e foi colocado ‘sob custódia federal’

O deputado americano George Santos foi preso na manhã desta quarta-feira, 10 (Foto: Andrew Harnik/ AP)

O deputado americano de origem brasileira George Santos foi preso acusado de lavagem de dinheiro e outros crimes federais nesta quarta-feira, 10, antes de uma audiência no tribunal de Nova York.

Santos terá de responder à sete acusações relacionadas à fraude eletrônica, três de lavagem de dinheiro, uma de roubo de fundos públicos e duas por fazer declarações falsas à Câmara dos Deputados, segundo o jornal americano The New York Times.

George Santos: defensor de pautas conservadoras participou de concursos de drag queen no Brasil

A acusação diz que Santos induziu apoiadores a doar para uma empresa sob o falso pretexto de que o dinheiro seria usado para apoiar sua campanha. Em vez disso, diz, ele o usou para despesas pessoais, incluindo roupas de grife de luxo e para pagar seus cartões de crédito.

Santos, que se tornou conhecido por mentir no currículo antes de se eleger deputado por NY no ano passado, tem problemas com a Justiça brasileira, inclusive inquéritos por estelionato tramitando na Justiça do Rio de Janeiro.

Na terça, Santos disse à Associated Press que as acusações eram desconhecidas por ele. “Isso é novidade para mim”, afirmou.

Santos admitiu ter mentido sobre ter ascendência judaica, formação em Wall Street, diploma universitário e um histórico como estrela do vôlei.

O procurador federal, Breon Peace, disse que as acusações “buscam responsabilizar Santos por vários esquemas fraudulentos e deturpações descaradas”.

“Em conjunto, as alegações acusam Santos de agir em repetidas desonestidades e enganos para chegar aos salões do Congresso e enriquecer”, disse Peace.

Republicanos sabiam de mentiras de George Santos, mas fizeram vista grossa, diz jornal

O republicano enfrenta pressão de seus correligionários e eleitores, que já pediram sua renúncia. Em março, o Comitê de Ética da Câmara abriu uma investigação contra o congressista. A comissão vai investigar eventuais atividades ilegais em sua campanha, possíveis violações de leis federais na atuação dele em uma empresa e a denúncia de assédio feita por um assessor que trabalhou em seu gabinete.

A rede de mentiras de George Santos

Entre outras alegações, Santos disse ter diplomas da Universidade de Nova York e do Baruch College, apesar de nenhuma das instituições ter registro de sua frequência. Ele alegou ter trabalhado no Goldman Sachs e no Citigroup, o que também não era verdade.

Ele disse falsamente que era judeu e que seus avós escaparam dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Santos, que se identifica como gay, também não revelou que foi casado com uma mulher por vários anos, terminando em 2019.

(AP, NYT e W.Post). Publicado originalmente no Brasil pelo O Estado de S. Paulo, em 10.05.23, às 10h40. Atualização: 10/05/2023 | 11h02

segunda-feira, 8 de maio de 2023

O medo do populismo reacionário não é mais assustador

A política tradicional — conservadora e progressista — deve se rearmar de forma inteligente para confrontar uma opção que oferece esperança imediata, um atalho rápido e soluções fáceis e diretas.

É difícil lutar contra o que não é compreendido. E a tentação de usar um repertório esgotado e insuficiente de temas para analisar e competir com novos fenômenos faz parte da incapacidade da política formal e tradicional. É o caso da irrupção avassaladora de atores políticos difíceis de classificar, como os libertários na Argentina ou os republicanos no Chile. Como é fácil reduzi-los a tópicos e rotulá-los de extrema direita! Mas a realidade ⎯teimosa⎯ é mais complexa. Ambos os projetos perseguiram a direita tradicional e a encurralaram com entusiasmo e audácia renovados.o que os torna muito atraentes para uma ampla gama de eleitores: desde os mais conservadores até amplos setores de jovens que, onde a política tradicional vê a involução reacionária, eles veem a inovação revolucionária.

