quinta-feira, 1 de junho de 2023

Agressão a jornalistas no Itamaraty exige mais que protesto contra Maduro

Truculência dos seguranças do ditador da Venezuela contou com apoio de profissionais brasileiros

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro (Sérgio Lima/AFP)

Em qualquer democracia, é inaceitável que jornalistas sejam agredidos em pleno exercício da profissão. Pior ainda quando a agressão é cometida por agentes de um país estrangeiro em território nacional, em parceria com integrantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Foi o que aconteceu na terça-feira no Palácio Itamaraty, em Brasília, durante entrevista do ditador venezuelano Nicolás Maduro. Entre as vítimas, a repórter Delis Ortiz, da TV Globo, levou um soco no peito.

“É lamentável que, após todos os casos de violência contra repórteres brasileiros que faziam a cobertura em Brasília nos últimos anos, um episódio semelhante se repita”, afirmou o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech. “Esperamos que os compromissos públicos de apurar as responsabilidades e evitar que tais agressões jamais ocorram novamente se tornem realidade daqui para a frente.” ANJ, Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) emitiram notas de repúdio contra o episódio.

No último ano do governo Jair Bolsonaro, as agressões físicas a jornalistas cresceram 38%, segundo pesquisa da Abert. Entre janeiro e dezembro de 2022, houve 47 episódios envolvendo 74 repórteres. Os alvos mais frequentes foram profissionais da televisão. Dois jornalistas foram mortos, o mais conhecido deles, Dom Phillips, assassinado na Amazônia. Com a derrota da extrema direita em outubro, muitos acharam que a hostilidade do público e de agentes de segurança contra a imprensa diminuiria. Por isso a surpresa com o comportamento dos seguranças brasileiros.

Dos que cercam o ditador Maduro não se esperava nada distinto. A Venezuela ocupa a 159ª posição entre os 180 países do ranking de liberdade de imprensa da organização Repórteres Sem Fronteira. Depois de assumir o poder em 2013, Maduro adotou postura ainda mais autoritária que Hugo Chávez diante do jornalismo profissional. Um jornalista chegou a ser preso durante entrevista com ele em 2019 no Palácio de Miraflores, sede do governo. Prisões arbitrárias são corriqueiras. Nesse capítulo, a Venezuela não está longe da Rússia de Vladimir Putin.

A promessa do governo brasileiro é “apurar responsabilidades”. Pela gravidade do ocorrido, é pouco. É urgente punição exemplar para os agressores. Não há imagens do momento da agressão, mas há várias testemunhas da truculência dos seguranças, capazes de apontar quem praticou os atos violentos. É preciso haver treinamento de todos os demais para evitar que tais cenas se repitam. Por fim, mas não menos importante, o governo Lula deveria pensar duas vezes antes de voltar a receber ditadores como o venezuelano em solo brasileiro.

Editorial de O GLOBO, em 01.06.23

Maduro no Brasil: 'Declarações de Lula foram tapa na cara dos venezuelanos', diz Capriles, líder da oposição na Venezuela

Candidato para as presidenciais de 2024 na Venezuela, Henrique Capriles afirmou que o presidente, após defender que há "narrativa antidemocrática no país vizinho", deve decidir de que lado está

Henrique Capriles, em visita ao Brasil em busca de apoio internacional em 2016Henrique Capriles, em visita ao Brasil em busca de apoio internacional em 2016  (André Coelho / O Globo)

A visita do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, ao Brasil e, sobretudo, as declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre o país, causaram profundo mal-estar entre líderes da oposição venezuelana. Em entrevista ao GLOBO, o ex-candidato presidencial Henrique Capriles, que pretende disputar novamente a Presidência do país em 2024, afirmou que as falas de Lula foram "infelizes" e "um tapa na cara de milhões de venezuelanos", sobretudo dos setores mais vulneráveis e entre os que tiveram de abandonar o país para sobreviver. Ao receber Maduro com pompa na segunda-feira em Brasília na véspera de uma cúpula de líderes sul-americanos, Lula chamou o encontro de "histórico", responsabilizou os EUA pela derrocada econômica venezuelana e disse que as acusações de que a Venezuela não vive sob uma democracia são uma "narrativa".

"Gostaria de saber o que Lula pensa sobre a situação de nossos aposentados, e ele já está em idade de receber uma aposentadoria, que ganham menos de US$ 5 por mês", afirmou Capriles, que nas eleições de 2013, as primeiras após a morte do presidente Hugo Chávez, foi derrotado por Maduro por menos de dois pontos percentuais (50,61% contra 49,12%), resultado questionado até hoje por setores da oposição.

Como o senhor analisa a visita de Maduro ao Brasil?

Bom, Maduro estava exultante por poder estar no Brasil. Ele funciona assim, sempre com dezenas de funcionários e sempre tentando mostrar que é muito bem recebido onde vai. Mas nada disso melhora sua imagem perante os venezuelanos.

Qual a sua opinião sobre as declarações do presidente Lula sobre a Venezuela e sobre Maduro?

Para mim, as declarações de Lula foram infelizes, absolutamente infelizes. Aqui não se trata de um tema de discurso. É preciso mexer no tabuleiro político, mas isso não significa desconhecer o problema que a Venezuela vive, em matéria econômica, social, direitos humanos e uma longa lista de problemas. Que Lula diga que a situação da Venezuela é um discurso repetido no exterior, e que a realidade da Venezuela não é a que se diz, isso é uma declaração infeliz e que merece a rejeição dos venezuelanos.

Lula vem da luta dos trabalhadores, e eu gostaria de perguntar a ele sua opinião sobre os milhões de venezuelanos que tiveram de sair do país. O Brasil não é um dos países que mais recebem venezuelanos que sofrem a migração forçada, então eu diria a Lula que desse uma volta na Colômbia, Equador, Peru. Os venezuelanos nunca foram um povo que emigrava para outras terras, então, por que existem tantos venezuelanos espalhados pelo mundo? A resposta é porque não podem ter na Venezuela um trabalho estável, bem pago, para poder comer, pagar um remédio, porque o sistema de saúde pública não te dá. Gostaria de saber a opinião de Lula sobre tudo isso.

Também gostaria de saber o que Lula pensa sobre a situação de nossos aposentados, e ele já está em idade de receber uma aposentadoria, que ganham menos de US$ 5 por mês. Um litro de gasolina custa US$ 0,50. Se você vier a Caracas, verá carros importados, lojas com produtos importados, e tudo isso é consumido pelos funcionários de alta hierarquia do governo. Tudo isso é transportado em barcos, ou seja, não existe bloqueio na Venezuela.

O que opina Lula sobre isso? O que opina Lula sobre os venezuelanos que atravessam o Darién [selva na fronteira entre Panamá e Colômbia], sobretudo jovens, porque não têm possibilidade de se sustentar em seu país? De que lado está Lula? Do lado de Maduro, ou do lado do sofrimento dos venezuelanos? Sobre as sanções, podemos abrir um debate sobre se são eficientes ou não. Mas esta crise é responsabilidade de Maduro. De que país está falando Lula?

Como foram recebidas as declarações do presidente brasileiro na Venezuela?

Acho que Lula não entendeu que os tempos mudaram. A retórica da época em que eram presidentes [o equatoriano Rafael] Correa, Cristina [Kirchner, da Argentina], Lula, Evo [Morales, da Bolívia], [o venezuelano Hugo] Chávez, que era um permanente confronto com os que estivessem em desacordo com eles, dividiu seus países. O Brasil é um país dividido. Lula, pelo visto, não entendeu o que aconteceu na Venezuela. Não sou extremista, mas sua declaração foi infeliz. Lula foi eleito democraticamente, como [o colombiano Gustavo] Petro, [o chileno Gabriel] Boric, [o uruguaio Luis] Lacalle Pou. Onde não houve eleições democráticas na América do Sul? Na Venezuela.

Quem está apegado a uma retórica é ele, Lula, com desconhecimento sobre nossa realidade. Foi um tapa na cara nos milhões de venezuelanos que estão espalhados pelo mundo. Você sabe a dor que significa para a família venezuelana, os pobres, os avós que ficaram com seus netos, enquanto seus filhos trabalham em outros países? Esses venezuelanos vivem graças a remessas que chegam do exterior e já totalizam cerca de US$ 4 bilhões. Lula não percebeu isso? O que defende Lula, o status quo representado por Maduro ou a possibilidade de que a Venezuela possa se estabilizar economicamente?

Fontes do governo Lula informaram que o presidente brasileiro disse a Maduro, numa reunião fechada, que a eleição presidencial de 2024 deve ser competitiva, justa e transparente, com participação da oposição e observação internacional. Para a oposição que o senhor integra, Lula continua sendo um ator externo importante que poderia contribuir com o processo eleitoral?

Essa pergunta quem deve responder é Lula. Nós já dissemos até o cansaço que os venezuelanos acreditam no voto, somos democratas, acreditamos na expressão democrática do voto. Mas a democracia não é apenas votar. Eu votei nas últimas eleições, defendi voltar ao caminho eleitoral, estou nessa luta desde 2020. Fui crítico do governo interino [de Juan Guaidó], porque no caminho perdeu sua razão de ser e o objetivo de ter eleições, porque parece que nunca acreditaram na bandeira eleitoral.

A eleição deve ser competitiva e servir para que a Venezuela resolva sua crise política. Não pode ser uma eleição manipulada, como foi em 2018. Espero que essa luta nos aproxime de presidentes eleitos democraticamente, que lutem para que a Venezuela tenha uma solução democrática. Mas Lula só só faltou dizer que aqui existe uma campanha midiática, não correspondente com a realidade. Campanha midiática é a que sofremos todos os dias nos canais públicos, que ignoram os problemas do país. Segundo eles, não acontece nada na Venezuela. São campanhas de desinformação permanentes.

Convido Lula a estar do lado da solução, e não do problema. Esperamos do Brasil, e da região, ajuda, não ingerência, que facilitem o caminho para termos uma eleição democrática e também para a recuperação do país, que hoje é o mais desigual do continente.

A porta de diálogo com o governo Lula continua aberta?

