terça-feira, 15 de junho de 2021

Sob o ataque do atraso

Congresso dá sinais de que também tem uma agenda do atraso em matéria eleitoral

Enquanto Jair Bolsonaro quer que as eleições voltem a ser decididas na contagem manual dos votos – pelo visto, como não houve fraude nos 25 anos de urna eletrônica, há quem queira restabelecer o velho e corruptível sistema –, o Congresso dá sinais de que também tem uma agenda do atraso em matéria eleitoral.

Instaurada pelo presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), a comissão de reforma eleitoral tem sido, até agora, um laboratório de propostas retrógradas e perniciosas. Por exemplo, a comissão estuda a volta das coligações partidárias nas eleições proporcionais, proibidas pela Emenda Constitucional (EC) 97/2017.

Aplicada pela primeira vez nas eleições municipais de 2020, a restrição de coligações é importante proteção do voto. Antes, o voto em determinado candidato podia eleger outro candidato, de outro partido, simplesmente em razão de um acordo entre as legendas. Não faz sentido rever a proibição das coligações antes de sua aplicação nas esferas federal e estadual.

Outra proposta da comissão é a criação do chamado “distritão”, sistema de eleição majoritária em grandes circunscrições – frequentemente iguais aos territórios dos Estados – que favorece personalidades, artistas, líderes religiosos e caciques políticos. Além de tornar mais difícil a renovação política, a proposta enfraquece a democracia representativa ao desvalorizar os partidos. Com o “distritão”, os eleitos representam apenas a si mesmos.

No mês passado, foi revelada a tentativa, por parte de alguns parlamentares, de viabilizar a volta das doações de pessoas jurídicas a candidatos e partidos políticos. Além de ser um deboche com a Constituição e com a lisura do sistema político-eleitoral, a manobra é mais um triste sintoma da agenda do retrocesso.

Em setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a doação de pessoas jurídicas a campanhas e partidos políticos é incompatível com a Constituição de 1988. Além de gerar conflitos de interesse e ser estímulo à corrupção, o financiamento de campanhas eleitorais por empresas representa grave distorção do sistema político.

Como se não bastasse, a Câmara aprovou, no dia 9 de junho, regime de urgência para um velho projeto de lei, apresentado em 2015 no Senado, que tenta burlar a cláusula de barreira. O Projeto de Lei (PL) 2.522/15 possibilita que dois ou mais partidos se reúnam em uma federação.

A manobra é evidente. Após o registro da federação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os partidos são tratados como se fossem uma única legenda, escapando dos efeitos da cláusula de barreira. No entanto, cada partido continua dispondo de identidade e autonomia próprias.

A cláusula de barreira fixa porcentuais mínimos de voto para que cada legenda tenha acesso aos recursos do Fundo Partidário e à propaganda supostamente gratuita de rádio e televisão. Ao limitar os incentivos a partidos nanicos, dá-se um importante passo para reduzir a fragmentação partidária.

A atual quantidade de legendas não contribui para a representação política. Há muitas siglas à escolha do eleitor, mas não há um aumento de opções políticas. Para ser minimamente viável, uma proposta política precisa ter um mínimo de representatividade.

Além disso, a diminuição do número de partidos contribui para um ambiente de negociação política menos fisiológico. A atual fragmentação partidária é um convite à transformação da política em balcão de negócios.

Diante desse quadro, é inacreditável que a atual legislatura, eleita com o declarado propósito de renovar as práticas políticas, aprove regime de urgência para um projeto de lei cujo objetivo é reduzir todos os benefícios decorrentes da cláusula de barreira.

Com a inédita renovação da Câmara e do Senado, realizada pelo eleitor em 2018, era de esperar que o Congresso fosse capaz, por exemplo, de extinguir o Fundo Partidário e o Fundo Eleitoral. No entanto, em vez de assumir sua tarefa de promover uma genuína reforma política, a atual legislatura dedica-se a desfazer o pouco que há de positivo no sistema eleitoral vigente. Simplesmente não entendeu o seu papel na história.

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S.Paulo, em 15 de junho de 2021 | 03h00

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