E eles crescem em uma esquerda que continua a olhar para essas realidades do ponto de vista da arrogância intelectual e da superioridade moral. Essa esquerda, por incapacidade ou comodismo, prefere usar o catálogo do medo ⎯com todas as suas variantes⎯ para alertar e afugentar os eleitores do poderoso apelo desse tipo de populismo tão eficaz. “Nós – a esquerda, os acadêmicos, os professores – deixamos a política nas mãos daqueles para quem o poder real é muito mais interessante do que suas implicações metafóricas”, escreveu Tony Judt em The Refuge of Memory .

Em vez de compreender o seu magnetismo e a sua linguagem sedutora e enquadramento formal e estético, a preguiça intelectual prefere o cliché “Eles não vão passar!”, como se esta nova direita fosse um ressurgimento dos reaccionários do século passado. Mas o medo não é mais assustador. Ou pelo menos não como o único mobilizador do anti voto.

Estas podem ser as razões pelas quais este recurso é inútil e outros caminhos devem ser explorados se se quiser competir -e conquistar- uma expressão política difícil de classificar.

1. A autopercepção do negativo. Para muitos eleitores que vivem ⎯ou sentem⎯ que seu metro quadrado, suas expectativas presentes (e muito mais as futuras) não têm horizonte de melhora, a fronteira entre ser ruim ou muito ruim não é mobilizadora. Para quem não tem nada, o que significa ser pior? Para aqueles que consideram que seu mundo está perdendo ou sendo ignorado pela política tradicional, o medo significa outra coisa. Como podem ser piores do que já são?

2. A falta de cultura política. A banalização do fascismo, a relativização moral e a falta de uma cultura democrática profunda transformam a história perigosa da direita radical em uma história superficial. Existem dados impressionantes. De acordo com o último Latinobarômetro , um em cada cinco menores de 25 anos preferiria um sistema autoritário.

3. A história não está presente. O peso e os ensinamentos da história estão cada vez mais ausentes de nossas vidas. O desconhecimento dos factos, o distanciamento dos mesmos, a falta de testemunhos valorizados e a perda de sentimentos de culpa ou dívida, fazem com que a ameaça reaccionária (do passado) não surta efeito na consciência dos eleitores. A história não é mais uma herança a ser preservada, cuidada ou valorizada. A oferta autocrática ou radical não é sentida como uma ameaça por ignorar o passado. O elo das relações causais foi perdido.

4. A naturalização do excesso. O populismo radical polariza, divide, ataca e não hesita em usar a linguagem como arma de guerra. O insulto ou grosseria faz parte de uma pose desafiadora descarada que estimula o pente verbal e é vista por muitos eleitores como uma expressão de raiva legítima, bravura ou extrema sinceridade. Assim, a linguagem politicamente correta é desafiada pelo desabafo que se apresenta como sinal de audácia revolucionária. Cada vez mais, disparates ou provocações embranquecem posições extremas e radicalizadas. Eles não são vistos como radicais, mas como histriônicos, na melhor das hipóteses. E eles tendem a se desculpar. Na sociedade de gritos, insultos ou mentiras simplesmente parecem mais altos.

5. Sem culpa. Muitos eleitores se atrevem a compartilhar ideias, questões e conteúdo abertamente radicais e reacionários. Mas esses cidadãos não se sentem direitistas ⎯muito menos fascistas⎯, não se sentem questionados ou envergonhados pela identificação acusatória de uma suposta identidade reacionária. Esses rótulos perderam o significado para eles. E podem até se tornar um argumento de afirmação e combate. "Se ser da direita é isso... bem, eu sou da direita!", pensam consigo mesmos.

Competir com o novo com a lógica do passado é melancólico e inútil. A política tradicional ⎯conservadora e progressista - deve se rearmar inteligentemente para enfrentar um populismo reacionário que não assusta, ainda que nos escandalize. Esse populismo oferece esperança imediata, atalhos rápidos e soluções fáceis e diretas. O que mais você pode pedir quando o futuro não é mais superior e o presente é decepcionante ? Quando o medo do desconhecido é menor que o medo ⎯e a desesperança⎯ do que já se sabe... a possibilidade do impensável irromper é mais certa do que podemos imaginar.

Antoni Gutiérrez-Rubi, o autor deste artigo é jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS, em 07.05.23

Verdadeiro plano do lulismo tem três frentes

O verdadeiro plano do lulismo tem três frentes complementares: 1) Reescrever o capítulo corrupção; 2) Retomar controle das estatais; 3) Controlar imprensa e redes sociais.

