Hoje vivemos o reinado das decisões monocráticas no STF e Superior Tribunal de Justiça (STJ); além disso, os precedentes adquiriram relevância jamais vista; por vezes interpretam-se dispositivos legais de tal modo que, na prática, é como se eles tivessem sido alterados pelo legislador.
A vida da República está sofrendo alterações. O presidente perde espaço para o Poder Legislativo, que avança ao monopolizar boa parte da política orçamentária e ao derrubar vetos presidenciais.
Também o faz diante do Judiciário, como na proposta de emenda à Constituição para se contrapor ao Supremo Tribunal Federal (STF) no tema do porte de maconha para uso próprio.
O Supremo, por sua vez, provocado amiúde por partidos políticos, adota decisões, muitas monocráticas, que se sobrepõem ao Legislativo e ao Executivo.
No Poder Judiciário as transformações têm sido profundas.
Em países anglo-saxões impera a common law, que é um sistema baseado em decisões judiciais que têm grande força. No Brasil, que sempre adotou o sistema romano-germânico, a lei deveria ser o principal vetor dos julgamentos, ao passo que à jurisprudência restaria uma função orientativa.
Todavia, hoje vivemos o reinado das decisões monocráticas no STF e Superior Tribunal de Justiça (STJ); além disso, os precedentes adquiriram relevância jamais vista; por vezes interpretam-se dispositivos legais de tal modo que, na prática, é como se eles tivessem sido alterados pelo legislador. Criou-se uma common law à brasileira.
A insegurança jurídica bate à porta. Isso porque, no mundo das decisões judiciais, cada julgador tem as suas convicções, a sua visão de mundo, o seu viés de interpretar a lei e os fatos. É a beleza da lógica e do sentimento humano no Judiciário. O juiz sente para sentenciar. A lei é estática, mas a sua interpretação é dinâmica, variando de tempos em tempos, de magistrado para magistrado. Sendo a jurisprudência o “Direito vivo”, as reviravoltas de entendimento nos tribunais acontecem.
Diante desse novo contexto de reinado das decisões monocráticas e da jurisprudência sobre a lei, há um tema que traz inquietação: o fator sorte.
Em primeiro grau, por exemplo, juízes criminais podem interpretar diferentemente o que significa “garantia da ordem pública”. Há decisões inclusive pela sua inconstitucionalidade. A depender da distribuição a esse ou àquele juiz, a prisão preventiva do acusado poderá ser decretada ou não.
O fator sorte também está presente nos tribunais de segundo grau, que muitas vezes decidem de forma contrária ao STJ e STF. Cito o exemplo do princípio da insignificância, que torna a conduta não criminosa por falta de ofensividade, como no caso de furto de um quilo de arroz. Há câmaras que não admitem tal princípio; se o acusado tiver o seu caso distribuído a uma delas, o seu destino será perder. Caso julgado por outras, sairá vitorioso. Na área trabalhista, é sintomática a questão da contratação pela CLT versus a “pejotização”, havendo grande conflito entre Tribunais Regionais do Trabalho e o STF.
Essa postura independente gera a uma enxurrada de recursos ao STJ e STF. Esse fato vem causando outros fenômenos transformadores do Poder Judiciário.
Criou-se no STJ e no STF a denominada jurisprudência defensiva, que impõe obstáculos infindáveis, por vezes fundados em filigranas jurídicas, aos recursos especiais e extraordinários. Filtrados por sistemas de inteligência artificial, pouquíssimos prosperam. Não é por menos que somente 4% dos recursos especiais no STJ têm o seu mérito julgado. No STF, uma parcela ínfima dos recursos extraordinários é admitida.
De fato, como a esmagadora maioria deles é sepultada em decisão monocrática do relator, como também vem ocorrendo com ordens de habeas corpus, o fator sorte na distribuição para um relator que tenha entendimento mais favorável à tese sustentada torna-se altamente relevante.
E o problema aumenta na medida em que os recursos de agravo contra essas decisões individuais são, em grande parte, julgados de forma totalmente virtual, sendo raros os casos de reversão. Aos defensores relega-se o envio prévio de um vídeo com a sustentação oral, não podendo interagir pois sequer acompanham o julgamento; angustiados, aguardam o resultado no portal eletrônico do tribunal.
No STF, havendo decisão individual que nega o habeas corpus, sequer sustentação oral é possível no agravo. Esse fato tem gerado grande indignação entre os advogados, pois o Estatuto da Advocacia, que garante esse direito, é lei específica e posterior ao regimento do Supremo. Tem-se uma mordaça.
Com a invenção desses julgamentos virtuais, onde a defesa é limitada, a Justiça está se tornando algo do ciberespaço, uma espécie de metaverso.
O fator sorte a depender do sorteio do relator torna-se ainda mais relevante em se tratando de habeas corpus com pedido de liminar, uma vez que existem magistrados que dificilmente a concedem, diferentemente de outros. Se o habeas cair com um, há maiores chances de vitória do que com outro.
É o que chamo de “princípio lotérico do Direito”, que não está nos livros nem no currículo das faculdades. Embora em certa medida ele sempre tenha existido, é inconteste que na atual conjuntura, onde há o reinado das decisões monocráticas, dos julgamentos virtuais e da jurisprudência que se torna lei, a sorte e o azar nunca estiveram tão presentes, como também a insegurança jurídica. •
Embora ele sempre tenha existido, é inconteste que na atual conjuntura a sorte e o azar nunca estiveram tão presentes, como também a insegurança jurídica.
Roberto Delmanto Junior, o autor deste artigo, é advogadoo criminalista há 33 anos; mestre e doutor em direito processual pela USP. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 30.05.24
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