segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Custo de tribunais impõe adequação à realidade fiscal

Com gasto estimado em 1,6% do PIB, Judiciário e MPs brasileiros compõem a Justiça mais cara entre 53 países

Brasil tem uma das Justiças mais caras do mundo, segundo relatório do Tesouro Nacional — Foto: Márcio Alves / Agência O Globo

Publicado no final do mês passado, o relatório do Tesouro Nacional classificando as despesas do governo confirma o que se sabe há tempos: o Brasil tem uma das Justiças mais caras do mundo, provavelmente a mais cara. Os tribunais e Ministérios Públicos (MPs) estaduais e federal custaram à sociedade 1,6% do PIB em 2022. Foi a proporção mais alta numa amostra de 53 países. O gasto brasileiro equivale ao quádruplo da média. Em termos absolutos, a Justiça custou perto de R$ 160 bilhões.

Para dar uma ideia da ordem de grandeza da cifra, basta lembrar que a despesa com todas as polícias foi de R$ 114 bilhões. Com serviços de proteção contra incêndios, R$ 8,8 bilhões. Com penitenciárias, R$ 26,3 bilhões. Em pesquisa e desenvolvimento sobre ordem pública e segurança, mirrados R$ 44 milhões. Quando são consideradas as despesas com “ordem pública e segurança” — incluindo a Justiça —, a despesa alcança R$ 311 bilhões, ou 3% do PIB, mais que na América Latina (2,6%) e nas economias emergentes (2,3%).

Custo: Brasil gasta 1,6% do PIB com tribunais, maior despesa entre 53 países

Associações de classe contestaram a metodologia usada pelo Tesouro para cotejar o gasto dos diversos países. Mas é a mesma adotada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para comparar gastos públicos. Ao mesmo tempo, tentaram justificar a despesa afirmando que o Judiciário brasileiro custa mais caro porque trabalha mais, tamanha a quantidade de temas que, pela Constituição, suscitam recurso aos tribunais. Pode até ser verdade. Há, porém, algo além do excesso de processos que distingue a Justiça brasileira.

Judiciário e MPs gastam sobretudo com salários, e a quantidade de benesses que usufruem juízes e procuradores brasileiros — como férias de dois meses, auxílios e verbas indenizatórias de todo tipo — é única no mundo. Tais “penduricalhos” inflam a remuneração, com frequência para além do teto constitucional, colocando as duas categorias da elite do funcionalismo no centésimo de maior renda no Brasil.

Opinião: Benesses a juízes erodem confiança na Justiça

Não se trata de questionar a necessidade de remunerar de modo justo serviço tão essencial e relevante quanto a Justiça. Mas é preciso ter senso de medida. Apenas um exemplo de desconexão da realidade: em 2017, ficou decidido que as licenças-prêmio de 90 dias a que procuradores têm direito — em si um privilégio que deveria ser extinto — poderiam ser pagas em dinheiro. Só esse benefício custou quase meio bilhão de reais aos cofres públicos entre 2019 e 2022 . No ano passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu que juízes também poderiam reivindicar as mesmas benesses dos procuradores. Para não falar nas tentativas de restaurar promoções automáticas a cada cinco anos (quinquênio) e outras iniciativas do tipo.

Estudioso do assunto, o cientista político Luciano Da Ros, da Unicamp e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), creditou em análise de 2015 o “elevado grau” de independência — inclusive orçamentária — do Judiciário e dos MPs no Brasil ao esforço da sociedade na transição para a democracia. É verdade. Mas isso não justifica a profusão de benesses. Juízes e procuradores deveriam entender a realidade de um país com alta dívida pública e social, em que o Estado precisa promover o equilíbrio fiscal para o bem de todos. Os números do Tesouro revelam a urgência dessa discussão.

Editorial de O Globo, em 05.02.24

Governo Lula tem dado sinais dúbios no combate à corrupção ao invés de amarrar suas próprias mãos

Percepção de corrupção também pode ser afetada pela ausência de sinais claros e críveis de governos de que estariam de fato comprometidos com o combate a esse mal

Escolhas de Dino, um então ministro de seu governo, para o STF, e de Gonet, de fora da lista tríplice, reforçam sinais dúbios de Lula quanto ao combate à corrupção Foto: Ricardo Stuckert/PR

A Transparência Internacional divulgou seu Índice de Percepção de Corrupção (IPC) de 2023, em que avalia 180 países atribuindo notas entre zero (mais corrupto) a 100 (mais íntegro). O Brasil caiu 10 posições passando agora a ocupar a 104ª posição com 36 pontos, dois a menos que no ano anterior. Na América Latina, ficou atras do Uruguai (76), Chile (66), Cuba (42) e Argentina (37).

Treisman, no artigo “What have we learned about the causes of corruption from ten years of cross-national empirical research?”, considera que índices subjetivos de corrupção não são uma medida direta da corrupção. Tais índices, por medirem a percepção da dinâmica da corrupção entre os cidadãos, não são livres de vieses e de imprecisões.

Escolhas de Dino, um então ministro de seu governo, para o STF, e de Gonet, de fora da lista tríplice, reforçam sinais dúbios de Lula quanto ao combate à corrupção

De tal modo, não se deve esperar uma relação linear entre o nível de corrupção de fato existente em um determinado país com a percepção que seus cidadãos têm do quanto ele é corrupto. Países podem ser muito corruptos, mas suas instituições serem débeis para detectar e punir comportamentos desviantes. Ou seja, o fato de os cidadãos não perceberem o problema não necessariamente significa que a corrupção seja baixa.

Existiria um paradoxo, portanto, entre a atuação das organizações de controle coibindo a corrupção e a percepção que as pessoas têm dela. Quanto mais efetiva for a atuação de tais organizações, maior será a exposição a eventos de corrupção que, muito provavelmente, irão afetar a percepção das pessoas de que aquele país é muito corrupto.

Assim, a percepção de mal-estar gerada por uma suposta maior corrupção pode ser também produto do processo de fortalecimento das organizações de combate ao problema. Esse foi o caso do IPC-Brasil que caiu de 43 para 35 em 2018, após o início da Operação Lava Jato em 2014 que expôs a corrupção bilionária no escândalo do Petrolão.

Por outro lado, a percepção também pode ser afetada pela ausência de sinais claros e críveis de governos de que estariam de fato comprometidos com o combate à corrupção. Esse parece ser o caso do atual governo Lula que, ao invés de amarrar suas próprias mãos, especialmente diante de condenações prévias por corrupção e lavagem de dinheiro, tem dado sinais dúbios.

A continuidade do orçamento secreto por meio de emendas Pix, a nomeação de políticos para a diretoria e presidência de estatais, a indicação de Cristiano Zanin (advogado particular) e de Flávio Dino (ex-ministro da justiça) para o STF e de Paulo Gonet (fora da lista tríplice) para a PGR são alguns exemplos desta dubiedade.

Carlos Pereira, o autor deste artigo, é cientista político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV EBAPE) e sênior fellow do CEBRI. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 05.02.24

sábado, 3 de fevereiro de 2024

É preciso qualificar o emprego

Taxa de desemprego de um dígito é positiva, mas País tem de combater trabalho precária

A taxa de desemprego de 7,8% e a criação de quase 1,5 milhão de empregos formais formam um bom saldo para 2023, mas o mercado de trabalho ainda está longe de uma reativação que caminhe junto com a melhoria da renda e da qualificação. Em primeiro lugar, o 1,484 milhão de vagas com carteira assinada criadas no ano passado é um resultado 26% inferior ao de 2022.

O saldo também não chegou aos 2 milhões previstos pelo governo. Melhor seria se o crescimento da formalidade fosse inversamente proporcional à queda do desemprego. Ou até mesmo superior, já que emprego formal, como se sabe, funciona como salvaguarda contra a precarização do trabalho por garantir acesso aos direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Em segundo lugar, apesar de ter descido a um patamar mais próximo ao de 2014 – quando, com taxa de desemprego de 7%, o mercado de trabalho chegou quase ao nível de pleno-emprego –, a taxa do ano passado guarda uma diferença fundamental: o mercado de trabalho ainda não recuperou o mesmo nível de participação. Traduzindo, menos pessoas em idade ativa (pelos critérios do IBGE, acima de 14 anos) participam do mercado.

O desemprego diminuiu não apenas porque mais pessoas conseguiram uma ocupação, formal ou informal, mas porque há menos gente integrando a força de trabalho. Foi um movimento muito claro durante a pandemia, por causa das medidas de isolamento social, que permanece, em parte, porque um contingente expressivo de beneficiários de programas de transferência de renda não retornou ao mercado.

Esse monitoramento comprova que é necessário relativizar os dados. Não são poucos os economistas que atestam que, se o País tivesse retornado ao mesmo nível de participação pré-pandemia, o nível de ocupação atual levaria a taxa de desemprego a oscilar em torno de 10%. Por tudo isso, a manutenção do desemprego em um dígito deve, sim, ser comemorada, mas com a devida ponderação.

Mesmo que o mercado não esteja tão aquecido quanto parecem indicar as estatísticas do IBGE, o resultado geral é, de fato, positivo. Mas um aspecto que merece atenção especial é o da precarização do mercado de trabalho. A reforma trabalhista teve o mérito de facilitar o acesso ao mercado, ao permitir diferentes contratos de trabalho. O aumento na quantidade de microempreendedores individuais (MEIs) talvez seja o exemplo mais típico dessa nova relação.