O método da frente 1 é demonizar juízes e procuradores para emplacar a tese da “criminalização da política”, desviando para questões processuais o foco das relações financeiras e imobiliárias de Lula e seus pares com empresas que, em seus governos, receberam contratos públicos e praticaram suborno.

Apesar de decisões judiciais favoráveis a petistas (à exceção, por enquanto, de José Dirceu, condenado em três instâncias por corrupção na Petrobras) e aliados (até Sérgio Cabral teve anulada pelo juiz Eduardo Appio, o “LUL22”, uma condenação imposta por Sergio Moro), a frente 1 busca consolidar narrativas de Lula na sociedade, pois, como ele ouviu de uma jornalista americana, “metade do Brasil o despreza”. Essa metade põe em risco futuras eleições e pressiona o Congresso contra as frentes 2 e 3.

A frente 2 busca: a) Afrouxamento da Lei das Estatais, aprovado na Câmara, mas, diante da repercussão negativa, pendurado no Senado e no STF. Lá, porém, a liminar de Ricardo Lewandowski pelo fim da quarentena para indicações político-partidárias, seguida em julgamento por pedido de vista de Dias Toffoli garante que o governo vá nomeando políticos para empresas públicas, o que dificulta impedimento futuro em caso de definição contrária.

b) Alterações no Marco do Saneamento, para garantir vantagens a estatais em contratos. Os decretos do governo, no entanto, foram derrubados na Câmara por motivos bons (pressão de opinião pública e iniciativa privada; repúdio a mudanças sem projeto de lei) e ruins (insatisfação com ‘toma lá, dá cá’).

c) Retomada do controle da Eletrobras, por ação da AGU no STF para derrubar termos que limitaram influência da União; e pressão de Lula, que se recusa a negociar enquanto não forem substituídos executivos atuantes na privatização.

A frente 3 inclui de recusas similares a quem emprega jornalistas incômodos a escambos com verbas de publicidade e itens de interesse de veículos em projetos de lei, como a remuneração para conteúdo jornalístico prevista no PL 2630. Em relação às redes, a frente 3 apresentou regras convenientes, tentou garantir o controle do órgão fiscalizador, reagiu à posição do Google via Senacon e Cade, e celebrou sua remoção por Alexandre de Moraes. Mas perdeu, por ora, com o adiamento da votação.

O autoritarismo lulista está aí – só não vê a metade do país que não quer.l

Felipe Moura Brasil , o autor deste artigo, é Jornalista. Escreve semanalmente para O Estado de S. Paulo, toda segunda-feira. Publicado originalmente em 08.05.23.

Política externa ideologizada

Diante das manifestações do presidente da República, o que pode bem significar esta nova reinserção internacional do País?


Ucrânia invadida e atacada pela Rússia

Atão propalada reinserção do Brasil no mundo, liderada pelo novo presidente da República, está se revelando uma nave sem rumo, cuja única bússola consiste num regresso a ultrapassadas ideias de esquerda. O ranço fica tão evidente que o próprio presidente fica dizendo e se desdizendo o tempo todo, numa mistura de desconhecimento do mundo, talvez de má-fé, sob a ótica de uma espécie de anti-imperialismo. Isso o leva a alianças as mais esdrúxulas, como o alinhamento à China comunista, ao imperialismo regional russo, de extrema direita, mas recuperando o passado stalinista e czarista. Aliás, como dizia Hannah Arendt, os totalitarismos desconhecem as distinções de esquerda e direita, compartilhando determinações essenciais. Isso sem falar em suas afinidades eletivas com Venezuela, Cuba e Nicarágua. Manifestase, assim, o mesmo desprezo pelos valores da democracia e da liberdade.

A reinserção seria especialmente bem-vinda, considerando o desprezo da política bolsonarista pelo meio ambiente influenciando negativamente a imagem brasileira no mundo. Surgiu uma espécie de aliança contra o País, como se tivéssemos nos tornado responsáveis por todos os males ambientais do Planeta, quando sabemos que boa parte dessas críticas provinha de países rivais do agronegócio brasileiro. Em todo caso, a percepção americana e europeia era essa. Acrescente-se a canhestra tentativa de golpe do dia 8 de janeiro, para dar a Lula todo um verniz de simpatia e, mesmo, de democrata. Ora, é todo esse capital que Lula e sua política externa estão rapidamente pondo a perder.