Nós nunca nos negaremos a falar com alguém que queira ajudar o país. Não tenho preconceitos, nem uso cortinas ideológicas.

Nos últimos tempos, alguns economistas apontaram uma melhora dos indicadores econômicos do país...

A situação social é catastrófica, a ajuda do governo aos mais pobres é precária. Não se cria emprego. Depois da queda forte durante a pandemia, houve uma recuperação esperada, alguns empresários fizeram alguns investimentos, e o que Maduro fez foi não os assediar. Suspendeu a política de confisco e expropriação, que reinou no passado, na época da bonança petroleira. Como destruíram a estatal Petróleos da Venezuela, entenderam que não podiam continuar assediando o setor privado. Mas no primeiro trimestre deste ano, o consumo caiu 30%, a inflação caiu como consequência da queda do consumo, da retração da economia, e os números são muito negativos. Alguns são mais otimistas, continuam apostando, e eu digo que são heróis. Por isso digo que o país tem futuro.

Qual é sua expectativa sobre o processo de diálogo entre governo e oposição no México?

O processo de negociação está paralisado. Os Estados Unidos poderiam ajudar para que o processo possa ser retomado.

Como os EUA fariam isso?

A expectativa que existia sobre a administração [Joe] Biden era de que as políticas do governo de [Donald] Trump sobre a Venezuela fossem revisadas, porque essas políticas não deram certo. Ficar preso nisso é um erro. Não significa ignorar as violações dos direitos humanos, pelo contrário. Significa ver a situação que vive o povo venezuelano e liderar soluções para o povo venezuelano. Discursos são discursos, e o país precisa de soluções. A administração Biden tem um peso importante sobre a negociação no México.

O senhor pretende ser candidato nas eleições presidenciais de 2024?

Eu fui inabilitado pelo regime de Maduro, sou um dos inabilitados. Quase todos estamos nessa condição. Decidi concorrer, pela causa dos venezuelanos, principalmente os mais vulneráveis. Ainda não sabemos como serão as primárias. Se haverá uma primária ampla, aberta, ou mais fechada. Uma primária mais fechada iria contra minha luta de todos estes anos, a favor de uma Venezuela inclusiva.

A Venezuela precisa de um governo profundamente popular, que atenda a gigantesca dívida social que temos. Depois dos bilhões de dólares que entraram no país, hoje estamos numa situação de caos econômico e social. E isso não tem a ver com as sanções, a destruição econômica do país é responsabilidade do governo. As sanções devem ser revisadas, não ajudaram a mudar as coisas no país. Mas a destruição começou antes das sanções. No Brasil, até doamos dinheiro para uma escola de samba. Bilhões de dólares dados de presente.

Se o senhor ganhar a primária, poderá ser candidato?

Bom, isso forma parte da discussão das condições eleitorais. Para que uma eleição seja legítima e competitiva não podem existir políticos inabilitados. Petro estava inabilitado e teve uma decisão favorável da Corte Interamericana de Direitos Humanos que foi respeitada pelo Estado colombiano. Eu também tenho uma decisão favorável a mim, adotada antes da Venezuela sair da comissão. O problema é que Maduro não respeita essas decisões, como não respeita as leis e a Constituição, porque na Venezuela não temos uma democracia.

O regime de Maduro continua violando os direitos humanos?

As organizações de defesa dos direitos humanos são permanentemente assediadas pelo governo. O acesso a informações oficiais é muito difícil. Temos exemplos, inclusive de amigos próximos como Fernando Albán, que foi atirado de um dos andares do prédio do Serviço Bolivariano de Inteligência (Sebin), na Praça Venezuela. Ele é um dos casos em mãos do Tribunal Penal Internacional (TPI). E se as pessoas chegaram até o TPI é porque não encontraram Justiça em seu país. E a Justiça na Venezuela não melhorou. As mudanças na Corte Suprema foram cosméticas. O problema de fundo continua existindo. E sobre isso, pergunto a Lula: você acredita ou não na defesa dos direitos humanos? Se você é um democrata, não podem existir nuances.

Janaína Figueiredo, correspondente, de Buenos Aires (Argentina) para O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23.

O bicho

Na campanha, Lula fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático

Congresso empareda governo e dificulta aprovação de projetosCongresso empareda governo e dificulta aprovação de projetos Brenno Carvalho / Agência O Globo

Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega. Nada melhor para definir a situação política do governo hoje que o título da peça de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar, de 1966. Não havia saída. A decisão da Câmara, já tomada, de alterar a estrutura organizacional imaginada pelo presidente eleito é um duro golpe político, uma intromissão indevida que deveria ser contestada no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas Lula não tem apoio político para tanto.

Obrigar um governo de esquerda a se organizar dentro do conceito de extrema direita, esvaziando as políticas públicas do meio ambiente e indigenista, fazendo desaparecer ministérios como Planejamento e Cultura, já é uma sublevação, negação do que o eleitorado de centro democrático aprovou nas urnas, embora por pequena margem, que sugeria que o governo saído dela fosse de união nacional.

Não é — e por culpa de Lula. O Congresso está, como sempre esteve, no conservadorismo. Ao contrário, o governo montado até agora é um simulacro de união nacional, na verdade uma hegemonia da esquerda, principalmente do PT. Enquanto os partidos de centro-direita reagem rejeitando as políticas esquerdistas, mesmo as necessárias como as ambientais, o governo acelera na direção da esquerda, e a distância entre os espectros políticos se amplia.

O governo Lula não está agindo com presteza para aprovar suas teses no Congresso; só se preocupa quando perde. A negociação do marco temporal deveria ter sido feita há muito tempo, especialmente depois da derrota das políticas indigenistas. Não quer dizer que a disputa se dê apenas no campo ideológico, mas esse fator é a grande diferença entre Lula 3 e Lula 1 e 2. Naquele tempo em que Lula era quase imbatível, os partidos de centro ou centro-direita se contentavam com as migalhas do mensalão e do petrolão. E que migalhas.

Hoje continuam querendo as migalhas milionárias das emendas e fundos financeiros, mas querem mais. Acostumaram-se a definir as políticas públicas durante o período em que Bolsonaro rendeu-se à maioria de que sempre fez parte: o Centrão. Bolsonaro tentou fazer política pessoal, jogando seu prestígio contra as estruturas partidárias, e deu com os burros n’água. Docemente constrangido, aderiu ao que era seu passado político no baixo clero e dedicou-se apenas a montar um golpe ditatorial.

Lula gostaria de controlar as emendas parlamentares, controlando assim o Congresso, e de cuidar de um governo com fortes cores de esquerda. Uma das queixas dos líderes rebelados contra o governo é que as emendas são negociadas individualmente, assim como Bolsonaro tentou negociar com “bancadas suprapartidárias”, esvaziando as lideranças. O resultado está aí.

Na Câmara, toda vez que quer negociar, o governo tem de dar algo em troca. Quanto mais difícil a aprovação, mais caro fica. Os deputados estão emparedando o governo e não querem conversa. Os dois lados estão assim. Se Lula tivesse feito realmente um governo de união nacional, de forças partidárias equivalentes, esse problema não estaria acontecendo.

O Congresso está claramente resolvido a aprovar só o que considera de interesse do país, como fez com o arcabouço fiscal, mas, quando a disputa é ideológica, vence a direita, que domina o debate. Cada vez que Lula mexe com ideologia, como aconteceu dias atrás na vergonhosa recepção ao ditador venezuelano Nicolás Maduro, mais atiça a direita no Congresso, que mostrará força para derrotar o governo.

A direita, que tinha vergonha de existir quando Lula e Dilma governaram, agora não tem mais. Foi avançando com Temer e fez um strike com Bolsonaro, sem possibilidade de controle. Lula só ganhou a eleição porque o eleitorado de centro se decepcionou com Bolsonaro. Na campanha, fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático.

Na campanha, Lula fez discurso de união nacional, que não acontece. Com isso, está perdendo o apoio do centro democrático.

Merval Pereira, o autor deste artigo, é jornalista e escritor. Presidente da Academia Brasileira de Letras. Publicado originalmente n'O GLOBO, em 01.06.23

Em menos de 6 meses, Lula enfrenta tempestade perfeita

Mas nem o observador mais pessimista poderia supor que a boa vontade política com que Lula começou seu mandato, turbinada pelos atos golpistas de 8 de janeiro, degringolaria tão rápido.


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala no Palácio do Itamaraty, em Brasília, após reunião com presidentes da América do Sul. (Brenno Carvalho/O Globo)

Não havia dúvida em Brasília de que Luiz Inácio Lula da Silva enfrentaria testes de estresse com o Congresso Nacional, nem de que o resultado seria decisivo para seu governo. Quem analisava a discrepância entre o discurso de campanha e a prática das gestões petistas também podia prever, sem grande dificuldade, que em algum momento a “frente ampla” formada para derrotar Jair Bolsonaro começaria a claudicar.

Mas nem o observador mais pessimista poderia supor que a boa vontade política com que Lula começou seu mandato, turbinada pelos atos golpistas de 8 de janeiro, degringolaria tão rápido.

O governo ainda nem completou seis meses e, só na última semana, já foi derrotado na votação do marco temporal das terras indígenas, e sua proposta de reorganização da Esplanada dos Ministérios foi desfigurada — especialmente na área ambiental, grande diferencial de Lula, que ajudou a lustrar sua reputação de “reconstrutor” das instituições brasileiras.

Como se não bastasse, ele aproveitou um encontro de presidentes para empenhar seu capital democrático em aval entusiasmado à ditadura de Nicolás Maduro. Num discurso repleto de elogios, exortou o colega a falar para sua “imprensa livre”, como se tal coisa existisse na Venezuela. Afirmou sem corar que não é possível que o regime de Maduro “não tenha um mínimo de democracia”.

Calou-se quando os seguranças do Planalto agrediram a repórter Delis Ortiz em meio à confusão provocada pela tentativa de blindar Maduro do acesso da imprensa. E acabou criticado por quatro outros presidentes latino-americanos, do esquerdista Gabriel Boric ao direitista moderado Lacalle Pou, todos reconhecendo que as violações de direitos humanos sob o regime venezuelano não são narrativa, e sim realidade.