Mas não haverá reconstrução adequada do mercado de trabalho sem investimentos em sua qualificação. A fórmula, há muito conhecida, está na educação. É o que justifica a campanha permanente pelo desenvolvimento e apoio ao ensino técnico e profissional que este jornal defende. Sem treinamento não há mão de obra qualificada, e sem aprendizado tecnológico não surgem gerações de profissionais especializados.

A queda do desemprego será mais bem celebrada quando vier precedida de medidas que se firmem como uma nova política de qualificação profissional que apoie um crescimento econômico sustent

Editorial / Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 03.02.24

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Corrupção: Brasil está mal na foto

O ranking da Transparência Internacional é apenas um dado. Mas não deveria ser esquecido rapidamente

Creio que foi Guy Debord, no seu livro A Sociedade do Espetáculo, que enfatizou pela primeira vez como a percepção dos governos era mais importante que o que realmente faziam. Esta semana, o Brasil sofreu um pequeno baque. No ranking da Transparência Internacional sobre percepção de corrupção, caiu para 104.º lugar entre 180 países. Não estamos bem na fotografia.

Nos últimos tempos, tenho enfatizado a necessidade de se preocupar com a imagem das instituições, sobretudo para evitar súbitas e inesperadas revoltas populares como aconteceu em 2013.

São coisas distintas corrupção e sua percepção pela sociedade. Nesse particular, o chamado orçamento secreto, que vigorou no governo Bolsonaro, foi mais longe, para além de apenas passos suspeitos: a Polícia Federal teve de investigar compra de material robótico para escolas que não tinham internet, superfaturamento de tratores e um escandaloso caso numa cidade do Maranhão onde, para aumentar os repasses de emendas parlamentares, todos os habitantes teriam quebrado o dedo em um ano.

Mesmo sem avaliar o mérito das decisões de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, elas deixam no ar um vazio que deveria ser preenchido com abundantes explicações. Por duas vezes denúncias contra Arthur Lira, presidente da Câmara, foram aceitas e, depois, rejeitadas pelo Supremo. Um duplo recuo. O ministro Dias Toffoli anulou uma multa de R$ 10 bilhões da J&F, mais tarde defendida nos EUA pelo ex-ministro da Corte Ricardo Lewandowski. Tudo isso merecia grande argumentação e, ainda assim, deixa no ar uma desconfiança que pode aumentar a percepção negativa, mesmo que o conteúdo das decisões não o seja.

A decisão do Supremo de permitir que os juízes julguem casos defendidos por parentes é medida que dificilmente escapa do paredão das dúvidas.

No Executivo, ministros indicados pelo Centrão, como o das Comunicações, aparecem em várias notícias. Recentemente, um ministro foi acusado de gastar fortunas em gasolina, com dinheiro da Câmara. Culpou o posto.

Despotismo cruzado, colocação de mulheres de políticos em tribunais de contas, uma série de práticas que produzem algumas notas rápidas, também contribuem para que o Brasil caia no ranking.

Talvez a batalha mais importante nesse particular esteja se dando no Congresso. Os parlamentares detêm R$ 47 bilhões do Orçamento. No momento, lutam para que não haja um corte de cerca de R$ 5 bilhões em emendas de comissão, uma espécie de recompensa pelo fim do orçamento secreto. Só de emendas chamadas PIX, dinheiro enviado para prefeituras, sem especificação do emprego, eles vão consumir R$ 8 bilhões. Como controlar o uso deste dinheiro enviado de forma tão, digamos, generosa?

E, como se não bastasse tudo isso, o Congresso aprovou uma verba de quase R$ 5 bilhões para financiar as eleições municipais. Devem ser uma das mais caras do mundo. Mesmo no tempo em que eram financiadas por empresas, o custo das eleições no Brasil rivalizava com o das norte-americanas.

Já se viu no passado que grandes campanhas repressivas contra a corrupção não resolvem. A desgraça da Lava Jato é um fator importante para analisar saídas.

Da mesma forma, grandes lições de moral entram por um ouvido e saem pelo outro. O caminho mais sensato é analisar esses dados, compreender que são negativos para atrair investimentos e avaliar os mecanismos de transparência e controle.

Sempre haverá teses de que nada disso importa, de que a percepção da corrupção é um problema da classe média e de que isso é apenas uma nota no pé de página da História.

Apesar da calma política que o País vive nas ruas, é possível dizer que esta percepção das instituições não é exclusiva das classes médias: há uma grande base popular que compartilha a desconfiança com as elites.

O ranking da Transparência Internacional é apenas um dado. Mas não deveria ser esquecido rapidamente, como tantas coisas que passam no Brasil. Elas indicam um acúmulo que não é sensato ignorar. Na história recente do País, esta larga percepção é instrumentalizada por falsos salvadores. Recentemente, foi a extrema direita que a capitalizou e acabou respaldando um orçamento secreto.

Desde a redemocratização, com a guerra contra os marajás, o slogan da ética na política, muitas tentativas falharam.

Talvez seja um passo adiante o fato de a percepção persistir, mas ter desaparecido a crença em soluções mágicas vindas da política. A mudança é mais lenta e, possivelmente, muito mais ampla do que simples troca de governos.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 02.02.24

Surpresa com Lula: seu Governo apresenta aumento da corrupção, maior que com Bolsonaro

O presidente brasileiro tropeçou no facto de as instituições do Estado serem dominadas pela corrupção e com as quais teve que fazer acordos para governar

Lula da Silva, presidente do Brasil, durante entrevista coletiva nesta quinta-feira em Brasília. (Sdriano Machado, Reuters) 

O Governo Lula, que veio reparar o desastre de Jair Bolsonaro, não se conforma com o resultado recentemente divulgado dos índices de corrupção registados pela ONG Transparência Internacional, a mais antiga e global da história da corrupção mundial. O partido de Lula, o PT, reagiu de forma dura e indignada.

Segundo esta ONG, o Brasil perdeu 10 posições nos índices mundiais, passando para a 104ª posição entre 180 países. Aparece como um dos países mais corruptos da América Latina e perdeu 30 cargos em relação ao último ano do governo Bolsonaro. Hoje o Brasil aparece em índices de corrupção no nível de países como Argélia, Sérvia e Ucrânia.

A BBC Brasil destacou sete razões para explicar este retrocesso nos índices de corrupção do Governo como “a falta de compromisso com a reconstrução dos sistemas e mecanismos de controlo da corrupção no primeiro ano de Governo”, entre elas, destaca, a interferência na autonomia das instituições, nomeando, por exemplo, seu advogado e amigo pessoal, Cristiano Zanin, para o Supremo Tribunal Federal, e não tendo respeitado a regra da lista apresentada pelos procuradores para a nomeação do importante cargo de Procurador-Geral do Estado, nomeando um católico conservador, amigo dele.

Em seu editorial da última quinta-feira, o jornal O Globo alertou que o aumento dos índices de corrupção no Brasil é um risco, pois “desincentiva os empresários a investir no país”. Lula preferiu ficar calado diante do aumento dos índices de corrupção e deixou sua defesa ao presidente do seu partido, o PT, sua fiel escudeira, Gleisi Hoffmann , que chegou a acusar a ONG Transparência de corrupção. “Explicar primeiro (referindo-se aos membros da ONG internacional) quem os financia, abrir as suas contas, explicar os seus negócios”, escreveu em X e acrescentou que se trata de um sistema de medição da corrupção global “onde a injustiça da lei” é é aplicado de acordo com os interesses do Governo e das elites."

Talvez a maior dificuldade de Lula esteja justamente na questão do combate à corrupção. Ao contrário dos seus dois governos anteriores, Lula teve de enfrentar o facto de as instituições do Estado, como o Congresso, o Judiciário ou os governos locais, serem dominadas pela corrupção e com as quais teve de se reconciliar, oferecendo-lhes ministérios e cargos em cargos públicos. o Estado, para poder governar e aprovar algumas das suas medidas mais importantes.

Existe o perigo de que também neste ano de eleições municipais Lula tenha que fechar os olhos ao apoiar candidatos ligados a Bolsonaro ou negociar com eles para poder escolher seus candidatos e não repetir as últimas eleições de 2020 em que seu partido fracassou abertamente ao não conseguir vencer um único grande governo local.

A dificuldade de Lula é justamente que ele se viu, seja no nível nacional ou local, com o poder nas mãos de políticos de extrema direita, com os quais ele precisa mais do que combatê-los de frente, mas negociar para recuperar terreno para ser capaz de realizar as reformas de fundo que pretende impor, precisamente para reduzir os índices de corrupção que envergonham um país.

O Governo Lula, como ao mesmo tempo reconhece a ONG Transparência Internacional, fez esforços no primeiro ano para renovar as instituições e as liberdades civis, bem como para reforçar os mecanismos de ajuda às classes mais necessitadas e reforçar as políticas sociais, algo que tem sido feito. reconhecido internacionalmente.

Daí a necessidade de Lula saber manter o equilíbrio neste ano, para compensar o desastre das eleições de 2020. Lula vai precisar de um equilíbrio forte para poder recuperar o poder local perdido sem fazer concessões excessivas à extrema direita que ele mantém, precisamente nesse poder local, a sua força reacionária.

Perguntar muito? Talvez, mas se ele sonha com um quarto mandato em 2026, quando completar 82 anos, ele e seu partido precisarão nestes três anos de governo mais do que realizar um duelo ideológico com seu antecessor Bolsonaro para apresentar ações concretas de profunda renovação social que até restaurar à direita não fascista a esperança de um Brasil renascido do pesadelo de Bolsonaro, que apesar de tudo, continua vivo e com aspirações de voltar ao poder.