Um Estado, para afirmar-se no mundo, precisa defender seus próprios interesses, mormente comerciais, conforme uma visão geopolítica que o insira como um ator diplomaticamente respeitável. Não pode alinhar-se politicamente a outros países se isso vier a lhe criar um prejuízo qualquer. Eis por que necessita de um corpo diplomático preparado e de Forças Armadas que mostrem aos outros a sua capacidade de mobilização e de dissuasão. Isso significa que deve negociar com qualquer país, independentemente de suas respectivas posições ideológicas. Ou seja, deve negociar com EUA, China, Europa, África, países asiáticos e do Oriente Médio, para além da vizinhança latino-americana, sem nenhum tipo de preconceito. Daí não se segue, porém, que deva seguir a geopolítica chinesa ou russa, por exemplo, ou privilegiar os hermanos latino-americanos por serem de esquerda.

A equalização estabelecida pelo presidente Lula entre a Rússia e a Ucrânia como igualmente responsáveis pela guerra é estarrecedora. O invasor e o invadido são tidos por iguais, numa justificativa inqualificável da invasão russa. Termina ele, assim, tomando para si a ideologia da Grande Rússia, como se esse país estivesse apenas recuperando uma província sua, subsequente ao desmoronamento da União Soviética. Tal política é de subserviência dos ucranianos, que deveriam estar subordinados ao seu vizinho, supostamente seu mentor e protetor. A ideologia russa, tão bem esboçada por Alexander Dugin, é um prolongamento, em diferentes matizes e nuances, das que guiaram o império dos czares e dos comunistas, com proeminência dada a Stalin. Não foi a Crimeia o motivo da guerra, quando mais não seja por estar já ocupada. Tampouco um pleito de ingresso da Ucrânia na Otan, naquele então não aceito por boa parte dos países europeus, em especial pela Alemanha. Não era uma questão de horizonte imediato, longe disso.

Agora, que Lula se posicione como mediador, defendendo – pasmem – que os países europeus não vendam armas à Ucrânia, para não incentivar a guerra, é um evidente despropósito, pois significaria simplesmente a rendição total desse país. A Rússia certamente ficou muito satisfeita com tal proposta. Chegou a enviar ao Brasil o seu ministro de Relações Exteriores!

Outra pérola geopolítica foi sua declaração de que a ONU, tendo criado o Estado de Israel, deveria fazer o mesmo em relação ao Estado palestino. Ignorância ou má-fé?

Em 1947, a ONU votou pela partilha da Palestina, então sob mandato britânico. A partilha significava a coexistência de dois Estados. A propósito, o outorgado ao Estado judeu foi uma parte menor do que a aspiração dos seus fundadores. O que aconteceu? Foram os árabes – não havia na época a denominação de palestinos – que não aceitaram criar o seu o seu próprio Estado, optando por uma guerra de extermínio do jovem Estado hebreu. Israel criou o seu próprio Estado em 1948, tendo resistido à união dos Estados árabes vizinhos que simplesmente visavam ao seu extermínio. O mufti de Jerusalém, inclusive, apregoava, em seus discursos e conclamações, a destruição pura de simples dos judeus, que deveriam ser jogados ao mar. Já se tinha destacado na guerra por seu antissemitismo, tendo vivido em Berlim, apoiado e financiado por Hitler e como amigo de Himmler. Chegou a visitar Auschwitz a convite de Eichmann.

Logo, o que pode bem significar esta nova reinserção internacional do Brasil? •

Denis Lerrer Rosenfield, o autor deste artigo, é Professor de Filosofia na UFRGS. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 08.05.23

Solidários na desfaçatez

Petistas e bolsonaristas esquecem as diferenças quando se trata de interesses em comum, como a PEC que anistia partidos que burlaram as regras do fundo eleitoral para mulheres e negros

Este jornal já chamou a atenção para um fato incontornável: os partidos políticos, como todas as organizações privadas, devem se sustentar por meio de recursos financeiros privados. Esse dinheiro pode vir de doações feitas por eleitores, além de filiados, que se sintam representados pelos valores e agendas programáticas que cada partido defende para o País. Tão mais vibrante será nossa democracia representativa quanto mais sólida for a conexão entre eleitores e legendas.