Enquanto o mico internacional se desenrolava, na seara doméstica a coisa ficou tão desorganizada que o Palácio do Planalto chegou ao final do prazo de vencimento da MP reconfigurando toda a máquina federal sem saber com quantos votos poderia contar — e sem saber, portanto, quantos ministros teria no final da semana.

No Centrão, proliferavam queixas sobre verbas represadas, pedidos de cargos e chantagens variadas, mas também imperava o diagnóstico de que falta a Lula conversar com os parlamentares. “ O problema está no governo, na falta ou ausência de articulação”, resumiu o presidente da Câmara, Arthur Lira, cara e voz do Centrão.

Diante de tamanha confusão, o que mais se perguntava, tanto no Planalto quanto na oposição, era o que teria levado o presidente da República, do alto da experiência de um terceiro mandato e reconhecido pelo tirocínio político, a cometer tantos erros em série. Como Lula deixou as coisas chegarem a esse ponto?

Da mesma forma que nas tempestades perfeitas, crises assim nunca têm uma única razão ou um único culpado. Mas não estará errado quem disser que, se Lula 3.0 estivesse em plena forma, o cenário provavelmente não seria tão caótico. Tampouco estará enganado quem concluir que, assim como o Lula que assumiu em 2003 era bem diferente da campanha de 2002, não se deve esperar que o Lula de 2023 seja o dos palanques de 2022.

Quem conhece a trajetória do petista sabe que, quando se instala o conflito entre as forças econômicas e as autoridades ambientais, ele costuma desempatar a favor dos empresários. Da mesma forma, apesar de sempre ter respeitado as regras do jogo democrático em seus dois mandatos, nunca se furtou a elogiar os ditadores de países amigos.

E, se o assunto é Centrão, Lula também nunca se furtou a negociar. Em 2004, quando seu governo ficou emparedado pelo mesmo PP hoje comandado por Lira, ele baixou uma ordem na Petrobras para que se entregasse logo a diretoria que o partido queria — e foi governar. O resultado foi o petrolão, mas isso é outra história.

É claro que os tempos hoje são outros. O Centrão se acostumou a Bolsonaro, que lhes entregou o orçamento secreto e a gestão de sua articulação política, e agora quer compensar as perdas. Mas Lula também é outro.

Tem cada vez menos paciência para a política do dia a dia de Brasília e parece convencido de que atingiu um status extraordinário, como se tivesse recebido nas urnas um salvo-conduto para dizer o que pensa sem se preocupar com as consequências, ou para delegar aos auxiliares negociações complexas.

Infelizmente para Lula, o eleitorado está cada vez mais radical, mas a política de cada dia continua necessária, por mais repugnante que possa se apresentar. Negar isso não só não levará seu governo muito longe, como poderá empurrá-lo para novas crises e tempestades.

Malu Gaspar, a autora deste artigo, é comentarista de política d' O GLOBO. Publicado originalmente em 01.06.23.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Por que Venezuela tem dívida bilionária com Brasil — e quem paga a conta

Após oito anos, Nicolás Maduro veio ao Brasil para encontro com Lula e reunião com outros líderes sul-americanos

Lula e Maduro em Brasília (CRÉDITO,EPA)

A visita de Nicolás Maduro ao Brasil após um hiato de quase oito anos não só gerou polêmica pelas acusações que pesam contra o presidente venezuelano e pelas falas de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre o país vizinho, mas também pela dívida bilionária que a Venezuela tem com o governo brasileiro.

Maduro veio ao Brasil para participar de uma cúpula com líderes de 11 países da América do Sul em Brasília que havia sido proposta por Lula.

A última vez que o presidente venezuelano esteve no Brasil foi em julho de 2015, quando participou de uma cúpula do Mercosul em Brasília, durante o governo de Dilma Rousseff (PT).

Desde 2019, ele estava impedido de entrar no país após uma portaria editada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) proibir seu ingresso e de outras autoridades venezuelanas no Brasil.

Bolsonaro revogou a portaria um dia antes de deixar o cargo em uma negociação com o governo de transição para abrir a possibilidade de Maduro participar da posse de Lula, mas o presidente venezuelano acabou não participando da cerimônia.

Maduro só voltou ao Brasil de fato no último domingo (28/5), quando desembarcou em Brasília para participar da cúpula. No dia seguinte, teve uma reunião bilateral com Lula, em que os dois trataram desta dívida e de como ela será quitada.

Maduro e Lula foram questionados após o encontro por jornalistas sobre o total da dívida. Lula disse não saber e questionou Maduro: "Você sabe qual é o tamanho da dívida?".

O presidente venezuelano respondeu: "Vai ser estabelecida uma comissão para estabelecer esse tamanho e retomar os pagamentos".

De acordo com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, Maduro pediu que seja criado um grupo de trabalho com o governo brasileiro para consolidar o valor do débito e, a partir daí, reprogramar seu pagamento.

Pelo lado brasileiro, devem participar a Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (Camex), vinculada à Fazenda, a secretaria do Tesouro Nacional e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - que é um dos principais interessados no assunto.

Mas, afinal, de quanto é essa dívida, de onde ela veio e quem vai pagar essa conta?

Qual o tamanho da dívida da Venezuela?

Após o encontro de Lula e Maduro, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) informou à BBC News Brasil que o valor da dívida venezuelana totaliza atualmente quase US$ 1,27 bilhão (R$ 6,4 bilhões).

"Os débitos da Venezuela junto ao governo brasileiro soma US$ 1.268.151.276,81, sendo: i) US$ 1.095.002.908,09 referente a valores já indenizados pelo Fundo de Garantia à Exportação (FGE); ii) US$ 53.987.162,42, referentes a indenizações a serem pagas pelo FGE".

O Fundo de Garantia à Exportação é um fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério da Fazenda. Ele foi criado em setembro de 1997 para cobrir operações amparadas pelo Seguro de Crédito à Exportação (SCE).

O Seguro de Crédito à Exportação é um mecanismo de garantia oferecido pela União para proteger as exportações brasileiras de bens e serviços de potenciais riscos comerciais, políticos e extraordinários e, assim, evitar calotes às empresas nacionais.

Caso haja inadimplência de quem comprou os bens e serviços, o FGE indeniza o financiador e busca recuperar o valor em atraso do devedor.

O BNDES é o principal financiador público de longo prazo para operações de comercialização de exportações.

De onde vem a dívida da Venezuela?

Segundo o MDIC, os débitos da Venezuela são referentes a uma inadimplência relativa a exportações brasileiras de bens e serviços para o país vizinho que contrataram o Seguro de Crédito à Exportação.

"As operações foram financiadas em sua maior parte pelo BNDES, porém havendo operações com financiadores estrangeiros", disse a pasta em nota.

O BNDES, que era vinculado ao então Ministério da Economia durante o governo de Bolsonaro e passou a fazer parte do MDIC sob Lula, atua como principal instrumento de execução da política de investimentos do governo federal.

Durante os governos petistas, tanto nos dois primeiros mandatos de Lula quanto nos de Dilma Rousseff, atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD, popularmente conhecido como "Banco dos Brics"), houve desembolsos bilionários no banco, em particular para o financiamento à exportação dos bens e serviços de engenharia brasileiros.

No caso da Venezuela, foi concedido R$ 1,5 bilhão a vários projetos de infraestrutura realizados por empresas do Brasil.

Como o próprio banco explica em seu site, "nessas operações, assim como em todas as outras que o banco realiza, o BNDES desembolsa os recursos exclusivamente no Brasil, em reais, para a empresa brasileira, à medida que as exportações vão sendo realizadas".

Ou seja, a empresa brasileira que vendeu produtos ou serviços para fora do país recebe um pagamento do BNDES por isso.

Quem fica com a dívida neste caso é a empresa ou país estrangeiro que comprou o bem e serviço, que fica com a responsabilidade de pagar de volta o BNDES com juros, em dólar ou em euros.

Se há inadimplência, o BNDES aciona a estrutura de garantias e é ressarcido por mecanismos como o FGE.

A maior parte das operações de exportação de serviços de engenharia beneficiou cinco grandes empreiteiras brasileiras, todas envolvidas na Operação Lava Jato.

Especificamente nessa categoria, de financiamentos para exportação de serviços a outros países, três deram calote - a Venezuela entre eles - "em um valor total de US$ 1,09 bilhão acumulado até março de 2023", segundo o BNDES.

"Outros US$ 518 milhões estão por vencer desses países", informou o banco.

O governo brasileiro explicou em nota à BBC News Brasil que o FGE "cobriu o calote".

No entanto, segundo o economista e professor do Insper Sérgio Lazzarini, isso é uma "falácia". Ele explica que, por conta das dívidas e dos calotes acumulados, o patrimônio do fundo foi minguando, cujos recursos são provenientes, dentre outras fontes, do orçamento federal.

"Quem paga essa conta é, em última análise, o contribuinte", diz.

O problema está, segundo Lazzarini, justamente na avaliação de risco dos empreendimentos nesses países.

Ele publicou, ao lado de outros pesquisadores, um estudo que analisou o custo financeiro incorrido em algumas das operações realizadas pelo BNDES entre 2007 e 2015.

Segundo Lazzarini, o banco emprestou para países "com altíssimo risco de crédito e isso não foi precificado adequadamente".

"Então, esse fundo, vire e mexe, está tomando calote. Se ele toma muito calote, não há recursos", diz o economista.

"Se estivéssemos emprestando a países com baixo risco de crédito, o mecanismo funciona. Mas tomamos calote atrás de calote."

Desde 2020, é discutido no âmbito do governo federal um novo modelo para o FGE, mas nada foi decidido até agora.

Em fevereiro, durante a posse de Aloizio Mercadante como presidente do BNDES, Lula disse ter "certeza" que a Venezuela e outros países inadimplentes quitarão as dívidas com o banco durante seu governo.

"Porque são todos países amigos do Brasil e certamente pagarão a dívida que têm com o BNDES", disse Lula.