Juan Arias, ao autor deste artigo é Jornalista. Publicado originalmente no EL PAÍS (Espanha), em 02.02.24

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Pessoas com mais de 70 anos podem escolher se casar com partilha de bens, decide STF

Por unanimidade, ministros afastaram regra do Código Civil que obrigava casais idosos a adotarem regime de separação de bens

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira, 1º, por unanimidade, que pessoas com mais de 70 anos podem se casar em regime de partilha de bens. A regra também vale para uniões estáveis.

A tese aprovada foi a seguinte: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes, mediante escritura pública.”

A decisão tem repercussão geral, ou seja, valerá como diretriz para todos os juízes e tribunais do País.

Pessoas com mais de 70 anos podem escolher se casar com partilha de bens, decide STF

O Código Civil impõe o regime de separação de bens – quando não há divisão de patrimônio em caso de divórcio ou morte de um dos cônjuges – para pessoas nesta faixa etária. Com a decisão do STF, o casal poderá escolher livremente o modelo patrimonial para a união.

Prevaleceu o posicionamento do ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, para quem a restrição viola a dignidade e a autonomia dos idosos.

“As pessoas têm o direito de fazerem as suas escolhas existenciais na vida”, defendeu. “No fundo, esse artigo está ali (no Código Civil) para proteger os herdeiros.”

Barroso também considerou que o artigo viola o princípio da igualdade por usar a idade como critério de “desequiparação”. Na avaliação do ministro, a norma incorre em etarismo.

Rayssa Motta, do blog do Fausto Macedo, originalmente para O Estado de S.Paulo, em 01.02.24

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A necessária renovação política, nos EUA e no Brasil

A falta de novas candidaturas, mais conectadas aos anseios da sociedade, poderá trazer desânimo aos mercados e à sociedade

Os EUA terão eleição este ano num clima de desânimo. De um lado, uma sociedade insatisfeita e, de outro, a incapacidade de renovação da política. Os partidos rivais não conseguiram construir candidaturas competitivas alternativas a Donald Trump e Joe Biden.

Nutre-se, assim, a polarização, que por sua vez, dificulta a construção de consensos necessários para atender aos anseios da sociedade, hoje mais complexa. Que o Brasil não siga o mesmo caminho

O desconforto da sociedade é revelado em pesquisas de opinião e nos indicadores de confiança. O baixo desemprego (3,7% em dezembro ante 14,9% no auge da pandemia e média histórica de 5,7%) e o recuo da inflação (3,3% ao ano em 2023 ante 8,9% em meados de 2022) não têm trazido maior satisfação aos indivíduos.

Afinal, não basta ter trabalho; as pessoas anseiam também por melhor qualidade de vida, igualdade de oportunidades e justiça.

O indicador de confiança do consumidor até aponta algum otimismo no curto prazo (o subíndice “situação presente” está em 148 pontos, ante média histórica de 100 pontos e pico de 187 pontos em julho de 2000, na gestão Bill Clinton), mas isso não se traduz em melhores perspectivas para os próximos meses (o subíndice “expectativas” tem oscilado em torno de 77 pontos, ante média histórica de 91,5 pontos). O descasamento está em níveis recordes.

A pesquisa Gallup traz outro ângulo do descontentamento: a desconfiança nas instituições. Apenas 27% das pessoas confiam na Suprema Corte (o pico foi 56% em 1988); 8% confiam no Congresso (42% em 1973); 26% confiam na Presidência (72% no início de 1991). O sentimento atinge ainda jornais (18%), grandes negócios (14%) e escolas públicas (26%), que também exibem aprovação em queda nas últimas décadas.

(Avanço: Previdência dos militares tem rombo de quase R$ 50 bi em 2023, alta de 3,6%)

O mal-estar social não é de hoje e não parece descolado da economia. Alguns indicadores econômicos dão pistas da insatisfação. A remuneração dos trabalhadores (corrigida pela inflação) tem aumentado menos do que os ganhos de produtividade do trabalho (produção por hora trabalhada). Entre 1985-2022, o rendimento real aumentou em média 0,4% ao ano, enquanto a produtividade cresceu em média 1,9% ao ano.

Como resultado, a participação dos salários no PIB teve um recuo relevante entre 1970 (51,6%) e 2013 (42%), com recuperação muito modesta nos últimos anos (43,1% em 2022). Enquanto isso, a distribuição de renda piorou desde os anos 1980, com pequena melhora em 2022, mas decorrente do achatamento da renda dos grupos do meio e do topo, e não do aumento da renda dos mais pobres.

Não se trata, portanto, de algo novo, ainda que a crise financeira (do subprime) de 2008 tenha piorado bastante os indicadores econômicos citados e recrudescido a insatisfação social, como aponta Luigi Zingales.

Parece justo, pois, afirmar que os EUA necessitam de renovação na política. Em que pese a solidez democrática daquele país, chama a atenção a incapacidade dos partidos de promoverem uma renovação nos seus quadros, de forma a permitir uma corrida presidencial arejada este ano.

Falta, de lado a lado, um olhar para a insatisfação da sociedade. E aqui não há grandes diferenças entre eleitores dos partidos Democrata e Republicano.

Apesar da maior blindagem da economia americana ao ciclo político, o quadro atual de polarização dificulta o enfrentamento de problemas que afetam a sociedade. No ano passado, a agência de classificação de risco Fitch reduziu a nota de crédito de longo prazo dos EUA, por conta da deterioração fiscal, citando os repetidos impasses no Congresso para a elevação dos limites de dívida.

Apontou ainda o enfrentamento insatisfatório de questões como saúde pública e seguridade social diante do envelhecimento da população.

O quadro no Brasil guarda algumas semelhanças, certamente agravado pela renda per capita muito menor e a pior distribuição de renda. A necessidade de reformas estruturais é muito maior aqui, e o ciclo político tem maior efeito na economia. Por esse aspecto, a renovação da política ganha importância ainda maior.

Está cedo para discutir os nomes de candidatos para 2026. Ainda assim, um quadro em que não se vislumbre a construção de novas candidaturas, mais conectadas aos novos anseios da sociedade e de modo a reduzir a polarização extrema, poderá trazer desânimo, aos mercados e à sociedade.

Zeina Latif, a autora deste artigo, é economista. Publicado originariamente n'OGlobo, em 31.01.24


Alta na percepção de corrupção traz custo ao Brasil

Recuo do país em ranking global expõe enfraquecimento de instituições de controle depois da Lava-Jato

Ação da Operação Lava-Jato em 2020 (Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo)

O Judiciário — em especial os tribunais superiores — deveria dar atenção à última lista de percepção da corrupção global preparada pela Transparência Internacional. A sensação de um ambiente contaminado por negociatas tem custo enorme para a reputação brasileira e afasta empresas e investidores sérios do país.

Numa escala em que zero é o cenário menos e cem o mais corrupto, o Brasil ficou com 36 pontos. Caiu dez posições, para o 104º lugar entre 180 países. Merece reflexão o histórico dos últimos dez anos. Em 2014, início da Operação Lava-Jato, eram 43 pontos. De lá para cá, a trajetória, com altos e baixos, foi descendente. Os piores resultados aconteceram em 2018 e 2019, quando a pontuação foi 35, patamar equivalente ao atual.

(Recuo: Brasil perde dez posições em ranking internacional de percepção da corrupção)

Medir corrupção é das tarefas mais difíceis. Negociatas são feitas nas sombras justamente para ficarem longe do escrutínio público. Paradoxalmente, um aumento no combate à corrupção pode, com a revelação dos esquemas, contribuir para a percepção de que houve aumento na roubalheira. Um ranking que apenas somasse os valores descobertos em operações ilegais penalizaria os países dispostos a coibi-las. Por isso a análise baseada em percepção, de preferência com prazo mais alongado, é medida mais precisa.

O efeito da Lava-Jato foi inequívoco no caso brasileiro. Embora a governança das estatais nunca tenha sido exemplar, a extensão dos desvios na Petrobras despertou incredulidade. Fora do círculo criminoso, poucos imaginavam que estivesse na casa dos bilhões. Com as investigações e condenações, os brasileiros tiveram a esperança de ver criminosos de colarinho branco enfim punidos com o rigor da lei. Mas os erros do então juiz Sergio Moro e dos procuradores abriram espaço a um contra-ataque no meio político e no Judiciário. A reação representou um retrocesso que tenta apagar tudo o que veio à tona — e enfraqueceu mecanismos institucionais que disciplinam a relação entre as empresas e o Estado.

Indicações de Lula, estatais e atuação do Centrão: 5 pontos que explicam queda do Brasil em ranking de percepção da corrupção

A Transparência dá uma série de exemplos dessa erosão. Houve, nas palavras do relatório Retrospectiva Brasil 2023, desmanche provocado pela “ingerência sistemática” em instituições como Procuradoria-Geral da República, Polícia Federal e Abin. No próprio Judiciário, a partir da reviravolta dos casos da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, ficou patente um recuo sistemático — e não apenas nos processos da Lava-Jato. “Talvez os exemplos mais graves tenham sido as ações sob relatoria do ministro Dias Toffoli”, afirma o relatório. Monocraticamente, ele atendeu a demandas “que tiveram imenso impacto sobre a impunidade de casos de corrupção que figuraram entre os maiores da história mundial”. Em setembro, Toffoli anulou todas as provas da delação da Odebrecht. Em dezembro, noutra decisão provisória, suspendeu as parcelas da multa de R$ 10,3 bilhões que a J&F pagava no âmbito da Operação Greenfield.