Os partidos, porém, são recalcitrantes em reconhecer a realidade. Essa postura pode ser motivada por comodismo. Afinal, para que trabalhar pela aproximação com eleitores que possam se tornar doadores no futuro se o dinheiro líquido e certo do Orçamento da União entrará na conta dos partidos, incondicionalmente, todos os meses? Pode, também, ser inspirada por interesses inconfessáveis.

O fato é que, historicamente, os partidos têm usado a força óbvia que têm no Congresso para apresentar, de tempos em tempos, projetos de lei e emendas à Constituição que não apenas mantêm o status quo, qual seja, a quase exclusividade de fontes de financiamento público para as legendas e as campanhas eleitorais, como aprofundam essa relação de dependência do erário por interesses paroquiais.

A mais nova ação de socorro financeiro aos partidos à custa dos contribuintes – e por “nova” entenda-se que decerto não será a última – uniu até petistas e bolsonaristas no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados. Essa união improvável revela que, quando se trata de salvaguardar o cofre dos partidos, não há ideologia no mundo capaz de distinguir os parlamentares brasileiros.

É na CCJ da Câmara que está em deliberação a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 9/2023, que estende até as eleições gerais de 2022 a anistia concedida aos partidos que, nas eleições municipais de 2020, burlaram as regras de distribuição de recursos do fundo eleitoral entre candidaturas de mulheres e negros. Caso esse autoperdão seja aprovado, os partidos ficarão isentos do pagamento de multas milionárias, além de outras punições que podem ser impostas a seus dirigentes.

É espantoso, mas não surpreende, que o PT, logo o partido que se apresenta à sociedade como o grande defensor das cotas para mulheres e negros nas mais variadas esferas da vida nacional, não só descumpriu a regra que previa a destinação de 30% dos recursos do fundo eleitoral para aquelas candidaturas, como agora, de mãos dadas com os bolsonaristas, não hesitou em pugnar pela manutenção da PEC 9/2023 na pauta da CCJ, um esforço concentrado multipartidário que garantiu a sobrevida da proposta por 38 votos a 12. “Não é apenas com multa e punições que será assegurada a participação de mulheres e negros (nas eleições)”, disse a presidente do partido, Gleisi Hoffmann (PT-PR).

A deputada petista está em perfeita sintonia com seu colega de Câmara e presidente do Republicanos, Marcos Pereira (SP). Em entrevista ao Valor, no dia 28 passado, Pereira construiu o argumento que decerto será seguido por seus pares que não tenham pruridos em manifestar misoginia e preconceito. Segundo ele, o “descumprimento de determinadas regras” ocorre porque, ora vejam, “não tem mulheres com voto, infelizmente, para poder disputar no nível que a legislação (eleitoral) exige”.

Outra aberração é o fato de a anistia, mais uma, recair sobre a burla de regras que os próprios congressistas aprovaram há não muito tempo em processo legislativo absolutamente regular.

A PEC 9/2023 é em tudo contrária ao interesse nacional. O perdão por irregularidades recorrentes cometidas pelas legendas na distribuição do fundo eleitoral entre grupos sociais sub-representados afasta o Congresso da realidade da sociedade brasileira. Ademais, é um prêmio à irresponsabilidade dos partidos e uma afronta ao Supremo Tribunal Federal ao permitir que as legendas possam arrecadar doações de empresas para quitar dívidas contraídas até 2015, quando a Corte, em boa hora, proibiu doações de pessoas jurídicas para partidos e campanhas. Isso não pode prosperar.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 08.05.23

Cheiro de sangue na água

Tubarões do Congresso farejam governos fracos, como parece ser este de Lula, o que tende a encarecer a governabilidade. Mas Lula deve compreender que articular não é só distribuir dinheiro

Com menos de cinco meses de governo, o presidente Lula da Silva sofre as agruras de uma fraqueza política historicamente atípica para o momento. A esta altura, caso não estivesse perdido em outros propósitos, Lula deveria estar aproveitando a força e a popularidade advindas de sua recente vitória nas urnas para vencer resistências e pavimentar, no Congresso, o caminho para a aprovação de medidas difíceis, como o novo arcabouço fiscal e a reforma tributária. Até agora, no entanto, o que se viu foi o exato oposto: uma coleção de reveses.