Luís Barrucho, de Londres para a BBC News Brasil, em 31.05.23

Lula envergonha o Brasil

Para petista, inúmeras evidências de atrocidades na Venezuela não passam de ‘narrativas’ contra o ‘companheiro Maduro’; vexame rasga de vez a fantasia da ‘frente ampla democrática’

O presidente Lula da Silva envergonhou o Brasil de uma maneira como poucas vezes se viu nos últimos tempos – e olhe que o País passou muita vergonha durante o mandato do antecessor de Lula, Jair Bolsonaro. Depois de estender o tapete vermelho para Nicolás Maduro, pária mundial por razões óbvias, o petista declarou que o tirano venezuelano é um governante legitimamente eleito e que a Venezuela, portanto, é uma democracia exemplar.

Na opinião de Lula, todas as inúmeras denúncias de violações de direitos humanos, de manipulação das eleições e de perseguição a dissidentes e jornalistas naquele país não passam de “narrativa que se construiu contra a Venezuela”. Lula então sugeriu ao “companheiro Maduro” que “construa a sua narrativa”, que “será infinitamente melhor do que a narrativa que eles têm contado contra você”.

“Eles”, no caso, são os “nossos adversários”, conforme Lula chama aqueles que “vão ter que pedir desculpas pelo estrago que eles fizeram na Venezuela”. Encabeçam essa lista os Estados Unidos e a União Europeia, que impuseram sanções contra o regime chavista por conta das atrocidades cometidas por Maduro. Na “narrativa” de Lula, americanos e europeus simplesmente “não gostam” de Maduro, por puro “preconceito”, e por isso resolveram inviabilizar o governo chavista – e as agruras dos venezuelanos, com hiperinflação, escalada da miséria e da fome e êxodo de 7 milhões de cidadãos em poucos anos, seriam resultado das sanções internacionais, e não da ruína do país promovida pelo chavismo.

Não há dúvidas de que o Brasil deveria restabelecer relações com a Venezuela, grosseiramente rompidas, por razões puramente ideológicas, pelo governo Bolsonaro. Exportamos para o vizinho cerca de US$ 1 bilhão e importamos quase US$ 500 milhões. Ambos compartilham mais de 2 mil km de fronteira na Região Amazônica, delicada tanto do ponto de vista ambiental quanto em razão do narcotráfico. Cerca de 20 mil brasileiros vivem na Venezuela, e, entre imigrantes e refugiados, há mais de 300 mil venezuelanos no Brasil.

Nada disso significa, no entanto, que o Brasil deva ignorar que a Venezuela é hoje talvez a mais violenta ditadura da América Latina, só rivalizando com a da Nicarágua – outro país governado por um “companheiro” de Lula, o ditador Daniel Ortega. Não se espera que Lula saia por aí a denunciar os crimes desses tiranos, mas se espera, sim, que ele não insulte a inteligência alheia nem os venezuelanos que padecem horrores sob as patas de Maduro ao declarar que na Venezuela vigora uma democracia plena e que, por isso, Maduro é governante legitimamente eleito. Em relatório recente, o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU informou que “os serviços secretos militares e civis do Estado venezuelano funcionam como estruturas efetivas e bem coordenadas na implementação de um plano orquestrado no mais alto nível do governo para reprimir dissidências através de crimes contra a humanidade”. Eis aí a “narrativa” que Lula pretende denunciar.

É difícil saber o que governou a decisão de Lula de afagar Maduro dessa maneira indecente. Ao fazê-lo, o presidente desqualificou o Brasil como eventual mediador entre Maduro e a oposição nas negociações para a distensão do regime. Ademais, internamente, o gesto de Lula tende a implodir de vez a fragilíssima “frente ampla” que o elegeu e com a qual prometeu governar, algo incompreensível diante da necessidade premente de construir governabilidade.

Nada disso parece importar para Lula. Em seus delírios, a Venezuela voltará a se beneficiar de vultosas obras de infraestrutura financiadas pelo Brasil, como se o Ministério da Fazenda não estivesse catando moedas no vão do sofá para fechar as contas. Lula também promete ajudar a Venezuela a integrar os Brics. Como se sabe, Rússia e China, junto com autocracias como Irã, Turquia e Arábia Saudita, planejam transformar esse grupo econômico de emergentes em um clube geopolítico antiocidental. A julgar pelo obsceno discurso de Lula, é uma narrativa que faz brilhar os olhos do chefão petista, que parece sonhar acordado com o dia de sua consagração como grande líder desse tal “Sul Global”.

Editorial / Notas e Informações, O Estado de S. Paulo, em 31.05.23

Lula tapa o sol com a peneira

 Lula pediu que fosse cobrado; pois vamos cobrá-lo


Maduro e Lula no encontro da Unasul - (Ueslei Marcelino/Reuters)

Ao ver Lula e Maduro na maior confraternização, não há como não pensar: cadê um amigo para dar um toque? Não tem. Apoiadores e aliados políticos tratam o presidente como uma criança mimada que não deve ser contrariada. Imaginam que, com o silêncio, conseguem falsear apoio irrestrito do eleitorado às ações do presidente, quando, de fato, servem de trampolim para que ele se jogue na fogueira.

Lula, por sua vez, usa a Presidência em situações delicadas para fazer seu próprio cercadinho para o militante incondicional. Sabemos o que acontece com quem governa assim. Não pegou bem nem entre os líderes no encontro de sul-americanos. O uruguaio Luís Lacalle Pou, por exemplo, estranhou o encontro bilateral antecipado e o endosso de Lula de que a crise democrática na Venezuela é "narrativa": "É tapar o sol com a mão", disse Pou.

O festerê em torno do ditador venezuelano é um vexame mundial, mas principalmente um escárnio diante dos brasileiros que só apertaram 13 contra a ameaça de que o Brasil virasse exatamente o que foi feito no país vizinho, uma ditadura. A bajulação com a qual Maduro foi recebido parece desdém em relação a um momento em que os alicerces da nossa própria democracia ainda estão fragilizados depois do último governo e sua agenda golpista.

Os eleitores preferem tapar o sol com a peneira e se calam, porque criticar Lula seria engrossar o coro da oposição, que deita e rola. Mas silenciar diante do enaltecimento de um ditador é assumir a própria falta de compromisso com o fortalecimento de nossas instituições.

Em dezembro, ao anunciar seu ministério, Lula pediu que fosse cobrado. "Não deixem de cobrar, porque se vocês não cobram, a gente pensa que tá acertando. Quero dizer em alto e bom som: nós não precisamos de puxa-saco. Um governo não precisa de tapinha nas costas. Um governo tem que ser cobrado todo santo dia."

Pessoal, está liberado.

Mariliz Pereira Jorge, a autora deste artigo, é jornalista e roteirista de TV. Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 30.05.23, às 19h15.

Mesuras ao ditador

No afã de apoiar autoritarismo da Venezuela, Lula apequena diplomacia brasileira

Nicolás Maduro, ditador da Venezuela, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) - (Gabriela Biló/Folhapress)

Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não deixou vestígios de conduta autoritária ao longo de sua longa trajetória política —mesmo velhos ensaios de controle da imprensa nunca foram levados a cabo. O que mancha sua reputação democrática é o apoio, para o qual arrasta o Estado brasileiro, a regimes ditatoriais de seu horizonte ideológico.

Não chegaram a surpreender, portanto, as mesuras e afagos de Lula ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, que voltou a visitar o Brasil depois de oito anos e participou de um encontro de presidentes da América do Sul.

Nada há de errado, do ponto de vista diplomático, em manter relações com regimes autoritários de qualquer orientação, seja por interesses comerciais ou geopolíticos, seja na negociação por liberdade e direitos humanos.

Nesse sentido, a política de enfrentamento a Maduro, conduzida por Jair Bolsonaro (PL) sob a inspiração do americano Donald Trump, mostrou-se estéril —ou, pior, contribuiu para fortalecer o discurso persecutório do vizinho.

Já Lula foi, na segunda-feira (29), muito além de mostrar a correta disposição ao diálogo. Não satisfeito em proporcionar uma recepção de gala ao visitante, prestou-se a defender o regime chavista.

De acordo com o mandatário brasileiro, a caracterização da Venezuela como uma ditadura não passa de uma "narrativa", que pode perfeitamente ser substituída por outra. O país vizinho sofre centenas de sanções internacionais, segundo a narrativa lulista, "porque outro país não gosta dele".

Há zonas cinzentas entre uma democracia plena e um regime autoritário, mas não pode restar dúvida de que a Venezuela há muito cruzou essa fronteira. Esta Folha considera Maduro um ditador desde agosto de 2017, depois da criação de uma Assembleia Constituinte para enfrentar o Legislativo de maioria oposicionista.

Mas o processo de degradação da democracia venezuelana começou bem antes, sob Hugo Chávez, que esteve no poder de 1999 a 2013, quando morreu. O caudilho aproveitou a popularidade obtida graças à alta dos preços do petróleo para aparelhar as instituições e ampliar os próprios poderes.

Maduro assumiu quando os ventos econômicos já mudavam de direção —e patrocinou uma escalada de atrocidades documentadas pela ONU, incluindo torturas e assassinatos, enquanto o país mergulhava numa crise humanitária comparável aos impactos de guerras.

No afã de defender uma esquerda arcaica, obscurantista e autoritária, Lula não apenas alimenta mentiras descaradas. Também apequena a diplomacia brasileira e relativiza o sofrimento de milhões de cidadãos em um país devastado.

Editorial da Folha de S. Paulo, edição impressa, em 30.05.23, às 22h00 (e-mail: editoriais@grupofolha.com.br)

Pressionado na Câmara, governo Lula bate novo recorde e libera R$ 1,7 bilhão em emendas em um dia

Autorização para pagamentos ocorreu nesta terça-feira, dia da votação do Marco Temporal na Câmara dos Deputados


Arthur Lira e LulaArthur Lira e Lula (Cristiano Mariz/Agência O Globo)

Em meio a uma semana conturbada nas relações com o Congresso Nacional, o governo Lula empenhou nesta terça-feira mais R$ 1,7 bilhão em emendas para os parlamentares. O governo enfrenta dias decisivos na Câmara dos Deputados, que ontem aprovou, contra os interesses do Palácio do Planalto, o PL do Marco Temporal. Nesta quarta-feira, deputados e senadores irão votar a MP da Esplanada, outro projeto prioritário para o governo, já que define a organização dos ministérios.

