domingo, 7 de dezembro de 2025

Venezuela e a impunidade de Trump

A estigmatização de Maduro cria um vácuo legal onde Trump pode operar com impunidade, mas é um território extremamente perigoso.

            DA FOME    

Não estamos preparados para o poder sem máscaras. E muito menos quando se trata dos Estados Unidos. Quando a Rússia ou a China violam o direito internacional, chamamos isso pelo que é: pressão, ameaças, abusos. Se for Washington, a gramática muda. Falamos de "inconsistências", de "sinais confusos", de "dificuldade de decifração". O eufemismo é um refúgio cognitivo: evita reconhecer que a potência hegemônica ocidental voltou a jogar conforme as regras, algo que denunciou durante décadas em sussurros quando se tratava de outros países. Na Venezuela, essa deriva atinge sua expressão mais brutal . Trump declarou o espaço aéreo de um país soberano "fechado" sem qualquer base legal. Ordenou o maior destacamento naval no Caribe desde a crise dos mísseis e está realizando operações em alto-mar com dezenas de mortes sem provas ou julgamento, justificando-as como parte da luta contra o narcotráfico, enquanto anuncia sua intenção de perdoar Juan Orlando Hernández , o ex-presidente hondurenho condenado por conluio com narcotraficantes. O objetivo é claro: acelerar a queda de Maduro e colher os benefícios na forma de petróleo. O que não está claro é o limite.
Tudo acontece à luz do dia, e quase ninguém diz uma palavra, nem mesmo a Espanha, onde a política latino-americana costuma provocar reações imediatas e exageradas. Por que esse silêncio? Uma razão pode ser estrutural: as ferramentas diplomáticas são inúteis contra uma potência que não reconhece regras nem árbitros, nem mesmo a obrigação de fingir. A outra razão é mais perturbadora: Maduro é um ator desacreditado, e isso serve como um atalho moral. Como ele cometeu violações dos direitos humanos e perdeu legitimidade, parece menos grave para uma grande potência desrespeitar as regras. Essa estigmatização cria um vácuo normativo onde Trump pode operar com impunidade, mas é um terreno extremamente perigoso. Se hoje toleramos a arbitrariedade contra Caracas porque “ela merece”, amanhã ela será aplicada a qualquer cenário. A erosão do direito internacional sempre começa onde é politicamente vantajoso desviar o olhar.

Aqueles que hoje fecham os olhos, movidos pelo desprezo por Maduro, devem lembrar que a normalização do abuso é sempre performativa. Não é que Trump tenha poder e por isso ele seja normalizado; é que validar sua impunidade é o que amplifica seu poder. O que toleramos por conveniência acaba se tornando um precedente e se estabelecendo como prática legítima. Cada silêncio ou gesto de indulgência, cada crítica adiada, contribui para ampliar a margem de manobra daqueles que desrespeitam as regras. E aí reside o verdadeiro perigo: não em aplicar arbitrariedade contra um regime impopular, mas no fato de que, uma vez aceita, essa arbitrariedade fica disponível para qualquer situação. A comunidade internacional não apenas testemunha a expansão do poder de Trump, como a favorece abertamente ao não se incomodar, porque quem é afetado é Maduro. Porque uma coisa é exercer pressão diplomática, aplicar sanções ou buscar uma transição democrática, e outra bem diferente é ignorar execuções extrajudiciais em alto-mar ou a declaração ilegal de uma zona de exclusão aérea. E tudo isso acontece sob o governo de um presidente que persegue juízes e procuradores do Tribunal Penal Internacional e exige anistias gerais para apagar os crimes de guerra de Putin e Netanyahu. Se essa é a “libertação” que Trump oferece, a Venezuela pode descobrir que sempre há mais um degrau na escada da desordem. E o resto do mundo pode aprender que um poder sem máscaras só precisa, para se expandir, que o resto de nós continue fingindo que o que todos nós, sem exceção, sabemos que está acontecendo, não está.

Mariam Martinez-Bascuñán, a autora deste artigo, é Professora de Teoria Política na Universidade Autônoma de Madri. Autora do livro "Gênero, Emancipação e Diferenças" (Plaza & Valdés, 2012) e coautora de "Populismos" (Alianza Editorial, 2017). Entre junho de 2018 e 2020, foi editora de Opinião do jornal EL PAÍS. Atualmente, é colunista e colaboradora do mesmo jornal, além de membro de seu conselho editorial. Publicado originalmente por EL PAÍS, em 07.12.25

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