Disposto a mudar essa situação adversa, Lula anunciou que assumirá pessoalmente a articulação política de seu governo. O quadro de resistências aos interesses do Palácio do Planalto no Congresso, de fato, é de uma complexidade que demanda a ação direta de quem tem a caneta e a palavra final no Poder Executivo, além de, principalmente, a experiência em negociações políticas supostamente testada ao longo de outros dois mandatos presidenciais.

Como tubarões que sentem o cheiro de sangue na água, não faltam parlamentares dispostos a aproveitar esse estado de quase letargia do governo na condução de uma agenda política no Congresso – cada vez mais empoderado – para dele extrair tudo quanto for possível: dinheiro, cargos, poder. Lula, porém, parece olhar para o gigantesco desafio que tem diante de si com lentes embaçadas por convicções pregressas.

O mundo, o Brasil e o Congresso já não são mais os mesmos de 20 anos atrás. O chamado presidencialismo de coalizão opera hoje sob outras bases. É cada vez maior o poder dos parlamentares sobre a disposição de recursos do Orçamento da União, limitando os instrumentos republicanos à disposição do presidente de turno para atrair o Poder Legislativo para a mesa de negociação.

Para ser bem-sucedido nessa nova etapa do governo, e, sobretudo, para que o País seja o grande beneficiado pelos frutos dessa articulação política entre Lula e os líderes dos partidos no Congresso, o presidente precisa compreender que articulação política não é distribuição de dinheiro pura e simples; isso é compra de votos. Uma boa articulação política, a de que o Brasil tanto precisa para resolver seus problemas crônicos, implica, necessariamente, dividir poder, transigir sobre agendas tidas como conflitantes, caminhar para a moderação e gerar compromissos de coesão coadunados com o melhor interesse nacional, não com interesses paroquiais.

Só o tempo haverá de mostrar os resultados que a decisão de Lula de tomar para si a articulação política do governo vai produzir. Até agora, o presidente tem se revelado surpreendentemente inábil para construir uma maioria segura no Congresso em termos republicanos, sobretudo após o fim do orçamento secreto tal como o esquema fora concebido pelo governo de seu antecessor. Basta dizer que a base de apoio ao governo no Congresso nem sequer tem conseguido evitar a convocação de ministros de Estado para serem fustigados pela oposição em comissões temáticas da Câmara e do Senado.

Lula, pessoalmente, tem tido grande dificuldade até para conter a oposição do próprio PT à proposta de arcabouço fiscal formulada pelos Ministérios da Fazenda e do Planejamento. O presidente ainda passou pelo constrangimento de ver seus decretos para alterar a substância do Marco Legal do Saneamento ruírem, em boa hora, como um castelo de cartas.

Tudo isso, somado à instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) contrárias aos interesses do governo e ao adiamento da votação do chamado “PL das Fake News”, evidencia a dimensão dos obstáculos que Lula precisa vencer para entregar ao sucessor um país melhor do que o que recebeu. Com uma base flutuante e uma oposição dividida entre os pragmáticos e os identitários, estes alinhados à extrema direita e infensos à barganha política com o governo, tal como era o PT na oposição, o Congresso é soberano em suas decisões. É o governo, Lula em particular, quem tem de trabalhar melhor para lidar com isso.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, publicado em  07.05.23

O caso Cuca

O Direito, como dado cultural, está sujeito ao mundo da vida, no qual se revelam significados e experiências vivenciadas, geradoras de convicções compartilhadas a presidir as formas de atuar e de perceber a existência. 

Estes modos de pensar e de sentir evoluem no processo histórico, influenciando também a interpretação e aplicação do Direito.