Essa liberação de recursos é a maior, em um só dia, de todo o governo Lula. No início de maio, o GLOBO revelou que o governo tinha realizado empenhos de R$ 700 milhões em um só dia. O governo decidiu acelerar a autorização de pagamento após a derrota na votação que derrubou os decretos de Lula sobre o Marco do Saneamento.

Boa parte do valor saiu dos cofres do Ministério da Saúde. A liberação ocorre também no prazo final programado pelo Fundo Nacional da Saúde, que executa esses pagamentos. O envio de propostas de trabalho pelas prefeituras e governos que receberam os valores terminou nesta semana.

Nesta quarta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se reuniu com seus principais líderes no Congresso e com os ministros da Casa Civil e das Relações Institucionais, Rui Costa e Alexandre Padilha, respectivamente. Após o encontro, o presidente ligou para Arthur Lira, presidente da Câmara. Na conversa, segundo interlocutores do parlamentar, Lira reclamou de dificuldades na articulação do governo. Há a possibilidade de os dois se reunirem ainda hoje.

Incômodos de Lira

Na conversa com o presidente, Lira também relatou incômodo com ataques que tem recebido do senador Renan Calheiros (MDB-AL), aliado do Planalto, nas redes sociais. Os dois são adversários políticos em Alagoas. O presidente da Câmara disse ser preciso "respeito" na política.

A ligação de Lula ao presidente da Câmara acontece na véspera de os deputados votarem a Medida Provisória que reestruturou os ministérios do governo. O texto foi alterado pelo relator, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), esvaziando as pastas do Meio Ambiente e Povos Indígenas.

Dimitrius Dantas, de Brasília - DF, para O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Política externa de Lula tem tom passadista

Presidente brasileiro teve de ouvir, ‘em casa’, pitos dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric

Lula e Maduro no Palácio do Planalto para uma reunião privadaLula e Maduro no Palácio do Planalto para uma reunião privada Brenno Carvalho/Agência O Globo

Em poucas áreas o governo Lula dá tantos sinais de envelhecimento de ideias quanto em política externa. Aguardado por governos do mundo todo e de diferentes matizes políticos com a expectativa de uma nova fase de inserção global do Brasil graças às novas diretrizes, sobretudo concernentes à política ambiental, o presidente decidiu tomar o caminho, também nesse front, de revisitar um passado que a ele parece mais glorioso que aos que olham de fora. O resultado tem sido frustração e um grande grau de constrangimento.

Depois do vaivém retórico relativo à possibilidade, nunca transformada num plano de ação factível, de que o Brasil liderasse um grupo de países para buscar o fim da guerra da Rússia contra a Ucrânia, que teve no desencontro com Volodymyr Zelensky no Japão um último capítulo meio pastelão, Lula resolveu usar uma cúpula de que era anfitrião para lustrar a biografia de Nicolás Maduro e reescrever a História atual da Venezuela, produzindo justamente aquilo que apontou nos críticos ao ditador vizinho: uma narrativa falsa.

O resultado não poderia ser mais embaraçoso. Lula teve de ouvir, “em casa”, pitos dos presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric. Não há nem espaço para que se dê de ombros para a admoestação de Lacalle Pou, pela simplificação de que se trata de um político de direita: as frases duras de Boric frustraram essa saída, sempre conveniente.

O episódio evidencia que, nos sete anos em que esteve longe do poder, o PT perdeu a oportunidade de promover uma atualização da sua diretriz de política externa. Não para se tornar menos progressista ou deixar de ser um partido de esquerda.

Mas para travar contato com e se aprofundar no que a esquerda progressista mais moderna professa em termos de defesa da democracia sem alinhamentos ideológicos automáticos e de prevalência de agendas como a ambiental sobre outras que fizeram mais sucesso no século XX, às quais o presidente brasileiro e seu entorno para temas internacionais permanecem atados.

Boric faz parte dessa nova safra de políticos de esquerda, para os quais não apenas não é tabu chamar ditadores do “mesmo campo” por aquilo que são, como também é necessário diante da ameaça de autocratas de extrema direita em várias partes do mundo. Para ter legitimidade, coerência e sobretudo inteligência para lidar contra o avanço desses ditadores, é preciso não estar comprometido com outros que apenas trocam o garfo de mão.

E, vamos e venhamos, chega a ser difícil mesmo por qualquer viés chamar Maduro ou o ditador nicaraguense Daniel Ortega de políticos progressistas ou de esquerda, dadas a perseguição a inimigos políticos, a violação sistemática de direitos humanos, a opressão a povos originários e a grupos como mulheres e comunidades LGBTQIA+ nos dois países e noutras ditaduras camaradas.

Enquanto insiste em tirar do armário uma roupa cheia de naftalina que, como cantou Belchior, não nos serve mais, Lula vai perdendo também seu grande passaporte para ser o líder que almeja aos olhos do mundo: o protagonismo na agenda verde.

O avanço do Congresso e de setores do próprio governo sobre o Ministério do Meio Ambiente e sobre a política voltada aos povos indígenas tem o potencial de levar o Brasil de volta à condição de pária internacional que gozou nos anos Jair Bolsonaro e de evidenciar a contradição entre o discurso enfático da campanha e a ação dúbia da gestão.

É preciso calcular melhor o poder de estrago das falas de Lula em temas de política externa, sob pena de queimar muito cedo o cacife que ele reuniu ao vencer, que pode, mesmo, ser um ativo importante para ele e para o Brasil. Um chefe de Estado não deve confiar apenas no passado e em sua intuição para falar de temas complexos. Porque aí quem produz narrativas vazias é ele.

 Vera Magalhães, a autora deste artigo, é comentarista de assuntos políticos d'O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Com oito palavras, Boric desmontou discurso de Lula sobre Venezuela

Presidente teve chance de se corrigir, mas insistiu em negar fatos para defender Maduro

O chileno Gabriel Boric em encontro bilateral com Lula em BrasíliaO chileno Gabriel Boric em encontro bilateral com Lula em Brasília (Evaristo Sá / AFP)

Gabriel Boric tem 37 anos. É o presidente mais jovem da América do Sul. Quando nasceu, em fevereiro de 1986, Lula já iniciava sua segunda campanha. Nove meses depois, seria eleito o deputado mais votado da Assembleia Constituinte.

A julgar pela experiência de cada um, o brasileiro teria lições a dar ao chileno. Não foi o que ocorreu na cúpula de ontem em Brasília. Diante de uma dúzia de chefes de Estado, Boric desmontou o discurso de Lula sobre a Venezuela. Ao fim do encontro, resumiu a questão em oito palavras: “Não é uma construção narrativa. É uma realidade”.

Lula acertou ao restabelecer relações diplomáticas com Caracas. Em seguida, errou feio ao relativizar o autoritarismo no país vizinho. Nicolás Maduro sufocou a oposição, amordaçou a imprensa e produziu um êxodo de 7 milhões de refugiados. Seus abusos foram documentados pelas Nações Unidas e são investigados no Tribunal Penal Internacional, que apura crimes contra a Humanidade.

O presidente sabe de tudo isso, mas preferiu apresentar o aliado como vítima de “narrativas”. “O preconceito contra a Venezuela é muito grande”, disse. “Nossos adversários vão ter que pedir desculpas pelo estrago que fizeram na Venezuela”, emendou.

Boric não foi o único a contestar as declarações de Lula. Os presidentes de Uruguai, Paraguai e Equador também usaram a cúpula para condenar o regime de Maduro. A crítica do chileno chamou mais atenção porque ele é um político de esquerda. Apesar disso, recusou-se a fazer vista grossa aos desmandos na Venezuela.

Ontem Lula teve uma chance de se corrigir, mas insistiu em negar os fatos. Ainda cobrou respeito à “soberania” venezuelana, como se criticar um autocrata fosse equivalente a desacatar o país que ele subjuga.

O petista alegou que não pode avaliar a situação no país porque não pisa lá há dez anos. Bastava ler o relatório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, assinado por outra socialista chilena. No texto, Michelle Bachelet empilha casos de “detenções arbitrárias, maus-tratos e tortura” contra críticos de Maduro.

Bernardo Mello Franco, o autor deste artigo, é comentarista de assuntos políticos d'O GLOBO. Publicado originalmente em 31.05.23

Recepção de Lula a Maduro foi vexatória

 Ditador venezuelano foi tratado pelo presidente brasileiro como se fosse um “amigo de fé” democrata

O presidente Lula com Maduro e as primeiras-damas Janja e Cilia FloresO presidente Lula com Maduro e as primeiras-damas Janja e Cilia Flores (Evaristo Sá/AFP)

É conhecido o apego do presidente Luiz Inácio Lula da Silva às “ditaduras amigas” do PT — especialmente, Cuba, Nicarágua e Venezuela —, mas passou muito do tom a recepção efusiva ao ditador venezuelano, Nicolás Maduro, recebido por Lula no Palácio do Planalto com todas as honras de chefe de Estado na véspera da reunião com presidentes da América do Sul.

Num discurso recheado de incoerência e exagero, Lula se referiu ao encontro com Maduro como “momento histórico”. Aproveitou para dizer que o Brasil recuperou o direito de fazer relações internacionais “com seriedade”. Criticou os Estados Unidos pelo embargo econômico “pior do que uma guerra” e, numa ofensa às famílias das vítimas da ditadura, chamou de “narrativas” a constatação de que a Venezuela não vive sob regime democrático. Os presidentes do Uruguai, Luis Lacalle Pou, e do Chile, Gabriel Boric, condenaram as declarações de Lula.