As duas medidas, que deveriam ser avaliadas por um colegiado de ministros, dão apenas um exemplo da frustração que se abateu sobre quem vira na Lava-Jato a esperança contra mazelas históricas do capitalismo brasileiro. A derrocada no ranking da Transparência não será revertida enquanto a Justiça não demonstrar à sociedade que o respeito — sempre necessário — aos direitos dos réus e investigados não equivale à impunidade. Ainda é possível escrever uma história diferente.

Editorial de O Globo, em 31.01.24

Polarização como vício

          As declarações recentes de Lula mostram um presidente capturado pela ideia de contraposição com Bolsonaro

Bolsonaro e Lula: antagonismo que se retroalimenta — Foto: Fotos: AFP

Não bastasse o mal que faz ao debate público, o desgaste que causa às instituições de Estado e o risco que representa para a própria democracia, a polarização política virou uma muleta que os dois lados que dela se alimentam passaram a usar para justificar todas as suas mazelas e exigir do público complacência com as inconsistências de seus projetos de governo.

O clã Bolsonaro — investigado em múltiplas frentes por suspeitas que vão de aparelhamento de Estado e tentativa de minar o processo eleitoral, por parte do patriarca e ex-presidente, a traficâncias várias por que são investigados os filhos — coloca tudo no saco da perseguição política do PT, do Judiciário e da imprensa.

Mais: essa sanha incontrolável não estaria voltada apenas à família, mas seria destinada a abater toda a direita e o pensamento conservador, incluídos aí cristãos, por meio de uma cruzada religiosa.

Trata-se de uma tática tão surrada quanto ainda eficaz de criar uma cortina de fumaça para fatos de extrema gravidade. A parcela do público que reza segundo a cartilha do bolsonarismo compra de forma acrítica essa explicação, que não se sustenta de pé e funciona como elixir para tudo, de Abin paralela a joias ofertadas por um país ao governo brasileiras e vendidas sorrateiramente.

Qual seria o antídoto para evitar que esse expediente diversionista continuasse vicejando? Que o outro lado da disputa política aposentasse as práticas e restabelecesse no trato da política e da coisa pública parâmetros mais impessoais e racionais de atuação. Mas nem sempre tem sido assim.

O episódio em que a Secom de Lula usou suas redes sociais para lacrar em cima da operação que teve Carlos Bolsonaro como alvo mostra que os expedientes usados pelo adversário foram em parte absorvidos pela nova gestão. Às favas o que diz a Constituição quanto aos princípios que devem nortear a administração e a comunicação públicas.

Não bastasse ser antirrepublicano, o uso partidário das redes de um órgão de Estado dessa forma ainda corrobora de modo pouco inteligente o discurso do clã Bolsonaro de que é vítima de perseguição. O vício na polarização é de tal natureza que não há ninguém para apontar, se não o desvio de finalidade de uma ferramenta pública, ao menos a pouca inteligência da “sacada”.

As declarações recentes de Lula também mostram um presidente totalmente capturado pela contraposição com o bolsonarismo, como se apenas isso pudesse ser um projeto de governo capaz de assegurar sua reeleição daqui a três anos. A volta por cima do trumpismo, a vitória de Javier Milei na Argentina e outras rebordosas de países igualmente mergulhados num embate entre antípodas políticos deveriam mostrar o risco de não quebrar esse mal.

O presidente foi aconselhado, ainda na aurora de seu terceiro mandato, a não incorrer na armadilha de trazer o “coiso”, como seus ministros se referiam a Bolsonaro, à cena a cada declaração. Um ano depois, segue fazendo isso e tropeçando em cada casca de banana que o antecessor coloca em seu caminho, como a reação a suas declarações mais recentes, depois de uma live marcada justamente para medir forças num terreno — as redes sociais — onde a polarização redutora é fermentada.

Lula deveria estar cobrando soluções de seus ministérios para nós concretos que podem macular sua gestão, e não usando uma conferência sobre educação para dizer que “vai ter polarização” e que ele acha “bom que tenha” nas eleições municipais. O resultado é abrir o flanco para a acusação de que a educação é palco de uma guerra ideológica, exatamente como Bolsonaro fez, a um preço altíssimo para o país.

Ao aceitar que a eleição de 2024 será um repeteco da de 2022, Lula contribui para manter Bolsonaro forte até 2026. E anabolizado pelo discurso de que as graves acusações que pesam contra ele e seu governo são apenas e tão somente vingança política.

Vera Magalhães, a autora deste artigo, é Jornalista. Analisa os principais fatos da política, do Judiciário e da economia. Publicado originalemnte n'O Globo,em 31.01.24

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

O recado que Bolsonaro enviou a Moraes sobre Carluxo quando era presidente

A preocupação de que Carlos Bolsonaro fosse alvo de uma operação da Polícia Federal acompanha Jair Bolsonaro desde os tempos que ocupava a Presidência.

(A paranoia de Carlos Bolsonaro com seu celular apreendido pela PF / PF apreende celular de Carlos Bolsonaro e três computadores na casa de Angra)

Ainda no comando do Executivo, Bolsonaro pediu a interlocutores que procurassem o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes para pedir que não mirasse o seu filho.

Um ex-integrante do governo anterior e um membro do Judiciário relataram à coluna que buscaram Moraes, de maneira reservada, para levar o pedido do então presidente.

Na época, havia especulações de que Carlos Bolsonaro seria alvo de investigações da Polícia Federal por comandar o ‘gabinete do ódio’, formado por servidores da Presidência da República e focado em destruir reputações de desafetos do governo.

A primeira ação efetiva contra Carlos Bolsonaro ocorreu nesta segunda-feira, no âmbito da investigação que apura a formação de uma Abin paralela para monitorar autoridades e pessoas consideradas inimigas da família Bolsonaro. O vereador foi alvo de um pedido de busca e apreensão.

Bela Megale, a autora deste informe, é repórter d'O Globo, especializada em investigações criminais, bastidores do poder e a vida política de Brasília. Publicado originalmente em 30.01.24

Gasto não é sinônimo de eficiência

Estudo do Tesouro Nacional sobre despesas com ordem pública, segurança e tribunais de Justiça mostra o prejuízo duplo da população: o Brasil gasta muito para manter serviços ruins

Tem algo de muito errado num país que, enquanto enfrenta gravíssimos e não resolvidos problemas de violência, gasta com ordem pública e segurança 3% do Produto Interno Bruto (PIB), o maior índice entre 53 países selecionados, acima da média das nações que integram o G-20 e mais ainda do que o padrão das economias avançadas. Esse foi o resultado mais eloquente – e perturbador – de um estudo produzido pela Secretaria do Tesouro Nacional.

Intitulado Despesa por Função do Governo Geral, com dados do IBGE, da Secretaria de Orçamento Federal e do próprio Tesouro referentes a 2021, o levantamento também escancarou outro descompasso: a despesa bilionária do Brasil com o sistema de Justiça na comparação com os demais analisados. Gastamos três vezes mais do que a média internacional (1,6% do PIB, ante 0,37%), na rubrica na qual se incluem os Tribunais de Justiça (estaduais e regionais), o Ministério Público e o Supremo Tribunal Federal.

Tanto num caso quanto em outro, o País concentra suas despesas em salários e benefícios, e menos no que efetivamente importa para torná-lo mais seguro e com um sistema de Justiça eficiente – mais uma evidência de que gastos elevados não compram serviços melhores. No caso da segurança e da ordem pública, a anomalia é puxada para cima pelas despesas com os tribunais, historicamente tisnados por alguns dos mais altos salários do serviço público, pela profusão de verbas indenizatórias e incontáveis penduricalhos e acréscimos que dão maior musculatura às remunerações. Se consideradas apenas as despesas com os serviços de polícia, proteção de incêndios, estabelecimentos prisionais e pesquisa e desenvolvimento, a realidade seria distinta. O gasto com os serviços policiais é 0,1 ponto porcentual menor do que nos países emergentes e apenas 0,1 ponto maior do que a média internacional. Já em relação aos estabelecimentos prisionais, o Brasil segue os parâmetros globais, com gasto de 0,2% do PIB.

A Associação dos Juízes Federais do Brasil e a Associação dos Magistrados Brasileiros questionam os elevados índices destacados pela imprensa. Argumentam que o levantamento não leva em conta as particularidades dos países analisados. Citam países que não incluem nas despesas do Judiciário os custos com infraestrutura, ressaltam nações com população bem menor do que a brasileira e destacam o fato de o Brasil ter um alto número de processos ajuizados e julgados, acarretando maior demanda sobre seu sistema de Justiça.

O argumento ignora alguns pontos relevantes. Primeiro: embora comparações internacionais acabem de fato desconsiderando particularidades domésticas, a distância do Brasil em relação aos melhores exemplos internacionais é bastante elevada. Segundo: está-se falando na proporção em relação ao PIB, portanto importa menos se o País é pequeno ou grande. Terceiro: o espanto com o tamanho das despesas não se resume ao número em si, pois todas as análises confrontaram as despesas elevadas com a baixa qualidade dos serviços.

O Brasil gasta muito para manter serviços piores. Não provê segurança pública de qualidade, como atestam sucessivas pesquisas que apontam o tema como um dos principais problemas e temores lembrados pela população. Não tem uma Justiça ágil e acessível, muito menos um sistema prisional corretivo e eficiente – ao contrário, é marcado por décadas de superlotação, violações dos direitos humanos e submissão perigosa a facções criminosas. E nosso sistema de Justiça apresenta alto custo e baixa efetividade, especialmente na Justiça Criminal, um funcionamento burocratizado e pouco acessível à população.