Assim sucede com o assédio e a violência sexual, que passaram a ser continuamente reprovados e cobrados pela sociedade, mormente a partir de 2017, com o movimento Me Too, quando se intensificou levantar o véu protetor dos abusadores, cuja violência se normalizara ao longo dos tempos, sem haver espaço sequer para a denúncia pela vítima, condenada a sofrer no silêncio a dor e a repugnância pela barbárie. A sociedade incriminava, mas não recriminava o abuso sexual sofrido pela mulher, tal como hoje corretamente muitas vezes ocorre.

Há 37 anos, o então jogador do Grêmio Cuca, ao lado de outros três colegas, foi processado e condenado por ter mantido relação sexual com pessoa vulnerável, uma menina de apenas 13 anos. O fato ficou submerso até meados de abril passado.

Agora, recentemente indicado como técnico do Corinthians, houve reação das mais variadas pessoas e entidades, mobilizadas pelas redes sociais, que repudiaram sua assunção, malgrado o tempo passado desde o crime. Cuca é um personagem público e sua vida importa, como hoje importam os comportamentos ofensivos à liberdade e à integridade da mulher. Seu relevo público justifica, neste momento de luta contra o assédio e a violência sexual, a divulgação do fato e a reação da sociedade.

Do ponto de vista jurídico, o caso Cuca suscita três questões: 1) Há um direito ao esquecimento? 2) Deve haver proteção dos dados pessoais sensíveis? 3) Se o fato estiver ainda em juízo, quais limites deve ter o tribunal da opinião pública instalado pela internet?

Há um conflito de valores a ser dirimido diante de cada um dos problemas, devendo remeter-se sempre ao fato concreto. A divulgação de crime que aconteceu há décadas é de ser admitida quando, sendo verdade, há interesse público nessa difusão, não consistindo em conteúdo eminentemente privado, nem havendo intuito exclusivamente caluniador.

O interesse público da divulgação prevalecerá sobre o direito de manter sob sigilo o crime conforme o entendimento de não caber perene lembrança da condenação de priscas eras. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu – resolvendo o Tema 786 da Repercussão Geral – que, se a notícia interessa à coletividade, legítimo é o direito à divulgação. Diz o Supremo: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados”. (veja-se STF RE 1.010.606/RJ – relator ministro Dias Toffoli.)

Ressaltou a ministra Cármen Lúcia, neste julgamento, “haver um direito à veracidade histórica no âmbito do princípio da solidariedade entre gerações”. Assim, é importante o relato acerca da agressão à mulher, a índios e gays, por exemplos específicos, que comprovam sua existência no passado. O ministro Dias Toffoli, no Agravo de Recurso Extraordinário n.º 833.248/RJ, ressaltou o efeito pedagógico da divulgação, pois é “necessário rever o passado para que novas gerações fiquem alertadas e repensem conduta no presente”. No caso de Cuca, é importante relembrar a condenação e aplicar a pena da reprovação social, para fazer presente a punição de fatos dessa natureza.

Na referida decisão do Tema 786 do STF, ressaltou-se que abusos de comunicação social, especialmente relativos à privacidade, devem ser analisados caso a caso. Como regra, a circunstância de ter alguém praticado crime pelo qual foi condenado não justifica que, por curiosidade, se invada sua intimidade e se revelem dados pessoais sensíveis, como crenças ou relacionamento familiar, que nada dizem respeito ao fato ocorrido. Segundo dispõe a Constituição, no artigo 5.º, inciso LX, a “lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade o exigir”.

Portanto, difusão de aspecto da área exclusiva da pessoa é admitida apenas se atender a um interesse público por ser aspecto essencial do crime, guardando relação com o fato delituoso. Pela mesma razão, ataques no anonimato das redes a familiares de Cuca devem ser reprimidos, sendo mesmo preciso uma moderação de conteúdo na internet.

Resta a questão do tribunal especial da internet, em casos ainda em análise pela Justiça, mas já objeto, nas redes, de julgamento antecipado ou de campanha pela condenação, com afronta ao princípio da presunção de inocência. Em tempos nos quais se vive na mídia e pela mídia, há um contraponto entre a força da comunicação social e a fragilidade do magistrado. O silêncio e recolhimento para julgar, reclamados pelo jurista italiano Carnelutti, desaparecem, tal como o rito processual disciplinador da resposta penal. Mas é assunto para muitos outros artigos. •

A divulgação de crime que aconteceu há décadas é de ser admitida quando, sendo verdade, há interesse público nessa difusão

Miguel Reale Júnior, o autor deste artigo, é advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Foi Ministro da Justiça (Governo FHC). Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 06.05.23

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Baixo clero

São crimes banais, de gente baixa, vulgares, mas muito graves, não apenas na visão criminal, mas até mesmo simbolicamente.