Em que planeta vive ele? Ao contrário do que diz, os ataques à democracia na Venezuela estão longe de ser fantasia. São fatos comprovados por organizações internacionais e locais que tentam resistir à asfixia imposta pelo governo autocrata. Lula parece não querer enxergar o óbvio: o regime chavista, que se perpetua no poder há duas décadas e meia manipulando regras eleitorais e manietando as instituições, é marcado por violação de direitos humanos, censura à imprensa, perseguição a opositores, submissão de Judiciário e Legislativo ao Executivo e práticas perversas que não fazem parte do cotidiano de Estados democráticos.

Pode ser considerado democrático um país que mantém 300 presos políticos e cala qualquer oposição? Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, além de prender jornalistas, políticos, sindicalistas e cidadãos que não seguem à risca a cartilha chavista, o governo Maduro obstrui sistematicamente o trabalho da Assembleia Nacional. A mão de ferro não esconde as crises econômica, social e humanitária que assolam o país. A Human Rights Watch estima que 7 milhões de venezuelanos emigraram. No Brasil, o êxodo pressiona Roraima, estado que recebe contingentes cada vez maiores da população fustigada pelo desemprego e pela miséria.

Lula foi eleito para seu terceiro mandato sob a bandeira da defesa da democracia. Reuniu uma frente ampla num momento em que as instituições republicanas eram ameaçadas pela conspiração golpista que eclodiria no 8 de Janeiro. É no mínimo contraditório que celebre com desenvoltura um regime oposto a tudo que pregou aos eleitores.

Não está errado o presidente brasileiro buscar integração com as nações da América do Sul. O isolamento durante o governo Jair Bolsonaro, regional e mundial, era um equívoco. Também é compreensível o gesto de reaproximação com a Venezuela, cujo governo estava afastado do Brasil desde 2016. Faz sentido o Brasil manter relações com Maduro e até mediar uma eventual transição venezuelana de volta à democracia. Nada disso destoaria da tradição da política externa brasileira.

Mas nenhum outro líder que participou do encontro no Itamaraty foi tão bajulado quanto Maduro. Uma coisa é o governo brasileiro se oferecer como negociador para uma transição à democracia. Outra, bem diferente, é estender tapete vermelho a um ditador, chamá-lo de democrata contra todas as evidências e tratá-lo como “amigo de fé, irmão camarada”. É vexatório.

Editorial de O Globo, em 31.05.23

terça-feira, 30 de maio de 2023

Brasil legal e Brasil real

 Há uma incontestável verdade diante da dessintonia entre a Lei de Execução Penal e a realidade: a prisão se tornou um eficiente fator de aumento da criminalidade

Há um aspecto da vida nacional marcado pelo retrocesso e que gera profundo desalento quanto ao futuro do País. Refiro-me às condições de vida de milhões de brasileiros. Elas estão piorando a olhos vistos. Novas expressões da miséria estão chegando às nossas portas. Como exemplo, temos os moradores de rua e a chamada cracolândia.

Significativa parte da sociedade não se comove e vem se acostumando a conviver com toda sorte de mazelas que deveriam cobrir de vergonha especialmente os segmentos mais privilegiados.

Pode-se pensar que o ordenamento legislativo passou ao largo de todos esses problemas sociais e não editou normas a respeito das respectivas situações. Ao contrário, há leis – e boas leis. Basta citar duas: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei de Execução Penal, que rege o sistema penitenciário.

A questão crucial é precisamente a diferença entre o que é e o que deveria ser segundo o disposto pelas leis. O que está no mundo real é captado pelo legislador. Mas o que consta da lei não é aplicado à realidade. Daí a existência de dois países: o legal e o real.

Essa dicotomia entre o querer do legislador e a sua execução parece ter as suas raízes fincadas no próprio modo de ser do brasileiro. Temos dificuldade de nos submeter a normas e regras de conduta. O jeitinho virou uma prática nacional e criou uma verdadeira cultura da desobediência. Os pequenos e os grandes desvios de conduta nos levam a contornar o cumprimento das leis.

Não apenas as que impõem regras de condutas individuais são desobedecidas, mas também aquelas que são chamadas de leis programáticas. Estas são editadas para regrar situações específicas que necessitam de ter suas dificuldades superadas e as suas mazelas sanadas.

Nessas hipóteses, as razões do descumprimento são outras. Pode-se apontar a inércia do Estado e a insensibilidade da sociedade. O desinteresse histórico pelas carências sociais encontra as suas raízes na ausência de solidariedade, no individualismo egoísta e na rígida divisão das várias camadas sociais, que pouco se comunicam.

O sistema penitenciário é regido por uma dessas leis, a de Execução Penal. Pois bem, em seu artigo primeiro está gravado que o seu objetivo é “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Inúmeros dos seus dispositivos estão voltados para o alcance daquele objetivo. Assim, a lei prevê: a existência de um Comitê de Classificação composto por psiquiatra, psicólogo e assistente social; assistências à saúde, jurídica, educacional, religiosa; trabalho interno e externo; preparação técnica do pessoal penitenciário; apoio ao egresso; e vários outros comandos voltados ao desiderato de inserção social de quem cumpriu pena. As normas contidas nessa lei têm como fonte a Constituição federal.

No entanto, o sistema de proteção ao encarcerado e ao egresso é sistematicamente descumprido sem nenhum escrúpulo ou sinalização de futura obediência à lei. Ao contrário, a situação carcerária se agrava e entra no rol já extenso das trágicas iniquidades sociais.

O Estado se empenha na construção de prisões, mas não investe no homem preso e não o prepara para a liberdade. A sociedade, por sua vez, em face do crime, exige o encarceramento como única resposta a ele. Este lavar de mãos coloca o detento no quase total abandono. Esquece-se de que as prisões não são perpétuas. O preso se transformará em egresso e voltará a conviver em sociedade, estando, em face do esquecimento, com uma carga criminógena superior a quando entrou no sistema. O corpo social deveria acolher o egresso ao menos por uma questão de autopreservação. Se não por solidariedade humana, por egoísmo.

Tanto os preceitos da Lei de Execução Penal não são cumpridos que, dos 900 mil presos no Brasil, 70% já foram clientes do sistema. Voltam ao cárcere porque a maioria não foi preparada para a liberdade. Sem apoio, o egresso encontra a família desagregada, são inexistentes as oportunidades de trabalho e o estigma de ex-presidiário o acompanha. Ele acaba por não resistir aos apelos do crime organizado e volta a delinquir. Note-se que, desse total, 45% não foram ainda julgados.

Há uma verdade incontestável em face da dessintonia entre a lei que regula o sistema penitenciário e a sua realidade: a prisão se transformou em eficiente fator de aumento da criminalidade. Há uma trágica equação: mais prisões, mais crimes. Mesmo sendo notória as suas inumanas e repugnantes condições, a cadeia não constitui fator de inibição da prática de novos crimes.

O brado da sociedade por mais prisões deve transformar-se em apelo humanitário para que o Estado atenda a todas as imposições legais de adequação do sistema penitenciário aos desideratos de reinserção do preso à sociedade. É imprescindível que o sistema não mais atue em sentido contrário aos seus próprios objetivos. O Brasil legal precisa se impor ao Brasil real.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, o autor deste artigo, é Advogado. Publicado n'O Estado de S. Paulo, em 30.05.23

segunda-feira, 29 de maio de 2023

Acabou o presidencialismo?

Na intersecção dos planos externo e doméstico, o meio ambiente é símbolo dos percalços do governo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante evento da Fiesp, em São Paulo - (Bruno Santos/Folhapress)

Durante a campanha eleitoral, Lula referiu-se a Bolsonaro como um "bobo da corte". "Acabou o presidencialismo. Bolsonaro não manda nada, é refém do Congresso". Na primeira reunião ministerial do governo reconheceu o risco de tornar-se um: "nós não mandamos no Congresso, nós dependemos dele". Decorridos cinco meses, já vemos os sinais que o risco está se materializando.

Era previsível: trata-se de um presidente hiperminoritário cujo partido detém 13% da Câmara e que conta com um apoio leal de meros 130 deputados (1/4 da câmara). Essa configuração já existiu no passado. Mas muita coisa mudou: a economia, estressada; o Legislativo, muito mais centralizado (legado da pandemia e Bolsonaro), muito menos fragmentado, e com muito mais recursos; o país virando à direita.

Sim, as derrotas do governo foram muito além do esperado. Não se trata de batalhas perdidas em iniciativas pontuais: a sina da MP da reorganização do Executivo atinge a própria capacidade do governo de definir a estrutura ministerial e nela distribuir competências. É o núcleo duro da estratégia do Executivo na montagem da coalizão governativa. O malogro aqui é inédito no presidencialismo brasileiro. E surpreende sobretudo porque começou com um bônus inesperado (o 8 de janeiro).

A forma do Executivo acomodar uma maioria congressual com preferências distintas envolve antes de tudo a partilha do gabinete.

Por isso Lula criou 17 pastas novas. A reorganização é uma forma de acomodar inúmeros interesses. É por isso que em países hiperfragmentados os ministérios chegam a mais de 70, como já discuti aqui na coluna.

A estratégia global do governo é nova. Marcada por uma espécie de hiperdelegação no plano doméstico, ele subestimou enormemente as dificuldades potenciais. No plano externo os frutos mais fáceis de colher, o malogro virou vexame.

Na intersecção dos dois planos, o meio ambiente é crítico. O símbolo do fracasso.

Há dois cenários polares nas relações Executivo-Legislativo. O primeiro é ilustrado pelo cesarismo do presidente colombiano, Gustavo Petro, que, em resposta à derrota de sua reforma sanitária, destituiu titulares dos ministérios e ameaçou: "a tentativa de restringir as reformas pode levar à revolução. O que é preciso é que o povo esteja mobilizado". Chamemos de pesadelo de Juan Linz (1926-2013): a crise de legitimidade dual quando um presidente minoritário unilateralmente tenta impor a sua agenda ao Congresso. O segundo, seria um presidente que navega os mares da governabilidade em modelo pleno de partilha de poder, característico de frentes amplas.

Entre um e outro há um continuum de possibilidades intermediárias. Todos complicados.

