Ao preservar o mandato de Zambelli, criminosa condenada e presa, Câmara afronta a Constituição, o STF e o bom senso, e leva a atual crispação institucional a um patamar desconhecido
Na madrugada de ontem, o plenário da Câmara dos Deputados, em afronta à Constituição, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao bom senso, decidiu não cassar o mandato da deputada Carla Zambelli (PLSP). A parlamentar, como se sabe, é uma criminosa condenada pelo STF a 10 anos de prisão em regime inicialmente fechado por ter se associado a um hacker para invadir o sistema do Conselho Nacional de Justiça entre agosto de 2022 e janeiro de 2023 e forjar um mandado de prisão contra o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Alexandre de Moraes. A decisão judicial transitou em julgado – isto é, não cabem mais recursos.
A cassação da sra. Zambelli, convém sublinhar, não era objeto de deliberação política – era uma imposição constitucional. O art. 55 da Constituição está escrito em português cristalino: “perderá o mandato” o parlamentar que “sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”. É precisamente o caso da deputada, assim como o de Alexandre Ramagem (PL-RJ), seu parceiro no rol dos culpados mais recentes.
Portanto, não há espaço para criatividade hermenêutica ou casuísmos. A perda do mandato, em tal hipótese, não é um ato discricionário das Casas do Congresso, mas um comando a ser obedecido. Ao rebelar-se, a Câmara não só pisoteou a Lei Maior, como, indevidamente, arvorou-se em instância revisora do Supremo.
Diante dessa flagrante inconstitucionalidade, não tardou para que o STF interviesse para restabelecer a ordem. No mesmo dia, Moraes anulou a decisão da Câmara e determinou que o presidente da Casa, Hugo Motta (RepublicanosPB), dê posse ao suplente de Zambelli em até 48 horas. O ministro destacou na decisão que ao Congresso cabe apenas “declarar a perda do mandato”, ou seja, “editar ato administrativo” vinculado à sentença transitada em julgado.
A preservação do mandato de Zambelli colidia com um precedente explícito. Em 2013, vale lembrar, quando o plenário da Câmara rejeitou a cassação do deputado Natan Donadon (MDB-RO), também condenado criminalmente com trânsito em julgado, o então ministro do STF Luís Roberto Barroso acolhera pedido do PSDB para suspender os efeitos da sessão. Se a pena imposta é em regime inicial fechado por tempo superior ao restante do mandato, decidiu Barroso, a cassação é automática. A razão é óbvia: como alguém impossibilitado fisicamente de representar seus eleitores, pelo singelo fato de estar atrás das grades, pode seguir parlamentar? Zambelli está presa em Roma, mas a realidade factual não sensibilizou o plenário.
O que se viu, mais uma vez, foi a supremacia do espírito de corpo. Lamentável figura, Zambelli é uma indigente política tratada como pária até entre os bolsonaristas mais empedernidos, a começar pelo próprio Jair Bolsonaro. Com o destino político nas mãos de seus pares, não foi mais do que um instrumento útil na guerra que parte expressiva do Congresso trava contra o STF. Nessa rixa, o interesse público e a moralidade pública não têm lugar. Por isso, a decisão de preservar o mandato da deputada se prestava a enviar um recado ao STF.
Para piorar, a tibieza da Câmara ainda causou um grave prejuízo político ao Estado de São Paulo, que, sem a substituição de Zambelli por suplente que efetivamente possa representar os eleitores paulistas, restará ainda mais sub-representado no Legislativo federal.
A Câmara foi institucionalmente irresponsável. Ao desafiar abertamente uma decisão judicial definitiva e reinterpretar a Constituição segundo suas conveniências de ocasião, a Casa abre precedente que põe em risco o amadurecimento institucional do País. Se cada Casa Legislativa puder decidir, caso a caso, se cumpre ou não a Constituição ao lidar com parlamentares que se bandearam para o crime, o Estado de Direito torna-se mero ornamento retórico.
A guarida dada a uma criminosa condenada revela o quão baixo a Câmara está disposta a ir em sua disputa por poder com o STF. Não se pode perder de vista que é na Corte que está a grande chance de moralização da representação política popular: o fim da malversação de bilhões de reais em emendas parlamentares.
Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo,em 12.12.25
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