sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

Marcos republicanos sob ameaça

Confusão do governo na revisão das competências da ANA expõe sua inépcia, sua ojeriza à iniciativa privada e seu apetite por submeter agências reguladoras ao seu arbítrio

Em seu primeiro dia, o novo governo tentou desmembrar a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e esvaziar sua função reguladora no saneamento. Além de inepta, a manobra desperta apreensão por sinalizar um duplo retrocesso: no saneamento em si e na autonomia das agências reguladoras.

A MP que define as atribuições dos 37 Ministérios alterou a lei de criação da ANA para vinculá-la ao Ministério do Meio Ambiente. O mesmo ato retirou de seu nome a menção ao saneamento e excluiu sua atribuição de instituir as normas de referência no setor. Ao mesmo tempo, o decreto sobre o Ministério das Cidades atribuiu esse papel à Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental da pasta.

A medida é ilegal, porque a competência da ANA para elaborar as normas foi instituída pelo marco legal do saneamento e só pode ser alterada por lei. Além disso, apesar de a MP ter repassado a ANA para o Meio Ambiente, o decreto que estrutura o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional também prevê a vinculação do órgão.

A Casa Civil já sinalizou que vai retificar a confusão, mas a sensação de insegurança já está instalada. Porém, mais do que mero equívoco, a tentativa de transferir as competências da ANA à administração direta parece ser um balão de ensaio de um governo atavicamente hostil à iniciativa privada e à independência das agências reguladoras.

Ao contrário do que se fez na energia, transportes ou telecomunicações, os serviços de água e esgoto ainda são prestados quase que exclusivamente por estatais contratadas sem licitação nem metas. O marco, aprovado em 2020, fez valer a exigência constitucional de licitação e metas, criando condições para a atração do capital privado. Para garantir segurança e previsibilidade, foi atribuído à ANA o papel de editar as diretrizes de referência a serem seguidas pelas mais de 80 agências reguladoras infranacionais.

À época, o PT se opôs ao marco, e em dezembro o grupo de transição para o novo governo já recomendou a sua “revisão” para barrar concessões ou privatizações e esvaziar a autonomia da ANA. Dito e feito.

Trata-se de uma tentativa de autorrealizar uma profecia. Membros do governo alegam que a ANA não tem “controle da sociedade”, gerando insegurança jurídica, e que o marco não trouxe os investimentos desejados. Mas, como toda agência, a ANA é fiscalizada pelo Congresso. Só em 2021, os investimentos no saneamento cresceram 27% – só os privados, 41%. Agora, porém, esse avanço está ameaçado.

“Evidentemente, essas incertezas geram a procura por um plano B”, disse ao Estadão uma fonte ligada ao setor. “No limite, as empresas privadas de saneamento vão apenas manter a estrutura que têm hoje e parar de investir, à espera de uma definição sobre o futuro.” O freio põe em risco as metas de universalização estabelecidas pelo marco, ameaçando perpetuar o estado de exclusão e degradação em que vivem os 35 milhões de brasileiros sem água potável e os 100 milhões sem esgoto.

A ofensiva sobre a ANA é parte de um conteúdo programático. As agências reguladoras foram criadas nos anos 90 para garantir que as privatizações e concessões fossem reguladas por critérios técnicos, em prol do interesse público, livres de pressões de corporações políticas e econômicas a serviço de interesses privados. Trata-se de órgãos de Estado, não de governo – e muito menos de um receptáculo de aparelhamento partidário. É justamente isso que sempre despertou a ojeriza do PT. Na oposição, o partido se opôs à criação das agências. No governo, fez o diabo para sabotá-las, fosse asfixiando-as financeiramente, fosse retardando nomeações, fosse obliterando projetos de lei que fortalecessem sua isenção e sua capacidade técnica.

A pandemia foi a grande vindicação das agências. Só Deus sabe o quanto Jair Bolsonaro teria retardado a aprovação das vacinas não fosse a autonomia da Anvisa. O lulopetismo e o bolsonarismo se apresentam como antíteses um do outro. Mas eis mais um ponto em que convergem: o anseio mútuo por submeter toda a máquina do Estado ao seu arbítrio.

Editorial /  Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 06.01.23

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