 Marcus André Melo, o autor deste artigo. é Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição impressa, em 28.05.23, às 15h23

Liberdade presa e corrupção solta

Enquanto a liberdade está sob fogo cruzado, intenso e cotidiano, a corrupção passa por incrível arquitetura de narrativa visando à demolição da verdade e reconstrução da história

A sociedade assiste, atônita, a um fenômeno surreal patrocinado por altas autoridades da República. A liberdade de expressão, fortemente protegida no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição, vem sendo fustigada e solapada. O constituinte, certamente movido por uma compreensível reação aos anos da ditadura militar, quis dar à liberdade um valor essencial e inegociável. O que se observa, no entanto, é a frequente negação do espírito e da letra da Constituição. Sempre em nome da defesa da verdade e da democracia.

O combate à mentira factual, que deveria se pautar pelo que Alexandre de Moraes chamou de “intervenção mínima”, com a posse do ministro na presidência da Corte Eleitoral acabou não tendo rigorosamente nada de mínimo. Em vez da ação pontual, destinada então a remover da propaganda eleitoral e das mídias sociais as informações factuais comprovadamente falsas, dezenas – talvez centenas – de cidadãos brasileiros tiveram tolhido o seu direito de se manifestar sobre qualquer tema, graças à exclusão de suas contas em mídias sociais, violando tanto a liberdade de expressão quanto o princípio de proporcionalidade. E este tipo de intervenção desproporcional cresceu muitíssimo, mesmo depois da realização do pleito.

Estamos assistindo, em nome do combate às fake news, à desconstrução programada da liberdade de expressão e à destruição das próprias normas constitucionais. Atualmente, qualquer ofensa, real ou imaginária, passa a ser resolvida em clima de rito sumário. O ministro “ofendido”, como se não fizesse parte de um Poder democrático, assume o papel de polícia, promotor e juiz da própria causa. É exatamente isso que estamos vendo no eterno inquérito das fake news.

Por outro lado, o ministro da Justiça reúne representantes das mídias sociais para dizer sem qualquer sutileza que a liberdade de expressão não existe mais. Está sepultada. Assume o papel de defensor da verdade, da liberdade e da democracia. Ele é, juntamente com o ministro Moraes, mais um tutor dos brasileiros. Julga-se responsável pelo que podemos ou não ler, falar ou comentar. O ministro, juiz e político, é um bom orador. Deveria, no entanto, medir as consequências das suas palavras e conter os arroubos de uma oratória claramente intimidatória.

Enquanto a liberdade está sob fogo cruzado, intenso e cotidiano, a corrupção passa por uma incrível arquitetura de narrativa com o objetivo de demolição da verdade e de reconstrução da história. Alguém duvida de que a cassação do mandato do deputado Deltan Dallagnol, ex-procurador da Lava Jato, é mais um capítulo do desmonte da operação e um precedente preocupante na Justiça Eleitoral?

Uma decisão surpreendentemente unânime, que consumiu cerca de um minuto, foi vivamente comemorada por um governo que tem como projeto a vingança e como visão estratégica o olhar fixo no retrovisor. Ao longo de mais de 30 anos como ministro, Marco Aurélio Mello foi presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em três períodos diferentes. Para ele, o julgamento de Deltan deixa a Justiça Eleitoral “muito mal”. E prosseguiu: “Enterraram a Lava Jato, agora querem fazer a mesma coisa com os protagonistas. Isso, a meu ver, não é justiça, é justiçamento”, avaliou o ministro, conhecido pela franqueza. Eles esquecem algo que Machado de Assis ressaltou: o chicote muda de mão. É isso. Festejar o arbítrio hoje pode ser chorar o abuso amanhã.

Independentemente das razões jurídicas esgrimidas, a cassação de Deltan Dallagnol foi a cassação de 345 mil eleitores. Foi, sem dúvida, um triste capítulo na sequência de politização da justiça brasileira. Protegem-se os corruptos, sobretudo o líder inconteste da criminalidade. Descaradamente. Usam-se artifícios formais para deformar a justiça. Mas os que combatem os crimes são perseguidos e punidos. Trata-se de recado claro: o crime compensa.

Agora, numa tentativa de recuperação da imagem e depois de anos de silêncio, apresentam o julgamento do ex-presidente Fernando Collor como um troféu de firmeza contra a corrupção. Serão implacáveis. Como se isso apagasse uma história de assustadora leniência.

Armados de um cinismo cortante, argumentam que a Operação Lava Jato, “com sua sanha punitiva”, destruiu empresas, criminalizou a política e condenou inocentes. Como se não existissem confissões documentadas, provas robustas e milhões devolvidos aos cofres como resultado de acordos. Quem devolve, por óbvio, reconhece o roubo. Para esta gente, no entanto, tudo precisa ser apagado. Mentem. Compulsivamente. Mentem com voz melíflua, sem ruborizar e mover um músculo do rosto. São exímios na arte da falsidade.

O Brasil, não obstante os reiterados esforços de implosão da verdade, ainda conserva importantes reservas éticas. Apelo, por isso, aos homens de bem, aos cidadãos que têm brilho nos olhos. Eles existem. E são mais numerosos do que podem imaginar os voluptuosos detentores do poder.

Apelo, mais uma vez, aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Respeito-os. Não julgo suas intenções. Conversem, façam uma autocrítica, revejam posições e pensem no bem maior do Brasil.

Carlos Alberto Di Franco, o autor deste artigo, é Jornalista e consultor de empresas de comunicação. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 29.05.23

sexta-feira, 26 de maio de 2023

O desencontro em Hiroshima

As chances de avançar na mediação da guerra na Ucrânia não foram todas perdidas. Mas será preciso um roteiro para recuperar o caminho


Assessor de Zelenski diz que fala de Lula distorce a verdade

Nos últimos anos de minha passagem pelo Congresso Nacional, percebi a crescente importância da política externa no Brasil pelo número grande de estudantes que vinham acompanhar as sessões da Comissão de Relações Exteriores. O Brasil se internacionalizava cada vez mais e o interesse dos jovens abarcava também novas chances no mercado de trabalho.

O governo que se instalou em 2023 talvez seja o mais voltado para uma política externa, desde o início da redemocratização. Isso também pode ser um reflexo dos novos tempos.

Dois importantes fundamentos de nossa inserção no mundo estão sendo enfatizados: a proteção dos recursos naturais, incluindo o desenvolvimento sustentável da Amazônia, e a luta pela paz mundial.

A política de meio ambiente foi esboçada pelo presidente Lula no seu discurso em Sharm elSheikh, no Egito. Foi uma espécie de passaporte para a volta do Brasil como protagonista no cenário internacional. Depende ainda de realização prática, mas as intenções foram claras.

O presidente Lula decidiu levar adiante nossa tradição de luta pela paz. No passado recente, já tivemos um papel importante mediando conflitos entre Equador e Peru e contribuindo, em 1988, para resolver uma disputa de quase dois séculos.

Mas agora, ancorado na nossa tradição diplomática, Lula decidiu elevar o sarrafo de nossa capacidade mediadora, tratando de um conflito na Europa, a guerra na Ucrânia, que envolve, de um lado, os principais países ocidentais e, de outro, a Rússia, que, além de europeia, tem raízes na Ásia. De um ponto de vista biográfico, é uma escolha inteligente. Mesmo em caso de fracasso, Lula passará à História como aquele que tentou, sem êxito, promover a paz numa Ucrânia devastada pela guerra.

Há muitos caminhos para quem se interessa em fortalecer o papel do Brasil no mundo. É possível criticar a iniciativa de Lula, da mesma forma que é possível aplaudi-la incondicionalmente. No entanto, há uma espécie de trilha entre esses dois caminhos que significa aceitar o grande desafio de mediar uma guerra desta proporção e, simultaneamente, contribuir para que a mediação seja muito bem feita, isto é, colocar o sarrafo mais alto ainda. Alguns erros foram cometidos no caminho. Mas ninguém pode afirmar que a mediação esteja irremediavelmente perdida.

A primeira dificuldade surgiu quando Lula afirmou a um jornal francês que a Ucrânia poderia abrir mão da Crimeia. Não se trata de uma tese estapafúrdia. Intelectuais como Edgar Morin a defendem abertamente. Morin, aos 101 anos de idade, acaba de lançar um livro sobre a guerra propondo que a Ucrânia abra mão da Crimeia, onde a população russa é maioria, seguida dos tártaros e ucranianos. O escritor francês vai além, propondo que a Ucrânia abra mão também de Donbass, região industrializada por Stalin, e se integre na Otan.

A diferença entre Edgar Morin e Lula é muito simples: um é potencial mediador, o outro, apenas um intelectual.

As declarações na China condenando a ajuda militar do Ocidente à Ucrânia também não foram bem recebidas, a ponto de muitos observadores afirmarem que Lula estava próximo de Vladimir Putin.

E, finalmente, na reunião do Grupo dos 7, em Hiroshima, Lula e Zelensky se desencontraram, o que torna ainda mais difícil a mediação.

Não se trata, aqui, de determinar a culpa a partir de relatos diferentes na imprensa. O importante é que o encontro tivesse acontecido. Outros líderes, inclusive mais próximos da Rússia, como o indiano Narendra Modi, se encontraram com Zelensky. O argumento de Lula de que o a reunião dos 7 não tratava de guerra não se sustenta: um potencial mediador precisa aproveitar todas as oportunidades para realizar sua tarefa.

As chances de avançar na mediação da guerra não foram todas perdidas. Mas será preciso um roteiro para recuperar o caminho e não se contentar apenas com a intenção mediadora, mas com a eficácia da iniciativa.

Em primeiro lugar, seria importante que Lula falasse desses temas a partir de um texto, nunca improvisando. Não há nada demais nisso, apenas um reconhecimento de que relações internacionais são delicadas e demandam uma cuidadosa escolha das palavras.

Em segundo lugar, seria importante que o governo brasileiro mostrasse alguma empatia com a Ucrânia, além, naturalmente, de condenar a invasão armada. Uma das hipóteses é receber para uma audiência os representantes da colônia ucraniana no Brasil. Existe uma falsa impressão de que os ucranianos são de direita e que a resistência é formada por fascistas. O presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira, Vitório Sorotiuk, lutou contra a ditadura, se asilou no Chile e na Europa e mantém um bom nível de informações sobre o que se passa por lá.