Por fim, reafirme-se, há a realidade incontornável das generosas benesses salariais como uma das anomalias do Judiciário. Tem-se aí a maior concentração de fura-teto da administração pública. Ainda que um projeto limitando supersalários no setor público tenha sido aprovado pela Câmara em 2021, o texto esbarrou no Senado – e, ainda que venha a ser aprovado, considera válidos mais de 30 tipos de pagamentos, entre indenizações, direitos adquiridos ou ressarcimentos. A conta não fecha.

Editorial / Notas e Informações Informações, O Estado de S. Paulo, em 30.01.24

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Os negócios bilionários do marido de Marta em meio à sua volta ao PT

Projeto que seguia em trâmite desde 2020 passou por aprovação no Senado e na Câmara em meio às conversas entre Marta e o PT

Imagem colorida mostra Rui Falcão, Lula, Marta e Márcio Toledo, sorrindo em uma foto posada, com lula de mãos dadas para Marta, todos olhando para a Câmara, no Palácio do Planalto - Metrópoles

São Paulo – O governo federal articulou a aprovação de um projeto de lei no Congresso que atendeu a interesses de uma entidade presidida por Marcio Toledo, marido de Marta Suplicy, paralelamente às negociações entre a ex-prefeita de São Paulo e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que ela retornasse ao PT e disputasse as eleições da capital neste ano ao lado de Guilherme Boulos (PSol).

Toledo tem empresas no setor de infraestrutura e energia e, em setembro passado, criou com outros empresários a Associação Brasileira de Armazenamento de Energia (Armazene), entidade encarregada do lobby do setor junto ao poder público.

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Uma das pautas do setor era a aprovação de um projeto de lei, apresentado no segundo semestre de 2020 pelo deputado João Maia (PP-RN), que permitia que empresas privadas detentoras de contratos com o setor público pudessem emitir debêntures (títulos de dívidas) para financiar seus investimentos.

A pauta era suprapartidária e tinha coassinatura de parlamentares que iam do PT ao PL. O texto havia sido aprovado na Câmara ainda em 2022, mas só no fim de setembro foi votado no Senado – e retornou à Câmara com emendas.

Negociações em paralelo

Toledo esteve em Brasília, no fim de novembro, com outros representantes da Armazene para um congresso do setor de energia. Na ocasião, reuniu-se como representante do setor com o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, segundo o site da entidade. O encontro não estava na agenda do ministro.

Naquela ocasião, contudo, segundo membros do PT, ele já havia sido informado sobre o interesse de Lula por Marta, e o casal já havia iniciado as conversas com os petistas, em paralelo ao trabalho de Toledo com as empresas de energia.

O texto das debêntures entrou na pauta de votações da Câmara duas semanas depois do encontro com Padilha. O relator do projeto foi o deputado federal Arnaldo Jardim (Cidadania-SP).

Além de empresário e deputado federal, Jardim é presidente do conselho consultivo da Armazene.

Durante a votação do texto na Câmara, Jardim fez questão de agradecer publicamente, no microfone do plenário, ao líder do governo na Casa, José Guimarães (PT-CE), que “pessoalmente diligenciou para que a matéria pudesse vir a plenário”.

Dois dias depois da aprovação final do texto, Marta deixou a Prefeitura de São Paulo, alegando férias. Na época, embora uma série de notícias sobre seu retorno ao PT já circulasse na imprensa, ela não havia conversado sobre o tema com o prefeito Ricardo Nunes (MDB), de quem era secretária de Relações Internacionais.

Acordo fechado

Lula recebeu Marta e Toledo em seu gabinete na segunda-feira (8/1), quando fecharam o acordo sobre o retorno dela ao PT. O grupo posou junto para fotos ao lado do deputado federal Rui Falcão (PT-SP), que participou do diálogo para a mudança de partido. Dois dias depois, o presidente sancionou o projeto de lei das debêntures.

Na prefeitura, aliados de Nunes – que não esconde a mágoa de Marta por ter sido trocado por Boulos e o PT – afirmam, reservadamente, que a aprovação do projeto das debêntures foi uma das “moedas de troca” oferecidas ao casal Marta e Toledo para a mudança de lado da ex-prefeita.

O Metrópoles procurou Toledo para comentar o caso por meio da assessoria de imprensa de Marta, que não enviou nenhuma resposta.

Incentivos bilionários

Segundo o site da própria Armazene, a nova lei deve injetar recursos da ordem de R$ 200 bilhões somente no setor de energia.

Outros setores da economia, contudo, também defendiam a aprovação da proposta. Durante a tramitação no Senado, o relator do projeto na Casa, Rogério Carvalho (PT-SE), estimou que a norma poderia alavancar R$ 1 trilhão em investimentos no país.

O PSol, partido de Boulos, foi contrário ao texto final, diante da constatação de que empresas que detiverem contratos de concessão de escolas, presídios e hospitais também possam aproveitar o novo benefício.

O projeto autoriza que empresas que detêm contratos de concessão com o poder público ou participem de Parcerias Público-Privadas (PPPs) possam emitir debêntures (títulos de dívida) ao mercado para financiar seus projetos, e que esses títulos possam ser adquiridos também por fundos de pensão.

Além disso, o texto prevê incentivos tributários para as empresas que financiam projetos de infraestrutura e emitem os títulos. A nova lei ainda precisa de um decreto de regulamentação.

Bruno Ribeiro, originalmente, de S. Paulo para o Metropóles, em 29.01.24

Força da grana move Brasília

Os políticos brasileiros estão passando dos limites, uma forma de perder a sabedoria

Plenário do Congresso Nacional

No fim do século passado, um famoso artigo de Francis Fukuyama previu o fim da História. Errou o alvo, ainda bem, porque, sem as peripécias da História, nossa vida seria tomada pelo tédio e pela melancolia. Apesar disso, há momentos arrastados na História do Brasil, como essa briga do Congresso por verbas do Orçamento, algo tão chato como uma reunião de condomínio.

No entanto, se vencermos as barreiras do tédio, veremos que estamos diante de algo essencial para nossa vida cotidiana e mesmo para o futuro da democracia. Trava-se uma luta pela grana que todos pagam em impostos. Teoricamente, esse dinheiro deveria ser usado de uma forma racional para a prestação de todos os serviços que o Estado nos deve.

Isso é tão importante que, nas revoltas de 2013, segundo muitos observadores, houve protesto porque o Estado não devolvia em serviços eficazes o grande volume de impostos pagos a ele.

O avanço do Congresso sobre o dinheiro a ser gasto tem sido intenso nos últimos anos. Alguns ainda se lembram do orçamento secreto do período Bolsonaro. Era ilegal e acabou caindo por ordem do STF. Mas a força do Congresso é tão grande que ele continua impondo ao governo altos gastos em suas emendas parlamentares. Só no Orçamento deste ano, a coisa vai para mais de R$ 47 bilhões. Isso sem contar os quase R$ 5 bilhões que destinaram ao financiamento das eleições municipais.

Não vai dar certo. O dinheiro já é curto e, se não for usado com o máximo de racionalidade, com visão nacional, as frustrações podem aumentar. Salário mínimo um pouco melhor não basta. Há outros fatores — como escola pública de qualidade, saneamento, hospitais razoáveis — que influenciam a sensação de pobreza ou bem-estar.

Os deputados dizem que não há problemas se destinarem grande parte da grana nacional para suas obras. Afinal, argumentam, ninguém conhece melhor o país do que eles. Acontece que conhecem tão bem, a ponto de saber qual obra dá mais votos que a outra, e de modo geral sempre optarão por bons resultados eleitorais.

Na época do orçamento secreto, houve coisas do arco-da-velha que, provavelmente, continuarão acontecendo. Escolas receberam equipamento de robótica e não tinham sequer conexão com a internet. O episódio mais pitoresco ocorreu em Igarapé Grande, no Maranhão, onde a Polícia Federal fez a Operação Quebra-Ossos. O município tem 12 mil habitantes, mas registrou gastos de raio X com 7.500 dedos quebrados. Inimaginável o que fizeram com as mãos para chegar a esses números. Há registro também, noutros pontos do país, de tratoraços, a compra de tratores por preços superfaturados.

Sinceramente, não escrevo com intenções moralistas. A esta altura da vida, fora da política, trabalho outras categorias, distante do protesto indignado. Prefiro fazer parte de uma discreta versão moderna de um coro grego, como na Antígona. Qualquer procura humana que ignore limites, sugere Sófocles, inevitavelmente trará a desgraça.

Surfando numa conjuntura de tolerância com os erros, os políticos brasileiros estão passando dos limites, uma forma de perder a sabedoria. Com todos os pequenos deslizes recebidos com silêncio pela sociedade, avançam cada vez mais rumo a uma dominação indiscriminada, voltada apenas para o próprio umbigo.

Todos sabemos das grandes necessidades do país. Sabemos também que, mesmo usando racionalmente os recursos, não conseguiremos satisfazê-las, o cobertor é curto.

O uso leviano do dinheiro arrecadado, gastos milionários com partidos políticos, isso é muito perigoso. Em 2013, tudo parecia bem, até que alguma coisa explodiu. Há tempo de corrigir o rumo, embora seja difícil imaginar como o gênio voltará para a lâmpada, como o Congresso se conformará em não ter tanto dinheiro para se perpetuar no poder. Infelizmente, é disso que se trata. Os donos da grana se reelegem, e as coisas nunca mudam por lá.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Publicado originalmente n'O Gobo,em 29.01.24

O poder de uma sociedade unida

35 anos da volta das diretas para presidente e 30 anos do real servem para lembrar que brasileiros são capazes de feitos extraordinários quando se unem em torno de objetivos comuns

Tempo de homens púbicos com espirito público - Brizola, Ulisses, Tancredo, Montoro, FHC (a unica mulher na foto é D.Mora, a mulher do Ulisses).

