quarta-feira, 29 de setembro de 2021

A Lei de Segurança Nacional e a segurança do Estado Democrático de Direito

A boa-nova da ab-rogada LSN vem embalada por alvíssaras, mas suscita dúvidas.

Já que os de hoje não se incumbiram da tarefa, os historiadores do futuro terão o desafio de explicar por que, ao longo de três décadas das mais amplas liberdades democráticas da História do Brasil, permaneceu em vigor a Lei de Segurança Nacional (LSN), reformada em 1983, nos estertores da ditadura. Redemocratizado o País a partir de 1985, promulgada a Constituição em 1988, a Lei n.º 7.170 resistiu incólume ao descarte do entulho autoritário até poder ser hoje ab-rogada em razão da decisão do Congresso no dia 10/8/2021 e sancionada em 1.º/9/2021 pelo presidente da República.

Casamata da antipolítica e da criminalização da oposição, garrote vil para o que a ditadura estigmatizou como “subversão”, será agora substituída pela Lei n.º 14.197, que introduziu um título (XII) na Parte Especial do Código Penal de 1940, a definir os “crimes contra o Estado Democrático de Direito”. A boa-nova vem embalada por alvíssaras, mas suscita dúvidas, a começar pela não opção por um diploma extravagante específico, por afigurar-se a uma colcha de retalhos e, ainda, por excessiva concessão à conjuntura política.

Do ponto de vista da estrutura do nosso ordenamento jurídico, seria mais apropriado substituir o estatuto da ditadura por uma lei específica de defesa do Estado, em vez de fazê-la um título do Código Penal – a exemplo do que se passou com a de n.º 13.260/2016, conhecida como Lei Antiterrorismo. Talvez os congressistas tenham desejado, com toda razão, esconjurar de vez o fantasma da LSN. Em certa medida, porém, extingue-se o crime político e trata-se razões de Estado no catálogo geral dos delitos comuns.

Na trilha correta da defesa do Estado, a lei é certeira ao tipificar os clássicos delitos de atentado à soberania e integridade nacionais, espionagem em favor de estrangeiro, sabotagem da defesa nacional, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Exorbita, no entanto, na utilização da elementar conceitual da “grave ameaça”. Se é indiscutível em crimes de roubo praticado mediante atemorização da vítima, por exemplo, tal violência, de aspecto subjetivo, mostra-se demasiado aberto na tipificação do golpe de Estado tentado, assim desenhado no artigo 359-M: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Pena: reclusão, de 4 a 12 anos, além da pena correspondente à violência.

Intentar putsch com as balas de festim da “grave ameaça”, mas sem violência, hipótese enunciada pela lei, é retórica. As redes sociais e as ruas estão repletas de palavras de ordem pela deposição do atual governo. Mais efetivo seria criminalizar a incitação, por qualquer meio, do golpe de Estado. Nos degraus da História, o velho coup d’État dos franceses é sempre uma tomada violenta do poder, como ocorreu na autêntica Revolução de 1930 e na mal chamada “revolução de 1964”. Mas convém atentar para sua modalidade por antonomásia de autogolpe, aplicado pelo próprio governo, de que são exemplo o famoso de 18 de brumário de Luís Bonaparte, em 1851, na França, e, no Brasil, o Estado Novo de 1937 e a intraditadura do AI-5 de 1968. Eis o sonho do presidente.

Caso de distopia legislativa, o Congresso Nacional espelhou por demais a quadra política polarizada, e sobretudo se projetou em outras searas ao repassar ao Código Penal temas próprios de outras áreas, como a eleitoral. No influxo da conjuntura, foi claro o propósito de alcançar as chamadas fake news que infestam as redes sociais. A propósito, um parêntese: os feitos em tramitação com base na revogada LSN deverão ser extintos. Penetrando em solo eleitoral, o artigo 359-N prevê reclusão, de três a seis anos, e multa, a quem “impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado (...)”. Parece roman à clef que dissimulam o presidente da República e seus áulicos – tanto que, ao sancionar o novo diploma legal, sua excelência vetou o seguinte artigo 359-O, que tratava de “comunicação enganosa em massa”, de que até um de seus filhos é acusado.

Novidade a ser destacada na decisão do Congresso foi a introdução no Código Penal de outro galicismo, “crimes contra a cidadania”, a punir pelo artigo 359-S quem “impedir, mediante violência ou grave ameaça, o livre e pacífico exercício de manifestação (...)”. O presidente vetou a rubrica francesa e a criminalização desta prática a que tanto se dedicam seus acólitos.

No entanto, escapou da tesoura palaciana que ainda talha o figurino antidemocrático da antiga LSN a auspiciosa descriminante do artigo 359-T: “Não constitui crime previsto neste título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.

Se toda lei de defesa do Estado tende a restringir a liberdade do indivíduo, essa excludente de ilicitude contempla a segurança da democracia.

José Roberto Batochio, o autor deste artigo, é advogado criminalista. Foi Presidente nacional da OAB e Deputado Federal por São Paulo. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.09.21.


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