É verdade que o ex-ministro Celso Amorim esteve na Ucrânia como enviado especial, mas, no pé em que as coisas estão, seria necessário reencontrar a aura de neutralidade.

O governo e seus apoiadores podem achar um pouco audacioso fazer sugestões não tendo nenhum tipo de vínculo ou de relação com eles. O problema central é que é muito difícil de se desvincular da condição de brasileiro e tratar nossa política externa como se fosse algo desenvolvido em outro país. Nada demais esperar dela que funcione na prática.

Fernando Gabeira, o autor deste artigo, é Jornalista. Publicado originalmente n'O Estado de S. Paulo, em 26.05.23

"Saída de Marina seria desastre internacional para Lula"

Em entrevista à DW, ambientalista Pedro Roberto Jacobi diz que reorganização ministerial pode comprometer importantes instrumentos de fiscalização ambiental e prejudicar a ministra Marina Silva, respeitada mundialmente.

Pedro Roberto Jacobi (Foto: Leonor Calasans/IEA-USP)

O Congresso impôs mais uma derrota à pauta ambiental do governo de Luiz Inácio Lula da Silva nesta quarta-feira (24/05). Na apreciação da Medida Provisória (MP) 1.154/23, que reorganiza a estrutura ministerial, os parlamentares enfraqueceram o Ministério do Meio Ambiente (MMA), retirando da pasta chefiada pela ambientalista Marina Silva atribuições de fiscalização importantes, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e a Agência Nacional das Águas (ANA).

Além disso, o texto também transferiu a demarcação de terras indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, de Sônia Guajajara, para o Ministério da Justiça.

A matéria se soma a outras que têm sido criticadas por ambientalistas, como o novo marco do saneamento e, mais recentemente, o embate entre o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Ministério de Minas e Energia sobre a extração de petróleo pela Petrobras na foz do rio Amazonas, no Amapá.

Em entrevista à DW, o ambientalista Pedro Roberto Jacobi, professor titular do Instituto de Energia e Ambiente da USP, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) e presidente do conselho América do Sul da instituição Governos Locais pela Sustentabilidade (ICLEI), considera que as mudanças podem comprometer importantes instrumentos de fiscalização ambiental do governo.

Jacobi, no entanto, diz que o governo Lula está emparedado por um Congresso "conservador" e "negacionista", que tenta manter o esvaziamento do mecanismo de combate ao desmatamento que ocorreu nas gestões anteriores.

O ambientalista também vê a necessidade de o presidente Lula negociar a questão do clima internacionalmente, assim como tem feito com as tentativas de paz na Ucrânia.

Segundo Jacobi, as disputas na área ambiental, atualmente, são diferentes da questão de Belo Monte, que causou a saída de Marina Silva na segunda administração de Lula, em 2008. O ambientalista também não vê uma possível repetição das consequências políticas dentro do governo como naquela ocasião.

"Não posso acreditar que o Lula convidaria a Marina e, daqui a pouco, a Marina vá e diga ‘tchau'", destaca, acrescentando que, se isso ocorresse, seria um "desastre internacional" para a terceira gestão do pestista.

Leia a entrevista na íntegra:

DW: O que essas mudanças previstas na MP representariam em termos de combate ao desmatamento?

São várias questões. No caso do Cadastro Ambiental Rural (CAR), que vai para o Ministério de Gestão e Inovação, é uma ferramenta fundamental de combate ao desmatamento. Mas é uma questão muito desafiadora que exige fiscalização, porque é autodeclaratório. E o que está colocado aí é que há um risco de que essa mudança afete diretamente a política de monitoramento e controle do desmatamento.

Já o tema da demarcação das terras indígenas, que vai para o Ministério da Justiça, a própria ministra [dos Povos Indígenas], Sônia Guajajara, afirmou que não é algo muito problemático, porque o ministro da Justiça, Flávio Dino, tem uma preocupação com esse tema. Mas, de qualquer maneira, se coloca uma questão real: se cria um Ministério dos Povos Indígenas e já se tira poder dele.

Temos também a Agência Nacional das Águas (ANA), que fica com o Ministério de Integração e Desenvolvimento Regional. É um órgão que está muito fragilizado, foi muito enfraquecido. Existe uma parcela considerável de pessoas sem acesso a água e sem acesso a saneamento.

O MMA estava totalmente fragilizado pela gestão desastrosa dos últimos anos e, com isso, vai perder um tanto da sua potência. Uma das grandes questões do MMA é que já não se tem muitos recursos financeiros, que agora estão indo para outras pastas.

É uma quantidade de problemas que se acumulam. Quando falamos do MMA, estamos considerando novamente a questão de não se ter recursos, e isso faz com que a pressão dos agentes econômicos fale mais alto – e eles estão representados no Congresso, essa é a realidade.

Quais interesses econômicos seriam esses? O setor ruralista, por exemplo?

Sem dúvidas, o setor ruralista. Mas também há os interesses econômicos por trás da privatização do saneamento. E acho que não dá para desconsiderar essa visão também economicista que está presente numa visão desenvolvimentista mais clássica. A palavra que temos que usar hoje é desenvolvimento sustentável, por mais que seja genérica. Isso é o que as Nações Unidas propõem, que é chegar a metas mais sustentáveis. Nem toquei no tema do clima porque ainda está indefinido qual será a autoridade climática dentro dos ministérios.

Esses interesses econômicos estão presentes nas câmaras municipais, nas assembleias estaduais, no Congresso. E, lamentavelmente, a sociedade tem escolhido cada vez piores representantes para a democracia, que são pessoas que têm um discurso falso, negacionista, e não estão enxergando questões muito concretas.

É preciso se adaptar a uma realidade que está colocada hoje. O tema clima é transversal a todos os outros temas, porque falamos em energias não renováveis, impactos sobre o clima. Falamos de água, do impacto no clima com excesso de água e falta de água.

Até que ponto o Congresso está impondo essa realidade ao governo Lula?

Temos que lidar com a realidade política, que não é nem um pouco favorável ao governo que foi eleito. Ele está altamente emparedado por um Congresso que é composto por um conjunto de partidos políticos que fazem parte dessa coalizão muito problemática que o governo conseguiu organizar, dentro das suas extremas precariedades, para garantir aprovações no Congresso, como no caso recente da área econômica.

É sempre bom lembrar que em qualquer governo, não há exceção no planeta, o que fala mais alto é a economia e, depois, o social.

É claro que, do ponto de vista internacional, para a imagem do Brasil, é extremamente importante o tema ambiental e da Amazônia. O que vai se ver depois de todo alarde, de toda a fala do Lula no G7 e em outros momentos no exterior. Está colocada uma questão que pode trazer enormes riscos, inclusive para os apoios e financiamento.

Mas nós temos que lidar com isso concretamente. É claro que há preocupação. Mas existe uma palavra-chave que é governabilidade, e essa realidade não podemos ignorar.

Até que ponto isso mostra um certo descaso de Lula com as questões ambientais, já que tivemos recentemente o Ibama proibindo, à revelia do governo, a exploração de petróleo no Amapá? O discurso internacional do Brasil como potência ambiental é só teoria?

Se for só teoria, vai ser muito ruim para nós. É a única coisa que posso dizer. O Lula se meteu a negociar a questão da paz na Ucrânia, mas ele também tem que negociar o clima, tem que estar em cima desse tema. O presidente foi um negociador a vida inteira, até mesmo pela sua história como sindicalista.

Acho que, neste momento, o Lula está tomando um pouco de cuidado, ao mesmo tempo em que está sinalizando vetar uma legislação predatória para a Mata Atlântica. Aí ele já diz "isso, não". Mas, na hora está se discutindo uma reorganização de ministérios a partir de uma proposta do Congresso, porque é assim que se vê – o governo não ia propor um ministério e desmontá-lo.

Essa é uma herança de todos esses anos, que vem desde o Michel Temer, aqueles atores que perderam espaço querem voltar a ganhar. Eu entendo um pouco dessa maneira.

Os próprios negociadores internos do Lula, o [ministro da Articulação] Alexandre Padilha e o [ministro das Cidades] Rui Costa não vêm de um histórico ambientalista. Inclusive o histórico do Rui Costa, na Bahia, como governador, não é dos melhores. O próprio [ministro da Fazenda] Fernando Haddad não foi um grande defensor do meio ambiente, é só ver na gestão municipal dele em São Paulo.

Eu diria que temos que esperar fatos concretos, o que vai ser vetado quando chegar a hora da aprovação da matéria. Vejo um pouco dessa maneira. Não posso acreditar que o Lula convidaria a Marina e, daqui a pouco, a Marina vá e diga "tchau".

Seria uma catástrofe na área ambiental do governo caso Marina Silva deixasse o comando do Ministério do Meio Ambiente?

Seria um desastre, não do ponto de vista brasileiro, porque somos pouco preocupados com o meio ambiente. Mas, internacionalmente, seria um desastre. Não tenho dúvidas, porque houve todas essas promessas ambientais, e ela é uma pessoa que está ancorando, legitimando isso.

Quem é Alexandre Silveira [ministro de Minas e Energia] em termos internacionais? 

Mas quem é a Marina, já sabemos. É alguém que tem uma história que vai desde a época do Chico Mendes. Tem todo um reconhecimento, é uma pessoa íntegra, que conheço bem.

Em termos nacionais, [uma possível saída dela] não ia ser uma questão pesada, mas em termos internacionais, impactaria. E acho que o Lula deve estar medindo isso muito bem e conversando com ela.

O Congresso tem essa cara. Além disso, há um passivo terrível em todas as áreas [deixado do governo de Jair Bolsonaro]. Penso em uma perspectiva em que a Marina sabia em que encrenca estava entrando. Acho que ela vai ter que se acostumar a negociar, a ganhar os espaços de alguma maneira. Agora, não é uma questão interna do governo, como foi no caso de Belo Monte. É uma disputa diferente. Quem está emparedado é o governo, e a Marina faz parte do governo.

Fábio Corrêa para a Deutsche Welle Brasil, em 25.05.23