Em 2024, completam-se 35 anos da retomada das eleições diretas para o cargo de presidente da República no País e 30 anos do Plano Real. Ambos os marcos históricos revelam, inequivocamente, que a sociedade brasileira é capaz de feitos extraordinários quando decide se unir em torno de propósitos comuns; quando é capaz de reconhecer que há questões de interesse nacional que se impõem às diferenças político-ideológicas que possa haver entre os cidadãos – de resto um atributo próprio de qualquer democracia vibrante.

Essa união dos cidadãos para reaver um direito político elementar e recuperar o valor de sua moeda, com o fim da hiperinflação, não surgiu por geração espontânea nem de longe foi obra do acaso. Tampouco derivou de diferenças essenciais entre o povo brasileiro de então – meados das décadas de 1980 e 1990, respectivamente – e o de hoje. O povo brasileiro segue o mesmo, com todas as suas potências e limitações.

O que, então, houve de diferente na mobilização da sociedade para superar um dos últimos resquícios da ditadura militar e para derrotar a inflação que havia décadas corroía a renda dos brasileiros, ampliava desigualdades e, como se não bastasse, desviava a atenção da Nação de outras questões tão ou mais graves? A resposta é simples: líderes políticos à altura dos desafios de seu tempo.

A redemocratização do País e, consequentemente, a retomada do direito de voto direto para a Presidência da República decorreram de um longo processo de negociações políticas e engajamento social que decerto teria outro desfecho não fossem a liderança e o espírito público de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, André Franco Montoro e Fernando Henrique Cardoso, entre outros, àquela época.

De igual modo, o Brasil dificilmente teria vencido a hiperinflação sem que Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso tivessem a visão digna de estadistas de que aquele problema obstava o enfrentamento de todos os outros. E não só: sem que ambos os presidentes tivessem sido capazes de montar uma equipe altamente qualificada, dadas as credenciais técnicas e republicanas de seus membros, para auxiliá-los naquela faina. Destaca-se, por fim, a capacidade de comunicação de Fernando Henrique para dialogar com todos os cidadãos em termos compreensíveis, a fim de dar-lhes a dimensão do desafio a ser enfrentado e dos sacrifícios que haveriam de ser feitos em nome daquele objetivo coletivo.

As eleições indiretas e a hiperinflação ficaram para trás e, neste ano, a sociedade tem razões de sobra para celebrar ambas as conquistas: há eleições livres e periódicas no País e a inflação já não assombra os brasileiros como há mais de três décadas. Isso não significa, por óbvio, que não haja desafios tão ou mais prementes do que aqueles a demandar, hoje, a atenção coletiva. Desigualdades persistem em níveis obscenos, malgrado avanços pontuais nos últimos anos. A educação pública segue negligenciada, em particular o ensino básico. O medo da violência paralisa quase todos os brasileiros. A lista é longa.

O que parece não haver mais são estadistas imbuídos de um interesse genuíno de, mais uma vez, unir os brasileiros e concertar soluções para cada uma dessas mazelas. Os dois presidentes mais populares da história recente do País, Lula da Silva e Jair Bolsonaro, vivem de insuflar a cizânia entre os brasileiros, fazendo crer, cada um a seu feitio, que adversários políticos são inimigos a serem alijados do debate público. Ao contrário de unir os cidadãos em torno de propósitos comuns, tanto Lula como Bolsonaro reforçam o tribalismo – a união entre os que veem o País e o mundo pelas mesmas lentes – e a exclusão de quem pensa diferente.

Não haverá progresso enquanto novas lideranças não se erguerem inspiradas por espírito público e senso de união; e os cidadãos se deixarem seduzir pelo discurso populista, agrupando-se em identidades políticas estreitas e inflexíveis. Tanto pior no contexto em que crenças particulares, cada vez mais, se sobrepõem à verdade factual.

Editorial \ Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, em 29.01.24

sábado, 27 de janeiro de 2024

Não foi essa a agenda que venceu a eleição

Lula ainda não entendeu que só ganhou a eleição porque a alternativa era Bolsonaro. Ao tentar impor agenda petista de desbragada intervenção estatal, ele flerta com o desastre

Diante da péssima repercussão da crescente pressão do governo petista para que a Vale aceitasse colocar o ex-ministro Guido Mantega na presidência da empresa, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, correu a dar explicações, dizendo que o presidente Lula da Silva jamais interviria numa empresa de capital aberto. Acredita quem quer.

O fato é que a pressão existiu, desvalorizando as ações da Vale – que, sintomaticamente, voltaram a se valorizar depois da informação de que o governo teria desistido de impor Mantega. E esse caso em particular, sobretudo por tratar de ingerência numa empresa que não pertence ao governo há 27 anos, é um dos principais sintomas de que Lula da Silva está convencido de que conquistou seu terceiro mandato não para “defender a democracia”, como apregoou na campanha, mas para impor a agenda petista de desbragada intervenção estatal.

A ofensiva lulopetista sobre a Vale já seria indecorosa mesmo se fosse uma iniciativa isolada, mas está longe de ser. Tudo parece fazer parte da visão fantasiosa segundo a qual o Brasil elegeu Lula para dissipar o pouco progresso que o País fez para regular o apetite estatal. O governo, por exemplo, decidiu entrar na Justiça para retomar assentos que perdeu no Conselho de Administração da Eletrobras após a privatização, retomar investimentos na malfadada Refinaria Abreu e Lima, resgatar a combalida indústria naval e lançar uma política industrial que só gerou apreensão – em suma, retomar políticas fracassadas e marcadas pela mão pesada do Estado.

Está claro que a única preocupação no horizonte de Lula da Silva são as eleições. De olho nos desdobramentos da disputa municipal, o presidente corre para recriar bandeiras ideológicas que impulsionem os candidatos a prefeito do PT e de partidos aliados. Vê nisso um caminho para ampliar a rede de apoios regionais e fortalecer sua própria candidatura à reeleição em 2026, bem como ampliar a base aliada no Congresso.

Lula da Silva, no entanto, parece ter dificuldade de entender o contexto que o levou à conquista do terceiro mandato. Parece ter esquecido que venceu a disputa eleitoral mais acirrada da história por pouco mais de 2 milhões de votos – uma diferença que não chegou a alcançar 2% dos votos válidos.

Se isso não diminui sua vitória, deveria fazê-lo refletir sobre as razões pelas quais não conseguiu impor uma derrota acachapante a um presidente que atacou a democracia e as instituições ao longo de todo o seu mandato.

Muitos dos votos que Lula obteve no segundo turno não representaram apoio incondicional ao petista e às suas políticas, mas uma rejeição inequívoca à figura intragável de Jair Bolsonaro, que, durante a pandemia de covid-19, boicotou medidas preventivas, postergou a compra de vacinas e debochou da morte de milhares de brasileiros.

Ao convidar o ex-adversário Geraldo Alckmin para compor sua chapa como vice-presidente e obter o endosso de Simone Tebet entre o primeiro e o segundo turnos, o petista pôde assumir o discurso de uma “frente ampla” sem o qual certamente não teria sido eleito.

O tom conciliador que Lula adotou assim que foi eleito começa a dar lugar a um revisionismo histórico que nega os equívocos que permearam a malfadada “Nova Matriz Econômica”. A nova política industrial recentemente apresentada, por exemplo, é um compilado das ideias atrasadas que tantos prejuízos causaram ao longo da trevosa era petista, em especial durante a terrível passagem de Dilma Rousseff pela Presidência. Lá estão as exigências de “conteúdo local” e o velho protecionismo que incentivam o subdesenvolvimento.

A mera cogitação do nome de Guido Mantega para fincar a bandeira do governo na direção da Vale mostra que Lula quer mesmo reescrever a história da passagem do PT pelo poder. Mantega, como poucos, representa o desastre petista. Ao tentar reabilitá-lo, Lula quer na verdade que o País se convença de que esse desastre nunca aconteceu. Vai ser difícil.

Editorial \ Notas & Informações, O Estado de S. Paulo,em 27.01.27

Para os amigos, tudo

Culpados, com sentenças em todas as instâncias, não são declarados inocentes. Apenas se arranja uma formalidade, e todo mundo livre

A Petrobras foi alvo de corrupção — Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Quando a descoberta dos casos de corrupção estava no auge, derrubando políticos e empresários, tive uma boa conversa com Fernando Henrique Cardoso, já ex-presidente, sobre as relações perversas entre os interesses públicos e privados no Brasil. Um grande empresário, que começava a ser apanhado, havia dito a interlocutores que estava em curso a formação de ampla aliança para acabar com aquela sangria. FH estaria nesse movimento.

De jeito nenhum, disse o ex-presidente quando o procurei para checar a história. Lembro que ficou bem incomodado. Falou com várias pessoas para entender e desmentir a versão do empresário — que, aliás, acabou preso e fez delação.

Para além dos fatos, a questão que colocava para o político e sociólogo FH era a seguinte: como o país havia sido tão tolerante com a corrupção? Pensando bem, o que mais chamava a atenção na Lava-Jato e noutras operações não era propriamente a roubalheira revelada, mas o fato de, finalmente, apanharem os corruptos.