Polícia Federal faz busca e apreensão na casa do ex-presidente Jair Bolsonaro em BrasíliaPolícia Federal faz busca e apreensão na casa do ex-presidente Jair Bolsonaro em Brasília Cristiano Mariz / O Globo

Embora as trapalhadas sugiram o enredo de uma chanchada da Atlântida — nosso estúdio cinematográfico mais famoso nos anos 40 e 50 do século passado—, não se trata de uma comédia rocambolesca, mas de uma tragédia brasileira. Contada, ninguém acreditaria. Temos exemplos por vários países da América Latina de presidentes, civis e militares, envolvidos em tráfico de drogas. Temos presidentes envolvidos em corrupção de toda espécie. Agora, áudios e mensagens de celulares comprovam tudo, desvendam uma operação tão rastaquera quanto os que dela participaram.

Rudes, sem sutileza, descem ao submundo do crime para obter vantagens, desde rachadinhas até a tentativa de reter joias das Arábias. Supostamente, ficar com o colar avaliado em R$ 16 milhões implicaria vender as pedras preciosas em mercado clandestino. A falsificação do certificado de vacinação contra Covid-19 em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, levou a contatos com um militar que se gaba, em conversa com o tenente-coronel Mauro Cid, de saber quem matou Marielle.

Cid só não queria que o ex-vereador Marcello Siciliano fosse acionado porque “não é aquele envolvido no caso Marielle?”. O intermediário de contato tão estreito com milicianos garante que Siciliano não tem nada a ver com o crime, embora tenha sido dos primeiros investigados. Bastou para tranquilizar Cid, que não se incomodou, nem se impressionou, de estar conversando com alguém que garante saber o que todo mundo quer saber: “Quem matou Marielle?”.

Esse militar, pasmem, foi nomeado comandante de um batalhão estratégico em Goiânia. Ainda bem que foi impedido de tomar posse do comando, justamente por ser suspeito de ter participado de diversas atividades ilegais para proteger Bolsonaro. Quer dizer, numa operação tabajara, há envolvimento pressuposto com milicianos e mercado clandestino de pedras preciosas. São detalhes exóticos, até risíveis, de um governo tóxico. Até o computador da sala do presidente da República foi identificado como tendo sido usado na falsificação dos dados no ConecteSUS, sistema digital fundamental para o Ministério da Saúde acompanhar a vacinação contra a Covid-19 em todo o país. Quantos certificados falsos foram fabricados por essa quadrilha?

Não se pode esquecer que, por trás dessa história absurda, está a criminosa atuação de Bolsonaro como presidente da República, culpado por milhares de mortes ao desincentivar a vacinação pública contra a Covid-19 e ao acusar as vacinas de provocarem efeitos colaterais graves. Para entrar nos Estados Unidos, Bolsonaro mandou falsificar certificados de vacina para si, assessores pessoais, até para sua filha menor. Uma história mambembe para fugir do país antes do final de seu mandato, com receio de ser preso.

Cometeu vários outros crimes. A ação da Polícia Federal ontem na casa de Bolsonaro mostra bem quem eram as figuras no comando do país. Uma ligação de promiscuidade com ilegalidade. Tudo muito vulgar, crimes banais, de gente baixa, mas muito graves, não apenas na visão criminal, mas até mesmo simbolicamente.

Como pode um presidente da República falsificar documento para entrar noutro país? Impressiona também como os militares se deixaram levar por ele. Nesse triste episódio, vários militares, de diversas patentes, até mesmo um tenente-coronel, estão envolvidos. Como sempre faz, Bolsonaro quer tirar o corpo fora e insinua que, se houve fraude, não foi por parte dele, deixando seu protegido, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid, pendurado na brocha.

Merval Pereira, o autor deste tartigo, é jornalista e escritor. Analista de política de O Globo e Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O Globo, em 04.05.23