Caramba! Pegaram os caras — essa parecia a surpresa.

FH apontou para certa cultura espalhada pela sociedade: em geral, as pessoas acham que, aparecendo a chance, têm o direito de se aproveitar do Estado. Ou melhor, têm o justo privilégio de obter alguma vantagem. Isso vai desde tirar uma casquinha, como estacionar num lugar proibido ou cavar uma mordomia para o Sambódromo, até roubar a Petrobras ou assaltar o Orçamento da União.

O ex-presidente então me contou algo que acontecera naquele dia mesmo. Um familiar pedira a ele para usar o carro oficial, com motorista, à disposição do ex-presidente. Para ir ao aeroporto. FH explicou: o veículo era “institucional”, para uso oficial de uma autoridade. Ofereceu-se para pagar um táxi. Disse que o familiar reclamou da má vontade.

O antropólogo Roberto DaMatta tem tratado desse tema. Cita Oliveira Viana para acentuar a chave da política nacional: “Temos todas as coragens, menos a de negar o pedido de um amigo”.

Adhemar de Barros, que foi governador de São Paulo, sabia bem. Dizia:

— Amigo meu não fica na estrada.

E nomeava todo mundo.

E hoje? Parece que estamos voltando ao normal. O empresário ali do início foi ao Judiciário para anular a delação e cancelar as multas. Está quase conseguindo. As condenações aos corruptos têm sido anuladas. Reparem: os então culpados, com sentenças em todas as instâncias jurídicas, não são declarados inocentes. Apenas se arranja uma formalidade, e todo mundo livre. Os réus ficam satisfeitos. Não lhes ocorre pleitear uma sentença de absolvição. Preferem seguir na linha do “não aconteceu nada”.

Os pedaços do bolo continuam na mesa. Nesta semana, o Tesouro Nacional divulgou estudo mostrando que os tribunais brasileiros gastaram 1,6% do PIB em 2021, algo como R$ 160 bilhões. São os mais caros entre 53 países analisados. Do total, nada menos que 80% (perto de R$ 130 bilhões) correspondem a remuneração de juízes e servidores. E onde estão os melhores salários? No Judiciário — onde os próprios interessados inventaram truques para ultrapassar o teto salarial de R$ 41 mil por mês, que já não é pouca coisa.

Segundo dados do IBGE, a renda média real do trabalhador brasileiro chegou a R$ 3.034 no final do ano passado. Em alta. Mas ganhar 13 vezes mais que a média nacional não parece suficiente. São frequentes as remunerações que ultrapassam de longe os R$ 41 mil, tudo no rigor da lei, interpretada pelos próprios juízes. Se os juízes consideram normal que eles próprios fixem seus salários, e fazem isso generosamente, onde reclamar? É como se um juiz atendesse ao pedido do outro, seu amigo.

A gente até entende que as pessoas achem melhor buscar suas próprias vantagens. Se os de cima podem, por que não os de baixo? Como dizia Stanislaw Ponte Preta, nos anos 1960: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos”.

O problema é que não tem para todo mundo. Se você não tem amigos no governo, cai no rigor da lei. É por isso que se vê essa onda de nomeações quando um partido ou um grupo chegam ao poder. Melhor aproveitar. O que queriam, que nomeassem os inimigos?

Carlos Alberto Sardenberg, oo autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Globo, em 27.01.24


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Tribunais no Brasil têm custo acima da média global e consomem 1,6% do PIB

Relatório do Tesouro Nacional compara a despesa no País com a de outras 53 nações; gasto brasileiro com o sistema de Justiça é muito superior à média dos países analisados


É assim que (não) funciona. O Direito amarrado entre a arrogância da preguiça intelectual, quase sempre na falta de vocação e de espirito público em grande parte dos juízes e a Justiça enredada na má vontade serventuária dos balcões e totalmente dominada pela burocracia processual.

O Poder Judiciário brasileiro concentra parte da elite do funcionalismo público, que recebe salários próximos do teto constitucional pago a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), além de diversos penduricalhos. Essas benesses são os principais fatores relacionados à despesa bilionária do Brasil com os tribunais de Justiça, que consumiram, em 2022, 1,6% do Produto Interno Bruto (PIB), de acordo com levantamento produzido pela Secretaria do Tesouro Nacional e divulgado ontem.

Os estudos realizados pela equipe econômica do governo federal mostram que o Brasil gasta com o Poder Judiciário um porcentual correspondente a quatro vezes a média de 53 países analisados, entre economias emergentes e avançadas. A média internacional de gasto proporcional ao PIB foi de 0,37% em 2021.

Os números registrados no Brasil destoam mesmo quando comparados com os de outras economias emergentes. Os países em desenvolvimento gastaram, em média, 0,5% do PIB com os tribunais de Justiça em 2021, enquanto as economias avançadas desembolsaram, no mesmo ano, cerca de 0,3% de toda a riqueza produzida com a manutenção do sistema judiciário.

Uma das poucas exceções de despesas elevadas com o Judiciário, mas mesmo assim atrás do Brasil, é a Costa Rica. O país localizado na América Central gastou 1,54% do seu PIB em 2021 com a manutenção de tribunais.

‘CAPTURA’. De acordo com o relatório produzido pelo Tesouro, a maior parte do gasto discrepante do Brasil com os tribunais está relacionada ao pagamento de salários e contribuições sociais efetivas – ou seja, despesas obrigatórias. Essas obrigações orçamentárias custaram R$ 109 bilhões aos cofres públicos em 2022. Naquele mesmo ano, o gasto total com o Judiciário foi de R$ 159 bilhões, dos quais apenas R$ 2,9 bilhões foram destinados a investimentos.

“Parece ter uma captura do Orçamento por parte dessa elite do sistema de Justiça que tem ganhos muitos superiores comparados com outros países e também com a média do (trabalhador) brasileiro”, avaliou Juliana Sakai, que é diretora executiva da Transparência Brasil.

“O que a gente tem ao final das contas é um Judiciário muito elitizado que está recebendo muito às custas do contribuinte e que deveria, no mínimo, entregar o suficiente. Acabamos encontrando uma série de questionamentos a respeito do accountability (responsabilização) e da prestação de contas com a sociedade em relação a esses valores”, completou Sakai.

DRIBLES. Em dezembro do ano passado, a Transparência Brasil apresentou um estudo que analisou as manobras do Poder Judiciário e do Ministério Público para criar benefícios que aumentam em até um terço os salários de juízes e procuradores. A diretora executiva aponta que os próprios tribunais e unidades do MP criam mecanismo internos, sem a chancela do Poder Legislativo, para aumentar os ganhos de seus membros.

O relatório concluiu que as instituições que integram o sistema de Justiça “promovem dribles no teto constitucional, comprometendo a racionalidade nos gastos públicos e gerando disparidades gritantes com relação a outras categorias do funcionalismo”.

Em dezembro do ano passado, o ministro do STF Dias Toffoli cassou um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU) que havia suspendido um pagamento de valor bilionário em penduricalhos a juízes federais. Em abril do mesmo ano, o Estadão revelou que o corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, autorizou o pagamento retroativo do benefício extinto em 2006, cujo desembolso custaria R$ 1 bilhão aos cofres públicos.

Conforme o relatório do Tesouro Nacional, os demais gastos do Brasil na área de segurança e ordem pública seguem a média internacional.

O estudo enquadrou as despesas do Brasil com a Justiça dentro da categoria de ordem pública e segurança, que também reuniu dados dos recursos destinado aos serviços de polícia, proteção de incêndios, estabelecimentos prisionais, pesquisa e desenvolvimento, dentre outros.

O levantamento indica um gasto de 3% do PIB com segurança e ordem pública, porcentual superior em relação à média do grupo de economias avançadas (1,6% do PIB), como França, Alemanha, Itália e Japão. E superior até mesmo em relação a outros países da América Latina (2,7% do PIB), como Costa Rica e Guatemala. A média internacional é de 1,9% do produto interno bruto dos países analisados.

O Brasil segue a tendência do gasto mundial nas áreas definidas pelo Tesouro como ordem e segurança pública. A única exceção é Poder Judiciário, que puxa pra cima o resultado das despesas nessa categoria.

O relatório reuniu dados do IBGE, do Orçamento, da Secretaria do Tesouro, do FMI e da OCDE

SERVIÇOS POLICIAIS. O gasto com os serviços policiais, por exemplo, é 0,1 ponto porcentual menor do que nos países emergente e apenas 0,1 ponto maior do que a média internacional. Já em relação aos estabelecimentos prisionais, o Brasil segue todos os parâmetros globais de gasto de 0,2% nessa área.

O Tesouro reuniu dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e da própria Secretaria do Tesouro. Para fazer as comparações com as realidades de outros países, as fontes foram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento (OCDE). •

Weslley Galzo, o autor, é jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.01.24

O fator humanista das emissoras públicas

A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes

Desde o final de semana, protestos eclodiram em dúzias de cidades da Alemanha. Nas ruas de Berlim, Munique, Hamburgo, Dresden, Colônia e outros centros urbanos, centenas de milhares de manifestantes marcharam juntos. O objetivo foi um só: repudiar os planos da extrema direita de expulsar do país milhões de imigrantes, mesmo aqueles que já tenham cidadania.

A conspiração de xenofobia era mantida em segredo, mas foi revelada por uma reportagem investigativa do Correctiv, um site jornalístico independente, apartidário e sem fins lucrativos. Logo após veiculação da notícia, as passeatas vieram. Foram a primeira reação, em tempo devido e em bom volume, e foram bem recebidas pela opinião pública internacional.

Mas, como sabemos, passeatas não bastarão para barrar a intolerância e o ódio que grassam na Europa. No ano passado, extremistas de direita ganharam posições mais altas na Suécia e na Holanda. Agora, de modo perturbador, surge esse fato novo na Alemanha. O que mais vem por aí? Será que estamos à beira de um revival da distopia da morte, na terra que é o berço e o túmulo do nazismo?

Não, passeatas não bastam e todas as preocupações procedem. Conforme noticiou o Estadão, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), que tem integrantes diretamente envolvidos nos planos de xenofobia, coopta mais adeptos a cada dia. Fundado em 2013 com um discurso de oposição à União Europeia, o AfD logo se firmou como referência de ideários reacionários, encantando os saudosistas enrustidos de Hitler. Já nas eleições federais de 2021, obteve 10,3% dos votos. Pouco depois, em 2023, despontou nas pesquisas com 23% das preferências do eleitorado. O quadro faz soar o alarme, sobretudo quando se leva em conta que as bandeiras contra os estrangeiros e contra a União Europeia são apenas a ponta do iceberg. O mal maior corre por baixo, e está correndo solto.

E agora? O campo democrático, alicerçado na cultura dos direitos humanos, será capaz de resistir? Com todas as cautelas de praxe, temos motivos para acreditar que sim. No caso alemão, diferentemente do que se viu na Argentina e do que começa a se desenhar nos Estados Unidos, a confiança nas forças democráticas se justifica. As razões são pelo menos três.

Em primeiro lugar, o Estado alemão soube institucionalizar de modo eficiente – e juridicamente eficaz – a proteção das liberdades e da dignidade humana, proibindo a propaganda abertamente nazista. Essa vedação nada tem de limitadora, como pode parecer aos desavisados. Trata-se, antes, do contrário: o veto ao culto do nazismo – que se comprovou historicamente (e traumaticamente) a antítese da liberdade – não diminui, mas amplia a diversidade e a pluralidade no debate público.

Em segundo lugar, o regramento para combater a desinformação pelas mídias digitais deu bons resultados na Alemanha. A legislação limita e inibe a difusão das mentiras deslavadas que, em outros países, têm sido a principal arma do neofascismo e do neonazismo. Pelo menos na Alemanha, as fraudes informativas prosperam menos.

Há, por fim, a terceira razão, que quase não tem sido comentada. A democracia alemã conta com um dos melhores sistemas de comunicação pública do mundo. No Brasil, nós conhecemos mais a Deutsche Welle, mas essa é apenas a face internacional de um modelo inteligente e original, que se firmou como um fator de sustentação da qualidade das discussões e das decisões coletivas de interesse público naquele país. Os telespectadores e os ouvintes alemães, na verdade, não seguem a Deutsche Welle, que é feita para o mercado externo – o que eles acompanham internamente são duas outras grandes redes de emissoras públicas: a ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), que cuida da programação e dos telejornais nacionais, e a ARD (Arbeitsgemeinschaft der öffentlich-rechtlichen Rundfunkanstalten der Bundesrepublik Deutschland), dedicada aos conteúdos regionais.

As duas organizações compõem um complexo cujo orçamento é da ordem dos dez bilhões de euros por ano. Ambas são bem-sucedidas. Os noticiários da ZDF e da ARD figuram entre os mais vistos e os mais respeitados do país, com uma credibilidade indiscutível. A exemplo de outras instituições de comunicação pública no mundo, como a BBC, do Reino Unido, a ZDF e a ARD não são governistas. Nenhuma das duas é comandada ou teleguiada por autoridades do Estado. Em vez disso, ambas observam os cânones da independência editorial, o que faz delas veículos confiáveis e valorizados aos olhos, aos ouvidos e ao juízo livre de cidadãs e cidadãos.

Conclusão: a sociedade alemã tem mais antídotos contra o fanatismo, pois tem mais acesso à informação desinteressada (que não quer instrumentalizar a vontade de ninguém) e, consequentemente, tem mais acesso ao conhecimento crítico. A democracia depende da existência de uma população educada, culta e questionadora, assim como a pregação totalitária depende de massas ignorantes, raivosas e obedientes. Onde existem emissoras públicas de qualidade, o populismo autoritário e o totalitarismo são menos prováveis. •

Eugênio Bucci, o autor deste artigo é jornalista e professor na USP. Publicadooriginalmente n'O Estado de S. Paulo, em 25.01.24.

O Brasil na era das ferrovias?

O esforço do governo em buscar receitas novas para financiar o desenvolvimento do setor está alinhado com a agenda mundial.

Vem sendo anunciado um plano para ampliar a malha ferroviária no Brasil, mediante a retomada de investimentos públicos em parcerias públicoprivadas no setor. Ao sinalizar uma estratégia de desenvolvimento – sem a falsa narrativa de que o capital privado pode financiar sozinho os gargalos no setor, o Ministério dos Transportes indica que o Brasil se insere na agenda global de investimentos em infraestrutura ferroviária.

Como autor do projeto de lei que se converteu no Marco Legal das Ferrovias – Lei n.º 14.273, de 2021 –, vejo com bons olhos a proposta do governo. Fui um crítico do teto de gastos e um dos parlamentares a propor um novo arcabouço fiscal, para preencher lacunas que hoje ainda estão na Lei de Responsabilidade Fiscal. Na vigência do teto, prevaleceu no País a ideologia de que o setor privado pode resolver sozinho todos os gargalos da infraestrutura de grande vulto, em especial ferrovias. Virou pecado falar em um orçamento de capital para promover o setor.

O teto de gastos, que vigorou até 2022, dilacerou os investimentos públicos em ferrovias, levando-os a patamares inferiores a R$ 400 milhões, quando o governo federal investira mais de R$ 3 bilhões por ano até 2016. A correlação com os investimentos privados é clara: os investimentos privados no setor se reduziram de R$ 8,3 bilhões por ano, na média do período de 2010 a 2016, para R$ 5,9 bilhões entre 2019 e 2022.

Mas os efeitos do teto podem ter sido ainda piores, devido à negligência do gestor na arrecadação de receitas.

Afinal, para que arrecadar mais se há um limite de gastos impedindo o uso de recursos orçamentários? No final do dia, um real adicional que ingressasse na conta única do Tesouro era automaticamente contingenciado pelo Ministério da Fazenda.

Importa aqui ressaltar que o investimento em infraestrutura no País – setores público e privado, juntos – corresponde a 1,85% do Produto Interno Bruto (PIB) ao ano, na média anual, no período entre 2008 e 2020. Esse valor é muito inferior ao necessário, estimado entre 4% e 5%. Ou seja, a lacuna de investimentos corresponde a no mínimo 2% do PIB. Considerando o investimento público, o Brasil é um dos países que menos investe na América Latina. Entre 2008 e 2019, cerca de 0,7% do PIB ao ano, na média, enquanto outros países chegaram a investir mais de 3% do PIB.

O atual Ministério dos Transportes vem promovendo uma revisão de receitas e despesas decorrentes das políticas que conviveram com o teto de gastos, baseando-se na prática internacional conhecida como spending reviews. Como entusiasta do tema, por ter sido inclusive o autor do projeto aprovado no Senado Federal para instituir no País essa boa prática internacional (PLS n.º 428, de 2017), percebo que as novas fontes de recursos que financiarão os investimentos públicos em ferrovias serão provenientes de descumprimentos contratuais e revisões do modelo de precificação de ativos. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU), e mesmo empresas do setor, analisam o tema com sinalizações de que o processo das prorrogações antecipadas poderia ter sido mais vantajoso para o setor ferroviário.

Vale registrar o empenho de vários países em investir recursos do orçamento público em ferrovias. Os Estados Unidos anunciaram um orçamento de US$ 66 bilhões para investimentos no setor. A Índia alocou em seu orçamento algo em torno de US$ 30 bilhões, para fomentar a aquisição de locomotivas a hidrogênio e equipamentos elétricos.

O esforço do governo brasileiro em buscar receitas novas para financiar o desenvolvimento do setor ferroviário está alinhado com a agenda mundial. Organismos internacionais, como o Banco Mundial, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), apontam para a importância dos investimentos públicos em infraestrutura sustentável, como é o caso das ferrovias. Trata-se, portanto, de uma agenda internacional.

Acredito que a nova estrutura de investimentos públicos em ferrovias deva compreender um sistema de governança baseado em bons projetos, considerando as dimensões de uma infraestrutura sustentável: econômica, ambiental e social. E com políticas públicas bem desenhadas, capazes de atrair o investimento privado, o Brasil pode conferir a necessária segurança jurídica para destravar corredores ferroviários estruturantes.

Sabe-se que o País precisa ampliar a participação das ferrovias na matriz de transporte. No segmento de transporte de passageiros, não faltam oportunidades para o desenvolvimento de políticas públicas específicas, bem como para a estruturação de projetos. E com um transporte de carga pujante, com corredores estruturantes alimentados por shortlines, nosso país poderá transportar minérios, grãos e carga geral, de forma eficiente e sustentável.

Fico na torcida para que o plano nacional ferroviário saia do papel. Pode ser um importante passo para que o Brasil ingresse na era das ferrovias, com a agenda voltada para uma infraestrutura sustentável e eficiente. •



José Serra, o autor deste artigo, é economista. Foi Governador de S. Paulo e candidato a Presidente da Republica. Pubicado originalmene n'O Estado de S. Paulo, em 25.01.23